DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 23-04-2021, A..., LDA., NIPC ... com sede na ..., ..., ..., ... (doravante, abreviadamente designada Requerente), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção actual (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando anulação, com fundamento na sua ilegalidade, por vício de violação de lei, dos actos tributários de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, abreviadamente designado IVA) e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (doravante, abreviadamente designado IRC) dos períodos de tributação de 2016, 2017 e 2018, e respectivas liquidações de juros compensatórios e moratórios, bem como a condenação da AT ao pagamento de uma indemnização de forma a ressarcir dos custos que vierem a ser incorridos com a garantia prestada, acrescidos de juros à taxa legal em vigor calculados sobre os custos e contados desde as datas que tenham sido incorridos, até à data em que seja autorizado o levantamento das garantias e o pagamento de juros indemnizatórios no seguimento da anulação dos actos de liquidação ora contestados.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a “fundamentação” constante do relatório de inspecção – quer na parte em que expõe as suas conclusões, quer na parte em que aprecia o requerimento de direito de audição –, viola frontalmente, quer a Constituição da República Portuguesa, de acordo com o artigo 268.º, n.º 3, quer a LGT, nos termos do artigo 77.º.
No que se refere à correcção relativa à aquisição de serviços de construção civil, este entendimento não poderá prevalecer na medida em que o mesmo não é compatível com o princípio da neutralidade do IVA e, bem assim, com o entendimento que tem vindo a ser reiteradamente veiculado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), nos termos do qual o direito à dedução constituiu um dos pilares fundamentais deste imposto podendo apenas ser restringindo em casos de fraude.
Relativamente à correcção à matéria tributável de IVA, com fundamento na alegada aplicação indevida da taxa reduzida de IVA aos serviços relativos ao transporte de passageiros no âmbito de actividades marítimo-turísticas – estando em causa a aplicabilidade da Verba 2.14, da Lista I anexa ao Código do IVA – entende a Requerente que o posicionamento da AT é desconforme com a doutrina administrativa existente a este respeito e, bem assim, com a realidade fáctica que lhe está subjacente.
Acresce que resultou, de forma inequívoca, dos depoimentos prestados, que a actividade levada a cabo pela Requerente é de transporte de passageiros, regra geral, entre a marina de ... e determinadas praias de acesso mais exclusivo, podendo também o circuito do transporte ser definido pelo próprio cliente, nos casos em que as embarcações são alugadas para esse efeito.
Como bem resulta, também, dos custos suportados com o desenvolvimento da actividade, os quais se consubstanciam, essencialmente, nos custos associados à manutenção e parqueamento dos barcos utilizados nos percursos e, bem assim, com a
tripulação devidamente licenciada para o efeito.
Ficou também demonstrado que a alteração legislativa efetuada pela Lei para o Orçamento do Estado para 2019, tem natureza interpretativa e nessa medida, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, poderá ser objecto de uma aplicação retroactiva.
Em paralelo com a notificação dos actos de liquidação emitidos com referência ao período tributário de IVA de 2016, foi a Requerente notificada de actos referentes ao 4.º trimestre de IVA do período de 2017, decorrentes das alterações efectuadas ao período de 2016 – cuja ligação apenas se especula não resultando claro da fundamentação dos mesmos a sua origem – sendo-lhes imputáveis os mesmos vícios de que padecem os actos referentes a 2016, sendo consequentemente de anular.
No que respeita às correcções relativas a IRC, entende a Requerente que os gastos suportados por documentos sem identificação do sujeito passivo como adquirente deverão ser devidamente considerados por se encontrar comprovada a relação dos bens e serviços adquiridos com a actividade desenvolvida, não cabendo à AT avaliar a admissibilidade da dedução dos custos, sem mais, sob pena de ingerência indevida na autonomia e na liberdade de gestão dos sujeitos passivos.
Já no que se refere ao custo anual referente ao aluguer da embarcação “...”, ao contrário do que é afirmado pela AT, não existiu qualquer violação do princípio da especialização dos exercícios, na medida em que a Requerente procedeu, em cada ano, à imputação do valor anual do custo suportado com o aluguer da mencionada embarcação.
Sendo de anular, por ilegalidade, os actos de liquidação de imposto, serão também, de anular, os actos de liquidação de juros compensatórios, no seguimento da falta de fundamento de um dos pressupostos legais essenciais: retardamento de liquidação de imposto devido.
Deverão igualmente os actos de liquidação de juros moratórios anulados integralmente por considerados ilegais com fundamento na inexistência de qualquer atraso na entrega da prestação tributária – uma vez que no entender da Requerente – a mesma não é devida.
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No dia 26-04-2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 15-06-2021, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 05-07-2021.
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No dia 24-09-2021, a AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por exceção e por impugnação, tendo junto, ainda, o Processo Administrativo.
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Por exceção, alega a AT, em síntese, que:
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O facto de os pedidos resultarem da mesma acção inspectiva não implica que estejamos perante a possibilidade legal de cumulação de pedidos prevista no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, uma vez que os pedidos formulados respeitam a diferentes actos tributários, mais concretamente, a liquidações de IRC e de IVA, e não dependem da aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
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A cumulação de pedidos anulatórios viola o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, não podendo, por isso, ser admitida.
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De acordo com o disposto no artigo 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, abreviadamente designado CPPT) só é possível a cumulação de pedidos quando estes se reportem a tributos idênticos, porquanto a pretensão de anulação de um determinado tributo assenta em normas próprias desse mesmo tributo, enquanto a pretensão de anulação de outro imposto, assenta em diferentes normas, próprias desse outro imposto.
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No caso em apreço verifica-se uma situação de cumulação ilegal de pedidos, na medida em que no mesmo pedido de pronúncia arbitral são deduzidos pedidos de anulação de dois tributos diferentes, IVA e IRC, sendo que cada uma das pretensões de anulação é diferente.
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Já por impugnação, alega a AT, em síntese, que:
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No que respeita à fundamentação dos actos administrativos, o acto está fundamentado quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinam a decisão, habilitando-o a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respectiva lesão. Resulta demonstrado que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance do acto, como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que fez quer através do exercício do direito de audição, quer através do próprio pedido de pronúncia arbitral.
