DECISÃO ARBITRAL[1]
1. Relatório
A – Geral
1.1. A..., S.A., sociedade com sede no …, na Rua .., titular do número de identificação fiscal … (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 26.03.2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral colectivo em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2012 e com data de 14.07.2013, referentes à verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (de ora em diante “TGIS”), relativos a prédios de que é proprietária, como adiante melhor se verá e, por outro, o ressarcimento dos danos por si sofridos pela prestação indevida de uma garantia bancária.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitros Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro-presidente), Fernando Borges de Araújo e Nuno Pombo, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.3. Por despacho de 04.04.2014, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. … e Dra. … para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído a 02.06.2014.
1.5. Ainda no dia 02.06.2014 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.6. No dia 03.07.2014 a Requerida apresentou a sua resposta.
B – Posição da Requerente
1.7. A Requerente é proprietária de 3 (três) prédios (de ora em diante designado “Prédios”) em propriedade total ou vertical, a saber:
1.7.1. Um prédio sito na Av. ..., em …, com o artigo matricial …, da nova freguesia das …, com 7 (sete) pisos e 14 (catorze) divisões com utilização independente, com um valor patrimonial total de € 2.233.530,00 (dois milhões duzentos e trinta e três mil quinhentos e trinta euros), a que corresponde a caderneta que a Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 2, cujo teor se tem por reproduzido;
1.7.2. Um prédio sito na Av. ..., em …, com o artigo matricial …, da nova freguesia das …, com 7 (sete) pisos e 13 (treze) divisões com utilização independente, com um valor patrimonial total de € 1.922.100,00 (um milhão novecentos e vinte e dois mil e cem euros), a que corresponde a caderneta que a Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 3, cujo teor se tem por reproduzido;
1.7.3. Um prédio sito na Av. ..., em …, com o artigo matricial …, da nova freguesia das …, com 9 (nove) pisos e 21 (vinte e uma) divisões com utilização independente, com um valor patrimonial total de € 7.234.050,00 (sete milhões duzentos e trinta e quatro mil e cinquenta euros), a que corresponde a caderneta que a Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 4, cujo teor se tem por reproduzido;
1.8. Em finais de Outubro, a Requerente foi notificada das liquidações de Imposto do Selo (de ora em diante designado “IS”) que se encontram listadas nos quadros do art. 1.º do requerimento de pronúncia arbitral (anexadas sob a designação conjunta de documento n.º 1 do dito requerimento, cujo teor se tem por reproduzido), as quais se basearam no art.º 1.º do Código do Imposto do Selo (de ora em diante o “CIS”), na verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e na subalínea i) da alínea f) do n.º 1 do art.º 6.º da mesma Lei, cuja data limite de pagamento se reporta ao final do mês de Dezembro de 2013.
1.9. A Requerente prestou garantia de pagamento do tributo que lhe era exigido pelas liquidações a que acima se fez referência, como se comprova pelo documento anexo ao requerimento de pronúncia arbitral com o n.º 5, cujo teor se tem por reproduzido, tendo para tanto suportado um custo de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
1.10. Fundamenta a Requerente o seu pedido no “vício de erro sobre os pressupostos de direito e vício de violação de lei”.
1.11. O vício de erro sobre os pressupostos de direito, sustenta a Requerente, radica na circunstância de não resultar da lei a correspondência do valor patrimonial tributário (de ora em diante designado “VPT”) de um prédio composto por várias fracções independentes à soma do VPT dos andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, até porque, nos termos do n.º 3 do art.º 12.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), “cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário”, sendo consequentemente objecto de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) separada.
