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SUMÁRIO:
I –Resulta da matéria assente que a notificação da liquidação impugnada foi efetuada sem precedência de notificação ao interessado (Requerente) do projeto de liquidação e fixação de prazo para audição prévia. Foi violado o disposto no n.º 3, do artigo 76.º e no art. 60º da LGT. Esta violação consubstancia uma preterição de formalidade essencial, invalidante do ato final.
II – A liquidação impugnada, na parte não revogada pela AT e mesmo que se considerasse relevante o conteúdo na nova liquidação emitida como resultado dessa revogação, enferma de vício de forma por violação do direito de audição, devendo ser anulada. Ao que acresce a falta absoluta de fundamentação, porquanto a liquidação impugnada é omissa quanto às normas jurídicas em aplicação, quanto à concretização dos factos tributários e quanto à determinação do valor do rendimento ou do imposto.
III - A liquidação de IRS impugnada, na parte que considera como base de tributação das mais-valias realizadas pela Requerente mais de 50% do seu valor, carece de fundamento legal, concluindo-se pela incompatibilidade do disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) com o artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), o que determina a procedência do pedido arbitral, a declaração ilegalidade da liquidação de IRS impugnada, a sua anulação parcial e o reembolso do imposto pago em excesso acrescido de juros indemnizatórios. O facto de atualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem a opção prevista no artigo 72º do CIRS, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes e cujo cumprimento por não residentes é, na prática, inviável atentas as características próprias do imposto, que é por natureza único, pessoal e progressivo.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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No dia 25/11/2020, A..., NIF ..., cidadão de nacionalidade espanhola, residente na Avenida ..., ..., ..., na cidade de Léon, em Espanha, doravante designado por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e do disposto no artigo 99º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).
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O objeto imediato do pedido arbitral é a impugnação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, deduzida contra o ato de Liquidação de IRS 2017 nº 2020..., de 09-04-2020, com valor a pagar de 22.524,13€, referente ao ano de 2017, emanada da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), Serviço de Finanças de ..., com sede na Rua ..., ..., ..., na freguesia de ..., do concelho de ... .
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 26- 11-2020 e automaticamente notificado à AT. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT. Assim, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, no dia 18/01/2021, designou a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, que aceitaram.
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Em 19-01-2021, a AT notificou o CAAD da decisão de revogação parcial do ato de liquidação de imposto impugnada, de acordo com o previsto no artigo 13º do RJAT. Seguidamente, o CAAD notificou o Requerente, por despacho de 19-01-2021, para que este tivesse oportunidade de se pronunciar sobre o interesse no prosseguimento dos autos. O Requerente pronunciou-se, por requerimentos apresentados em 30-03-2021 e 13-04-2021, pelos quais se posicionou, mantendo interesse no prosseguimento dos autos, por considerar que, independentemente da decisão de revogação parcial do ato impugnada, subsiste ilegalidade da liquidação subsequente, pelo que o processo prosseguiu a sua tramitação, seguindo-se a constituição do tribunal arbitral em 03-05-2021. Na mesma data foi proferido despacho arbitral, nos termos previstos no artigo 17º do RJAT, pelo qual a AT foi notificada para apresentar a sua resposta e juntar o processo administrativo.
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A AT apresentou a sua resposta em 06-06-2021 e, em 17-06-2021, juntou aos autos o processo administrativo (PA).
