Sumário
I. É ilegal o ato de indeferimento do recurso hierárquico quando tiver sido preterido o direito de audição prévia previsto no artigo 60.º da LGT.
II. Têm direito à isenção prevista no artigo 49.º, n.º 1 do EBF os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados cujas unidades de participação sejam integralmente subscritas por investidores qualificados.
A árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular constituído em 01.06.2021, profere a decisão que se segue:
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A… (doravante abreviadamente designado por “Requerente”), com o número de identificação fiscal …, aqui representado pela sua sociedade gestora B…, S.A. (doravante abreviadamente designada por “Sociedade Gestora”), com o número de identificação fiscal …, com sede na Rua …, Algés, vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), requerer a constituição de tribunal arbitral para declarar a ilegalidade dos seguintes atos:
1) Despacho de indeferimento de recurso hierárquico proferido no âmbito do processo n.º …, notificado ao Requerente através do Ofício n.º 2021…, proferido pela Direção de Serviços do Imposto Municipal sobre Imóveis (cuja cópia junta, para todos os efeitos legais, sob a designação de Documento 1);
2) Despacho de indeferimento da reclamação graciosa objeto daquele recurso, proferida no âmbito do processo n.º …, notificado através do Ofício n.º …, de 30 de Dezembro de 2014,
3) Ato tributário de liquidação adicional de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), objeto do recurso hierárquico e da reclamação graciosa acima mencionados, com o n.º 2009 …, no montante de € 37.265,25, referente ao ano de 2009.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 25.03.2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Árbitro designada pelo Conselho Deontológico comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 12.05.2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação atual, o tribunal arbitral singular foi constituído em 01.06.2021.
A AT apresentou Resposta em 05.07.2021.
As Partes não solicitaram a produção de prova testemunhal, nem foram invocadas exceções pela Requerida. O Tribunal questionou as Partes sobre a sua vontade de apresentar alegações escritas, tendo ambas respondido que não pretendiam exercer esse direito.
No dia 30.11.2021, o Tribunal proferiu despacho a prorrogar o prazo inicial previsto no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, tendo o mesmo ficado prorrogado até ao dia 01.02.2022.
II. Posições das Partes
No pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo, a Requerente sustenta, resumidamente, o seguinte:
a) Preterição do direito de audição prévia
A AT notificou a decisão de indeferimento do recurso hierárquico interposto pelo Requerente, dispensando a audição prévia com o seguinte fundamento: “No caso concreto, não há necessidade de notificar a aqui recorrente para efeitos do artº 60º da Lei Geral Tributária (LGT), em conformidade com o ponto 3 da Circular 13, de 08.07.1999 da Direção de Serviços de Justiça Tributária infra reproduzido: «3. Decisões em que poderá dispensada a audiência dos interessados: A audiência dos interessados poderá ser dispensada, sem prejuízo da necessária ponderação do caso concreto e de adequada fundamentação, nomeadamente quando: a) A administração tributária, apenas, aprecie os factos que lhe foram dados pelo contribuinte, limitando-se na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso; Encontram-se nesta situação todas as decisões sobre petições, requerimentos, reclamações e recursos em que a administração se limita a concluir, face aos factos e argumentos invocados pelo contribuinte e a lei aplicável, pela sua improcedência da sua pretensão. b) A administração tributária atue, exclusivamente, no âmbito de poderes vinculados; (…)»” – cf. Documento 1.
Tal posição resulta numa violação do princípio de participação regulado no artigo 60.º da LGT, sendo ainda uma posição contraditória face ao próprio entendimento da AT quanto à possibilidade da dispensa de audição prévia em actos de decisão de 2.º grau (v.g. recursos hierárquicos) vertido na Circular n.º 17/2008, de 14 de Fevereiro de 2008.
Relativamente à dispensa de audição prévia do acto de indeferimento total ou parcial do recurso hierárquico, o n.º 2 do artigo 60.º da LGT consagra que tal dispensa é possível nos dois seguintes cenários:
i. No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;
ii. No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.
Ora, no recurso hierárquico subjudice, nem a liquidação objecto deste recurso foi efectuada com base em declaração do contribuinte – pelo contrário, foi uma liquidação adicional de IMI emitida pela AT – nem tal recurso foi favorável à pretensão do Requerente, tendo a AT decidido pelo indeferimento total do mesmo. Do mesmo modo, a liquidação efectuada oficiosamente pela AT não foi emitida com base em “valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito”, não se cumprindo os pressupostos da dispensa prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT.
Neste contexto, a fundamentação da dispensa do direito de audição prévia invocada pela AT na sua decisão de indeferimento de recurso hierárquico em apreço – assente no ponto 3 da Circular n.º 13, de 8 de Julho de 1999 – não tem qualquer base legal, sendo um entendimento ilegal que não deve prosseguir.