1.12. A Requerida, porém, para apurar o VPT de cada um dos Prédios em propriedade total ou vertical não se limitou a proceder à soma aritmética do VPT de cada uma das suas partes susceptíveis de utilização independente. Para esse apuramento, expurgou da pretensa unidade constituída por cada um dos mencionados Prédios as partes deles que se mostram, nos termos das respectivas cadernetas prediais, afectas ao comércio ou a serviços, ficcionando para cada um dos Prédios um “valor patrimonial tributário – total sujeito a imposto”, conceito, aliás, “totalmente alheio ao acervo legal tributário”:
1.12.1. Para o prédio referido em 1.7.1., que tem um valor patrimonial total de € 2.233.530,00 (dois milhões duzentos e trinta e três mil quinhentos e trinta euros), a Requerida determinou um “valor patrimonial tributário – total sujeito a imposto” de € 1.751.160,00 (um milhão setecentos e cinquenta e um mil cento e sessenta euros);
1.12.2. Para o prédio referido em 1.7.2., que tem um valor patrimonial total € 1.922.100,00 (um milhão novecentos e vinte e dois mil e cem euros), a Requerida determinou um “valor patrimonial tributário – total sujeito a imposto” de € 1.261.990,00 (um milhão duzentos e sessenta e um mil novecentos e noventa euros); e
1.12.3. Para o prédio referido em 1.7.3., que tem um valor patrimonial total € 7.234.050,00 (sete milhões duzentos e trinta e quatro mil e cinquenta euros), a Requerida determinou um “valor patrimonial tributário – total sujeito a imposto” de € 5.543.540,00 (cinco milhões quinhentos e quarenta e três mil quinhentos e quarenta euros).
1.13. A Requerente, se não encontra fundamento legal para que a Requerida expurgue da pretensa unidade de cada um dos Prédios em propriedade total as partes que, nos termos das respectivas cadernetas prediais, se mostram afectas a serviços ou a actividades comerciais, também na lei não vislumbra arrimo que autorize a Requerida a definir a afectação dos Prédios como sendo a habitação.
1.14. Considera ainda a Requerente que a terminologia usada pela verba 28.1 da TGIS – “prédio com afectação habitacional” – não se encontra prevista no CIS, pelo que se impõe o recurso ao CIMI, como resulta do estatuído no n.º 3 do art.º 67.º do CIS, não havendo naquele diploma disposição que suporte as liquidações a que se refere o 1.8..
1.15. Refere também a Requerente que “à teleologia da norma subjaz a vontade do legislador tributar as «casas de luxo», o que não é o caso dos Prédios em apreço.
1.16. A Requerente sustenta ainda que a Requerida, nas liquidações a que se vem fazendo referência, não respeitou a lei quanto aos prazos de pagamento, ao impor um pagamento único até ao fim de Dezembro de 2013, porquanto o art.º 120.º do CIMI, aplicável por força do disposto no n.º 5 do art.º 44.º do CIS, impõe o fraccionamento em duas ou três prestações quando o imposto a pagar seja superior a € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), como é manifestamente o caso vertente, o que inquina igualmente a validade dessas mesmas liquidações.
1.17. Por último, advoga a Requerente estarmos perante o vício de violação de lei, uma vez que “a norma que subjaz às liquidações de Imposto do Selo é inconstitucional, por violação do princípio, constitucionalmente tutelado, da igualdade”, quando interpretada com o sentido e o alcance pretendidos pela Requerida, que distingue arbitrariamente prédios que hajam sido constituídos em propriedade horizontal e os prédios em propriedade total com andares ou partes susceptíveis de utilização independente.
C – Posição da Requerida
1.18. A Requerida, na sua resposta, pronuncia-se sobre o alegado vício de erro sobre os pressupostos de direito, entendendo que a situação dos Prédios se subsume literalmente na previsão da verba em causa, acrescentando que nos prédios em regime de propriedade total não existem fracções autónomas a que a lei fiscal possa atribuir a qualificação de prédio, sendo a Requerente, consequentemente, proprietária de três prédios unitariamente considerados, e não de cada uma das partes ou fracções susceptíveis de utilização independente de que se componham.
1.19. Sustenta ainda a Requerida estar impedida de aplicar, por analogia, ao regime da propriedade total o regime estatuído para a propriedade horizontal, considerando que interpretação diversa da que é assumida nas ditas liquidações violaria “a letra e o espírito da verba 28.1 da Tabela Geral e o princípio da legalidade dos elementos essenciais do imposto previsto no artigo 103º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”, uma vez que “cabe à lei – Lei da Assembleia da República e Decreto-Lei autorizado – estabelecer os elementos essenciais da incidência dos impostos”.
D – Conclusão do Relatório
1.20. No dia 07.07.2014, o tribunal arbitral colectivo, por despacho do seu presidente, comunicou que, se as partes se não opusessem, e nenhuma se opôs, se dispensaria a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), uma vez que as partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão.
