Sumário:
1. Os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos.
2. Os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais não podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de IMI e AIMI que os têm como pressupostos.
3. A não impugnação tempestiva dos referidos atos de avaliação conduz à formação de caso decidido ou resolvido sobre a avaliação do prédio em causa.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Guilherme W. d´Oliveira Martins, Fernando Miranda Ferreira e Miguel Patrício, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
I. Relatório
1. A…, LDA., NIPC …, com sede na Avenida da Liberdade, n.º 180-A, 7.º andar, 1250-146 Lisboa (doravante, “REQUERENTE”), na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado perante o Serviço de Finanças de Lisboa …, relativo às liquidações do IMI dos anos de 2018 e 2019 e às liquidações do AIMI dos anos de 2019 e 2020, que apuraram um valor a pagar no montante global de €191.065,06, veio, para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1, requerer, em 26/8/2021, a constituição de Tribunal Arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral “contra o indeferimento tácito e contra as referidas liquidações de IMI e AIMI, pretendendo a sua anulação e consequente restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente”.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os presentes signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas das designações, não tendo manifestado vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 3/11/2021.
3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente, alega, em síntese, o seguinte:
a) «[Como questão prévia, relativa à admissibilidade do pedido de revisão oficiosa, informa-se o Tribunal que] com a finalidade de ver analisada a legalidade das liquidações de IMI e AIMI que lhe foram notificadas referentes aos anos de 2018 a 2020, a Requerente apresentou, a 29.01.2021, junto do Serviço de Finanças de Lisboa …, um pedido de revisão oficiosa do ato tributário [...].
b) A utilização deste meio processual, quando o pedido é apresentado após estar esgotado o prazo de reclamação administrativa a que se refere o n.º 1 do artigo 78.º, é limitada quanto aos fundamentos de impugnação, que deixam de ser «qualquer ilegalidade» (como sucede quanto aos pedidos apresentados naquele prazo) para passar a ser apenas o «erro imputável aos serviços».
c) Tal justifica-se pela velha máxima «dormientibus non sucurrit jus» que determina a preclusão de direitos por falta de exercício tempestivo, em benefício da segurança jurídica. Não obstante, no caso em apreço, ocorreu um “erro imputável aos serviços”, o que justifica a admissibilidade do presente meio de reação.
d) Em termos jurisprudenciais, tem sido aceite, com unanimidade, que o pedido de revisão oficiosa pode ser espoletado, no prazo de quatro anos, pelo próprio contribuinte, desde que com fundamento em erro imputável aos serviços – o que manifestamente se verificou no caso em apreço.
e) [É] evidente que estamos perante uma ilegalidade – em virtude da fixação de um VPT claramente superior ao que resultaria caso a fórmula de cálculo legalmente prevista tivesse sido corretamente aplicada pela AT – motivo porquanto o facto de não ter sido apresentada reclamação graciosa das liquidações de IMI e AIMI subsequentes constituir obstáculo legal à apreciação pela AT do pedido de revisão apresentado. Mais, o erro no cálculo e fixação do VPT que originou as liquidações de IMI e AIMI sindicadas não pode ser imputado à ora Requerente, nem a qualquer comportamento negligente desta, uma vez que resultou de um procedimento desencadeado e concretizado pela AT, o que se invocou para os devidos legais.
f) Adicionalmente, não poderá a AT invocar que a Requerente não utilizou a faculdade de requerer a segunda avaliação do VPT após ter sido notificada da avaliação, por ser este um pressuposto da anulação das respetivas liquidações de IMI e AIMI, já que decorre, clara e inequivocamente, do acórdão [...] referido [Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.º 2675/12.8BELRS, de 31.10.2019] que a possibilidade de requerer a revisão das liquidações de IMI e AIMI apuradas tendo por base um VPT ilegal tem pleno enquadramento legal, “independente[mente] da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT”. Ademais, constitui jurisprudência pacífica que as liquidações de imposto podem ser objeto de revisão oficiosa no prazo geral de quatro anos.
g) A não ser assim, estaria a AT, simultaneamente, a consentir e a ignorar uma manifesta ilegalidade, nomeadamente a emissão de liquidações de IMI e AIMI com base num VPT apurado de forma manifestamente excessiva, conforme melhor se pode ver no pedido de revisão e no presente pedido de pronúncia arbitral.