Adicionalmente, considerando que o exercício de audição prévia pelo Requerente permitir-lhe-ia demonstrar perante a AT a errónea interpretação e a aplicação das normas previstas no artigo 49.º do EBF à data do facto tributário, nomeadamente através da apresentação do documento original referente à declaração do Banco C…, S.A. acima referido, não se pode considerar que a preterição do direito de audição não é relevante por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.
Com efeito, a não relevância do direito de audição, “apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 582/16) – o que não ocorre in casu.
Neste contexto, e conforme jurisprudência constante e uniforme dos tribunais nacionais, a “falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário susceptível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Outubro de 2020, proferido no processo n.º 02052/08.6BELRS.
Face ao supra exposto, será de concluir que a preterição do direito de audição prévia por parte da AT, no âmbito do procedimento de apreciação do recurso hierárquico interposto pelo Requerente, constitui um grave vício formal e procedimental, devendo o acto de indeferimento do recurso hierárquico em apreço ser por esse motivo, desde já, anulado.
Sobre este ponto, a AT pronunciou-se nos seguintes termos na Resposta que apresentou:
O Requerente não foi notificado para o exercício do direito de audição em sede de Recurso Hierárquico na medida em que a administração tributária apreciou os factos, com base nos elementos fornecidos pelo próprio não só em sede de reclamação graciosa mas, sobretudo, com a Petição do Recurso Hierárquico, tendo mantido o entendimento de que os documentos juntos não permitiam aferir da existência dos pressupostos da isenção de IMI previstos no nº1 do art. 49º do EBF.
Na verdade, o Requerente teve oportunidade de contraditar a apreciação da administração relativamente à natureza dos participantes do Fundo quando foi notificado para exercer o direito de audição no âmbito da Reclamação Graciosa, pelo Ofício nº …, de 27.11.2014, remetido por Registo RF … PT.
Todavia, o Requerente nada disse ou juntou qualquer documento, sendo que o documento que viria a juntar com a petição do Recurso Hierárquico (fotocópia da Declaração do Banco C…, de 08.01.2015, com a identificação dos participantes do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado A…, à data de 31 de Dezembro de 2009), não foi considerado pelos serviços com valor probatório legal para aplicação da isenção prevista no nº1, do art. 49º do EBF aos prédios em causa, com os fundamentos que se transcrevem:
“À luz do artigo 363º do Código Civil infra reproduzido:
1- Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares.
2- Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.
3- Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais.”
Os documentos autênticos têm, nos termos do artigo 371º do Código Civil, força probatória plena dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, a qual, no caso vertente e tendo em conta as atribuições e competências legais em matéria dos fundos de investimento imobiliário, se reconduz à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
Quanto aos documentos particulares, nos termos do artigo 376º do Código Civil, a sua força probatória plena resulta do reconhecimento notarial do mesmo e comprova as declarações atribuídas ao seu autor, sendo que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Ora, a fotocópia da declaração do Banco C… que consta dos autos do processo e que a recorrente apresenta como prova documental, à luz da legislação referida e reproduzida, é de livre apreciação, por não ser um documento autêntico ou autenticado, logo, não tem o valor probatório legal, que permita considerar que a situação do recorrente permitiria a aplicação da isenção prevista no nº1 do artigo 49ºdo EBF aos prédios constantes na liquidação contestada.” Pelo que concluiu-se: “Donde resulta que o alegado pela aqui recorrente não está demonstrado, nem provado por documento com força probatória legal, de que as unidades de participação, em 2009, eram detidas na exclusividade por investidores profissionais.”
Conclui que o Requerente pode exercer o direito de audição sobre as questões de facto e de direito que suportaram o projecto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, questões essas que, em substância, se mantiveram inalteráveis em sede de recurso hierárquico. Por isso que, aquando da decisão do recurso hierárquico do indeferimento da Reclamação Graciosa, a AT tenha decidido dispensar a audição do Requerente, conforme expressamente se fundamenta no acto impugnado, fazendo referência à Circular nº 13/99, de 8 de Julho.
Nessa medida, dificilmente se poderá aceitar que a dispensa de audiência prévia no procedimento de recurso hierárquico tenha de algum modo prejudicado o Requerente quanto a fazer valer os seus direitos perante a AT, quando, na verdade, teve oportunidade de utilizar os argumentos e meios probatórios que, nos termos legais, poderiam invalidar a posição da administração.