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Considerando que no pedido arbitral o Requerente indicou prova testemunhal, por despacho de 05-07-2021, o Tribunal arbitral notificou as partes pare se pronunciarem sobre a data proposta para a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT no dia 06-09-2021, pelas 14h30m, e para o Requerente se pronunciar sobre a matéria de facto a inquirir as testemunhas, sobre o interesse em manter a diligência de prova face aos desenvolvimentos do processo e à revogação parcial da liquidação impugnada e, por último, sobre a possibilidade de dispensa da reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
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Em 13-07-2021, o Requerente pronunciou-se através de requerimento junto aos autos, declarou considerar dispensável a inquirição das testemunhas e no qual apresentou a nova liquidação, que lhe foi notificada, mas que, do seu ponto de vista, não eliminou a ilegalidade subsistente na liquidação do imposto, o que justifica o prosseguimento dos autos. Justificação que apresentou nos termos seguintes:
«(…) Seja como for, o rendimento considerado já tem por base o incremento patrimonial com a correcção monetária. Acontece que subsistem as questões colocadas nos autos, a saber: a violação do princípio da participação, por o sujeito passivo não ter sido notificado para apresentar a declaração e por não ter sido notificado do projecto de declaração oficiosa e da própria declaração oficiosa; a falta de fundamentação, por não ser inteligível, na liquidação primitivamente impugnada como na substituta, o rendimento considerado (o que é agora evidente pelos motivos que referimos no requerimento de 10 de Fevereiro de 2021), e por não constar, em nenhuma das liquidações, a taxa utilizada e o enquadramento legal; a circunstância de não se ter considerado o incremento patrimonial em apenas 50%, contrariando a jurisprudência consensual sobre a matéria, a que já nos referimos no requerimento inicial e no requerimento de 10 de Fevereiro de 2021. »
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Seguidamente, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, prosseguindo a tramitação dos autos para alegações escritas, a apresentar no prazo de 10 dias, igual e sucessivo. Foi, ainda, fixado como prazo provável para a prolação da decisão arbitral o que resulta do disposto no nº 1 do artigo 21º, ou seja, até 3 de novembro de 2021. Em 23-08-2021 o Requerente apresentou as suas alegações escritas. O prazo para prolação da decisão arbitral veio a ser prorrogado, nos termos do disposto no nº2 do artigo 21º do RJAT, por despachos arbitrais proferidos em 29-10-2021 e 28-12-2021, passando a data-limite para o dia 3 de março de 2022.
II – Saneamento do Processo
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do artigo 5.º e da alínea a), do n.º 2 do artigo 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e no artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo é o próprio e as partes são legítimas, têm personalidade e capacidade jurídica e judiciária.
O processo não enferma de nulidades.
Nesta conformidade o Tribunal está em condições de conhecer do pedido.
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Posto isto, cumpre decidir sobre a matéria de facto e, em conformidade, sobre a matéria de direito cuja apreciação foi suscitada neste pedido arbitral.
III - Decisão sobre a matéria de facto
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Factos Provados:
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Como matéria de facto relevante, o Tribunal arbitral dá por provados os seguintes factos:
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O Requerente é médico e tem nacionalidade espanhola;
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Em 2001 passou a residir em Portugal, onde fez o internato em medicina;
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No dia 9 de setembro de 2002, no Segundo Cartório Notarial de ..., o Requerente adquiriu, pelo preço de setenta mil euros, a fração autónoma ..., no ..., lado ..., do prédio urbano sito na Rua ..., nºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e ..., na freguesia de ... (...), do concelho de Braga, inscrito na matriz predial urbana dessa freguesia sob o artigo ... destinado exclusivamente a habitação, com entrada com o nº ... de polícia, com o valor patrimonial de €30.059,56;
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O Requerente fixou a sua residência própria permanente na habitação adquirida, onde residiu até 2007, enquanto trabalhava como médico no Hospital de ...;
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Durante o período de permanência em Portugal auferiu alguns rendimentos da categoria B;
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Desde março de 2008 o Requerente regressou a Espanha depois de rescindir o contrato de trabalho que tinha em Portugal;
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O Requerente não declarou a cessação da atividade de categoria B;
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Os documentos nºs 2 a 7 juntos ao pedido arbitral provam que de março de 2008 a março de 2011, o Requerente integrou o quadro clínico do Hospital de ..., em Espanha e desde 1 de abril de 2011 até ao momento da apresentação do pedido arbitral encontra-se ao serviço “Hospital ...;
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Entre março de 2008 e dezembro 2016, não existem evidências de o autor ter exercido, em Portugal, qualquer atividade profissional, por conta doutrem ou própria, nem teve quaisquer rendimentos em Portugal, fossem do trabalho, de capitais ou quaisquer outros;
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De 2012 a 2016 o Requerente apresentou as suas declarações de rendimentos em Espanha;
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No ano de 2017, o Requerente vendeu o imóvel descrito em c), por escritura celebrada no dia 30 de agosto de 2017, celebrada na Conservatória do Registo Predial de ..., pelo preço de €112.500,00 e com o valor patrimonial tributário de €83.040,00;
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O Requerente não apresentou declaração de rendimentos em Portugal relativa ao ano de 2017;
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Em maio de 2020 foi emitida a liquidação oficiosa de IRS, referente aos ganhos obtidos em 2017, em Portugal, notificada ao requerente sem audição prévia;
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No dia 14 de maio de 2020, o Requerente foi notificado em Espanha, através de terceira pessoa, da liquidação oficiosa de IRS, com o nº 2020-..., emitida pelo Serviço de Finanças de ..., da qual consta:
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Em 30 de maio de 2020 o Requerente apresentou Reclamação Graciosa, rececionada no SF de ... no dia 6 de julho de 2020, com fundamento em ilegalidade;
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Até à data de apresentação do pedido arbitral a Reclamação Graciosa não tinha sido decidida;
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Em 25-11-2020, os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral.