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Relativamente ao IVA dos serviços de construção, entende a AT que, em Janeiro de 2016, foi contabilizada uma factura relativa à aquisição de serviços de construção civil, na qual foi liquidado IVA pelo fornecedor, quando deveria ter sido objecto de autoliquidação do IVA por parte do adquirente [artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do Código do IVA]. Para além da dedução indevida do IVA liquidado pelo fornecedor [artigo 19.º, n.º 8 do Código do IVA], encontra-se em falta a liquidação do imposto pelo adquirente [artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do Código do IVA].
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Relativamente à taxa de IVA aplicada às prestações de serviços, a AT tem vindo a interpretar que a Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA inclui apenas o “mero transporte de passageiros”, incluindo o suplemento de preço exigido pelas bagagens e reservas de lugar. No caso em apreço, os “passeios turísticos” não tem como objectivo o transporte de pessoas e as bagagens, mas antes proporcionar a observação de golfinhos, a visita de grutas, o parasailing, a pesca, a realização de festas, com a disponibilização de música com utilização de “DJ”, ou a utilização de biólogos marinhos. Tais passeios configuram uma prestação única, que não se consubstancia no “transporte de pessoas e suas bagagens”, estando fora do âmbito da Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA [e correspondente n.º 5 do Anexo III da Directiva IVA].
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Relativamente à desconsideração dos gastos suportados em documentos sem identificação do adquirente, entende a AT existirem vários valores contabilizados como gastos do exercício suportados por facturas emitidas ao consumidor final (nem nome e NIF do adquirente) ou por documentos em que o adquirente não é a Requerente, não cumprindo os requisitos dos n.º 3 e n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC e não podendo ser aceites como gastos fiscalmente dedutíveis [artigo 23.º-A, n.º 1, alínea c) do Código do IRC].
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Já quanto à dedutibilidade fiscal do encargo referente ao contrato de cessão de exploração da embarcação “...”, entende a AT que, ao ser contabilizado o valor total do aluguer de € 25.000,00 como gasto do exercício de 2016, não foi respeitado o princípio da especialização dos exercícios.
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Em 20-01-2022, teve lugar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido ouvidas as testemunhas indicadas pela Requerente e concedido a ambas as partes o prazo simultâneo de 10 (dez) dias para apresentação de alegações finais escritas.
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Foi igualmente fixada a data para a prolação e notificação da decisão final.
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Em 01-02-2022 a Requerente apresentou alegações finais escritas nas quais reiterou a posição assumida no pedido de pronúncia arbitral.
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Em 02-02-2022 a AT apresentou alegações finais escritas nas quais reiterou a posição adotada na resposta.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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A Requerente desenvolve “actividades auxiliares dos transportes por água”, desde 06-03-2008 com o CAE 52220 – Actividades Auxiliares dos Transportes por Água, e está inscrita no Registo Nacional de Agentes de Animação Turística (“RNAAT”) sob o n.º .../2010.
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Em 2016, a Requerente encontrava-se registada, com o único CAE 52220 – Actividades Auxiliares dos Transportes por Água.
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Em 27-11-2020, já após o direito de audição do projeto de relatório efectuado pelos serviços de inspecção tributária da Direcção de Finanças de Faro, entregou declaração de alteração, na qual alterou os CAE da sua actividade, que passaram a ser os seguintes CAE, a partir dessa data:
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CAE principal: 50102 – Transportes Costeiros e Locais de Passageiros;
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CAE secundário 1: 93293 – Organização de Actividades de Animação Turística;
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CAE secundário 2: 52220 – Actividades Auxiliares dos Transportes por Água
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A Requerente estava registada no Registo Nacional de Turismo, como agente de animação turística com autorização para o exercício de aluguer de embarcações com tripulação, passeios marítimo-turísticos e pesca turística.
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A sua actividade está sedeada na ... e tinha 5 (cinco) embarcações afectas à mesma: (i) ...; (ii) ...; (iii)...; (iv) ... [embarcação alugada à empresa B..., Lda.]; e (v) ... [embarcação alugada à empresa C..., Lda.].
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A Requerente efectua prestações de serviço marítimo-turísticas que consiste num conjunto de actividades desenvolvidas no mar, e vão desde os passeios junto à costa, visitas a grutas, pesca desportiva de fundo, pesca ao tubarão, observação de golfinhos e passeios com refeição a bordo.
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A Requerente foi alvo de uma acção inspectiva, através da ordem de serviço n.º OI2018..., relativa ao exercício de 2016, da qual resultaram correcções em sede de IVA, no montante de € 1.596,39 (03T), € 11.332,69 (06T), € 25.688,81 (09T) e € 2.836,93 (12T) e em sede de IRC, no montante de € 6.834,16.
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Relativamente ao exercício de 2017, a liquidação adicional emitida tem por base a alteração do reporte de imposto que foi objecto de correcção nos períodos anteriores.
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Em sede de IVA, foram efectuadas correcções por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA (6%), ao invés da taxa normal (23%), que correspondem aos seguintes montantes: € 1.366,39 (03T), € 11.215,13 (06T), € 25.666,10 (09T) e € 2.720,19 (12T). Para além destas houve correcções de menor valor, relativas à dedução indevida do imposto liquidado na factura n.º 686 do fornecedor D..., no montante de € 230,00, e outras que constam do relatório de inspecção tributária [cfr. Capítulo III, pontos 2.1, 2.3 e 2.4 do RIT].
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Em sede de IRC, foi efectuada uma correcção a gastos suportados por documentos sem identificação do sujeito passivo adquirente, no montante de € 584,16, e relativa a gastos de 2017 incorrectamente imputados a 2016, no valor de € 6.250,00, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios [cfr. Capítulo III, pontos 1.1 e 1.2 do RIT].
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A Requerente foi notificada do projecto de relatório de inspecção, mediante o qual foram propostas correcções de imposto em sede de IVA e IRC.
