DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Olívio Mota Amador, Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro (árbitros vogais) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25-05-2021, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A…, S.A., (doravante designada por Requerente) com o NIF n.º … com sede na Avenida …, Lisboa, apresentou em 18-03-2021 um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração da ilegalidade do indeferimento da decisão final do pedido de revisão oficiosa da autoliquidação do IVA efetuada para o período de dezembro de 2014 (Proc. n.º …) no valor de € 431.917,91 (quatrocentos e trinta e um mil, novecentos e dezassete euros e noventa e um cêntimos) acrescido do pagamento dos juros indemnizatórios e das custas do processo.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 18-03-2021.
2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros adjuntos os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável e como árbitro presidente a Conselheira Fernanda Maças.
3. Em 05-05-2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 25-05-2021.
5. Por Despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, de 26-05-2021 foi aceite a renúncia às funções arbitrais invocando para tanto razões que são de considerar como justificativas e procedeu à substituição pelo Exmo. Juiz José Poças Falcão.
6. Em 27-05-2021 o Exmo. Juiz José Poças Falcão aceitou a aceitação do encargo para o qual foi nomeado.
7. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em 30-09-2021, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
8. Por despacho de 12-10-2021 foi indeferido o pedido de inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente, atendendo a que o Tribunal considera estar habilitado a decidir a matéria de facto com os elementos que já constam dos autos e, consequentemente, sem necessidade de produção de prova testemunhal, uma vez que se afigura inútil ou sem objeto, o ato de inquirição de testemunhas e, como tal, proibido à luz do artigo 130º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, do RJAT.
9. Pelo mesmo despacho e ao abrigo do disposto nas als. c) e) do artigo 16, e do n.º 2 do art.º 29, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, e quanto às alegações finais foi estabelecido que “Ambas as partes apresentarão, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias [(artigos 29.º, do RJAT, 91.º-5 e 91º-A, do CPTA, versão republicada em anexo ao DL n.º 214-G/2015, de 2-10)], alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito.”
10. Foi ainda neste despacho fixado o dia 09-01-2022 como data limite para a prolação e notificação da decisão final.
11. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas
12. Após a apresentação das alegações por ambas as partes, em 08-11-2021 foi proferido um despacho, no uso da faculdade prevista no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, a prorrogar a decisão final e sua notificação por dois meses.
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
II. MATÉRIA DE FACTO
1. Factos Provados
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e a cópia do processo administrativo junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro e sucessivas alterações) que oferece um conjunto alargado de serviços para clientes empresariais e particulares.
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Para efeitos de IVA, a Requerente é um sujeito passivo misto, enquadrado no regime normal, com periodicidade mensal, desenvolvendo operações sujeitas a IVA, nas quais se incluem as relativas a operações de locação de terminais de pagamento automático (TPA), comissões por débitos diretos (DD), de locação financeira (Leasing) e de Aluguer de Longa Duração (ALD), e operações isentas, designadamente a concessão de financiamentos de crédito ou operações associadas a pagamentos.
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A Requerente por ser um sujeito passivo "misto" exerce atividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da atividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.
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A atividade de locação financeira e de ALD exercida pela Requerente envolve a aquisição dos bens e a sua disponibilização aos clientes e a atividade de concessão de crédito ou financiamento a particulares e empresas e a gestão respetiva.
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A Requerente dispõe de várias dezenas de agências em Portugal podendo os clientes dirigir-se a qualquer uma delas para iniciar o processo destinado à aquisição de bens através de locação financeira ou de ALD.
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A atividade de locação financeira e de ALD exercida pela Requerente, envolvendo operações de aquisição e disponibilização de bens, exige a concretização ou realização, pela Requerente, de atos e serviços específicos, distintos da concessão de crédito.
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A Requerente realiza a atividade de aquisição de bens a locar e a sua transmissão e/ou disponibilização aos clientes através das seguintes áreas internas: (i) Áreas de Negócio: Banca de Retalho e/ou Banca de Empresas e Corporativa; (ii) Direção de Análise de Risco de Crédito: avalia as propostas de financiamento apresentadas pelas áreas de negócio, estabelece as condições de financiamento e aprova as operações; (iii) Direção de Marketing e Comunicação: valida ou fixa os preços para cada operação e presta o seu apoio à área específica de negócio/balcão; (iv) Direção de Suporte Operacional: procede à aquisição do bem a locar e apoia na concretização das operações de transmissão e disponibilização do bem locado; (v) Direção de Assessoria Jurídica e Contratação: apoia a concretização das relações jurídicas que se estabelecem nesta fase da operação; (vi) Direcção de Planeamento, Contabilidade e Gestão: apoio da Contabilidade e da Assessoria Fiscal na avaliação dos respetivos impactos no balanço da Requerente.