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Em 19-01-2021, no seguimento da notificação à AT do pedido arbitral, esta exerceu a possibilidade consagrada no artigo 13º do RJAT, e revogou parcialmente a liquidação oficiosa objeto de reclamação graciosa e impugnada em sede arbitral;
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Em 1 de abril de 2021, o Requerente foi notificado de nova liquidação de IRS, nos termos seguintes:
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FACTOS NÃO PROVADOS
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Não existem factos que devam considerar-se como não provados com relevância para a decisão final.
C) FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
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Quanto à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada, como bem resulta do disposto no artigo 123º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 607º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.
No presente caso, todos os factos descritos nas alíneas a) a p) foram considerados como provados com base na prova documental, junta pelas partes, a Requerente em anexo ao pedido arbitral, bem assim como da prova documental constante do Processo Administrativo junto pela AT e o facto constante na alínea q) resulta da informação registada no sistema de gestão processual do CAAD.
IV – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO
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Assente a matéria de facto, importa delimitar as questões de direito a decidir. Seguindo a ordem de alegação dos vícios imputados ao ato impugnado pelo Requerente no pedido arbitral, as questões de direito então suscitadas foram as seguintes:
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Violação do princípio da participação por violação do direito de audição;
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Falta absoluta de fundamentação;
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O encerramento oficioso da atividade;
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O uso ilegal do rendimento da categoria «B» (e «A»);
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Inexistência de facto tributário.
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Após a revogação parcial do ato de liquidação impugnado, a qual ocorreu no uso da possibilidade prevista no artigo 13º do RJAT, após a notificação à AT do pedido arbitral apresentado pelo Requerente, veio este pronunciar-se, alegando que mantêm o interesse no prosseguimento dos autos porquanto, apesar da revogação parcial, subsistiam as ilegalidades decorrentes dos vícios do ato impugnado não sanados pela revogação. Nesta conformidade, subsistem as seguintes questões de direito a decidir:
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a violação do princípio da participação, por o sujeito passivo não ter sido notificado para apresentar a declaração e por não ter sido notificado do projeto de declaração oficiosa e da própria declaração oficiosa;
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a falta de fundamentação, por não ser inteligível, na liquidação primitivamente impugnada como na substituta, o rendimento considerado, e
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por não constar, em nenhuma das liquidações, a taxa utilizada e o enquadramento legal e a circunstância de não se ter considerado o incremento patrimonial em apenas 50%.
Estas são, pois, as questões a decidir.
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No conhecimento dos vícios do ato tributário deve o Tribunal conhecer obedecer ao disposto no artigo 124º do CPPT, que determina o seguinte:
«1. Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2. Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.»
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Assim, a apreciação dos vícios que conduzam à anulação do ato impugnado é feita segundo a ordem indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade ou, na sua falta, pela ordem que determine, segundo o prudente arbítrio do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos. E, a melhor interpretação da norma constante do nº 2, do artigo 124º do CPPT, aponta no sentido de que a regra de que o reconhecimento de um vício prejudica o conhecimento dos restantes só se pode justificar quando o reconhecimento da existência de um deles impeça definitivamente a renovação do ato, pois, se esta for possível em face do vício reconhecido, será necessário apreciar os restantes, uma vez que o conhecimento destes poderá levar à anulação com base num vício que impeça tal renovação.[1]
No mesmo sentido, refere o Conselheiro Jorge de Sousa que «o entendimento de que o reconhecimento da existência de um vício leva a considerar prejudicado o conhecimento dos restantes «só se pode justificar quando o reconhecimento da existência de um vício impeça definitivamente a renovação do acto, pois, se esta for possível em face do vício reconhecido, será necessário apreciar os restantes, uma vez que o conhecimento destes poderá levar à anulação com base num vício que impeça tal renovação.»[2]
Seguindo este entendimento e de acordo com a orientação contida no nº 1 do artigo 124º do CPPT, apontando para o conhecimento prioritário dos vícios suscetíveis de determinar a inexistência ou nulidade do ato impugnado e, só depois, dos vícios geradores de anulabilidade, e a ordem de conhecimento que lhe subjaz, com a eventual dispensa de conhecimento de outros vícios, só pode justificar-se quando o conhecimento de um vício impeça definitivamente a renovação do ato, pois, se esta for possível em face do vício reconhecido, será necessário apreciar os restantes, uma vez que o conhecimento destes poderá levar à anulação com base num vício que impeça tal renovação.