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Notificada para, querendo exercer o seu direito de audição, nos termos do artigo 60.º da LGT e artigo 60.º do RCPITA, a Requerente exerceu esse mesmo direito, através de requerimento de 17-12-2020, o qual foi objecto de análise e de resposta, tendo sido convertidas em definitivas as correcções propostas em sede de IVA e IRC.
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A Requerente pagou parcialmente o imposto contestado.
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A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral, com vista à declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e de IRC em causa, dando origem ao processo arbitral em apreço.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem outros factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
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Da cumulação de pedidos
A AT invoca a excepção dilatória da cumulação ilegal de pedidos considerando no artigo 4.º da resposta que “O facto de os pedidos resultarem da mesma ação inspetiva não implica que estejamos perante a possibilidade legal de cumulação de pedidos prevista no artigo 3.º n.º 1 do RJAT uma vez que os pedidos formulados nos presentes autos respeitam a diferentes actos tributários, mais concretamente a liquidações de IRC e de IVA, e não dependem da aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”. E, mais acrescenta no artigo 9.º da resposta: “No caso em apreço verifica-se uma situação de cumulação ilegal de pedidos, na medida em que no mesmo pedido de pronúncia arbitral são deduzidos pedidos de anulação de dois tributos diferentes, IVA e IRC, sendo que cada uma das pretensões de anulação são diferentes”. E a AT defende que deve ser julgada procedente a excepção de cumulação ilegal de pedidos.
A este respeito, o art. 3.º, n.º 1, do RJAT, dispõe que “A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.
Sendo que a propósito da interpretação do referido artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, refere JORGE LOPES DE SOUSA que “pode ser pedida a um tribunal arbitral a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de IVA e IRC que tenham subjacente a mesma materialidade fáctica detetada em ação de inspeção”, não sendo necessário, para essa cumulação de pedidos, “que haja uma identidade absoluta das situações fácticas, bastando que seja essencialmente idêntica a questão jurídico-fiscal a apreciar e que a situação fáctica seja semelhante nos pontos que relevem para a decisão.” [cfr. Guia da Arbitragem Tributária, Coord: NUNO VILLA-LOBOS e MÓNICA BRITO VIEIRA, Almedina, 2013, pp. 145-148). [sublinhado nosso].
Ao que acresce que, ainda, que se pudesse considerar que esta questão não se encontra suficientemente regulada no âmbito do RJAT, sempre seria de aplicar, subsidiariamente, e conforme previsto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) deste diploma legal, o previsto no artigo 104. do CPPT, de acordo com o qual: “Na impugnação judicial é admitida a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos, e a coligação de autores, desde que, cumulativamente: a) Aos pedidos corresponda a mesma forma processual; e b) A sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto ou o mesmo relatório de inspeção tributária, ou sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.” [sublinhado nosso].
Ora, considerando que, tanto quanto resulta da análise dos actos de liquidação objecto do presente pedido, visam concretizar as correcções decorrentes do relatório de inspecç\\ão tributária emitido no âmbito do procedimento de inspecção que correu termos sob a Ordem de Serviço n.º OI 2018..., que incidiu sobre o IVA e IRC do exercício de 2016, afigura-se como sendo possível a cumulação pretendida, estando preenchidos os requisitos dos quais a
procedência da mesma depende.
Ainda é de salientar, que resulta igualmente da jurisprudência arbitral que as regras sobre cumulação de pedidos têm subjacentes razões de economia processual, pelo que devem ser interpretadas teleologicamente não com a perspectiva de colocação de obstáculos à apreciação das pretensões dos sujeitos passivos, mas sim, com o alcance de viabilizarem a cumulação sempre que as razões de economia se verifiquem.
Assim, e face ao exposto conclui-se pela legalidade da cumulação de pedidos formulados pela Requerente, improcedendo consequentemente a excepção da ilegalidade da mesma suscitada pela AT no âmbito da sua resposta.” No sentido desta decisão podemos mencionar as decisões arbitrais proferidas no Processo n.º 209/2015-T, Processo n.º 191/2018-T, Processo n.º 730/2019-T, Processo n.º 333/2019-T, Processo n.º 442/2020-T, Processo n.º 350/2020-T e Processo n.º 720/2014-T.
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Da alegada falta de fundamentação
Sobre a falta de fundamentação sempre se dirá que, com o devido respeito por entendimento diverso, não tem qualquer sustentação a tese da Requerente relativamente à falta de fundamentação dos actos impugnados.
Senão vejamos,
Tendo presente no que respeita à fundamentação dos actos administrativos que o acto está fundamentado quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinam a decisão, habilitando-o a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respectiva lesão.
Seguindo de perto a jurisprudência assente nesta matéria, que refere:
“Variando a densidade da fundamentação em função do tipo legal de ato e das suas circunstâncias, é aceitável uma fundamentação o menos densa de certos tipos de atos, considerando-se suficiente tal fundamentação desde que corresponda a um limite mínimo que a não descaracterize, ou seja, fique garantido o “quantum” indispensável ao cumprimento dos requisitos mínimos de uma fundamentação formal: a revelação da existência de uma reflexão e a indicação das razões principais que moveram o agente” [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no recurso n. º 31616 de 13-04-2000.
Atentos à doutrina que refere que determinado acto se encontra devidamente fundamentado sempre que é possível, através do mesmo, descobrir qual o percurso cognitivo utilizado pelo seu autor para chegar à decisão final [cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, p g. 687 e seg., Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1984, V, pág.139 e seg.].
Analisando a cognoscibilidade do iter volitivo ou percurso cognitivo da AT no que concerne ao acto final, maxime a liquidação, seguindo a jurisprudência assente sempre se dirá que fundamentar…
“(…) Não significa uma exaustiva descrição de todas as razões que determinam a sua prática, mas implica esclarecer devidamente o seu destinatário dos motivos que estão na génese e das razões que sustentam o seu conteúdo. (...) Esse dever de fundamentação visa, assim, permitir ao destinatário do ato conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo deste, permitindo-lhe ficar a saber quais os motivos que levaram Administração à sua prática. (...) Um ato está devidamente fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal – o bonus pater familia de que fala o artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil – fica esclarecido acerca das razões que o motivaram.” [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 016217de 28-10-1998].