h) No presente caso, existiu um erro manifesto na fixação do VPT do lote de terreno acima melhor identificado, o que determinou o apuramento do IMI e AIMI em valor superior ao que seria devido pela detenção desse lote, pelo que nenhuma dúvida restará quanto à admissibilidade do presente meio de reação.
i) Em face do exposto, deverá concluir-se pela adequação e tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que se requereu a revisão das referidas liquidações de IMI e AIMI, por ter ocorrido erro imputável aos serviços, o que justifica a anulação dos referidos atos tributários e a restituição das quantias de imposto indevidamente pagas. Portanto, considerando que, ao abrigo do n.º 2 do artigo 129.º do Código do IMI, os prazos de reação à liquidação se contam “a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da última ou da única prestação do imposto”, é evidente que, terminando o prazo para pagamento voluntário da última prestação da liquidação de IMI do ano de 2018 em 30.11.2019, se encontrava inequivocamente cumprido o prazo de 4 anos para apresentar pedido de revisão oficiosa da mesma.
j) [Como questão prévia, relativa à admissibilidade da cumulação de pedidos, alega-se que] [c]onforme resulta do pedido de revisão oficiosa previamente apresentado, as liquidações relativas a IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, objeto do mesmo e, bem assim, do presente pedido de pronúncia arbitral, assentam nos mesmos fundamentos de facto e direito, sendo idêntica a causa de pedir e o pedido a formular pela ora Requerente.
k) Não obstando à cumulação referida a circunstância de os pedidos se reportarem a diferentes tributos, “desde que todos se reconduzam à mesma natureza, à luz da classificação prevista do n.º 2 do artigo 3.º da Lei Geral Tributária”, como sucede, in casu, uma vez que estamos perante impostos sobre o património.
l) No caso em apreço, nenhuma dúvida resta que se mostram preenchidos todos os requisitos legais para que, tal como sucedeu em sede de pedido de revisão oficiosa, seja admitida a presente cumulação de pedidos – a análise da legalidade dos atos de liquidação de IMI notificados à Requerente e referentes aos anos de 2018 e 2019 e de AIMI referentes aos anos de 2019 e 2020 – uma vez que a sua apreciação tem por base as mesmas circunstancias de facto, sendo inequívoca a identidade da natureza dos tributos, bem como dos fundamentos a invocar pela Requerente.
m) No que respeita à cumulação de pedidos para efeitos do presente pedido de pronúncia arbitral, o n.º 1 do artigo 3.º do RJAT dispõe que “[a] cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”. In casu, inexistem dúvidas de que a procedência dos pedidos formulados pela Requerente relativamente a cada um dos atos de liquidação de IMI e de AIMI depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de Direito, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
n) [Como questão prévia, relativa à presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e da tempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral, informa-se o Tribunal que] a Requerente apresentou, em 29.01.2021, um pedido de revisão oficiosa, tendo por objeto os atos de liquidação de IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, requerendo a anulação dos mesmos (cfr. documento n.º 4 acima junto) [e que,] [a]té à presente data, a Requerente não obteve qualquer resposta ou decisão por parte da AT em relação ao referido pedido de revisão oficiosa.
o) Da conjugação do disposto nos artigos 54.º, n.º 1, alínea c) e 57.º, n.ºs 1 e 3, ambos da LGT, resulta que o procedimento tributário (que compreende o pedido de revisão oficiosa do ato tributário) deve estar concluído no prazo de quatro meses, sendo este prazo contado de forma contínua e de acordo com os termos do Código Civil.
p) Do acima exposto resulta que a AT deveria, até 31.05.2021 (uma vez que 29.05.2021 era dia não útil), ter apreciado e decidido o pedido de revisão oficiosa de ato tributário que lhe foi oportunamente apresentado pela Requerente.
q) Assim [à luz do prazo constante do art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT], conclui-se que o pedido de constituição do tribunal arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias a contar da formação da presunção de indeferimento tácito, que ocorreu no dia 31.05.2021, pelo que o presente pedido é tempestivo.
r) [Como questão prévia, relativa à competência material do Tribunal Arbitral para decidir o presente pedido de pronúncia arbitral, alega-se que,] tendo em consideração o disposto nos artigos 2.º do RJAT e da Portaria de Vinculação, inexistem dúvidas quanto à competência material do Tribunal Arbitral para conhecer da ilegalidade de atos, abrangendo a ilegalidade do indeferimento tácito.