Ora, em concordância com esta fundamentação, constatamos que, no caso vertente, o impugnante invocou vício de forma, por violação do direito de audição prévia e por falta de fundamentação, aos quais acrescenta o vício de violação de lei por não constar, em nenhuma das liquidações, a taxa utilizada e o enquadramento legal e a circunstância de não se ter considerado o incremento patrimonial em apenas 50%.
Assim, este Tribunal seguirá a apreciação dos vícios imputados à liquidação impugnada pela ordem indicada pelo Requerente, tendo em conta a observância do entendimento supra exposto.
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Quanto aos Vícios de Forma
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Estamos em face de uma liquidação oficiosa, uma vez que o autor não apresentou declaração relativamente ao ano em causa.
Dispõe o n.º 1, do artigo 76.º, do Código do IRS, que a liquidação do IRS se processa nos termos seguintes:
“a) Tendo sido apresentada a declaração até 30 dias após o termo do prazo legal, a liquidação tem por objeto o rendimento coletável determinado com base nos elementos declarados, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 65.º;
b) Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha;
c) Sendo superior ao que resulta dos elementos a que se refere a alínea anterior, considera-se a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado, quando não tenha sido declarada a respetiva cessação de atividade.”
Acrescenta, ainda, o n.º 3, do mesmo artigo 76.º, que:
“quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em alta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas no n.º 3 do artigo 97º.”
Por sua vez, o artigo 60.º da Lei Geral Tributária, que consagra o princípio da participação, dispõe que:
“1. A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação;
[…]
d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, quando não haja lugar a relatório de inspeção;
e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.
Ora, no caso dos presentes autos, resulta da matéria assente que a notificação da liquidação impugnada foi efetuada sem precedência de notificação ao interessado (Requerente) do projeto de liquidação e fixação de prazo para audição prévia. Assiste, pois, razão ao Requerente quando alega que não foi notificado para apresentar a declaração de IRS em falta, sendo certo que esta notificação é obrigatória e para legitimar a posterior liquidação oficiosa. Sendo assim, não resta dúvida, que ao proceder à emissão por violação do n.º 3, do artigo 76.º. Esta violação consubstancia uma preterição de formalidade essencial, invalidante do ato final.
Ao que vem exposto acresce que, como ficou provado que o Requerente não foi notificado de qualquer projeto de liquidação, sobre o qual devia ter tido a possibilidade de se pronunciar, antes, da decisão final que culminou com a emissão da liquidação. Pelo que, foi violado o disposto no artigo 60º da LGT, acima referido, o que consubstancia a violação de uma garantia fundamental do contribuinte, concluindo pela ilegalidade da liquidação e consequente anulação.
Importa acrescentar que estes vícios de forma não podem considerar-se sanados pela revogação parcial da liquidação, operada já após a apresentação do pedido arbitral, no uso da prerrogativa prevista no artigo 13º do RJAT. Resulta evidenciado na matéria assente e nos documentos juntos aos autos que a revogação parcial do ato, implica que subsista, parcialmente, a liquidação anterior a qual está inquinada dos vícios de forma já enunciados. Mas, no caso dos presentes autos a revogação parcial nos termos do disposto no artigo 13º do RJAT, que permite à AT tomar a decisão, unilateral, de revogar o ato impugnado quando este padeça de ilegalidade. Ora, esta revogação, que pode ser total ou parcial, ocorre num momento incidental que antecede o prosseguimento do processo arbitral, pelo que, não permite suprir os vícios procedimentais que tenham inquinado o ato impugnado na parte em que este subsista. Tanto mais que a nova liquidação enviada ao Requerente está ela própria inquinada dos mesmos vícios de forma. Nem se percebe a motivação da AT em emitir nova liquidação uma vez que não revogou na íntegra a liquidação impugnada.