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A Requerente na atividade de locação financeira e de ALD através das áreas internas, identificadas na alínea anterior, realiza as seguintes tarefas: i) prospeção, aprovação e captação de negócio; ii) aquisição e registo dos bens; iii) gestão do preço dos bens; iv) averiguação e negociação de seguros e respetivas apólices; v) gestão de qualidade e assistência de caráter técnico no caso de bens danificados; vi) assistência a reclamações e queixas de clientes quanto a bens com caraterísticas incorretas ou inadequadas; vii) emissão, envio e cobrança das faturas das rendas; viii) registos contabilísticos e avaliação dos impactos fiscais da operação de aquisição, transmissão e/ou disponibilização do bem a locar.
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Após a entrega do bem ao cliente continua a ser necessária a prática pela Requerente de outros atos. No caso de viaturas e após a entrega ao cliente é necessário a gestão de sinistros, viatura de substituição, manutenção e reparações, bem como os procedimentos de final de contrato (transmissão e registo definitivo da viatura a favor do locatário ou a sua recolha pela Requerente).
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A Requerente necessita e despende um conjunto de recursos humanos e materiais com a atividade de aquisição e disponibilização dos veículos no âmbito e vigência dos contratos de “leasing” e/ou ALD que celebra.
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As atividades da Requerente, descritas nas alíneas H), I) e J) supra, implicam a afetação de custos e recursos comuns da Requerente, como, por exemplo, água, gás, eletricidade, comunicações, equipamentos informáticos, papel e custos com a prestação de serviços por terceiros, como advogados.
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O pedido de pronúncia arbitral incide sobre a autoliquidação do IVA reportada na declaração periódica referente ao mês de dezembro de 2014.
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Como a Requerente no âmbito da sua atividade realiza operações de locação financeira (leasing e ALD), para efeitos de dedução do IVA dos bens de utilização mista, adotou o procedimento previsto no Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, nomeadamente, a aplicação do método da afetação real, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA.
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Com base no entendimento vertido no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, a Requerente apurou um coeficiente de imputação específico de 10% para o ano de 2014, do qual resultou uma dedução de IVA de € 719.863,19.
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A Requerente não concordou com o procedimento expresso no Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, afirmando que o mesmo é ilegal e que a dedução total do ano ascende a € 1.151.781,10.
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Tendo a Requerente apurado uma percentagem de dedução inferior àquela que segundo o seu entendimento seria a correta face às disposições legais em vigor considera dever proceder à regularização do IVA referente a 2014 no montante global de € 431.917,91.
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Inconformada com a autoliquidação, por entender ter entregue prestação tributária em excesso derivada da ilegalidade do coeficiente de imputação específica, a Requerente apresentou, em 28-12-2018, um pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, da autoliquidação do IVA efetuado na declaração periódica de dezembro de 2014 com fundamentos idênticos aos do presente pedido arbitral.
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A Requerente pretendia apurar o montante de IVA dedutível e a correção da autoliquidação do IVA reportada na declaração periódica referente ao mês de dezembro de 2014, de forma a que a dedução total do ano ascenda a € 1.151.781,10 ao invés de € 719.863,19 e, em consequência, peticiona a permissão para proceder à regularização do IVA referente a 2014, no montante global de € 431.917,91.
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Por ofício de 02-12-2020, a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa proferido, em 24-11-2020, pelo Subdiretor Geral dos serviços do IVA, ao abrigo de subdelegação de competências.
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Os fundamentos da decisão de indeferimento constam da Informação n.º …/2020, de 24-09-2020 da Direção de Serviços do IVA, e têm correspondência com os argumentos da Resposta da Requerida.
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Não se conformando com a decisão de indeferimento, identificada na alínea S), a Requerente deduziu a presente ação arbitral em 18-03-2021.