A AT reconhece, ainda, que “apenas em sede contenciosa o Requerente viria juntar ao Pedido Arbitral cópia certificada pela advogada Dra. D…, nos termos do art. 38º do DL nº 76/2006, de 29.03.2006, com as alterações do DL nº 8/2007, de 17.01.2007, e da Portaria nº 657-B/2006, de 29.06.2006, da Declaração do Banco C… com a identificação dos participantes do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado A… à data de 31 de Dezembro de 2009.
b) O benefício fiscal de isenção (total) de IMI previsto no artigo 49.º do EBF
Sobre este ponto, sustenta a Requerente o seguinte:
De acordo com o n.º 1 do artigo 12.º da LGT “[a]s normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos” – i.e. a regra é que as novas normas tributárias só produzem efeitos para o futuro.
Ademais, se o “facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 12.º da LGT.
O IMI constitui um imposto de periodicidade anual que “incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no território português (incidência objetiva – cf. n.º 1 do artigo 1.º do Código deste imposto), sendo “devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar” 6 (incidência subjetiva – cf. n.º 1 do artigo 8.º deste mesmo compêndio tributário – realce e sublinhado nossos). Resulta assim que o momento do facto tributário em sede de IMI “ocorre no final de cada ano civil” – i.e. a 31 de Dezembro de 2009.
Deste modo, e para efeitos do caso sub judice, estando perante o IMI referente ao ano 2009, é essencial considerar a redação do artigo 49.º (anteriormente 46.º) do EBF vigente à data do facto tributário deste imposto, i.e. a 31 de Dezembro de 2009.
Assim, relativamente ao ano 2009, a redação em vigor do artigo 49.º do EBF era a seguinte:
“1 - Ficam isentos de imposto municipal sobre imóveis e de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os prédios integrados em fundos de investimento imobiliário, em fundos de pensões e em fundos de poupança-reforma, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional” – redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho. “2 - Os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário, mistos ou fechados de subscrição particular, por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles, não beneficiam das isenções referidas no número anterior, sendo as taxas de imposto municipal sobre imóveis e de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis reduzidas para metade” – norma aditada e com redação conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei de Orçamento de Estado para o ano 2007).
Resulta, assim, da redação do artigo 49.º do EBF aplicável ao caso sub judice, que estamos perante: uma regra geral de aplicação de benefícios fiscais que prevê que isenção total de IMI (e de IMT) para prédios integrados em fundos de investimento imobiliário, em fundos de pensões e em fundos de poupança-reforma, que se constituam e operem de acordo com a legislação portuguesa (n.º 1 deste artigo); e uma exceção a esta regra geral de aplicação de benefícios fiscais, exceção esta que prevê uma isenção parcial de IMI (e de IMT), correspondente à redução para metade das taxas destes impostos, para imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário, mistos ou fechados de subscrição particular, por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles (n.º 2 deste artigo).
Relativamente ao n.º 1 do artigo 49.º do EBF, conforme já referido, a redação vigente a 31 de Dezembro de 2009 tinha sido conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho (diploma legislativo que ainda veio proceder com a renumeração deste artigo (cf. artigo 3.º deste Decreto-Lei), passando de artigo 46.º do EBF para o artigo 49.º do EBF), redação esta que entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2008.
Deste modo, em 2009, tal redação do n.º 1 do artigo 49.º do EBF previa uma isenção total de IMI (e uma isenção de IMT) para os fundos de investimento imobiliário, com exceção dos fundos abrangidos pelos benefícios fiscais mais limitados previstos no n.º 2 do artigo 49.º do EBF.
Esta redação do n.º 1 do artigo 49.º do EBF vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para o ano 2010) – i.e até 28 de Abril, inclusive - que veio restringir a aplicabilidade da isenção total de IMI (e de IMT) a “fundos de investimento imobiliário abertos”, mantendo-se a aplicação a fundos de pensões e a fundos de poupança-reforma.
Relativamente ao n.º 2 do artigo 49.º (anterior 46.º) do EBF, a norma foi aditada pelo artigo 82.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, tendo entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2007 (cf. artigo 163.º desta Lei) e vigorado até à sua revogação pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para o ano 2010) acima referida.
Adicionalmente, o âmbito de aplicação desta norma estabelecida no n.º 2 do artigo 49.º do EBF foi densificado através da disposição transitória consagrada na alínea j) do artigo 88.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, disposição esta que prevê que “[o] disposto no n.º 2 do artigo 46.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais é aplicável, a partir da entrada em vigor da presente lei, aos imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles constituídos após 1 de Novembro de 2006 ou que realizem aumentos de capital após esta data e, bem assim, aos imóveis integrados em fundos com idênticas características cujas unidades de participação eram, à data de 1 de Novembro de 2006, detidas exclusivamente por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles”.