Com efeito, para se atingir aquele objectivo basta uma fundamentação sucinta, mas que seja clara, concreta, congruente e que se mostre contextual, sendo a fundamentação do acto administrativo-tributário suficiente se, no contexto em que foi praticado, e atentas as razões de facto e de direito nele expressamente enunciadas, forem capazes ou aptas e bastantes para permitir que um destinatário normal apreenda o itinerário cognoscitivo e valorativo da decisão.
Acresce referir que a exigência legal de fundamentação prende-se por razões que
“(…) vão desde a necessidade de possibilitar ao administrado a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência ou não de impugnar o ato, até à garantia da transparência e da ponderação da atuação da administração e à necessidade de assegurar a possibilidade de controle hierárquico e jurisdicional do ato.” [cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues, e Jorge Lopes de Sousa – Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 3.ª edição, Lisboa, Vislis, 2003, pág. 382.].
Resulta, pois, demonstrado que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance do acto.
Como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que fez quer através do exercício do direito de audição, quer através do presente pedido de pronúncia arbitral.
Pelo que não se pode deixar de concluir, como conclui a boa jurisprudência, que:
“Não ocorre o vício formal de falta de fundamentação se a própria impugnante expressamente revela ter compreendido perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do ato e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido…”, [Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0105/12 de 30-01-2013].
Em conclusão, é assim manifesto e inquestionável que a Requerente demonstra, ao longo do seu pedido de pronúncia arbitral, uma perfeita compreensão dos actos ora em crise, pelo que improcede o vício invocado pela Requerente.
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Da correcção relativa à aquisição de serviços de construção civil
Segundo a AT, no mês de janeiro de 2016 foi contabilizada uma factura emitida pela sociedade D... relativa à aquisição de serviços de construção civil, na qual foi liquidado IVA pelo fornecedor, quando deveria ter sido objecto de autoliquidação do IVA por parte do adquirente.
No entendimento da AT, “Uma vez que os serviços em causa enquadram-se no conceito de serviços de construção civil previstos na alínea j) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA, o IVA relativo a esta operação deveria ter sido objeto de autoliquidação por parte do adquirente e o imposto que foi (indevidamente) liquidado nesta fatura pelo fornecedor não poderia ter sido deduzido pelo adquirente (...)”.
Não obstante, com o devido respeito, este entendimento não é compatível com o princípio da neutralidade do IVA e com o entendimento que tem vindo a ser reiteradamente veiculado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) de que o Direito à dedução constituiu um dos pilares fundamentais deste imposto podendo apenas ser restringindo em casos de fraude.
Com efeito, o facto de o IVA ter sido objecto de liquidação ao abrigo do regime geral de IVA, ao invés de ter sido autoliquidado pela Requerente, em nada prejudicou a arrecadação desta receita.
Pelo que, em nada se poderá considerar como prejudicado o direito geral à dedução de que beneficia a Requerente, enquanto sujeito de IVA adquirente de serviços, no âmbito da sua actividade.
Neste sentido, recorde-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, do qual resulta que “Tendo a AT aceitado a liquidação de IVA respeitante a uma determinada operação (e recebido o montante do imposto liquidado), não pode depois, para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto, entender que a mesma liquidação é inválida.” [cfr. Acórdão do STA, processo n.º 1034/11, de 23/09/2015].
Por outro lado, estaria também a introduzir um desvio inadmissível naquele que é um dos princípios fundamentais do IVA: “o direito à dedução do imposto que, como expressão do método subtractivo indirecto, constitui “a trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado” [cfr. XAVIER DE BASTO, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Cadernos Ciência e Técnica Fiscal, n.º 164, pág. 41].
Com efeito, a este respeito, importa atender à característica da neutralidade do imposto, característica esta que é alcançada, fundamentalmente, através do correcto funcionamento do mecanismo da liquidação e da dedução de imposto.
É, de resto, reconhecido, de forma unânime, pela jurisprudência comunitária que o mecanismo do direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do IVA, tal como foi desenhado nas Diretivas IVA, assumindo um papel fundamental de garantia da neutralidade do imposto e da igualdade de tratamento fiscal [cfr. Acórdão Astone, de 28-07-16, Processo n.º C332/17].
Pelo que deve assim entender-se que, em nome do princípio da neutralidade – enquanto pedra basilar do regime de IVA – a flexibilidade que tem vindo a ser aplicada ao cumprimento dos requisitos formais do direito à dedução, visa, única e exclusivamente, permitir que qualquer sujeito passivo que efetivamente tenha suportado o pagamento do imposto o possa deduzir, não existindo uma subversão do sistema de reversão do imposto.
Em face do exposto, devem os actos de liquidação em apreço ser anulados parcialmente, na parte em que não concretiza o reembolso do valor de € 230,00, por, entre os demais fundamentos invocados, configurar um desvio ao princípio da neutralidade.
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Da correcção relativa à aplicação da taxa reduzida de IVA
A AT procedeu, ainda, a uma correcção à matéria tributável de IVA da Requerente, com fundamento na alegada aplicação indevida da taxa reduzida de IVA aos serviços relativos ao transporte de passageiros no âmbito de actividades marítimo-turísticas, estando em causa a aplicabilidade da Verba 2.14, da lista I anexa ao Código do IVA.
Com efeito, a AT procura estabelecer um confronto entre o Decreto-Lei n.º 108/2009 de 1 de Setembro, o qual abrange atividades de animação turística desenvolvidas mediante a utilização de embarcações, e o Decreto-Lei n.º 349/86, de 17 de Outubro, o qual define o conceito de contrato de transporte de passageiros, concluindo que “Não parecem restar dúvidas de que a atividade da empresa tem enquadramento no conceito de prestação de serviços de animação turística e não de um simples transporte de passageiros (…)”.
Porém e tal como resultou do depoimento das 3 (três) testemunhas inquiridas, a sua actividade tem como principal objectivo prestar serviços de transporte ao longo da costa do Algarve.