Chegados aqui, forçoso é concluir que a liquidação impugnada, na parte não revogada pela AT, considerando o conteúdo na nova liquidação emitida como resultado dessa revogação, enferma de vício de forma por violação do direito de audição, devendo ser anulada.
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Acresce que a liquidação impugnada, está inquinada de um outro vício de forma resultante da falta de fundamentação, porquanto, da liquidação não constam os elementos fundamentais para permitir ao destinatário do ato alcançar qual ou quais as razões, de facto e de direito, que conduziram à determinação ou fixação daquele montante de imposto a pagar. Ao analisar o conteúdo da liquidação, (quer na primeira versão quer na resultante após a revogação parcial) um destinatário normal não consegue compreender como foi calculado o montante de imposto a pagar, qual o percurso teleológico que conduziu ao resultado final. E, se assim é, forçoso é concluir que o ato não se encontra devidamente fundamentado, o que implica a existência de um vício de forma, que acresce ao primeiro que analisámos, gerador de ilegalidade e do qual resultará a anulação do ato.
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A fundamentação é uma exigência legal, que se impõe para qualquer ato administrativo ou tributário, sendo, como alega o Requerente a «liquidação de imposto um tipo de ato tributário em relação ao qual esta exigência se impõe com máximo rigor, atendendo aos efeitos que produz na esfera jurídica do sujeito passivo. Acresce recordar que é uma imposição constitucional por força do disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), reafirmada no artigo 77.º da Lei Geral Tributária».
É hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais, incluindo a arbitral, que a fundamentação legalmente exigível tem de reunir as seguintes características:
a. Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;
b. Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas ou a pedido;
c. Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;
d. Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada, sendo que esta característica se desdobra no dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e no dever de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).
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O dever de fundamentação visa permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa ou tributária a agir ou a decidir, de modo a convencer o seu destinatário da legalidade que lhe está subjacente, permitindo-lhe entender a sua razão de ser e possa, conscientemente, aferir sobre a sua a aceitação ou a sua impugnação. Isso mesmo tem sido afirmado incessantemente pela jurisprudência dos tribunais superiores, reiterando que a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do ato a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade que praticou o ato, de forma a revelar claramente as razões que a conduziram àquela decisão concreta. Tem vindo a ser reconhecido, igualmente pela doutrina e pela jurisprudência, que esta exigência de fundamentação deve ser equilibrada e moderada, considerando-se cumprida pela exposição sucinta e clara dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão, podendo consistir numa declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas (fundamentação per relationem ou per remissionem), desde que estes integrem a decisão final, devidamente notificada ao destinatário. O incumprimento desta exigência (falta absoluta de fundamentação) ou dos requisitos enunciados (fundamentação incongruente, confusa ou contraditória, incompleta, obscura ou meramente remissiva) constitui ilegalidade, suscetível de conduzir à anulação do ato.
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A este propósito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 12 de março de 2014, num caso em que, como no nosso, estava em causa uma liquidação oficiosa de IRS, embora ali se tratasse de uma liquidação adicional:
“A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT.
O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto. (…)»
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Dispõe o nº 1 do artigo 77.º, da Lei Geral Tributária, estabelece, no seu n.º 1, que «a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária», acrescentando o n.º 2 que «a fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».
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Ora, analisada a liquidação impugnada não resulta da mesma evidente qual o itinerário cognoscitivo e valorativo que determinou a liquidação de imposto. A liquidação impugnada é omissa quanto às normas jurídicas em que se fundamenta, quanto à concretização dos factos tributários e quanto à determinação do valor do rendimento ou do imposto.
E, por último, verifica-se que a notificação ao Requerente do teor da decisão de revogação parcial do ato impugnado ocorre, a pedido do requerente, acabando por ser notificada, acompanhada de uma liquidação, com a informação (errada) de corresponder à execução de decisão proferida no processo arbitral. Ora, esta notificação é, desde logo, equivoca e de nenhum efeito. Mas, o que releva para a decisão dos presentes autos é que, também esta, não cumpre os requisitos da exigência jurídico-constitucional da obrigação de fundamentação.