2. Factos não provados
Nos presentes autos não se mostra alegada a quantificação dos diversos custos mistos da Requerente de forma a permitir determinar o grau de afetação dos mesmos na disponibilização dos veículos, no âmbito da atividade de locação financeira. Assim, não se consegue provar que os atos de disponibilização de veículos sejam os que predominantemente geram os consumos dos custos comuns às atividades sujeita e isenta.
Não existem outros factos com relevância para a apreciação do pedido, que devam ser considerados provados ou não provados
3. Fundamentação da matéria de facto
O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT).
Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.
No caso, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica dos documentos apresentados pela parte, e que não foram impugnados e na cópia do processo administrativo instrutor, apresentado pela AT.
Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, e de acordo com a previsão do artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida e o Processo Administrativo junto, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III. DO DIREITO
1. A questão central a decidir nos presentes autos arbitrais consiste em saber se a Requerente tem direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista relativos às atividades de leasing e ALD por si desenvolvidas, passando a considerar no cálculo da percentagem de dedução referente ao ano 2014, os valores relativos às amortizações financeiras dos contratos de locação financeira por si celebrados.
2. Como resulta das Conclusões que apresentou nas alegações, e que se transcrevem na íntegra, a Requerente entendeu, essencialmente, que:
“A. A determinação do IVA dedutível dos sujeitos passivos mistos é feita por aplicação dos três passos referidos no artigo 39º do PPA;
B. Segundo esses passos, o IVA das aquisições de bens e serviços exclusivamente destinadas pelo Requerente à prática de operações tributáveis é deduzido a 100%;
C. O IVA das aquisições de bens e serviços exclusivamente destinadas pelo Requerente à prática de operações isentas não é deduzido (0%);
D. O IVA das aquisições de bens e serviços simultaneamente destinadas pelo Requerente à prática de operações tributáveis e operações isentas é deduzido segundo critérios objectivos de afectação, na parte em que tal se afigura possível (afectação real);
E. A utilização desses critérios de afectação real pelo Requerente, quando possível, foi provada em sede de inspecção, tendo os mesmos sido aceites;
F. O IVA das aquisições de bens e serviços simultaneamente destinados à prática de operações tributáveis e isentas cuja utilização seja indiferenciada entre operações tributáveis e operações isentas, deverá ser deduzido segundo a percentagem das operações tributáveis no total das operações do Requerente; [prorata residual, art. 23º, nº1, al. b) do CIVA].
G. Esse método é o que permite uma mais exacta quantificação do IVA dedutível;
H. A locação financeira é uma forma de aquisição de bens;
I. As rendas (preço) e todos os valores cobrados nos contratos de locação financeira celebrados pela Requerente encontram-se integralmente sujeitos a IVA, legitimando assim a sua inclusão, quer no numerador, quer no denominador da fórmula de cálculo do prorata.
J. Esta actuação está em linha com a lei e jurisprudência nacional e comunitária sobre a matéria.
K. A argumentação da AT é confusa, incongruente e nada acrescenta ou retira às conclusões acima enunciadas.
L. O critério da AT é ainda um critério de afectação real, como já foi reconhecido pela jurisprudência do STA, podendo ser usado para a parte das despesas em que seja possível medir a intensidade de utilização nos sectores tributado e isento;
M. No entanto, após a aplicação de um ou vários critérios de afectação real, onde se inclui o critério da AT, haverá sempre despesas cuja intensidade de utilização é impossível de medir.
N. Para a determinação do IVA dedutível dessas despesas, o artigo 23, nº 1 al. b) do CIVA consagra o critério (residual) do prorata.
O. A tentativa de utilização do ‘critério de afectação real preconizado pela AT como se do prorata residual se tratasse é ilegal e tecnicamente incorrecta.
P. A aplicação do critério da AT à actividade de locação financeira originaria uma distorção ilegal e injustificada do direito à dedução ao longo dos contratos de locação financeira, conforme provado matematicamente através do exemplo anexo às presentes alegações.
Q. A AT está sujeita aos princípios da legalidade e defesa do interesse público;
R. A actuação da AT viola o princípio da legalidade e defesa do interesse público, no que concerne:(a) às normas que regulamentam o exercício do direito à dedução do IVA pelo Requerente – art. 20º, nº1, al. a), art. 23, nº1, al. b) do CIVA; (b) à presunção de verdade dos elementos do contribuinte – art. 75.º LGT; (c) às normas que regulamentam o ónus da prova – arts. 343º e 344º do Código Civil.”