1.21. O tribunal arbitral colectivo é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
1.22. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
1.23. A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que os actos de liquidação contestados assentam na mesma base factual e apelam à aplicação das mesmas regras de direito, sendo igualmente de aceitar o pedido de indemnização formulado porquanto, sem prejuízo dos demais argumentos apresentados no ponto 3.1.4. infra, o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral colectivo sufrague quanto à validade das liquidações postas em crise.
1.24. O processo não padece de qualquer nulidade nem foram suscitadas pelas partes quaisquer excepções que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que se mostram reunidas as condições para a prolação da decisão arbitral.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. A Requerente é a única proprietária dos Prédios referidos no ponto 1.7. supra (docs. n.ºs 2 a 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.2. Os Prédios encontram-se constituídos em propriedade total ou vertical, todos com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente (docs. n.ºs 2 a 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.3. Cada um dos três Prédios tem andares ou divisões afectos a comércio e a serviços (docs. n.ºs 2 a 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.4. A Requerida, para efeitos de aplicação da verba 28.1 da TGIS, procedeu à soma aritmética dos valores patrimoniais de cada um dos andares ou divisões que nas respectivas cadernetas prediais eram dados como estando afectos a habitação (docs. n.ºs 1 a 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.5. Assim, a Requerida atribuiu aos Prédios identificados nos pontos 1.7.1. e seguintes supra, para efeitos de aplicação da verba 28.1 da TGIS, os VPT que aqui se indicam, respectivamente: (i) € 1.751.160,00 (um milhão setecentos e cinquenta e um mil cento e sessenta euros); (ii) € 1.261.990,00 (um milhão duzentos e sessenta e um mil novecentos e noventa euros); e (iii) € 5.543.540,00 (cinco milhões quinhentos e quarenta e três mil quinhentos e quarenta euros) – (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.6. A Requerente foi notificada das liquidações de IS a que se referem os quadros que constam do art.º 1.º do pedido de pronúncia arbitral (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.7. A Requerente no dia 27.01.2014 prestou a favor da Requerida uma garantia bancária de valor de € 113.095,50 (cento e treze mil, noventa e cinco euros e cinquenta cêntimos), datada de 24.01.2014, tendo para tanto suportado um custo de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) (doc. n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral e confissão da Requerida).
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa, que devam considerar-se não provados.
3. Matéria de direito
3.1.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, duas:
a) A de saber se um prédio constituído em propriedade total ou vertical, mas com andares ou divisões com utilizações independentes, é um “prédio com afectação habitacional” para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro; e
b) A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações contestadas, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida quanto ao ressarcimento dos danos por si sofridos com a prestação indevida de uma garantia bancária.
3.1.2. A verba 28.1 da TGIS
A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, entre várias alterações que promoveu ao CIS, aditou, pelo seu art.º 4.º, a verba 28 à TGIS, que conta com a seguinte redacção:
«28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1%;
28.2 - Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças - 7,5 %.»
Com a epígrafe “disposições transitórias”, o art.º 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e com relevo para o que cumpre decidir, estabeleceu o seguinte:
1 — Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respetiva Tabela Geral:
a) O facto tributário verifica -se no dia 31 de outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efetuada até ao final do mês de novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii) Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.
Como se constata, a verba 28.1 refere-se a “prédios com afectação habitacional”. Ora, não só este conceito não surge definido em qualquer disposição do CIS, como tão-pouco é usado no CIMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.
3.1.3. A “propriedade vertical” e a aplicação da verba 28.1 da TGIS
Sem prejuízo do interesse, não apenas dogmático, da fixação do sentido e do alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”, forçoso é, antes do mais, dar resposta à questão de saber se, para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS, podem ser somados os VPT de cada um dos andares ou divisões com utilização independente de um determinado edifício, como fez a Requerida relativamente a cada um dos Prédios.
a) A matriz predial de imóveis em propriedade total ou vertical e a cobrança do Imposto Municipal sobre Imóveis
Importa desde já esclarecer que “cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição predial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário”, conforme se pode ler no n.º 2 do art.º 12.º do CIMI. Também o IMI, nos prédios sujeitos ao regime da propriedade total, dá relevo típico a cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente (art.º 119.º, n.º 1 do CIMI).
Ou seja, resulta claro que o legislador, no CIMI, não pretendeu ater-se ao rigor da forma jurídica dos direitos reais incidentes sobre os prédios, mas antes à utilização que lhes é dada, nomeadamente nos casos em que um prédio, juridicamente falando, é composto por diferentes andares ou partes susceptíveis de utilização independente.