Deste modo, a norma consagrada no n.º 2 do artigo 49.º do EBF, conjugada com a disposição transitória prevista na alínea j) do artigo 88.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, vigente à data do facto tributário in casu, estatuía benefícios fiscais em matéria de IMI e de IMT mais limitados – a redução para metade das taxas destes impostos – para os fundos de investimento imobiliários que reunissem as seguintes condições cumulativas: i. Fossem fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular; e, ii. Fossem detidos por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles; e, iii. Estes fundos cumprissem um dos seguintes requisitos:
a. tivessem sido constituídos após 1 de Novembro de 2006, ou
b. tivessem realizado aumentos de capital após esta data; ou
Constituíssem fundos com idênticas características aos acima referidos, cujas unidades de participação fossem, à data de 1 de Novembro de 2006, detidas exclusivamente por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles.
Deste modo, em 2009, caso os fundos de investimento imobiliário não reunissem as condições cumulativas de aplicação dos benefícios fiscais previstos no n.º 2 do artigo 49.º do EBF, os mesmos beneficiavam dos benefícios fiscais previstos no n.º 1 do artigo 49.º do EBF – norma esta aplicável a qualquer fundo de investimento imobiliário, excepto quando o mesmo se encontrasse abrangido no n.º 2 deste artigo.
Deste modo, e para efeitos de determinação de qual dos benefícios fiscais de IMI era aplicável (isenção total ou redução da taxa de IMI para metade), era essencial (i) aferir o tipo de fundo de investimento imobiliário que integrava os imóveis – i.e. se tal fundo era ou não um fundo de investimento imobiliário misto ou fechado de subscrição particular constituído após 1 de Novembro de 2006 ou que realizou aumentos de capital após esta data – e (ii) aferir se os investidores / participantes deste fundo eram investidores qualificados e / ou investidores não qualificados ou instituições financeiras por contas destes investidores.
O Requerente é efetivamente um fundo de investimento imobiliário fechado de subscrição particular, mas não reúne nenhum dos outros demais requisitos cumulativos de aplicabilidade da regra especial consagrada no n.º 2 do artigo 49.º do EBF, conjugada com a alínea j) do artigo 88.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, na redacção em vigor no ano 2009.
Desde logo, o Requerente foi aprovado por deliberação do Conselho Directivo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) ocorrida em 17 de Outubro de 2002, tendo a sua atividade iniciado em 13 de Fevereiro de 2003 – i.e. a sua constituição é anterior a 1 de Novembro de 2006.
Ademais, o Requerente não realizou aumentos de capital em 2009, conforme demonstrado nas Demonstrações Financeiras do Relatório & Contas do Requerente referente ao ano 2009 (página 10 deste Relatório), junto como Documento 5.
Por fim, e ao contrário do que foi assumido pela AT, o Requerente não tinha, em 2009, quaisquer participantes / investidores não qualificados ou instituições financeiras por conta destes. Em 2009, o Requerente era participado exclusivamente pelo seguintes três investidores qualificados, conforme demonstrado pela declaração emitida pelo Banco C…, S.A., (junta em anexo como Documento 3):
i. o Banco C…, S.A., com o número de identificação fiscal …, cujo objecto social consiste na actividade bancária;
ii. a E…, com o número de identificação fiscal …, cujo objecto social consiste na actividade seguradora; e,
iii. o F… – Fundo Especial de Investimento, com o número de identificação fiscal ….
Cumpre notar que o artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários, na redacção vigente a 31 de Dezembro de 2009, com a epígrafe “Investidores qualificados”, elencava no seu n.º 1 infra transcrito que determinadas entidades eram consideradas como investidores qualificados, particularmente:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números subsequentes, consideram-se investidores qualificados as seguintes entidades: a) Instituições de crédito; b) Empresas de investimento; c) Empresas de seguros; d) Instituições de investimento colectivo e respectivas sociedades gestoras; e) Fundos de pensões e respectivas sociedades gestoras; f) Outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente fundos de titularização de créditos, respectivas sociedades gestoras e demais sociedades financeiras previstas na lei, sociedades de titularização de créditos, sociedades de capital de risco, fundos de capital de risco e respectivas sociedades gestoras. g) Instituições financeiras de Estados que não sejam membros da União Europeia que exerçam actividades semelhantes às referidas nas alíneas anteriores; h) Entidades que negoceiem em instrumentos financeiros sobre mercadorias; i) Governos de âmbito nacional e regional, bancos centrais e organismos públicos que administram a dívida pública, instituições supranacionais ou internacionais, designadamente o Banco Central Europeu, o Banco Europeu de Investimento, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.”
Deste modo, nos termos do artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários na redacção em vigor em 31 de Dezembro de 2009, consideravam-se como investidores qualificados, entre outros, as instituições de crédito, as empresas de seguros e as instituições de investimento colectivo (entidades que, na redacção actual deste artigo, continuam a ser qualificadas como “investidores profissionais”).