3. Em contrapartida, a Requerida entendeu, na Informação que indeferiu o pedido de revisão oficiosa da Requerente e que serviu de base à posição adotada nos presentes autos o seguinte:
“(…)dúvidas não podem restar de que não há razões que fundamentem a pretendida regularização do imposto, mantendo-se a posição da AT sobre a matéria, visto que:
– o procedimento adotado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, o art.º 16.º e art.º 23.º do Código do IVA, e com os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA;
– a posição da Autoridade Tributária e Aduaneira está em sintonia com o decidido pelo TJUE no processo n.º C-183/13, caso Banco Mais, e com o decidido pelos tribunais superiores, nomeadamente o Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Central Administrativo Norte;
– a decisão do TJUE tem valor de caso julgado e é obrigatória.”
4. Na análise da questão principal suscitada pela Requerente impõe-se começar por proceder ao enquadramento legal.
4.1. O direito à dedução do IVA, estabelecido nos artigos 167.º a 192.º da Diretiva IVA e nos artigos 19.º a 25.º do CIVA, consiste essencialmente no direito de um sujeito passivo deduzir ao imposto incidente sobre uma certa operação tributável o imposto em que tenha incorrido na aquisição de bens ou serviços que se destinem à realização dessa operação.
Nos termos do disposto no artigo 168.º da Diretiva, o IVA incorrido nas aquisições feitas por um sujeito passivo é dedutível na integralidade sempre que os bens ou serviços sejam utilizados “para os fins das suas operações tributadas”. Assim, para esse efeito é estabelecido um nexo directo entre uma operação activa e uma operação passiva que corresponde a um método de dedução de imputação directa.
4.2. Caso não seja possível estabelecer esse nexo directo, o direito à dedução encontra-se limitado nos termos do artigo 173.º da Diretiva. Estão nesta situação as despesas com aquisições de bens ou serviços que respeitam simultaneamente a operações tributadas e operações isentas de imposto, ou seja, perante custos mistos.
O artigo 173.º da Diretiva consagra o método pro rata, pelo qual relativamente a bens e serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante às operações que originam o direito à dedução.
A regra de cálculo estabelecida no artigo 174.º da Diretiva consiste: “o pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes – (a) no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º; (b) no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.”
A presunção baseada na percentagem do valor das operações com direito a dedução em relação ao volume total de negócios é afastada pelo critério da afetação real consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva que permite aos estados membros autorizarem ou imporem que a dedução do IVA seja efetuada com base, não no volume de negócios, mas na efectiva utilização dos bens ou serviços.
A norma da Diretiva estabelece o seguinte:
“2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:
(…)
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços; “
Assim, a Diretiva IVA contempla três distintos métodos de cálculo da dedução.
O método regra de imputação directa, que é aplicável aos custos directos, ou seja, aos custos associados a operações que conferem direito à dedução,
O método pro rata aplicável aos custos mistos, que estão indistintamente associados a operações que conferem ou não conferem o direito de dedução.
Por fim, a título de exceção, o método de afetação real.
4.3. O artigo 23.º do CIVA relativamente ao método de dedução aplicável a bens de utilização mista estabelece:
«1. Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que deem lugar a dedução.
2. Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação.
3. A administração fiscal pode obrigar o contribuinte a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.° 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4. A percentagem de dedução específica referida no n.° 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.° e n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do âmbito do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento. “
Assim, resulta do disposto no artigo 23.º, n.º 1, o método pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afetação real em função da efectiva utilização dos bens. Neste caso, o n.º 2 prevê igualmente que a Administração Fiscal possa impor condições especiais ao método de afetação real e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. Nos termos da alínea b) do n.º 3, a Administração Fiscal pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afetação real quando a aplicação do método pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.
4.4. A Administração Fiscal concluiu relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação” e determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, através do Ofício Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afetação real.
Segundo os pontos n.ºs 8 e 9 do referido Ofício Circulado, a afetação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades; (b) se não for possível aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.
5. Como é salientado pela Requerente, a jurisprudência do CAAD, inaugurada pela decisão arbitral proferida no Processo n.º 309/2017, e seguida por diversas outras decisões arbitrais, aponta no sentido da ilegalidade dos atos tributários que aplicam o critério específico de dedução adotado pelo ofício-circulado n.º 30103, por violação do disposto no artigo 23.º, n.º 2 e 3, alínea b), do CIVA.