Dir-se-á, não sem razoabilidade, que o legislador, para efeitos de tributação em sede de IMI, optou por conferir autonomia, independência, a cada uma das partes ou a cada um dos andares de um único prédio, desde que umas e outros se mostrem de utilização independente, ao ponto de prever a inscrição individualizada na matriz de cada uma dessas partes independentes e de impor à tributação em sede de IMI uma cobrança também ela autónoma. Mau grado a existência jurídica de um único prédio, é o próprio legislador que não apenas recomenda mas impõe a consideração autónoma de cada uma das partes independentes, para efeitos de tributação do património.
b) A aplicação da verba 28.1 da TGIS a cada uma das partes independentes
Se é assim para o IMI, como se procurou demonstrar, não pode deixar de ser assim também para o IS, nomeadamente para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS.
Aliás, este problema, caso o imposto, IMI ou IS, fosse puramente proporcional, não existiria ou seria inócuo, porquanto o somatório das partes haveria de corresponder necessariamente ao todo. Não é esse, porém, o caso dos autos.
Como se viu, o IS a que faz apelo a verba 28.1 da TGIS só se mostra devido relativamente aos prédios com afectação habitacional e, nestes, apenas aos que apresentem um VPT igual ou superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
A Requerida, num exercício que se compreende, lobrigou o absurdo que resultaria da aplicação da taxa de imposto ao VPT de um prédio, se este fosse calculado na base do somatório de todas as partes independentes que o compõem. Expurgou, então, no caso em análise, as partes que matricialmente estavam afectas a fins não habitacionais, logrando alcançar, para efeitos da verba 28.1 um VPT diferente daquele que resulta da aplicação dos critérios de determinação da matéria colectável para efeitos de tributação em sede de IMI.
Dizer-se que se entende o exercício levado a cabo pela Requerida não significa, porém, concluir pelo seu acerto, porquanto parece indevida a desconsideração da autonomia de cada uma das partes susceptíveis de utilização independente dos Prédios, impondo, para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS, uma unidade que sendo indiscutível em termos de direitos reais o não é em sede de tributação sobre o património imobiliário.
Atentos a letra e o espírito da lei, não se vislumbra que seja intenção do legislador fazer aplicar a verba 28.1 da TGIS a cada uma das partes de um prédio quando apenas do somatório de todas elas resulta um VPT superior ao da bitola legal.
c) A ratio legis da verba 28.1 da TGIS
O que se deixa dito acima não ignora o confessado propósito do proponente da alteração legislativa já referida, que a Requerente também recorda. A interpretação que aqui se acolhe está de harmonia com o que parece ter sido a inequívoca intenção do Governo, autor da proposta que resultou nesta intervenção legislativa.
Aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente[2]:
“O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.”
Ora, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresenta esta proposta de lei referindo, sem tibiezas, a expressão “casas”. “Casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, note-se.
Assim, mau grado a infelicidade da técnica legislativa adoptada, resulta com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS não pode ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos cada um dos andares, divisões ou partes susceptíveis de utilização independente quando apenas do respectivo somatório resulta um VPT igual ou superior ao que prevê a mesma verba. Na verdade, nenhuma das “casas” de qualquer dos Prédios a que vimos fazendo referência, apresenta, de per se, “valor igual ou superior a 1 milhão de euros”.
d) Conclusão
Pelo exposto, é entendimento do tribunal arbitral colectivo que está ferida de ilegalidade a liquidação de IS com base na verba 28.1 da TGIS relativamente a cada um dos andares ou partes susceptíveis de utilização independente de cada um dos Prédios, por não poder a mencionada verba ser interpretada no sentido de poder ela ser aplicada a andares ou partes susceptíveis de utilização independente de um prédio em propriedade total ou vertical, quando apenas do somatório de cada um desses andares ou partes se logra obter um VPT igual ou superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros), não ultrapassando o VPT de cada um dos ditos andares ou partes essa fasquia legal.