s) [Quanto ao Direito,] a Requerente entende que as liquidações de IMI e AIMI emitidas, entre os anos de 2018 e 2020, relativamente ao lote de terreno acima melhor identificado padecem de ilegalidade, por terem como base um VPT determinado em virtude da aplicação de uma fórmula manifestamente ilegal, por duplicação de critérios.
t) Com efeito, o VPT dos terrenos para construção é determinado com base numa fórmula especificamente criada para o efeito pela AT. Contudo, entende a Requerente que a AT não aplicou devidamente a lei na determinação do VPT do terreno para construção acima melhor identificado, nomeadamente, em virtude da aplicação do coeficiente de localização, constante do artigo 38.º do Código do IMI – especificamente aplicável a prédios edificados – duplicando, assim, os critérios utilizados, o que resulta na determinação de um VPT excessivo e, consequentemente, na emissão de liquidações de IMI e AIMI igualmente excessivas.
u) [D]úvidas não restarão de que, à data da determinação do VPT do referido terreno, a AT considerou um coeficiente que não estava previsto na lei – mais concretamente o coeficiente de localização – como, a contrario, resulta da expressa menção deste coeficiente na nova fórmula do artigo 45.º, introduzida pela LOE 2021 e em vigor desde 01.01.2021.
v) Na fixação desta percentagem [entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas] – conforme determina a remissão do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IMI para o artigo 42.º, n.º 3 do Código do IMI – são tidas em consideração as acessibilidades existentes, a proximidade de equipamentos sociais, a existência, ou não, de transportes, bem como a eventual localização em zona de elevado valor de mercado imobiliário. Ora, é evidente que no cálculo do VPT dos terrenos para construção, ao contrário do que tem sido a prática da AT, não podem aplicar-se os coeficientes que constam da fórmula geral de determinação do VPT previstos no artigo 38.º do Código do IMI, porquanto esses se destinam a ser aplicado a prédios edificados, sob pena de existir uma dupla incidência de critérios de determinação do VPT e de manifesta ilegalidade relativamente aos terrenos para construção.
w) Na verdade, ao contrário do que sucede na avaliação dos prédios da espécie “Outros”, em que existe uma remissão expressa para a fórmula geral de avaliação prevista no artigo 38.º do Código do IMI, a avaliação dos terrenos para construção é feita nos termos do artigo 45.º do Código do IMI, não existindo qualquer remissão para o disposto no artigo 38.º do mesmo Código.
x) Assim, estando em causa nos autos um terreno para construção, o VPT do mesmo tinha que ter tido por base, conforme acima referido, os critérios definidos na redação em vigor no artigo 45.º do Código do IMI à data em que foi efetuada a avaliação do VPT do terreno, ou seja, em 31.12.2014, que remete para o valor da área de implantação do edifício a construir, acrescido do valor do terreno adjacente à implantação, definindo também esta norma os próprios termos em que se calcula o valor da área de implantação do edifício a construir (cfr. n.º 2 e n.º 3) e o valor da área adjacente à construção (cfr. n.º 4), cujo somatório permite fixar o VPT do terreno para construção.
y) Resulta, assim, do exposto, que a AT não poderia, na determinação do VPT do terreno para construção em apreço, ter aplicado a fórmula geral estabelecida no artigo 38.º do Código do IMI e, concretamente, não poderia, neste caso concreto, ter considerado o coeficiente de localização ali referido por ausência total de base legal para esse efeito. Concomitantemente, é entendimento consolidado da jurisprudência que é inequívoco que na determinação do VPT dos terrenos de construção não poderão considerar-se os coeficientes de afetação, localização, e qualidade e conforto, a que alude o artigo 38.º do Código do IMI, até porque a aplicação destes coeficientes, ainda que por analogia, potenciaria a alteração da base tributável interferindo assim, de forma inadmissível, na incidência do imposto.
z) [A] determinação do VPT dos terrenos para construção deverá ser efetuada por avaliação direta, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º do Código do IMI e de acordo com o disposto no artigo 45.º do mesmo Código, pois a fórmula prevista no n.º 1 do artigo 38.º apenas poderá ser aplicada aos prédios urbanos aí discriminados, isto é, àqueles que já estão edificados para propósitos de habitação, comércio, indústria e serviços.