Com efeito, no exercício de 2016, a doutrina administrativa disponível, nomeadamente a Informação Vinculativa n.º 1768, emitida por Despacho de 8 de Abril de 2011, determinava, de forma expressa e inequívoca, o enquadramento do transporte de passageiros em actividades marítimo-turísticas no âmbito da Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA, na redacção que esta tinha àquela data.
A este respeito, pode ler-se na referida Informação Vinculativa que “(…) o transporte de passageiros, individual ou coletivo, por qualquer via ainda que o fim seja um passeio turístico, é passível de imposto à taxa reduzida (6%), por enquadramento na citada verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA”, esclarecendo, ainda que, nos casos em que sejam prestados outros serviços “se a fatura que titula a referida prestação de serviços (Passeio Turístico), discriminar as operações de acordo com a sua natureza, a taxa a aplicar será a que lhes corresponder, nomeadamente: -No caso do transporte de passageiros 6%, de acordo com a Verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA, (...)”.
No mesmo sentido, é de referir a Informação Vinculativa n.º 2283 emitida em 3 de Agosto de 2011, segundo a qual a “(…) se durante o transporte de passageiros forem prestados serviços de alimentação e bebidas, designadamente serviço de snack-bar, e se na fatura constarem discriminados, ao transporte de passageiros deve-se aplicar a taxa reduzida de 4% e às refeições a taxa intermédia de 9% (…)” e, ainda, a Informação Vinculativa n.º 1153, emitida por Despacho de 29 de Setembro de 2012, subscrito pelo Senhor Diretor Geral do IVA que vem reiterar o entendimento já estabelecido, segundo o qual “os passeios marítimo-turísticos consubstanciados no mero transporte de passageiros tal como se encontra definido na citada verba 2.14, são tributados à taxa reduzida de 4% (se efetuados na RAM) por enquadramento na referida verba”.
Ainda que se entendesse que o transporte de passageiros em actividades marítimo-turísticas não encontrasse respaldo na letra da Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA, a AT estaria sempre adstrita a actuar em conformidade com as suas decisões e posições anteriormente estabelecidas à luz da mesma lei.
Contrariamente ao defendido pela AT na Resposta apresentada, é perfeitamente legítima a invocação pelos sujeitos passivos de orientações administrativas às quais tenha sido dada publicidade, inclusivamente em sede judicial, de acordo com o disposto no artigo 68.º, n. º 4 da LGT.
Nesse sentido, a doutrina refere que o “legislador estabelece a obrigação de converter informações vinculativas prestadas reiteradamente em orientações genéricas. (…) O facto de a mesma questão jurídica estar a ser resolvida repetidamente da mesma forma pela administração (…), traduz uma tendência interpretativa reiterada das normas jurídicas em causa, que vai para além da particularidade do caso concreto.” [cfr. José Maria Fernandes Pires, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 2015, Almedina, pág. 784-785].
Sobre o antigo 68.º-A, n.º 4, da LGT (actual artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT), a doutrina entende que “Esta vinculação implica que, mesmo que a administração tributária venha a considerar ilegal uma determinada interpretação da lei, tem de aplicá-la aos casos concretos que ocorram durante o período de tempo em que ela vigorava por força de uma orientação genérica.” [cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 3.ª edição, pág. 343].
Recorde-se, nesta sede, o entendimento do Tribunal Arbitral, no âmbito do Processo n.º 132/2019-T, de 3 de Março de 2020, o qual, após uma análise exaustiva da doutrina administrativa existente sobre o tema, determinou que “(…) até à viragem verificada em 2017 e 2018, era legítimo aos sujeitos passivos presumir que “se a factura que titula a referida prestação de serviços (Passeio Turístico), discriminar as operações de acordo com a sua natureza, a taxa a aplicar será a que lhes corresponder, nomeadamente: - No caso do transporte de passageiros 6%, de acordo com a verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA; - Relativamente às prestações de serviços de alimentação e bebidas 13%, de acordo com a verba 3.1 da Lista I anexa ao CIVA” – Informação Vinculativa n.º 1768.”.
Com efeito, no caso em apreço, os factos tributários subjacentes aos actos de liquidação emitidos ocorreram durante o exercício de 2016, momento anterior à alteração do entendimento preceituado na doutrina administrativa disponibilizada pela AT.
No mesmo sentido, mais recentemente, vejamos a Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 450/2020-T, no qual esteve em discussão as correcções, em sede de IVA, efetuadas pela AT, à Requerente, no âmbito do exercício de 2015.
Com efeito, e como acima ficou referido, esta Decisão Arbitral chegou mesmo a afirmar que: “Tendo sido instada [Administração Tributária] por sucessivas vezes a clarificar o enquadramento deste tipo de atividades, a AT não foi capaz de enquadrá-las de forma inteiramente clara nem coerente, gerando uma situação de incerteza entre os operadores que obrigaria mais tarde à intervenção legislativa”.
Por outro lado, as correcções de imposto na base das liquidações emitidas pela AT fundaram-se na alegada falta de enquadramento da actividade da Requerente no âmbito da referida verba.
Ora, à data dos factos, em 2016, a Verba 2.14 da Lista I anexa ao C digo do IVA dispunha que deveria ser aplicada a taxa reduzida de IVA ao “Transporte de passageiros, incluindo aluguer de veículos com condutor.” Sendo, ainda, de incluir “(…) o serviço de transporte e o suplemento de preço exigido pelas bagagens e reservas de lugar.”.
Com base nesta redacção da lei, a AT pretendeu empreender uma distinção no tratamento fiscal aplicável ao transporte de passageiros, o qual, segundo entende, deve ter por objectivo único e exclusivo, “a satisfação da necessidade de mobilidade de um local para outro” e o transporte de pessoas no âmbito da actividade marítimo-turística realizada pela Requerente.
Conforme ficou devidamente demonstrado, inclusive, pela prova testemunhal produzida, o que a Requerente efectua é precisamente o transporte marítimo, estando inclusivamente vinculada às regras de segurança do sector dos transportes marítimos.
A este propósito, recorde-se o referido pela testemunha E... quando interrogado sobre a principal actividade da Requerente e, bem assim, quanto ao seu serviço enquanto mestre de embarcação: “O transporte e a segurança (…) Tenho outro marinheiro comigo. Vão sempre mais dois”.