O entendimento do tribunal arbitral colectivo rejeita o juízo de inconstitucionalidade invocado pela Requerida. É sabido que cabe à lei – lei da Assembleia da República ou Decreto-Lei autorizado – a fixação dos elementos essenciais da incidência dos impostos. Contudo, o entendimento acolhido pelo tribunal arbitral colectivo não descura o princípio da legalidade previsto no n.º 2 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa, porque, como se procurou demonstrar pelos argumentos apresentados supra, a solução que se advoga resulta de disposições normativas que não enfermam de qualquer inconstitucionalidade orgânica.
3.1.4. Indemnização por prestação de garantia indevida
A Requerente apresenta igualmente um pedido de indemnização pela prestação indevida de garantia.
Pedidos deste teor não constituem novidade no CAAD, havendo várias decisões no sentido de admitir a sua cognoscibilidade pelos tribunais arbitrais[3]. Como se deixou já dito em termos sumários no ponto 1.23., também este tribunal arbitral colectivo entende poder conhecer desse pedido.
A alínea b) do n.º 1 do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, sejam eles relativos a juros indemnizatórios ou à prestação indevida de garantias.
Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à administração tributária e aduaneira. Manifestações desse princípio podemos encontrar no n.º 1 do art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no n.º 4 do art.º 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Especificamente sobre a indemnização em caso de garantia indevida se refere o art.º 171.º do CPPT, resultando claro dessa disposição que se pode conhecer do pedido de indemnização no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, o que se impõe por razões de economia processual, já que o direito à indemnização por garantia indevidamente prestada depende do que se decida sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação. Assim, forçoso é concluir que também o processo arbitral deve ser tido como adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada.
O regime do direito a indemnização por garantia indevidamente prestada consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.
No caso sub judice, como se disse, os actos de liquidação controvertidos são ilegais, uma vez que as normas em que se baseiam não se mostram aplicáveis à factualidade dos autos, erro que não pode deixar de ser imputável à Requerida já que as ditas liquidações são da sua exclusiva iniciativa e responsabilidade.
Consequentemente, entende este tribunal arbitral colectivo que a Requerente tem direito a ser indemnizada pelo prejuízo sofrido com a emissão da garantia indevidamente prestada, sendo ele equivalente aos custos que teve de suportar com essa emissão, ou seja, € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
Importa pois determinar se esta quantia excede o limite fixado no n.º 3 do art.º 53.º da LGT, em função da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios. Ora, o valor garantido foi de € 113.095,50 (cento e treze mil, noventa e cinco euros e cinquenta cêntimos), tendo sido a garantia prestada a 27.01.2014, embora com data de 24.01.2014. Uma vez que a garantia ainda se mantém válida, não é possível realizar esta operação aritmética, pelo que ela terá de ser efectuada em momento ulterior.
3.1.5. Questões prejudicadas: prazo de pagamento e inconstitucionalidade invocada pela Requerente
A Requerente suscitou a questão do prazo de pagamento, entendendo que, se a ele houvesse lugar, o mesmo teria de ser fraccionado de harmonia com o disposto no art.º 120.º do CIMI, aplicável por força do disposto no n.º 5 do art.º 44.º do CIS.
Levantou também a Requerente a questão da inconstitucionalidade das normas da subalínea i) da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e da verba 28.1 da TGIS, com a redacção que lhe foi dada pelo mesmo diploma, caso elas fossem interpretadas no sentido de que o IS ali previsto poderia incidir sobre cada um dos andares ou partes independentes de cada um dos Prédios.
Uma vez que o tribunal arbitral colectivo não acolheu o entendimento da aplicabilidade da verba 28.1 da TGIS ao caso vertente, surge prejudicada e processualmente inútil a apreciação dessas questões e a de quaisquer outros vícios que possam enfermar as contestadas liquidações.
4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral colectivo delibera:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com a consequente anulação das liquidações impugnadas, com todas as consequências legais;
b) Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada, condenando a Requerida a pagar à Requerente a indemnização que for apurada em execução do ora deliberado.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 315.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 85.566,90 (oitenta e cinco mil quinhentos e sessenta e seis euros e noventa cêntimos).
6. Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.
Lisboa, 15 de Setembro de 2014
O tribunal arbitral colectivo
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(Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa)
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(Fernando Borges de Araújo)
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(Nuno Pombo)
[1] A redacção da presente decisão arbitral obedece à ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[2] V. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32.
[3] Vejam-se, a título de exemplo, as decisões proferidas no âmbito dos processos números 233/2013-T, 112/2013-T e 36/2013-T.