Pelo que, também por estas razões, se conclui que a liquidação impugnada padece de um segundo vício de forma por falta de fundamentação, o qual é invalidante e impõe a sua anulação
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Quanto ao vício de violação de lei
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O que vem exposto quanto aos vícios de forma é mais do que suficiente para a anulação do ato impugnado, na parte em que subsistiu após a revogação parcial. Contudo, para que dúvidas não subsistam sobre a ilegalidade da liquidação impugnada de forma mais definitiva, porque assente no vício de violação de lei, e em conformidade com o que se deixou exposto a propósito do artigo 124º do CPPT, passamos ao conhecimento deste vício.
Alega, por último, o Requerente que a forma como foi processada a liquidação padece de violação de lei nacional e comunitária, porquanto, «uma vez que o único rendimento auferido em 2017 pelo Requerente consistiu na realização de uma mais-valia no montante de €25´000.00 (vinte e cinco mil euros), esta mais-valia só deve ser considerada em 50% do seu valor, ou seja, em EUR 12´500.00 (doze mil e quinhentos euros), nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 43.º, do Código do IRS, tendo em conta que um entendimento diferente sempre violaria o principio da livre circulação de capitais, consagrado no n.º 1, do artigo 63.º, do Tratado da União Europeia, como, de resto, já deliberado pelo TJUE a diversos propósitos e em face de normas com diferentes redações, sendo certo que, como se refere na decisão deste Tribunal Arbitral de 8 de Abril de 2019 (Processo 600/2018-T ), “o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação aos Requerentes do regime que lhes foi aplicado” – no mesmo sentido e aplicado a um caso como o nosso, pode ainda ver-se a decisão deste Tribunal Arbitral de 11 de Maio de 2020, proferido no Processo 785/2019-T. »
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Sobre esta questão existe numerosa jurisprudência ancorada no entendimento do TJUE, que tem vindo a ser chamado a decidir, em sede de reenvio prejudicial, a questão de saber se é compatível com o direito da União Europeia (DUE) a existência de uma norma que discrimine o regime fiscal aplicável a residentes e a não residentes, quando estes últimos sejam cidadãos nacionais de outros Estados membros da UE. As questões colocadas pelo regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes e por sujeitos passivos não residentes em território nacional foram inicialmente tratadas, da perspetiva do direito comunitário, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Acórdão Hollmann (processo C-443/06, de 11/10/2007), que versou sobre uma situação ocorrida em data anterior à das alterações introduzidas ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, e no qual se decidiu que “O artigo 56.° CE [atual artigo 63.º, TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais‑valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado‑Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado‑Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais‑valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.”
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Defende a Requerida que com o novo regime aplicável à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos pelos sujeitos passivos não residentes, decorrente do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (atuais n.ºs 14 e 15) ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, ficou sanada a desconformidade entre a legislação nacional e o direito comunitário. Por sua vez, argumenta o Requerente que a possibilidade de opção pelo regime de tributação aplicável aos residentes não é, por si só, suficiente para afastar o tratamento discriminatório dos sujeitos passivos não residentes, no que respeita à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias, citando, a título exemplificativo, a decisão proferida pelo TJUE no processo C-440/08.[3]
Alega ainda que, «se bem que no Acórdão Gielen estivesse em causa a liberdade de estabelecimento (artigo 49.º, do TFUE), não deixa de ali ser abordada a questão da possibilidade de a opção por um regime de equiparação a residentes ser ainda incompatível com o direito da UE, tendo o TJUE decidido que tal incompatibilidade “(…) não é posta em causa pelo argumento de que a opção de equiparação é suscetível de excluir a discriminação em causa (…) [se] essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.
Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório (…)”.
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É sobre o regime decorrente da conjugação das normas transcritas com as contidas nos artigos 9.º, n.º 1, alínea b), 10.º, n.º 1, alínea a), 43.º, n.º 2 e 68.º, todos do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, que a AT pretende a apreciação do TJUE, uma vez que este Tribunal da UE ainda se não pronunciou sobre o mesmo, no atual quadro legislativo.
Contudo, tendo em considerado Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01)”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 338/1, de 06.11.2012, de que “(…) um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial em direito interno é obrigado a submeter esse pedido ao Tribunal, exceto quando já exista jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto) ou quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco”, entendeu o tribunal arbitral não se encontrarem reunidos, no caso concreto, os pressupostos de obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o TJUE.
Efetivamente, atendendo à jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) e pelo CAAD relativamente a situações ocorridas em momento posterior ao das alterações introduzidas ao artigo 72.º, do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, constata-se que o novo quadro legislativo não impedirá a aplicação ao caso concreto da jurisprudência ditada pelo já citado Acórdão Hollmann.