Neste ponto o presente Tribunal Arbitral subscreve a posição expressa na Decisão Arbitral n.º 811/2019-T, de 2 de setembro de 2019, que, após a exposição detalhada da jurisprudencial arbitral, afirma:
“Nestes termos, a questão da inexistência de credencial legislativa interna para a alteração da fórmula constante do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA afigura-se praticamente estabilizada na jurisprudência arbitral[1].
Em contrapartida, a jurisprudência do STA sobre o dissídio geral entre a AT e as empresas financeiras que utilizam o método da percentagem de dedução (pro rata) nas despesas comuns (em bens e serviços indistintamente utilizados a jusante em operações isentas e sujeitas a IVA), a propósito desta mesmíssima sub-questão (a de saber se os poderes que a Directiva reconhecia aos Estados Membros de configurarem métodos de dedução de custos comuns – pro rata – diferentes do nela estipulado foram assumidos no Direito interno), vai em sentido oposto, como resulta, designadamente, das decisões que foram proferidas, na sequência do já referido Acórdão do TJUE de 10 de Julho de 2014 proferido no âmbito do processo C-183/13 (“Banco Mais”)”
Efetivamente, no acórdão de 4 de março de 2015, no âmbito do Processo n.º 1017/12, em que foi formulado o pedido de reenvio prejudicial que originou a pronúncia pelo TJUE no caso Banco Mais, o STA concluiu:
“o Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-183/13 esclareceu que, se houver elementos que permitam concluir que as operações que conferem direito à dedução de imposto representam uma parte mais que proporcional dos custos comuns originados pelos bens e serviços de utilização mista – como aconteceria se a utilização desses bens e serviços de utilização mista fosse sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos de locação financeira (actividade que não confere direito à dedução do Imposto sobre o valor acrescentado) a significar que «esses custos comuns» se reportavam essencialmente às operações bancárias isentas, - é possível calcular o pro rata da forma excluindo do numerador e do denominador a parte das rendas que corresponde à amortização financeira. “
Como salienta, de forma pertinente, a citada Decisão Arbitral n.º 811/2019-T:
“Acresce a esta corrente uniforme e constante a sua reiteração nos acórdãos de uniformização de jurisprudência exarados pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA em 4 de Março de 2020 nos processos n.º 052/19.0BALSB[2] e n.º 07/19.4BALSB[3],tirados em recurso de
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º: 157/2021-T
Tema: IVA - Sujeito passivo misto. Pro rata de dedução (leasing e ALD). Ofício Circulado n.º 30108
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decisões proferidas no CAAD, e ainda a sua recente reafirmação, em 6 de Maio deste ano, na decisão do processo n.º 01745/10.2BELRS[4].
No primeiro daqueles acórdãos uniformizadores esclareceu-se o domínio da divergência entre as duas decisões (a decisão arbitral proferida no CAAD a 28 de Maio de 2019 no processo n.º 498/2018-T – decisão recorrida – e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido a 15 de Novembro de 2017 no processo n.º 0485/17 – acórdão fundamento):
“No Acórdão Fundamento entendeu-se, na senda do Processo C-183/13 decidido pelo TJUE a 10 de Julho de 2014, que o artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 “não se opõe a que um Estado-membro obrigue um banco que efectue, concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, operações de locação financeira, a incluir na fracção destinada ao apuramento do montante relativo ao direito à dedução dos bens e serviços de utilização mista” apenas “a dita parte componente dos juros incluídos nas rendas de contratos de locação financeira, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão destes contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos” (incumbindo “ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efectivamente esse o caso”).
Pelo contrário, pode ler-se na decisão arbitral recorrida, e em suma, que apesar de se poder admitir, à luz da referida Jurisprudência que a Directiva IVA permitia ao legislador nacional “obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”, a verdade é que o legislador interno não transpôs para o direito nacional essa prerrogativa, “pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal”. Como tal, “a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista directamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo”.
Há, pois, entre a decisão sufragada na decisão arbitral recorrida e a decisão sufragada no Acórdão fundamento oposição relativamente à mesma questão fundamental de direito, o que permite dar como verificada a divergência das decisões que justifica a prossecução do presente recurso, que deve prosseguir para conhecimento do respectivo mérito.”[5]
E, depois de ter estabelecido qual era a divergência que importava resolver, considerou o seguinte[6]:
“a Recorrida põe em causa a aplicabilidade desta jurisprudência do TJUE ao caso dos autos, arguindo que o artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “não constitui a transposição, para o ordenamento jurídico interno, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, da Sexta Directiva (hoje constante do artigo 173.º da Directiva do IVA)”.