Ora, a 31 de Dezembro de 2009, os três participantes do Requerente eram todos eles “investidores qualificados” (cf. Documento 3), concretamente: i. o Banco C…, S.A., enquanto instituição de crédito cujo objecto social consiste na actividade bancária; ii. a E…, enquanto empresa de seguros cujo objecto social consiste na actividade seguradora; e, iii. o F… – Fundo Especial de Investimento, enquanto instituição de investimento colectivo.
Deste modo, a apreciação feita pela AT da legalidade da aplicação da isenção total de IMI consagrada no n.º 1 do artigo 49.º do EBF ao caso sub judice assenta num erro grave nos pressupostos de facto e de direito, negando ao Requerente a aplicação de um benefício fiscal a que tinha integralmente direito relativamente ao ano 2009.
Tal é ainda agravado pela total desconsideração por parte da AT da declaração emitida pelo Banco C…, S.A., (junta em anexo como Documento 3), a qual foi de boa-fé disponibilizada para efeitos de demonstração que todos os participantes da Requerente eram, à data, investidores qualificados.
Assim, resulta provado que tem o Requerente direito ao benefício fiscal, em sede de IMI, estatuído no artigo 49.º do EBF, na redacção em vigor no ano 2009. Termos em que, deverá entender-se como procedente o pedido em causa, na medida em que a liquidação de IMI controvertida padece de vício de violação de lei, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 49.º do EBF em vigor à data a que reporta o ato tributário, devendo, por isso, ser anulado.
Assim, e nos termos do artigo 100.º da LGT, requer o Requerente que seja a AT condenada no reembolso do montante pago com referência à liquidação adicional de IMI sub judice, no montante total de € 37.265,25.
Do mesmo modo, o Requerente requer que, sendo julgado procedente o presente pedido, sejam pagos, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, ambos da LGT, os respectivos juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária.
Na Resposta apresentada, a AT sustentou que:
A redação do artigo 46.º do EBF aprovada pelo art.º 82.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, (Lei do Orçamento do Estado para 2007, em vigor a partir de 01.01.2007) passou a ser a seguinte: “1 - Ficam isentos de imposto municipal sobre imóveis (IMI) e de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) os prédios integrados em fundos de investimento imobiliário, em fundos de pensões e em fundos de poupança-reforma que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 - Os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles não beneficiam das isenções referidas no número anterior, sendo as taxas de IMI e de IMT reduzidas para metade.
Por seu turno, a norma transitória da al j) do art. 88º da Lei 53-A/2006, de 29/12, referiria que: “O disposto no n.º 2 do artigo 46.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais é aplicável, a partir da entrada em vigor da presente lei, aos imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles constituídos após 1 de Novembro de 2006 ou que realizem aumentos de capital após esta data e, bem assim, aos imóveis integrados em fundos com idênticas características cujas unidades de participação eram, à data de 1 de Novembro de 2006, detidas exclusivamente por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta daqueles.”
A nova redação do artigo 46.º do EBF, entretanto renumerado para artigo 49º, determinava que só beneficiariam da isenção de IMI os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados cujas unidades de participação tivessem sido exclusivamente subscritas por investidores qualificados.
Assim, face à redação do n.º 2 do artigo 49.º, do EBF conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, em vigor desde 01.01.2007, a isenção de IMI de que beneficiavam os imóveis do Requerente, cessou por força do disposto no n.º 2 do artigo 14.º do EBF, uma vez que, face à ausência de prova em contrário no procedimento administrativo, não se verificava a exclusividade da subscrição das participações por investidores qualificados.
Face ao exposto, perante os documentos juntos pelo Requerente no procedimento de Recurso Hierárquico, o despacho impugnado, proferido em 10.12.2020, pela Sra. Diretora de Serviços de IMI, fez correta interpretação e aplicação da lei aos factos provados, não incorrendo no invocado vício de erro nos pressupostos de facto e de direito.
III. Fundamentação
III.1 De facto
a. Factos provados
A. O Requerente é proprietário de todas as frações que integram o imóvel inscrito sob o artigo U-… da freguesia predial urbana de Albufeira.
B. O Requerente é um fundo de investimento imobiliário fechado de subscrição particular, cuja aprovação por deliberação do Conselho Diretivo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) ocorreu em 17 de Outubro de 2002, tendo a sua atividade tido início em 13 de Fevereiro de 2003.
C. Até 2013, o Requerente em apreço era designado por “Fundo de Investimento Imobiliário Fechado G…”, tendo naquele ano sido alterada a sua designação para a atual.
D. Em 2009, as unidades de participação do Requerente eram detidas por 3 participantes, conforme referenciado no Regulamento de Gestão referente ao ano 2009 – “[e]m 31 de Dezembro de 2009, o capital do Fundo era detido por 3 participantes” – cf. página 2 do Regulamento de Gestão de 2009, que se junta como Documento 21 .