Também a testemunha F...: “Pela obrigatoriedade não pode ser só o mestre da embarcação tem que haver um marinheiro. Tripulação mínima obrigatória regulada se não me engano na legislação”.
Pelo que não pode proceder o entendimento da AT, segundo o qual, o facto de as viagens realizadas pela Requerente poderem vir a incluir outras comodidades complementares – de acordo com o anunciado –, desvirtua e desqualifica o próprio serviço de transporte de passageiros.
Ora, como é do conhecimento geral, é uma prática reiterada de companhias transportadoras aéreas, cruzeiros ou ainda, transportadoras ferroviárias, a publicitação da qualidade superior dos seus serviços complementares que permitem desfrutar de uma viagem – que não deixa de ser um transporte de passageiros – em maior conforto.
Porquanto, como resulta de forma esclarecedora da prova produzida nos autos, o simples facto de a Requerente ter publicitado a prestação de um certo tipo de serviços, não desonera a AT de efectuar a prova necessária a demonstrar que existiu, materialmente, a prestação de serviços que não se reconduzem a uma simples prestação de serviço de transporte de passageiros.
A este respeito, atente-se no depoimento da testemunha F... que esclareceu de forma clara como se processa o serviço prestado pela Requerente, referindo que: “(...) basicamente na maior parte das situações traduz-se em: os barcos estão parqueados em ..., recolhe-se os passageiros em ..., viaja-se até uma determinada praia, os passageiros são descarregados nessa praia, onde passam o dia (…) no final do dia recolhe e regressa a ... (…)”.
Tendo sido clarificado pela testemunha G..., a respeito dos alegados pacotes turísticos referidos pela AT que: “nunca quisemos aprofundar isso porque os golfinhos aparecem pelo caminho, nunca há garantias, nunca quisemos comercializar isso” (…) não fazia sentido”.
De igual modo, também a testemunha E..., deixou referido de forma bastante clara que: “Os golfinhos é um mistério nunca se sabe quando eles veem, a gente nunca sabe se eles vão aparecer no caminho.”.
Como bem resulta, igualmente, dos custos suportados com o desenvolvimento da actividade, os quais se consubstanciam, essencialmente, nos custos associados à manutenção e parqueamento dos barcos utilizados nos percursos e, bem assim, com a tripulação devidamente licenciada para o efeito.
A este respeito recorde-se o afirmado pela testemunha F... relativamente às alegadas comodidades e actividades proporcionadas: “São situações para atrair as pessoas ao transporte, não é bem o avistamento de cetáceos que ali não existe. Ora bem os barcos navegam na rota para as praias, sou navegador individual e às vezes passam golfinhos. (…) os barcos por acaso não andam na rota dos golfinhos, mas os golfinhos não estão sempre no mesmo sítio, por exemplo se passam ao lado do barco são avistados.”.
A referida testemunha acrescentou, ainda, que: “As comodidades (…) a vista é agradável ali onde os barcos passam (…) é como ir para o Porto de comboio e ver o mosteiro da batalha (…)”, do meio de transporte em causa.
A todo o exposto, acresce, ainda que, que em 2019, a referida Verba foi alterada passando a incluir, expressamente, a actividade de transporte de passageiros no âmbito de actividades marítimo-turísticas.
Efectivamente, a inversão no sentido da interpretação da Verba 2.14 empreendida pela AT a partir de 2018 foi, desde logo, assinalada pelo legislador quando este, no âmbito da Lei para o Orçamento do Estado para 2019, determina a integração de uma adenda à referida Verba, segundo a qual também se enquadram no âmbito daquele dispositivo o “transporte de pessoas no âmbito de actividades marítimo-turísticas”.
Em face do exposto, resulta clara a natureza interpretativa da referida alteração – aliás como resulta do próprio preâmbulo do diploma legal, em que se afirma a sua natureza clarificadora – e que consiste na adenda à Verba 2.14 da Lista I anexa ao C digo do IVA, introduzida pela Lei para o Orçamento do Estado para 2019 do “transporte de pessoas no âmbito de actividades marítimo-turísticas”.
Com efeito, as normas de natureza interpretativa integram-se na norma interpretada, conforme dispõe o artigo 13.º do Código Civil, tendo, por isso, uma aplicação retroactiva.
Assim, atendendo ao objectivo que esteve subjacente às alterações empreendidas no sentido de clarificação do regime anteriormente previsto, não poderá a mesma deixar de ser considerada como uma norma interpretativa.
Neste sentido, dever-se-á considerar que a alteração introduzida pelo legislador vem, precisamente, esclarecer uma situação de incerteza criada pela lei antiga – e pela actuação incoerente da AT escudada nessa lei antiga –, sendo que essa solução espelha a interpretação que de forma geral havia sido atribuída à norma antiga, quer pelos sujeitos passivos, quer pela própria AT no âmbito das orientações genéricas publicadas até 2018.
Pelo que, o disposto na verba 2.14, na sua redacção actual, era já aplicável à data dos factos, i.e., 2016, devendo por isso as liquidações em causa ser consideradas ilegais por violação do disposto na Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA e, consequentemente, ser determinada a sua anulação parcial.
Por todo o exposto, o Tribunal Arbitral considera que os actos de liquidação de IVA em apreço, devem ser considerados ilegais por violação do disposto no artigo 68.º-A, n.º 2, da Lei Geral Tributária e, bem assim, por violação do disposto na Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA, já aplicável à data dos factos, i.e., 2016 e, consequentemente, ser determinada a sua anulação parcial.
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Da correcção relativa aos gastos suportados por documentos sem identificação do adquirente
No procedimento inspectivo foi considerado existirem diversos valores contabilizados como gastos do exercício suportados por facturas emitidas ao “consumidor final” (i.e., sem nome e NIF do adquirente) ou por documentos em que o adquirente não é a Requerente, não cumprindo os requisitos previstos no n.º 3 e n.º 4 do artigo 23.º do Código do IRC e não podendo ser aceites como gastos fiscalmente dedutíveis conforme determina o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea c) do Código do IRC.