Mas sem razão que lhe assista.
Vejamos as disposições legais em causa:
O artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA dispõe que: “Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação” (nosso sublinhado).
E o artigo 17.º, n.º 5 da Diretiva 77/388/CEE dispõe que: “No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução, previstas nos n º 2 e 3, como para operações sem direito à dedução, a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. Este pro rata é determinado nos termos do artigo 19º, para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo. Todavia, os Estados-membros podem:
(…)
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços (nosso sublinhado)”.
Como já se esclareceu no Acórdão proferido por este STA a 3 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 0970/13, “ao interpretar as normas supra referidas o TJUE tomou em consideração que “na interpretação de uma disposição de direito da União, importa ter em conta não apenas os respectivos termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (acórdão SGAE, C-306/05, EU:C:2006:764, n. 34). E que no caso em apreço, o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado-Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados-Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24 do Acórdão)”.
Neste contexto, não só se verifica que o artigo 19.º n.º 1 da Sexta Diretiva (intitulado “Cálculo do pro rata de dedução”) remete unicamente para o pro rata previsto no artigo 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, desta Diretiva, como se verifica que, “embora o segundo parágrafo do artigo 17.º, n.º 5, da Sexta Directiva preveja que essa regra de cálculo se aplica a todos os bens e serviços de utilização mista adquiridos por um sujeito passivo, o terceiro parágrafo desse artigo 17.º, n.º 5, que também inclui a disposição que figura na alínea c), começa com a conjunção adversativa «todavia», que implica a existência de derrogações à referida regra (acórdão Royal Bank of Scotland, EU:C:2008:750, n.º 23). - parágrafos 25 e 26.
Ora, nesta perspectiva a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços»”.
E é precisamente por este motivo que não colhe a argumentação da Recorrida quando vem arguir que nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA é, necessariamente, “toda a renda recebida (ou seja, capital e juros) que constitui o valor tributável da locação financeira, pelo que não seria admissível “distinguir onde a lei não distingue” aquando da dedução de IVA relativamente a bens e serviços que são comprovadamente de utilização mista”. E não colhe porque, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.”
O sentido desta jurisprudência do STA é, portanto, o seguinte: o dissídio quanto à composição da fórmula do pro rata não pode resolver-se no plano abstrato e de princípio em que a jurisprudência do CAAD o coloca, antes obrigando à sua ponderação caso a caso. Mas é por isso mesmo que as outras sub-questões têm de ser abordadas - como, aliás, impõe a exigência de um juízo concreto sobre as circunstâncias de cada caso que o STA repetidamente impõe, determinando a baixa dos processos para a sua averiguação[7].
Assim sendo, a resolução em sentido negativo da sub-questão do uso da habilitação ao legislador nacional para alterar o pro rata fixado na Diretiva (e no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA), que tem sido assumida pela jurisdição arbitral, nos termos vistos, deixa de ser um ponto de chegada para passar a ser, se se quiser, um outro ponto de partida: ao decidir tal questão em sentido negativo, a jurisdição arbitral dispensa-se de mais indagações, por considerar isso suficiente para fundamentar o juízo de ilegalidade das auto-liquidações fundadas no Ofício Circulado n.º 30108 e, nessa medida, dá como prejudicada a abordagem das demais sub-questões em que se decompôs a questão decidenda (excepto a da questão da adequação da fonte, uma vez que esta tende a miscigenizar-se com a do uso da habilitação).
Por outro lado, a resolução dessa mesma sub-questão do uso da habilitação ao legislador nacional para alterar o pro rata fixado na Diretiva (e no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA) em sentido positivo, tem levado o STA a considerar necessária para a decisão elementos adicionais que lhe permitam aferir as sub-questões da adequação substancial desse desvio (ie: saber se está preenchido o pressuposto da “distorção significativa da tributação”), e saber em que medida é que a distribuição dos custos comuns incorridos pelas locadoras corresponde melhor ao pro rata alternativo (ie: saber se há “adequação teleológica” no desvio imposto pelo Ofício Circulado n.º 30108).
