DECISÃO ARBITRAL
I - Objecto do pedido e tramitação processual
Em 2 de Julho de 2021, a Requerente «A…», NIF …, com domicílio na Estrada …, Vila Nova de Gaia, apresentou pedido de pronúncia arbitral, requerendo:
i) A anulação parcial das Declarações Aduaneiras de Veículo n.º 2017/… e 2019/… e consequente restituição de imposto no valor total de 940,39 €; e
ii) O pagamento de juros indemnizatórios.
Por decisão do Conselho Deontológico foi designado como árbitro único o signatário. O tribunal arbitral singular foi constituído em 10 de Setembro de 2021.
Notificada para o efeito, a Administração Tributária e Aduaneira (doravante a designar, abreviadamente, por AT) não apresentou contestação, sendo que esta inacção não conduz à confissão do pedido ou dos factos articulados pela Requerente, conforme o n.º 6 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Dado não terem sido suscitadas irregularidades ou excepções, foi proferido despacho dispensando a realização de reunião arbitral e a produção de alegações escritas.
As partes gozam de capacidade e legitimidade jurídicas.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
O processo não padece de qualquer nulidade. Não foram suscitadas quaisquer excepções susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.
II - Matéria de facto
Factos considerados provados em face da documentação
Com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
a) A Requerente apresentou na Alfândega de Braga, por transmissão eletrónica de dados, as Declarações Aduaneiras de Veículos (DAV) n.º 2017/… e n.º 2019/… para introdução no consumo em Portugal, dos seguintes veículos automóveis ligeiros de passageiros:
• SEAT, modelo 6J, com a matrícula ..-TC-.., movido a combustível gasóleo, nº de motor … e cilindrada de 1598 cc, com preço de aquisição de 3.200,00 €.
Foi matriculado pela primeira vez na Alemanha em 2010/03/25, sendo considerado como veículo com mais de 6 a 7 anos de uso, para efeitos dos escalões da Tabela D, prevista no n.º 1 do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (ISV), ao qual corresponde uma percentagem de redução de 65%; e
• RENAULT, modelo RFB, com a matrícula ..-ZL-.., movido a combustível gasóleo, nº de motor … e cilindrada de 1461 cc, com preço de aquisição de 10.000,00 €.
Foi matriculado pela primeira vez na Alemanha em 2016/01/28, sendo considerado como veículo com mais de 3 a 4 anos de uso, para efeitos dos escalões da Tabela D, prevista no n.º 1 do artigo 11.º do Código ISV, ao qual corresponde uma percentagem de redução de 35%.
b) A Requerente foi notificada pela Alfândega de Braga das liquidações de ISV n.º 2017/… de 30 de Maio de 2017 e n.º 2019/… de 5 de Novembro de 2019. As datas limite de pagamento do ISV foram fixadas, respectivamente, em 13 de Junho de 2017 e 19 de Novembro de 2019.
c) Os impostos liquidados foram integralmente pagos pela Requerente.
d) No Quadro R das supra referidas DAV, a Alfândega de Braga calculou o ISV de ambos os veículos por referência à aplicação da tabela de veículos ligeiros de passageiros (Tabela A) pelo valor total de 2.142,58 € e 1.465,76 €.
e) Os referidos valores totais de ISV decompõem-se nos seguintes termos:
• 2.450,47 € são relativos à componente cilindrada e 1.284,92 € são relativos à componente ambiental;
• 1.792,66 € são relativos à componente cilindrada e 300,53 € são relativos à componente ambiental.
f) No que diz respeito à componente cilindrada, estes valores foram ajustados com base no número de anos dos veículos, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11 do Código do ISV aplicável aos veículos usados, nos seguintes termos:
• O valor de 2.450,47 € foi deduzido pela quantia correspondente a 65% do seu montante, ou seja, 1.592,81 €;
• O valor de 1.792,66€ foi deduzido pela quantia correspondente a 35% do seu montante, ou seja, 627,43€.
g) Os montantes respeitantes à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental nos 2 veículos, não foram objecto de qualquer redução.