E. Concretamente, durante o ano de 2009 o Requerente era participado exclusivamente pelos seguintes 3 investidores qualificados (declaração do Banco C…, S.A., devidamente certificada, anexada como Documento 3, comprovando a titularidade das unidades de participação), a saber:
i. o Banco C…, S.A., com o número de identificação fiscal …, cujo objecto social consiste na actividade bancária e detentor de 45.542 unidades de participação;
ii. a E…, com o número de identificação fiscal …, cujo objecto social consiste na actividade seguradora e detentora de 2.790 unidades de participação; e,
iii. o F… – Fundo Especial de Investimento, com o número de identificação fiscal …, um fundo de investimento detentor de 451.668 unidades de participação.
F. No dia 7 de Setembro de 2013, o Requerente foi notificado da emissão, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), do ato tributário de liquidação adicional de IMI n.º 2009 …, no montante total de € 37.265,24, referente ao ano 2009.
G. Em anos anteriores a 2009 os imóveis em apreço “estavam a beneficiar da isenção contemplada no anterior artigo 46º, (atual 49º) do EBF – Isenção para Imóveis integrados em Fundos de Investimento Imobiliário”.
H. A AT reconheceu que “[a]s frações do imóvel sob o artigo U-…, da freguesia de Albufeira (080101) da propriedade da aqui recorrente estavam a beneficiar da isenção contemplada no anterior artigo 46º, (atual 49º) do EBF – Isenção para Imóveis integrados em Fundos de Investimento Imobiliário” – cf. Documento 1.
I. Segundo a AT, com a alteração da redação do artigo 46.º do EBF (posteriormente renumerado para artigo 49.º deste mesmo diploma legal) efetuada através da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano 2007), alteração essa que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2007, foi aditado o n.º 2 a este artigo, determinando que “os imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário mistos ou fechados de subscrição particular por investidores não qualificados ou por instituições financeiras por conta não beneficiam da isenção de IMI e de IMT previstas no nº 1 do artigo 46º, sendo tributados em sede de IMI e IMT a taxas daqueles impostos reduzidas em 50%” – cf. Documento 1.
J. Segundo a interpretação preconizada pela AT, a isenção total de IMI prevista no n.º 1 do artigo 49.º do EBF (na redação vigente no ano 2009), só beneficiaria “os imóveis integrados em fundos de investimento mistos ou fechados cujas unidades de participação tenham sido exclusivamente subscritas por investidores qualificados ou profissionais” (sublinhado nosso) – cf. Documento 1.
K. Concluiu a AT que, no caso concreto do Requerente, “em 2009, face à redacção do n.º 2 do artigo 49.º do EBF, vigente desde 2007.01.01, a isenção de que ainda beneficiava a recorrente não seria de manter mas sim de cessar com efeitos àquela data, uma vez que não se verificava a condição da exclusividade da subscrição por investidores qualificados, tendo ocorrido o termo resolutivo dessa isenção por via legal, ao abrigo do n.º 2 do artigo 14.º do EBF”, e, consequentemente, “houve lugar à reposição automática da tributação-regra, o que, à luz do disposto no nº 5 do artº 113º, conjugado com a parte final do nº 1 do artº 116º, ambos do CIMI, implicou o processamento da liquidação adicional de IMI para o ano 2009” (realces e sublinhado nossos) – cf. Documento 1.
L. Após a Sociedade Gestora, em representação do Requerente, ter apresentado a declaração do Banco C…, S.A., declarando que todos os (três) titulares das unidades de participação do Requerente eram investidores qualificados (declaração junta em anexo como Documento 3), a AT entendeu que tal documento / prova “é uma fotocópia de um documento particular emitido pela instituição bancária, data de 2015.01.08, na qual se declaram os detentores das unidades de participação da ora recorrente, entre as quais, o próprio banco emissor do documento” – cf. Documento 1.
M. A AT concluiu que “o alegado pela aqui recorrente não está demonstrado, nem provado por documento com força probatório legal, de que as unidades de participação, em 2009, eram detidas na exclusividade por investidores profissionais” (cf. Documento 1),
N. O Fundo procedeu ao pagamento do montante de IMI objecto do acto tributário de liquidação sub judice no âmbito de um processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme comprovativo de pagamento junto como Documento 4.
O. O Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra o ato tributário de liquidação adicional de IMI acima identificado, com vista a obter a respetiva anulação, a qual foi rececionada pelo Serviço de Finanças de Albufeira em 28 de Fevereiro de 2014.
P. Em 27.11.2014, o Diretor de Finanças de Faro proferiu despacho de concordância com o Projeto de Indeferimento da Reclamação Graciosa.
Q. Por Ofício n.º …, de 27.11.2014, o Requerente foi notificado do referido despacho por carta registada de 01.12.2014 (RF … PT) e para exercer o direito de audição prévia a que se refere o artigo 60º da LGT.