Se bem se vê, porém, do que se trata não é de diferentes questões, mas de diferentes aspectos da resposta à seguinte pergunta: quando não se segue um método de afetação real de custos[8], uma especial configuração de imputação de custos de actividades comuns desenvolvidas por instituições financeiras que conduzem actividades isentas de IVA e actividades sujeitas a IVA – ie: um especial pro rata – assegura melhor a neutralidade do imposto e evita maiores distorções de tributação do que a regra geral (a do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA)?
É que só concluindo que sim ela é admitida pelo Direito da União e pelo Direito interno.
Nesta reformulação do problema, a tese que tem prevalecido no CAAD é a de que não há no Direito interno uma forma juridicamente válida de criar um desvio à regra geral.
Ao invés, tem entendido o STA, na esteira do que foi a posição primeiro assumida nesta matéria pelo TJUE, que isso depende das circunstâncias e que, portanto, ainda que a AT esteja legitimada a presumir que, no contexto da confluência no mesmo sujeito passivo de duas actividades financeiras com tratamentos diferentes em sede de IVA, há um pro rata menos distorçor do que o pro rata geral, os sujeitos passivos podem demonstrar que não é assim.”
6. A questão de direito suscitada nos autos (vd., IV. n.º 1, supra) obteve já resposta na jurisprudência do STA, em termos a que o presente tribunal arbitral não pode deixar de aderir. Não obstante, e em homenagem ao dever da aplicação uniforme do Direito, por dever de ofício, acolhe-se a leitura feita por aquele alto Tribunal, ou seja, a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA efetuou a transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, e permite que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação. Consequentemente, a AT não está impedida de considerar que, no cálculo do pro rata das operações de locação financeira, apenas sejam tidos em conta os juros, ou seja, apenas a parte da remuneração do locador incluída na renda.
7. Neste contexto, atendendo ao exposto no n.º 5 supra, a Requerente teria de produzir prova demonstrativa de que os inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão.
Ora, da prova constante dos presentes autos arbitrais não é possível verificar-se que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente foi sobretudo determinada, e em que medida, pela disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira. Efetivamente, não consta dos autos a alegação e prova que esses custos mistos não tenham sido essencialmente consumidos no âmbito das operações isentas.
Desde logo, a Requerente não alega nem quantifica os diversos custos mistos em causa, de forma a permitir determinar o grau de afetação dos mesmos na disponibilização dos veículos. Assim, não fica provado que os atos de disponibilização de veículos sejam os que predominantemente geram os consumos dos custos comuns às atividades sujeita e isenta.
De acordo com a orientação jurisprudencial referida, cabe ao sujeito passivo demonstrar, no seu caso concreto, que as despesas com a aquisição de bens ou serviços de utilização mista são, na parte em que se ligam ao negócio da locação financeira, determinadas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira. Essa prova não foi feita.
8. Atendendo ao exposto, a autoliquidação de IVA e o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa não enfermam da ilegalidade que lhes é imputada pela Requerente.
9. Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO
Termos em que o presente Tribunal Arbitral decide:
-
julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
condenar a Requerente nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em de € 431.917,91 (quatrocentos e trinta e um mil, novecentos e dezassete euros e noventa e um cêntimos) que foi o valor atribuído pela Requerente e que a AT não impugnou.
VI. CUSTAS
Custas a cargo da Requerente, no montante de €7.038,00 (sete mil e trinta e oito euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente improcedente.
Lisboa, 1 de fevereiro de 2022
O Árbitro Presidente
José Poças Falcão
O Árbitro Vogal
Olívio Mota Amador
O Árbitro Vogal,
Regina de Almeida Monteiro
[1] Não obstante os votos de vencidos da Mestre Sofia Ricardo Borges, apostos aos Acórdãos proferidos nos processos n.º 383/2019-T e n.º 408/2019-T, e do Prof. Doutor Sérgio Vasques, apostos aos Acórdãos proferidos nos processos n.º 72/2019-T, n.º 442/2019-T e 706/2019-T.
Mais uma vez, os destaques nas transcrições foram aditados.
[3] Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5f70c8d4862aed8880258566005fcc0e?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1. Aí se escreve o seguinte (destaque no original):
“haverá então que conhecer do mérito do recurso, que consiste em saber se a decisão arbitral recorrida incorre em erro de julgamento ao considerar que a Autoridade Tributária e Aduaneira não pode impor a uma Instituição de Crédito que seja Sujeito Passivo misto em sede de IVA (ou seja, que exerce actividades sujeitas a esse imposto e outras dele isentas) que, na determinação do pro rata dedutível para efeitos do cálculo deste imposto, considere apenas os juros, excluindo da fracção a parte referente à amortização das rendas dos contratos de locação financeira e os valores de alienação / abate por destruição dos bens locados.