Vejamos a este propósito o teor da decisão arbitral proferida no processo nº 59/2020-T de-21-04-2021, à qual se adere na íntegra:
“Está, concretamente, em causa determinar se, face ao disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, o saldo positivo apurado a título de mais-valias, no ano de 2018, deverá ou não ser considerado em apenas 50% do seu valor, uma vez que a requerente reside na França. Para a Requerente o valor apurado a título de mais valia deve ser considerado em apenas 50% do seu valor, pois entende que o disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS é aplicável aos não residentes em Portugal, mas residentes num Estado-membro da União Europeia, sob pena de ilegalidade por violação do artigo 63º do TFUE. Invoca a favor deste entendimento diversa jurisprudência arbitral e junta como exemplo uma decisão proferida no processo nº 55/2019-T.
Na verdade, podemos citar numerosa Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e dos tribunais arbitrais, ambas ancoradas na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente, no processo C-443/06, em 11 de outubro de 2007 (caso «Hollmann»).
Assim, podemos concluir que a questão de direito tem vindo a ser decidida de modo uniforme pelo Supremo Tribunal Administrativo, como resulta, entre outros, dos Acórdãos proferidos nos Processos n.º 0439/06, de 16/01/2008; n.º 01031/10, de 22/03/2011; n.º 01374/12, de 30/04/2013; n.º 01172/14, de 03/02/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também a Jurisprudência arbitral tem sido uniforme no entendimento desta questão, como resulta, entre outros, dos seguintes processos: n.º 45/2012-T, de 05/07/2012; n.º 127/2012-T, de 14/05/2013; n.º 748/2015-T, de 27/07/2016; n.º 89/2017-T, de 05/07/2017; n.º 644/2017-T, de 30/05/2018; n.º 520/2017-T, de 04/06/2018; n.º 617/2017-T, de 22/06/2018; nº 55/2019-T, todas disponíveis em www.caad.org.pt. Todas estas decisões arbitrais consideraram, relativamente à mesma questão de direito que se suscita no presente processo arbitral, sendo que se mantém inalterado o regime geral do CIRS que enquadrou e fundou a jurisprudência citada.
Este Tribunal arbitral, seguirá de perto esta jurisprudência, na esteira do já decidido no processo nº 748/2015-T de 21/07/2016 e no processo nº 55/2019, de 04/02/2020, com a qual se concorda em pleno.
Como já se referiu, a questão de direito a decidir nos presentes autos, foi objeto de reenvio prejudicial por parte do Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no Processo n.º 0439/06, de 28/09/20061. O TJUE tomou posição sobre esta questão no Acórdão proferido no Processo C-443/06, de 11/10/2007 (“Acórdão Hollmann”), segundo o qual o artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, a um tratamento discriminatório, a um residente de outro estado membros. Desde então esta jurisprudência tem sido acolhida pelo STA bem assim como pelos Tribunais Centrais Administrativos e Arbitrais.
Nesta conformidade, acompanhamos a Jurisprudência supracitada da qual resulta que o regime de tributação das mais valias, decorrente do disposto nos artigos, 10º e 43º, nº 2 do CIRS, é incompatível com o direito europeu, não sendo de considerar sanada tal incompatibilidade com o aditamento ao artigo 72.º do Código do IRS dos seus números 7 e 8 (atuais números 9 e 10), pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (OE 2008), porquanto persiste uma situação de discriminação no tratamento de residentes e não residentes, com prejuízo para estes últimos, ainda que residam em país da União Europeia. (…)
Do ponto de vista da AT, o quadro legal em vigor já não é o mesmo que existia à data da prolação do mencionado acórdão pelo TJUE, face à alteração legislativa ao artigo 72.º do Código do IRS, já mencionada. Ora, não podemos subscrever tal entendimento.