h) Em 20 de Fevereiro de 2020 a Requerente apresentou na Alfândega de Braga um pedido de revisão oficiosa das supra referidas liquidações de ISV, tendo solicitado a correspondente anulação parcial, de modo a reflectir na componente ambiental do imposto a redução prevista no artigo 11.º do Código do ISV. Ou seja, solicitou que as reduções de 65% e 35% fossem indistintamente reflectidas nas componentes ambiental e cilindrada.
i) O que se consubstanciaria na devolução de ISV nos valores de 835,20 € e 105,19 €, ou seja, na restituição de 940,39 €.
j) Notificada do projecto de decisão da Alfândega de Braga, que se propôs indeferir totalmente o pedido de revisão oficiosa, a Requerente exerceu o direito de audição prévia.
k) Em 10 de Maio de 2021 a Requerente foi notificada da decisão final da Alfândega de Braga, na qual foi confirmada a decisão de indeferimento total.
l) Em 2 de Julho de 2021 a Requerente submeteu o presente pedido de pronúncia arbitral.
Da leitura do pedido de revisão oficiosa, projecto de decisão, audição prévia e decisão final, resulta claro que a Requerente e a Alfândega de Braga em nada divergem no que respeita à factualidade que subjaz ao presente pedido de pronúncia arbitral.
O afastamento entre as Partes cinge-se a matéria exclusivamente de direito.
Factos não provados
Com relevo para a apreciação do mérito, inexistem factos não provados.
III - Síntese dos fundamentos de direito invocados pelas Partes
O entendimento da Requerente
Considera a Requerente que as liquidações controvertidas do ISV estão feridas de um vício de ilegalidade por violação do artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental, por não ter sido considerada qualquer percentagem de redução do imposto relativamente à antiguidade do veículo.
Concretamente:
i) Em 2009 a Comissão Europeia instaurou um processo por infração contra a República Portuguesa, com fundamento no facto de a legislação nacional não ter em consideração o efeito da antiguidade de um veículo (usado e proveniente de outros Estados-membros da UE) na correspondente depreciação comercial;
ii) Esse processo foi encerrado após uma alteração ao Código do ISV, introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011;
iii) Com esta alteração legislativa ficou resolvida uma parte da ilegalidade, não ficando, contudo, sanada a ilegalidade que dizia respeito à desvalorização dos veículos até ao final do primeiro ano de uso e após o quinto ano de uso;
iv) Face à manutenção desta divergência nos cálculos de ISV entre os veículos usados matriculados em Portugal e os veículos usados provenientes de outros Estados-membros e consequente tratamento desigual destes últimos, a Comissão Europeia instaurou um novo processo que revestiu a natureza de ação por incumprimento contra a República Portuguesa (processo n.º C-200/15);
v) No seu Acórdão de 10/06/2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu que: “A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE”;
vi) Na sequência deste acórdão, o legislador nacional introduziu uma nova alteração ao Código ISV, através da Lei n.º 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), que se traduziu numa nova redação do artigo 11.º do Código ISV e da tabela D que integra esse mesmo artigo;
vii) Nessa tabela, o Estado Português respeitou o decidido pelo Tribunal Europeu naquele referido acórdão, ao alargar as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso;
viii) Todavia, a par desta alteração, foi introduzida uma outra, bem mais gravosa para o cálculo do ISV, uma vez que o legislador, com a nova redação dada ao aludido artigo 11.º, voltou a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2);
ix) Desta forma, o legislador retrocedeu ao ano de 2010, retomando uma norma jurídica, que tinha sido já objeto de um processo instaurado pela Comissão Europeia e que esteve na base da alteração legislativa operada pela Lei 55- A/2010 de 31 de dezembro;
x) Limitando a tabela de redução para cálculo do ISV à componente cilindrada e excluindo-a da componente ambiental (emissão do CO2), o legislador português, aproveitando o facto do Acórdão do TJUE de Justiça apenas se ter debruçado sobre a componente cilindrada, repôs a exclusão da redução da componente ambiental que tinha sido já objeto de alteração legislativa anterior, imposta ou recomendada pela Comissão Europeia;
xi) A norma atualmente em vigor, e que esteve na base da liquidação do imposto pago pelo Requerente, viola frontalmente o artigo 110.º do TFUE, conforme foi já decidido pelo acórdão acima citado, pois permite que a Administração Fiscal cobre um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo;