aa) [D]o recurso simultâneo ao método do artigo 45.º e ao coeficiente de localização previsto no artigo 38.º do Código do IMI, resultou um VPT manifestamente excessivo e desajustado da realidade que lhes subjaz.
bb) O recurso a uma fórmula claramente desprovida de base legal na determinação do VPT do terreno para construção aqui em causa resultou num acréscimo ilegal de IMI e AIMI a pagar pela Requerente por referência aos períodos de tributação de 2018 e 2019 (IMI) e 2019 e 2020 (AIMI), o que se invoca para os devidos efeitos legais, mormente para efeitos da anulação das liquidações ilegalmente emitidas.
cc) [À] luz da letra da lei em vigor à data da determinação do VPT do terreno em discussão [n.º 1 do art. 39.º do CIMI na redação em vigor antes de 1/1/2021], que esteve na base dos valores de IMI e AIMI ora sindicados, a AT não podia – por não ter base legal que o permitisse – aplicar a majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI ao terreno propriedade da Requerente em apreço nos presentes autos. Pelo exposto, é forçoso concluir que a consideração dos coeficientes de localização e a majoração de 25% do valor médio de construção, mediante aplicação analógica dos artigos 38.º e 39.º, n.º 1, do Código do IMI implica a determinação de um VPT excessivo, sendo, como tal, ilegal.
dd) [C]onforme decorre inequivocamente da informação que consta da caderneta predial, acima junta como documento n.º 1, do terreno para construção cujas liquidações de IMI e AIMI aqui se contestam, verifica-se que na determinação do VPT do mesmo: i) Foi aplicado um coeficiente de localização [Cl] de 2,40, apresentando assim o terreno um Cl superior a 1; e ii) Foi aplicado um Vc [valor base dos prédios edificados] de € 603,00, ao invés de € 482,40, ou seja, com a majoração de 25%, ao invés do custo médio de construção por metro quadrado sem qualquer majoração.
ee) É, portanto, evidente que, encontrando-se o VPT do terreno para construção ora identificado incorretamente fixado, são consequentemente ilegais os atos tributários que lhe sobrevieram, nomeadamente, as liquidações de IMI e AIMI ora sindicadas no presente pedido de pronuncia arbitral, o que se invoca para os devidos efeitos legais.»
3.1. A Requerente termina pedindo que se de provimento ao presente pedido de pronúncia arbitral, determinando-se, em consequência: «a) a anulação do ato tácito de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente junto do Serviço de Finanças de Lisboa …; b) anulação dos atos de liquidação de IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, acima melhor identificadas; c) a restituição do IMI e AIMI indevidamente pagos.»
4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “REQUERIDA” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:
a) «Alegam os Requerentes que foi incorretamente fixado o Valor Patrimonial Tributários (VPT) do lote de terreno para construção inscrito na matriz predial sob o artigo U-… da freguesia de …, concelho de Silves, distrito de Faro, avaliado em 2014 no valor de € 13.647.504,33. E pretendem a anulação das liquidações com fundamento em vícios, não das liquidações, mas sim dos atos que fixaram o VPT.
b) Na verdade, a presente ação não é sustentada nem fundamentada em qualquer vício dos atos de liquidação ou da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa. Aos atos impugnados não é imputado qualquer vício específico. O que está em causa é, apenas e só, os atos de fixação da matéria tributável e não o ato de liquidação.
c) Acontece que os vícios do valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo. E o tribunal arbitral é incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do valor patrimonial, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis e encontra-se consolidados na ordem jurídica.
d) [“Sem conceder” e apreciando as questões de Direito colocadas ao Tribunal, refere a Requerida, a respeito da questão da “intempestividade do pedido de revisão oficiosa”, que] [o] prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária. Por isso, tendo a revisão oficiosa sido pedida apenas em 04/12/2020, tem de se concluir que o pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos tributários impugnados na presente ação é intempestivo.
e) No caso em apreço, os atos de liquidação de IMI não enfermam de qualquer erro imputável aos serviços, pois, por força do disposto no artigo 113.º, n.º 1, do CIMI: “O imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita”. Assim, tendo as liquidações sido efetuadas com base nos valores patrimoniais dos prédios que constavam das matrizes a 31 de dezembro do respetivo ano não há erro da Administração Tributária ao efetuar a liquidação e, por isso, o indeferimento do pedido de revisão oficiosa não enferma de ilegalidade.