Alega a Requerente que os gastos em causa se encontram devidamente suportados por factura, mediante a qual é possível comprovar a relação de bens e serviços com a sua actividade.
No entanto, no que concerne aos elementos de prova, perante o invocado e estando em causa o documento de prova para comprovar a dedutibilidade de um gasto nos termos do disposto no artigo 23.º do Código do IRC, importa salientar que na elaboração da contabilidade, a Requerente para além de ter de observar as regras impostas pelo SNC, encontra-se ainda obrigada a observar as regras que fiscalmente o legislador prescreve no Código do IRC.
Em razão da dependência parcial da fiscalidade face à contabilidade, dispõe o artigo 17.º, n.º 1, do Código do IRC que:
“O lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”.
Indo mais além, e no que à elaboração da contabilidade propriamente dita diz respeito, determina a alínea a) do n.º 3, do referido normativo, que, de modo a permitir o apuramento do lucro tributável, a contabilidade deve ser organizada de acordo com a normalização contabilística, sem prejuízo da observância das disposições previstas no Código do IRC.
Mas, em termos de organização contabilística o legislador fiscal vem ainda exigir na alínea b) deste n.º 3 que a contabilidade para além de reflectir todas as operações realizadas deve ainda estar organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
Com efeito, no artigo 23.º do Código do IRC, encontram-se definidas as condições em que os gastos podem ser fiscalmente dedutíveis.
Nos termos desta norma, e face ao disposto pelos n.º 1 e n.º 3, os gastos têm de respeitar dois princípios:
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encontrarem-se devidamente documentados e,
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serem suportados para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.
São dois requisitos que a norma impõe cumulativamente pelo que, a verificação de um não exclui a verificação do outro, mas, pelo contrário, basta o não cumprimento de um deles para
que os gastos já não possam eleger para efeitos de determinação dos resultados fiscais.
Ora, a Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, procedeu à reforma da tributação das sociedades, alterando o Código do Imposto sobre os Rendimento das Pessoas Colectivas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro, tendo alterado a redacção do artigo 23.º.
Para que dúvidas não subsistam quanto à comprovação dos gastos, na reforma introduzida nesta norma – artigo 23.º do Código IRC, o legislador veio especificar, nomeando de forma concreta, quais os requisitos exigidos aos documentos de suporte aos gastos, para que estes se mostrem devidamente documentados e comprovados.
Assim, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.
Sendo que o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter pelo menos os seguintes elementos [cfr. artigo 23.º, n.º 4, do Código do IRC]:
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Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;
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Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador de serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;
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Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;
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Valor da contraprestação, designadamente o preço;
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Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.
Por outro lado, quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado emissão de factura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços, previsto no n.º 4, deve obrigatoriamente assumir essa forma [cfr. artigo 23.º, n.º 6, do Código do IRC].
Significa, pois, que, sempre que o prestador de um serviço ou o fornecedor de um bem esteja obrigado à emissão de fatura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo dessas prestações de serviços ou dessas aquisições de bens constituindo gasto para efeitos de IRC só se considera titulado com documentos que revistam aquela forma.
No caso em apreço, verifica-se que não podem ser aceites as facturas que não identificam de forma clara quem é o adquirente do bem, pois ao figurar “consumidor final”, não existem evidências que a aquisição foi efectuada pela Requerente.
Por outro lado, e como a Requerente reconhece, existem facturas onde consta o NIF da C..., Lda. (NIPC ...).
No que respeita à factura emitida pelo fornecedor “H... Lda.”, do Reino Unido, importa mencionar que, ainda que não estejamos perante um fornecedor nacional, pelo que, a alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º não lhe é aplicável, não poderá aceitar-se como gasto fiscal, valores resultantes de relevações contabilísticas, que tenham como suporte documentos emitidos noutro país, em que o adquirente da factura seja, “A... & B...”, sem indicar o NIF.
Estamos, neste caso perante duas entidades distintas: a A..., Lda. (NIPC ...), e a B..., Lda. (NIPC ...).
Deste modo, sempre que os documentos de suporte aos gastos, pese embora registados na contabilidade, não cumpram os requisitos impostos no quadro legal aplicável, os mesmos não podem relevar para efeitos de determinação dos resultados fiscais por via de duas razões:
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Por um lado, e desde logo, por incumprimento do disposto no n.º 3, n.º 4 e n.º 6, todos do artigo 23.º do Código do IRC;
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Por outro lado, porque, para que dúvidas não subsistam, foi o próprio legislador que expressamente manifestou esse entendimento, determinando a não dedutibilidade fiscal dos gastos que não observem o vertido no quadro legal previsto pelo artigo 23.º, como se encontra claramente disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC.
Não assiste, pois, razão à Requerente, devendo manter-se a correcção efectuada.
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Da correcção relativa à dedutibilidade fiscal do encargo referente ao contrato de cessão de exploração da embarcação “...”
A AT identificou algumas irregularidades no apuramento da matéria colectável em sede de IRC, em particular, no valor fiscalmente aceite como gasto, relativamente ao contrato de cessão de exploração da embarcação “...”.
Por referência ao contrato de concessão da embarcação “...”, a Requerente registou um gasto no montante de € 25.000,00, na conta #626116 – Rendas e Alugueres com IVA dedutível, o qual é suportado pela factura n.º 2016/1, de 28-04-2016, emitida pela empresa B..., Lda. (NIPC ...).
O referido contrato de cedência de exploração, celebrado entre a Requerente e a empresa B..., Lda., pelo valor anual de € 25.000,00, automaticamemte renovável por iguais períodos e sucessivos períodos, foi assinado em 01-04-2016.
Nesta medida, parte do aluguer de € 25.000,00 a que o contrato se refere diz respeito ao exercício de 2016 (9 meses) e outra parte diz respeito ao exercício de 2017 (3 meses).
Pelo que, ao ser contabilizado o valor total do aluguer de € 25.000,00, como gasto do exercício de 2016, não foi respeitado o princípio da especialização dos exercícios.