R. O Requerente não exerceu direito de audição.
S. Em 30.12.2014, o Diretor de Finanças de Faro convolou em definitivo o projeto de despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa.
T. A AT notificou o Requerente, através do Ofício n.º …, do despacho final de indeferimento desta reclamação no dia 31 de Dezembro de 2014.
U. Em 29.01.2015, o Requerente interpôs Recurso Hierárquico do indeferimento da Reclamação Graciosa, que correu termos sob o n.º ….
V. Em 10 de Dezembro de 2020, foi emitido pela AT o despacho de indeferimento do recurso hierárquico em apreço, através do Ofício n.º 2021…, proferido pela Direção de Serviços do Imposto Municipal sobre Imóveis (cf. Documento 1).
b. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.
c. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, nos que constam do processo administrativo e nos factos alegados pelas Partes que não foram controvertidos.
III.3 De Direito
Conforme se constata pelas posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados, a disputa que dá origem a este processo não se prende com a interpretação das normas potencialmente aplicáveis ao caso concreto, isto é, ao regime que estabelece os benefícios fiscais em sede de IMI e IMT aplicáveis aos vários tipos de fundos de investimento legalmente possíveis, mas sim com um pressuposto de facto do qual decorre a seleção da norma concretamente aplicável ao fundo de investimento aqui representado pela Requerente.
Em concreto, a razão pela qual a AT entende que a isenção de IMI não é aplicável aos imóveis detidos pelo fundo de investimento imobiliário detido pela Requerente prende-se, única e exclusivamente, com o facto de ter considerado que o documento que a Requerente juntou para prova da qualidade prevista por lei não é idóneo para esse efeito.
Ora, a Requerente não só sustenta que o fundo que representa tem as características de que a lei faz depender a isenção de IMI, como sustenta ainda que o ato de liquidação adicional de IMI impugnado, assim como o indeferimento do recurso hierárquico que precedeu o seu pedido de pronúncia arbitral, são ilegais por preterição de formalidades essenciais. Em concreto, argumenta que este ato de indeferimento deveria ter sido precedido de uma notificação para o exercício do direito de audição prévia – por não se verificar nenhuma das situações em que a lei autoriza a sua dispensa – e que a interpretação que a AT fez para sustentar a decisão de impedir a Requerente de exercer esse direito é ilegal e não deve proceder.
Assim, compete a este tribunal, antes de mais, analisar se tem fundamento o invocado pela Requerente quanto à preterição do direito de audição prévia.
A alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária estabelece que a “participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas: (…) b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições”.
O n.º 2 do artigo 60.º da LGT consagra, taxativamente, as seguintes dispensas do direito de audição prévia:
“a) No caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;
b) No caso de a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito”.
No caso do recurso hierárquico apresentado pela Requerente no caso concreto, nem a liquidação objeto do mesmo foi efetuada com base em declaração do contribuinte – pelo contrário, foi uma liquidação adicional de IMI emitida pela AT – nem tal recurso foi favorável à pretensão do Requerente, tendo a AT decidido pelo indeferimento total do mesmo.
No caso, a AT dispensou a audição prévia com base no seguinte fundamento:
“No caso concreto, não há necessidade de notificar a aqui recorrente para efeitos do artº 60º da Lei Geral Tributária (LGT), em conformidade com o ponto 3 da Circular 13, de 08.07.1999 da Direção de Serviços de Justiça Tributária infra reproduzido: «3. Decisões em que poderá dispensada a audiência dos interessados: A audiência dos interessados poderá ser dispensada, sem prejuízo da necessária ponderação do caso concreto e de adequada fundamentação, nomeadamente quando: a) A administração tributária, apenas, aprecie os factos que lhe foram dados pelo contribuinte, limitando-se na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso; Encontram-se nesta situação todas as decisões sobre petições, requerimentos, reclamações e recursos em que a administração se limita a concluir, face aos factos e argumentos invocados pelo contribuinte e a lei aplicável, pela sua improcedência da sua pretensão. b) A administração tributária atue, exclusivamente, no âmbito de poderes vinculados; (…)»” – cf. Documento 1.
Ora, a própria AT sustenta, no ponto 6 da Circular n.º 17/2008, de 14 de Fevereiro de 2008, que “em sede de recurso hierárquico regido pelos arts. 66º e segs. do CPPT, deverá ser efectuada audição prévia, mesmo que não sejam invocados factos novos relativamente à decisão recorrida e o interessado já tenha sido ouvido em audição prévia em procedimento de 1º grau, sob pena de invalidade do acto final de indeferimento do recurso.”