xii) Pelo que a liquidação do ISV sob a presente impugnação está ferida de ilegalidade, por contrariar o artigo 110.º do TFUE;
xiii) Essa ilegalidade foi objeto de uma queixa apresentada em 20/07/2017 junto da Comissão Europeia, que deu origem à instauração de um processo de infração contra Portugal, a que foi atribuído o nº CHAP (2017) 2326;
xiv) O que originou a emissão do parecer fundamentado pela Comissão Europeia, na sequência do qual a mesma decidiu, em 12/02/2020, interpor contra Portugal uma nova ação no TJUE;
xv) Foram também proferidas decisões arbitrais do CAAD, já transitadas em julgado que, com base nos mesmos fundamentos invocados neste pedido de pronúncia arbitral, anularam parcialmente a liquidação do ISV, na parte respeitante à não redução CO2 (Processos 572/2018-T; 346/2019-T; 348/2019-T; 350/2019-T; 459/2019-T; 466/2019-T; 498/2019-T; 776/2019-T; 660/2019-T; 776/2019-T; 833/2019-T; 293/2020-T do CAAD);
xvi) É claramente essa a solução aplicável ao caso em apreço, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o artigo 110.º do TFUE, têm efeito direto e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o artigo 11.º do Código do ISV contrariar aquela disposição;
xvii) Existe uma clara violação do artigo 110.º do TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso;
xviii) Todavia, se subsistirem dúvidas sobre a interpretação e aplicação do disposto no artigo 110.º TFUE, deve este Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial desta questão para o TJUE para interpretação à luz do TFUE;
xix) Verificados os cálculos do ISV constantes das DAV temos que relativamente à componente cilindrada, o ISV foi liquidado pelo valor global, respetivamente, de 857,66 € e 627,43 € (redução de 65% e 35% pelo número de anos de uso). Enquanto, na componente ambiental, foi liquidado por, respetivamente 1.284,92 € e 300,53 €, ou seja, sem qualquer redução;
xx) Quando deveria ter sido também aplicada à componente ambiental a redução que totaliza o valor de, respetivamente, 835,20 € e 105,19 €. Baixando dessa forma o valor relativo a esta componente ambiental para o valor de 449,72 € e 195,34 € e o respetivo ISV global para o valor de 1.307,38 € e 1.360,57 €;
xxi) De modo a alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, devem ser restituídos à Requerente os montantes (pelos dois veículos) de, respetivamente, 835,20 € e 105,19 €;
xxii) Nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), acrescem, com fundamento em erro imputável à Requerida, o pagamento de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal aplicável sobre a referida quantia de ISV e contados desde a data do pagamento indevido desse imposto até à emissão da respectiva nota de crédito, conforme disposto no n.º 3 do artigo 61.º do CPPT.
O entendimento da Requerida
Notificada para o efeito, a Requerida não contestou o pedido de pronúncia arbitral.
Na decisão sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, cujo indeferimento fundamentou o pedido de pronúncia arbitral em apreciação, a Alfândega de Braga considerou que:
i) Os pressupostos procedimentais da revisão oficiosa consistem na existência de um acto tributário, o cumprimento do prazo de 4 anos após a liquidação do imposto e a existência de um erro imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);
ii) Não existindo dúvidas quanto à existência de um acto tributário, já se encontra precludido o prazo para a interposição de reclamação graciosa, na medida em que este ocorreu em 18 de Março de 2020 (tendo em consideração apenas o prazo de pagamento de 19 de Novembro de 2019 no que respeita à liquidação mais recente de ISV);
iii) O prazo de 4 anos não é aplicável, na medida em que este assenta na existência de “erro imputável aos serviços”;
iv) Erro este que inexiste, atento o facto de as liquidações de ISV se terem efectuado nos termos da legislação aplicável;
v) As liquidações de ISV não enfermam de qualquer vício e encontram-se em total consonância com as normas legais aplicáveis à factualidade subjacente. A AT não dispõe da “prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais), cujas decisões avulsas invocadas não podem servir de fundamento ao presente pedido de revisão oficiosa”;
vi) As decisões arbitrais proferidas pelo CAAD e referenciadas pela Requerente “não produzem efeitos para além da composição do litígio que constitui o seu objecto, isto é, a sua eficácia cinge-se ao processo e às respectivas partes, não se estendendo a processos diversos daqueles onde foram proferidas”;