Entende a Requerente que não existiu qualquer violação do princípio da especialização de exercícios, e que a aplicação rígida deste princípio conduz a situações que podem ser consideradas como violadoras do princípio da justiça material.
Vejamos.
Com efeito, a tributação incide sobre a realidade económica constituída pelo lucro, o artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC estabelece como princípio estruturante da sua determinação, o regime de periodização económica, considerando que os rendimentos e gastos, tal como outras componentes negativas ou positivas do lucro tributável são imputáveis ao período económico a que respeitem.
Atento o preconizado no normativo em causa, o apuramento do lucro tributável assenta, pois, numa ideia de imputação dos gastos e rendimentos ao período de tributação em que sejam suportados ou obtidos, independentemente do seu pagamento ou recebimento.
Aliás, refira-se que este entendimento é tido quer para efeitos contabilísticos (contabilidade efectuada tendo por base o regime do acréscimo – princípio da especialização de exercícios), quer para efeitos fiscais, através da aplicação do artigo 18.º do Código do IRC – periodização do lucro tributável.
Reforçando o legislador este princípio, no n.º 2 da norma, afirmando expressamente que as componentes respeitantes a períodos anteriores só podem ser imputáveis ao período de tributação, se anteriormente fossem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
Ora, quando esta norma – artigo 18.º, n.º 2, do Código do IRC – se refere às “componentes positivas ou negativas imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” no período de tributação que respeitam, o mesmo não se destina a cobrir erros contabilísticos ou actos dos próprios sujeitos passivos.
Antes pelo contrário, a norma deverá ser interpretada no sentido de que tais pressupostos, para serem relevantes, hão-de decorrer de situações externas que estes não podem controlar.
Isto é, sempre que essa imprevisibilidade ou desconhecimento decorra de situações / factos externos os quais não são susceptíveis de controlo pelos próprios sujeitos passivos.
Sobre esta questão, importa ter presente os considerandos que ficaram feitos no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25-06-2008, proferido no processo n.º 0291/08, quando nele se conclui:
“IV - Para efeitos do n.º 2 do mesmo dispositivo legal “as componentes positivas ou negativas” não são “imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” quando a sua não consideração, no exercício a que respeitam, se deve a erro contabilístico ou outro, do próprio contribuinte, já que tal norma há-de interpretar-se no sentido de que tais pressupostos. Para serem relevantes, hão-de decorrer de situações externas que aquele não pode controlar”.
Ainda a propósito do princípio da periodização do lucro tributável ou da especialização de exercícios, refira-se que a mesma poderá ter efeitos fiscais diversos, conduzindo a desvios de resultados entre os exercícios com o propósito de minimização da carga fiscal.
Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo, a, designadamente:
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Diferir no tempo os lucros;
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Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercíios diferentes, com o objectivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;
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Concentrar o lucro em exercício onde se podem efetivar deduções mais avultadas (v.g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).
No caso em apreço, não subsistem dúvidas, que do contrato celebrado a 01-04-2016, entre a B... e a A..., a primeira cede à segunda, a exploração da embarcação “...”, sendo o contrato celebrado pelo prazo de um ano, com início a 01-04-2016 e termo a 31-03-2017, automaticamente renovável por igual período, se as partes assim o entenderem.
A título de remuneração, a A... paga à B... o montante de € 25.000,00, acrescido de IVA à taxa legal.
Verifica-se assim, que apenas 9 (nove) meses respeitam a gastos do exercício de 2016 (meses de Abril a Dezembro), sendo os restantes 3 (três) meses correspondentes ao exercício de 2017, no valor de € 6.250,00.
Conforme resulta do ponto 7 do preâmbulo do Código do IRC, “embora o rendimento das unidades económicas flua em continuidade, …há geralmente, necessidade de proceder divisão da vida das empresas em períodos …devem ter, em princípio, a duração de um ano” Assim sendo, tendo o ano 12 meses, a prática corrente é que tal especialização “deve ser feita mensalmente”.
Com efeito, alega a Requerente que, não obstante o contrato ter sido celebrado em 01-04-2016 por um período de 1 (um) ano, a mesma já se encontrava a utilizar a embarcação objecto de contrato desde o início do ano, correspondendo o valor pago, na totalidade ao exercício de 2016.
Contudo, não foi possível inferir-se dos elementos constantes do processo que se encontrava demonstrada a utilização da embarcação desde o início do ano. Por outro lado, o que é claro e
Inequívoco é a realização de um contrato em 01-04-2016, prevendo-se, nessa data, o início do contrato de cedência de exploração.
Portanto, sendo as condições do contrato previsíveis, a Requerente deveria ter procedido à especialização dos gastos por exercício, imputando 9 (nove) meses ao ano de 2016 e 3 (três) ao ano de 2017.
Não assiste, pois, razão à Requerente, devendo manter-se a correcção efectuada no período de tributação de 2016, devendo ser promovida a correcção em sentido inverno em 2017.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e, em consequência:
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Absolver a AT do pedido relativamente ao vício de falta de fundamentação; e
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Determinar a anulação parcial dos actos de liquidação em apreço, na parte em que não concretiza o reembolso do valor de € 230,00, por configurar um desvio ao princípio da neutralidade, com todas as consequências legais; e
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Determinar a anulação parcial dos actos de liquidação em apreço, na parte em que não concretiza a aplicação do disposto na Verba 2.14 da Lista I anexa ao Código do IVA, ao transporte de pessoas no âmbito de actividades marítimo-turísticas, com todas as consequências legais; e
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Absolver a AT do pedido, mantendo a correcção relativa aos gastos suportados por documentos sem identificação do adquirente, com todas as consequências legais; e
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Absolver a AT do pedido, mantendo a correcção relativa à dedutibilidade fiscal do encargo referente ao contrato de cessão de exploração da embarcação “...”, com todas as consequências legais;
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Condenar a Requerente e a AT nas custas do processo, nas percentagens abaixo fixadas.
D. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 51.547,42, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente (25%) e pela AT (75%), respetivamente, na proporção do decaimento, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de Março de 2022
O Árbitro
(Hélder Faustino)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.