f) [Sobre a questão da “consolidação dos atos tributários de fixação do VPT”, alega a Requerida que] O procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado, se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem de acolher. E cuja impugnação não abrange os erros ou vícios que eventualmente tenham ocorrido nessa avaliação.
g) Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação. Ou seja, a errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da 2.ª avaliação que não na posterior liquidação, consequente. [...] [P]or estar consolidada a fixação do valor patrimonial tributário, não podem os atos de liquidação ser anulados com fundamento em erros no cálculo do VPT. Matéria para a qual (apreciação de atos administrativos em matéria tributária) o Tribunal Arbitral não tem competência.
h) [Sobre a questão da “impugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento em vícios próprios do ato de fixação do VPT”, alega a Requerida que] os vícios da fixação do VPT, não [são] sindicáveis na análise da legalidade do ato de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já se consolidaram na ordem jurídica. [...]. [O]s atos de fixação do VPT não são atos de liquidação, são atos autónomos e individualizados com eficácia jurídica própria e diretamente sindicáveis. [...] [N]ão é, nem legal, nem admissível, a apreciação da correção do VPT em sede de impugnação do ato de liquidação, ou da decisão de indeferimento tácito que não se pronuncie sobre o ato de liquidação.
i) [Sobre a questão dos “requisitos da anulação administrativa”, alega a Requerida que,] [n]o que respeita à avaliação dos terrenos para construção, a jurisprudência tem entendido que, na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, na redação do artigo 45.º do CIMI anterior a 1 de janeiro de 2021, não há lugar à consideração do coeficiente de afetação e do coeficiente de localização.
j) Assim importa aferir se, [em] face do entendimento jurisprudencial, as avaliações dos prédios urbanos terrenos para construção que tenham considerado esses coeficientes podem ser anuladas com fundamento em invalidade.
k) Decorre do texto da lei [art. 168.º do CPA, entendido como subsidiariamente aplicável por força do art. 2.º, al. c), da LGT] que apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT que contrariam o recente entendimento jurisprudencial nos casos em que não tenha decorrido cinco anos desde a respetiva emissão.
l) Em face de tudo o exposto conclui-se que as avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, conforme decorre do artigo 168.º, n.º 1, do CPA. Ao abrigo do princípio da imparcialidade e da legalidade previsto no artigo 266.º da Constituição e concretizado nos artigos 55.º LGT e no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) a Administração Tributária tem de praticar os atos tributários de acordo com as normas legais aplicáveis ao caso concreto».
4.1. A AT conclui a sua resposta pedindo que o pedido de pronúncia arbitral seja «julgado improcedente e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos.»
5. Através de despacho datado de 27/12/2021, o Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, al. c), do RJAT, decidiu dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, o Tribunal Arbitral dispensou também a produção de alegações escritas.
5.1. Em resposta ao despacho do Tribunal, a Requerente ainda veio apresentar um novo requerimento com o seguinte conteúdo:
«a) A Requerente não discorda que estamos unicamente perante matéria de direito; contudo, não pode concordar que não tenha sido invocada pela AT matéria de exceção (ainda que de forma encapotada);
b) Com efeito, em sede de resposta apresentada nos autos pela AT, são identificadas as seguintes questões a decidir (cfr. artigo 9.º da Resposta):
“I - A questão de saber se o pedido de revisão oficiosa é tempestivo; II - A questão de saber se o ato que fixa o VPT é um ato destacável, ou seja, um ato autonomamente impugnável; III - A questão de saber se o ato que fixou o VPT está consolidado na ordem jurídica; IV - A questão de saber se eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo. V - A questão de saber se Administração Tributária pode anular todos os atos administrativos tributários, nomeadamente os atos de fixação do VPT, ou apenas os que tenham ocorrido há menos de cinco anos.”
c) Ora, não obstante estas questões não serem apresentadas pela AT enquanto “exceções”, verifica-se que as mesmas não podem senão ser tratadas e apreciadas enquanto tal, o que motiva a apresentação desta resposta.»
Nesse sentido vem apresentar resposta às exceções que este Tribunal admitiu e terá em conta nas questões a decidir.