vii) O n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV, na sua actual redacção, encontra-se em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo Código, o qual consagra o princípio da equivalência;
viii) O acórdão do TJUE de 16 de Junho (Processo C-200/15) não se pronuncia quanto à questão da percentagem de redução aplicável às viaturas usadas, incidindo apenas sobre o elementos específico de tributação (cilindrada) e não sobre a componente ambiental do ISV;
ix) Não se pode, sem mais, inferir do Acórdão do TJUE a prolação de declaração de violação do artigo 110.º do TFUE;
x) O modelo de tributação do ISV foi norteado por preocupações ambientais, em respeito pelas orientações emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no Protocolo de Quito. Esta componente ambiental incide sobre veículos novos e usados, em obediência ao princípio do poluidor-pagador, levando o consumidor a optar por automóveis com menores emissões de dióxido de carbono;
xi) Assim se assegura a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente;
xii) O Estado português não teve por objectivo restringir a entrada de veículos usados e provenientes de outros Estados-membros da UE, antes se gizando pela orientação das escolhas dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia;
xiii) Como aliás decorre do n.º do artigo 191.º do TFUE, o qual refere que a política da União contribuirá para a preservação, protecção e melhoria da qualidade do meio ambiente. Acresce que o n.º 2 da citada norma acolhe o princípio do poluidor-pagador;
xiv) O modelo de fiscalidade automóvel vigente em Portugal está em perfeita sintonia com este espírito normativo, na medida em que a tributação das emissões de dióxido de carbono nos veículos novos e usados pode entender-se como uma acção preventiva, destinada a evitar a degradação do meio ambiente, sujeitando os consumidores ao pagamento de um montante de impostos que depende do grau poluidor do automóvel, no estrito cumprimento do princípio do poluidor-pagador;
xv) Pelo que forçoso se torna concluir que a interpretação do artigo 110.ºdo TFUE não pode deixar de se efectuar à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado;
xvi) Por fim, considerando o disposto no n.º 1 do artigo 25.º do Código do ISV, ter-se-á que determinar a quem é, objectivamente, imputável o alegado erro de direito. Se ao contribuinte, se à AT;
xvii) O acto tributário visado foi praticado nos termos do artigo 11.º do Código do ISV e a AT não pode deixar de aplicar esta norma com base numa alegada desconformidade da mesma para com o Direito Comunitário, aplicável por força do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição. AT está sujeita ao princípio da legalidade, tendo-se limitado a interpretar as normas aplicáveis aos factos.
IV - Do direito
Anulação parcial das liquidações de ISV
O pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente fundou-se no n.º 1 do artigo 78.º da LGT: “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
O n.º 3 da citada norma determina que “a revisão dos atos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respetivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior”.
É antiga e pacífica a jurisprudência nos termos da qual o conceito de “erro imputável aos serviços” inclui os erros de direito e de facto.
Na situação controvertida, e conforme resultada do probatório, o ISV foi liquidado em 30 de Maio de 2017 e 5 de Novembro de 2019.
O pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 20 de Fevereiro de 2020 (ao abrigo do prazo de 4 anos disponível para o efeito, contado a partir da data das liquidações controvertidas) e expressamente indeferido em 10 de Maio de 2021.
E tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentando em 2 de Julho de 2021, o mesmo é tempestivo.
Quanto à apreciação da matéria substantiva, a mesma está, simultaneamente, facilitada e prejudicada pelo acórdão do TJUE de 2 Setembro (processo C-169/20).
Isto, na medida em que o mesmo decorre da acção por incumprimento apresentada pela Comissão Europeia contra o Estado Português, com fundamento na desconformidade do componente ambiental do ISV quando aplicada na aquisição de veículos usados provenientes de outros Estados-membros da UE.
Muito concretamente, trata-se de saber se a componente ambiental, ao ser aplicada, indistintamente e sem qualquer redução, a veículos novos e usados (provenientes de outros Estados-membros da UE), conduz à fixação de um montante de imposto que não toma em consideração a desvalorização real do veículo usado. Excedendo desse modo o imposto residual incorporado no valor dos veículos usados já matriculados em território português.