(…)
ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.”
[5] Destaques no original.
[6] Destaques aditados, sublinhados no original.
[7] Por exemplo, no já citado Acórdão de 4 de Março de 2015, proferido no Processo n.º 081/13:
“Importa, pois, que sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. Há na matéria de facto provada numerosos elementos, nomeadamente quantitativos sobre as duas referidas actividades, que, se impõe sejam reanalisados, à luz do que definiu o Tribunal de Justiça que deveria ser verificado pelo tribunal nacional, para que se possa decidir se a fórmula de cálculo do pro rata utilizada pela Administração Tributária, em concreto, pode fundamentar as correcções efectuadas e que conduziram aos actos de liquidação impugnados.
Tendo presente, na expressão de Anselmo de Castro, in, Direito Processual Civil Declaratório, III, 268-269, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”, bem como a circunstância de haver que enquadrar neste processo a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça no processo 1017/12 que, apesar de obrigatória, apenas, naquele processo, se não descortina razão juridicamente válida para ser desconsiderada neste, haverá o Tribunal recorrido de formular um juízo sobre os factos provados que exprima a referida averiguação.
Ora, como de forma unânime tem afirmado o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo, os juízos de facto ou juízos sobre factos, incluindo os juízos de valor sobre matéria de facto, e a própria interpretação dos factos e das ilações que as instâncias deles retiram, formulados a partir de critérios da experiência, são, ainda, a matéria de facto, o que impede que possam ser formulados ou reapreciadas pelo tribunal de revista, por neste caso, não existir qualquer erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa que violem uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, em conformidade com o disposto nos arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artº 2º, e) e 281º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
O Tribunal recorrido deverá ouvir ambas as partes sobre a forma de proceder a tal averiguação, convocando-as a nela participarem, por se abrir neste processo uma fase excepcional decorrente da pronúncia do Tribunal de Justiça, já analisada, que haverá de ser dirimida com respeito por todas os princípios que regem o processo como um meio de alcançar a tutela jurisdicional efectiva.”
Também no já citado Acórdão de 27 de Novembro de 2019, proferido no Processo n.º 0977/07.5BELRS 0466/15:
“a questão de saber, quando a utilização desses bens e serviços (de utilização mista) seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, tal como enunciada e definida pelo TJUE, incumbe em primeira linha ao tribunal recorrido.”
Aliás, o terceiro ponto do Sumário do referido Acórdão Uniformizador proferido pelo STA em 4 de março deste ano no processo n.º 052/19.0BALSB referia que
“Em face da interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça sobre a questão, cuja doutrina é inteiramente aplicável ao caso em apreço, deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos.” (destaque aditado).
[8] Como se escreveu em ambos os já citados acórdãos arbitrais proferidos nos processos ns. 706/2019-T e 854/2019-T,
“o Ofício Circulado n.º 30108 contém a indicação (no seu ponto 9) de que o método aí estabelecido, o qual esteve na base das autoliquidações impugnadas, é um “método de afetação real”.
Contudo, decorre das disposições aplicáveis da Diretiva IVA (art. 173º) que aí se contrapõem dois métodos de cálculo do IVA dedutível em operações mistas: o método de pro rata e o método de afetação dos bens e serviços adquiridos, ie da “afetação real”. E que se o primeiro método se baseia em determinar a percentagem em que as operações que não dão direito a dedução representam no volume de negócios total, o segundo método consiste em determinar, primeiramente quais são inputs utilizados nas operações que não dão direito a dedução do IVA e apurar o seu montante.
Tendo em conta que as instruções administrativas são normas internas da administração tributárias que apenas vinculam os serviços e não se impõem aos tribunais, o facto de o Oficio Circulado apelidar de “afetação real” um método que efetivamente consiste em encontrar uma proporção não nos obriga a afastar da conclusão de que, no caso presente, a Autoridade Tributária não aplicou um método de afetação real, mas uma proporção, e portanto não fez uso do poder que lhe é outorgado pelo nº 3 do art. 23º do CIVA.”