Por um lado, existe uma vasta jurisprudência nesta matéria, sendo disso exemplo as diversas decisões arbitrais proferidas por tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD, posteriores à alteração legislativa mencionada, sendo unanime o entendimento que a mesma não resolveu o problema pré-existente. Aliás, a propósito de da existência de um regime de opção em tudo idêntico ao introduzido no artigo 72.º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, já se pronunciou o TJUE no Acórdão «Gielen», proferido em 18/03/2010, no processo C-440/08, considerando que a introdução do regime de opção não resolvia o problema e apesar deste Acórdão se referir a uma questão relativa à liberdade de circulação de pessoas e não a liberdade de circulação de capitais, como sucede no caso em apreço nestes autos, a verdade é que o princípio em causa é o mesmo, preservar a liberdade de circulação e a não discriminação entre os regimes aplicáveis com fundamento na residência ou nacionalidade dos sujeitos passivos no seio da UE. Como bem esclareceu o TJUE a esse propósito, a introdução da opção «não resolveu o problema da discriminação entre residentes e não residentes em Portugal, mas em qualquer outro Estado membro da EU.» O TJUE afirma com manifesta clareza que, perante uma vantagem fiscal cujo benefício é recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na acepção do TFUE, quando não haja nenhuma diferença objetiva de situação suscetível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspeto, entre as referidas categorias de contribuintes.»
Acresce que, também, sobre esta segunda questão, se pronunciou o TJUE no Acórdão proferido no processo C‑184/18, afirmando que “não existe nenhuma diferença objetiva das situações dessas duas categorias de contribuintes (...) que justifique a se pronunciou o TJUE desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais‑valias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal. Por conseguinte, a situação em que se encontram os contribuintes não residentes, (...) é comparável à dos contribuintes residentes.”.
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Este entendimento tem vindo a ser sufragado pelos nossos tribunais superiores como bem resulta, por exemplo, do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 20.02.2019 [4], do qual resultou o seguinte sumário:
“I - Por imperativo constitucional as disposições do Tratado que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos de direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
II - Tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre o rendimento, por tal não ser matéria de competência exclusiva da UE, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto, sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da UE.
III - O acto impugnado, que aplicou o referido art. 43.º, n.º 2 do CIRS, incompatível com o referido art. 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo, o que consubstancia ilegalidade, que justifica a sua anulação (artº 135.º do Código de Procedimento Administrativo).”.
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Face à jurisprudência citada, com a qual se concorda, haverá de concluir-se pela ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2017, ainda que o Requerente não tenha optado pelo regime de tributação a que se referem os n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, na medida em que tal opção não seria suscetível de afastar o efeito discriminatório decorrente da tributação da totalidade da mais-valia apurada no ano em causa, e não de apenas de 50% do seu valor, nos termos do n.º 2 do artigo 43.º, do referido Código.
Não resta dúvida que a liquidação impugnada ao não contemplar a redução a 50% do valor da mais-valia a tributar está inquinada de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e, pelo que também por esta razão terá de ser anulada.
No caso dos presentes autos, impõe-se, pois, a anulação integral da liquidação impugnada, pois que, como vimos, ela padece de vícios de forma invalidantes, para além do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
V – DECISÃO
Termos em que decide este Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o pedido do Requerente e anular a liquidação impugnada com fundamento nos vícios de forma e de violação de lei, nos termos expostos;
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Condenar a parte vencida, no caso a Requerida, no pagamento das custas processuais.
IV. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor da causa em € 22.524,13 (vinte e dois mil, quinhentos e vinte e quatro euros e treze cêntimos), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por remissão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
V. CUSTAS
Ao abrigo do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro mil euros), a cargo da parte vencida.
Notifique-se.
Lisboa, 03/03/2022
O Tribunal Arbitral singular,
(Maria do Rosário Anjos)
[1] Neste sentido, vd. Acórdãos do STA, de 6/7/2011, proc. nº 0355/11, de 18/12/2013, proc. nº 154/12 e de 17/6/2015, proc. nº 0395/15, disponíveis in: www.dgsi.pt.
[2] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, vol. II, 6ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, anotação ao artigo 124º, pp. 340 a 342. Também a jurisprudência desta Secção do STA tem acentuado que deve conhecer-se em primeiro lugar dos vícios de violação de lei, salvo nos casos em que não possa apreender-se o conteúdo do ato, nomeadamente no caso de falta de fundamentação - cfr., entre outros, os Acórdãos do STA, de 22/9/1994, proc. nº 32.702; de 7/2/1996, proc. nº 15.887; de 23/4/1997, proc. nº 35.367; de 22/3/2006, proc. nº 0916/04; de 24/1/2007, proc. nº 0939/06; de 18/9/2008, proc. nº 0437/2008; de 7/12/2010, proc. nº 0569/10; de 6/7/2011, proc. nº 355/2011; e de 7/9/2011, proc. nº 023/11.
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