Com efeito, em qualquer situação em que a AT esteja na iminência de proferir uma decisão definitiva e contrária ao interesse do sujeito passivo, como é o caso da decisão final de um processo de recurso hierárquico, o princípio da participação impõe-se com uma dupla razão de ser: por um lado, a de garantir que o interessado tem oportunidade de expor as razões em que sustenta o seu direito e a sua posição, exercendo o contraditório relativamente à posição da administração; por outro lado, a de permitir que, antes de ser proferido um ato definitivo com consequências que já não poderão ser alteradas no âmbito procedimental, existe a possibilidade de chegar a uma solução com que ambas as Partes concordem e que evite a prática de atos posteriores com vista à anulação de tal ato definitivo.
No caso concreto, a AT sustenta que não notificou a Requerente para exercer o direito de audição prévia em sede de recurso hierárquico porque já o havia feito em sede de reclamação graciosa sem que a Requerente tivesse respondido. Contudo, tal não configura, no entender deste tribunal, justificação bastante para afastar aquele direito pois o não exercício de um direito num procedimento (como é o de reclamação graciosa) não afasta o exercício desse direito noutro procedimento (como é o de recurso hierárquico). Efetivamente, os contribuintes têm direito a exercer o direito de participação na decisão antes de ser proferida decisão final em todos os procedimentos no âmbito dos quais tenha lugar a discussão de direitos entre o contribuinte e a AT. Dar ao contribuinte a oportunidade de exercer esse direito não é uma prerrogativa da AT, mas sim um dever decorrente de previsão legal e – aliás – também constitucional. Tão-pouco releva o que, a este propósito, estabelecem as circulares internas da AT, as quais não se impõem aos contribuintes nem têm o poder de restringir direitos legalmente consagrados (embora se diga que a Circular n.º 17/2008, de 14 de Fevereiro de 2008, expressamente determina o que aqui acaba de se dizer).
Assim, este Tribunal entende assistir razão à Requerente quando sustenta que a falta de audição prévia constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão tomada, ou seja, do ato de indeferimento do recurso hierárquico aqui impugnado.
Por outro lado, não faz qualquer sentido o argumento da AT de que “não foi preterido o vício de preterição da formalidade legal por omissão de audição prévia antes da decisão final do recurso hierárquico, ou se se entender que o mesmo se verificou, o mesmo ficou sanado porquanto a decisão da administração só podia ter o conteúdo da que foi tomada no despacho proferido no Recurso Hierárquico.” Com efeito, tal como a própria AT reconhece ter acontecido no âmbito do presente processo arbitral, a Requerente juntou a prova de que se encontravam reunidos os pressupostos de que depende o direito à isenção invocada – o que obriga a admitir a possibilidade de o ter feito no âmbito do recurso hierárquico, caso lhe tivesse sido dada oportunidade para o efeito.
Por último, como supra se referiu, a própria AT reconhece que ficou provado, no âmbito do presente processo arbitral, que estavam reunidos os pressupostos de que depende a aplicação do benefício fiscal em causa – a cópia certificada pela advogada Dra. D…, nos termos do art. 38º do DL nº 76/2006, de 29.03.2006, com as alterações do DL nº 8/2007, de 17.01.2007, e da Portaria nº 657-B/2006, de 29.06.2006, da Declaração do Banco C… com a identificação dos participantes do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado A…, à data de 31 de Dezembro de 2009 – de onde decorre a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IMI impugnado, bem como do indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico.
Ademais, porque a Requerente pagou imposto indevidamente liquidado, deverá o mesmo, na sequência da declaração de ilegalidade daqueles atos, ser-lhes restituído.
Quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT dispõe que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Ora, tendo em conta o supra exposto, resulta provado que houve erro imputável aos serviços de que resultou o pagamento de dívida tributária em montante superior ao devido. Com efeito, os imóveis detidos pelo Fundo representado pela Requerente estavam em condições de beneficiar da isenção prevista no n.º 1 do artigo 49.º do EBF – e, portanto, o imposto não era devido.
IV. Decisão
Face ao exposto, este Tribunal julga procedente:
a) O pedido de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente ao recurso hierárquico interposto pelo Requerente, com fundamento na falta de audição prévia do contribuinte, tal constituindo um vício de forma do procedimento tributário que conduz à anulação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico;
b) O pedido de declaração da ilegalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico, do ato de indeferimento da reclamação graciosa aduzida pelo Requerente e do ato tributário de liquidação adicional de IMI, referente ao ano de 2009, supra identificado, porque contrário à lei, por padecer de erro nos pressupostos de facto e de direito;
c) O pedido de que a Autoridade Tributária Aduaneira seja condenada a reembolsar o Requerente do valor do imposto pago, no montante de € 37.265,25;
d) O pedido de que seja a Autoridade Tributária e Aduaneira condenada no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral da quantia devida e calculados sobre o imposto indevidamente pago.
V. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 37.265,25.
VI. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Lisboa, 01.02.2022
A Árbitro,
Raquel Franco