O que, a verificar-se, diferenciaria entre as viaturas usadas matriculadas em Portugal e em outros Estados-membros da UE, o que seria susceptível de contrariar o artigo 110.º do TFUE.
Em face da manifesta identidade entre a factualidade e o enquadramento normativo que subjaz ao pedido de pronúncia arbitral em apreço e o aludido acórdão do TJUE no Processo C-169/20, será este que determinará o sentido da decisão arbitral.
Com efeito, o Direito Comunitário assenta na correspondente aplicação uniforme nos diversos Estados-membros, cabendo ao TJUE, de entre as competências que lhe são próprias, a interpretação e validação de (des)conformidade dos direitos nacionais dos Estados-membros perante o Direito Comunitário (tanto primário, como derivado).
Acresce que o acórdão do TJUE não deixa qualquer dúvida razoável de aplicabilidade à facturalidade e ao normativo fiscal que subjazem ao pedido de pronúncia arbitral controvertido. Pelo que o reenvio prejudicial não é obrigatório nem justificável.
Seguindo de perto o acórdão do TJUE no Processo C-169/20, “a cobrança, por um Estado Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado Membro é contrária ao artigo 110.º TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional”.
“Mais precisamente, um Estado Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 26 e jurisprudência referida)”.
O ponto de partida para o TJUE consiste no facto de o pagamento de um imposto se incorporar no valor do veículo. “Deste modo, quando um veículo matriculado no Estado Membro em causa é, em seguida, vendido como veículo usado nesse mesmo Estado Membro, o seu valor de mercado, que inclui o montante residual do imposto de matrícula, será igual a uma percentagem, determinada pela desvalorização desse veículo, do seu valor inicial (Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 40 e jurisprudência referida)”.
E “(…) resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo”.
Contrariamente ao que sucede no cálculo do imposto na componente de cilindrada do veículo, à qual é aplicável uma redução em função da idade da viatura, “(…) não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título”.
“Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE”.
O Estado português suscitou o fundamento da protecção ambiental, em obediência ao qual a componente ambiental do ISV visaria a tributação uniforme dos veículos, novos ou usados, independentemente do Estado-membro em que ocorreu a primeira matrícula. Pelo que não estaria em causa a limitação da liberdade de circulação de mercadorias entre Estados-membros ou o favorecimento protecionista da produção nacional.
Argumento que o TJUE não acolheu, tendo considerado que, malgrado a discricionariedade de que os Estados-membros dispõem na fixação de modalidades do cálculo do imposto em vista à protecção ambiental, as mesmas “(…) devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59)”.
É jurisprudência do TJUE que “(…) o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C 290/05 e C 333/05, EU:C:2006:652, n.º 56 e 57)”.
Pelo que “um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º TFUE”.
No que respeita ao fundamento de que a componente ambiental do ISV constituiria um imposto autónomo em face da componente cilindrada do veículo, “(…) tal imposto distinto continuaria a ser discriminatório em relação aos veículos usados provenientes de outro Estado Membro, uma vez que o referido imposto excederia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares comprados e registados no território nacional”.
Em face do exposto, não oferece dúvidas que a conformação do direito nacional ao TFUE e à interpretação do mesmo pelo TJUE, determinaria a obrigatoriedade da redução da tributação de viaturas usadas provenientes de outros Estados membros da UE às componentes ambiental e cilindrada.
O que conduziria à menor liquidação de ISV, na componente cilindrada, no valor total de 940,39 €. Valor este que, por ter sido indevidamente liquidado e pago, carece de ser restituído à Requerente.
Juros indemnizatórios
Verificado que está o erro imputável aos serviços, assente na aplicação da componente ambiental do ISV sem aplicação do factor de redução pela antiguidade do veículo (em termos idênticos ao da componente cilindrada), em violação do artigo 110.º do TFUE, forçoso se torna concluir que são devidos juros indemnizatórios nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
IV - Do direito
Termos em que, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequente anulação parcial das liquidações controvertidas de ISV, restituindo-se à Requerente a importância total de 940,39 €; e
b) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados nos termos legais aplicáveis.
Fixa-se o valor do processo em 940,39 €.
Custas pela Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2021
O árbitro do Tribunal Arbitral Singular
José Luís Ferreira