II. Saneamento
6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
8. Em face das questões prévias colocadas (relativas à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral e à competência material do tribunal arbitral), impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas. Seguir-se-á – se a resposta àquelas o permitir – a análise do mérito do pedido.
III. Questões a decidir
9. Na petição arbitral, a Requerente alega, a título de «questões prévias», que: i) o pedido de revisão oficiosa é tempestivo porque o mesmo “pode ser espoletado, no prazo de quatro anos, pelo próprio contribuinte, desde que com fundamento em erro imputável aos serviços – o que manifestamente se verificou no caso em apreço”, uma vez que “existiu um erro manifesto na fixação do VPT do lote de terreno acima melhor identificado, o que determinou o apuramento do IMI e AIMI em valor superior ao que seria devido pela detenção desse lote”; ii) a cumulação de pedidos é, neste caso, admissível, dado que “as liquidações relativas a IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, objeto do mesmo e, bem assim, do presente pedido de pronúncia arbitral, assentam nos mesmos fundamentos de facto e direito, sendo idêntica a causa de pedir e o pedido a formular pela ora Requerente”; iii) pode presumir-se a existência de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa porque “a Requerente apresentou, em 29.01.2021, um pedido de revisão oficiosa, tendo por objeto os atos de liquidação de IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, requerendo a anulação dos mesmos [...] [e,] [a]té à presente data, a Requerente não obteve qualquer resposta ou decisão por parte da AT em relação ao referido pedido de revisão oficiosa”, tendo, assim, sido superado o “prazo de quatro meses [...] contado de forma contínua e de acordo com os termos do Código Civil” resultante do disposto nos “artigos 54.º, n.º 1, alínea c) e 57.º, n.ºs 1 e 3, ambos da LGT”; iv) como a “a AT deveria, até 31.05.2021 (uma vez que 29.05.2021 era dia não útil), ter apreciado e decidido o pedido de revisão oficiosa de ato tributário que lhe foi oportunamente apresentado pela Requerente” e como, “[à luz do prazo constante do artigo 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT], [...] o pedido de constituição do tribunal arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias a contar da formação da presunção de indeferimento tácito, que ocorreu no dia 31.05.2021, [...] o presente pedido é tempestivo”; v) o Tribunal Arbitral é materialmente competente para decidir o presente pedido de pronúncia arbitral.
10. Na parte «Do Direito», a ora Requerente alega que: vi) “as liquidações de IMI e AIMI emitidas, entre os anos de 2018 e 2020, relativamente ao lote de terreno acima melhor identificado padecem de ilegalidade, por terem como base um VPT determinado em virtude da aplicação de uma fórmula manifestamente ilegal, por duplicação de critérios” – dado que “a AT não aplicou devidamente a lei na determinação do VPT do terreno para construção acima melhor identificado, nomeadamente, em virtude da aplicação do coeficiente de localização, constante do artigo 38.º do Código do IMI – especificamente aplicável a prédios edificados – duplicando, assim, os critérios utilizados, o que resulta na determinação de um VPT excessivo e, consequentemente, na emissão de liquidações de IMI e AIMI igualmente excessivas”; vii) à “luz da letra da lei em vigor à data da determinação do VPT do terreno em discussão [n.º 1 do art. 39.º do CIMI na redação em vigor antes de 1/1/2021], que esteve na base dos valores de IMI e AIMI ora sindicados, a AT não podia – por não ter base legal que o permitisse – aplicar a majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI ao terreno propriedade da Requerente”.
11. Por seu lado, a Requerida considera, na sua resposta, que: i) “[o] prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária”, pelo que, “tendo a revisão oficiosa sido pedida apenas em 04/12/2020, tem de se concluir que o pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos tributários impugnados na presente ação é intempestivo”; ii) “[o] procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral”, pelo que, “[n]ão tendo Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer, na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação”; iii) consequentemente, “os vícios do valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo. E o tribunal arbitral é incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do valor patrimonial, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis e encontra-se consolidados na ordem jurídica”; iv) “[n]o que respeita à avaliação dos terrenos para construção, a jurisprudência tem entendido que, na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, na redação do artigo 45.º do CIMI anterior a 1 de janeiro de 2021, não há lugar à consideração do coeficiente de afetação e do coeficiente de localização” – contudo, “importa aferir se, face do entendimento jurisprudencial, as avaliações dos prédios urbanos terrenos para construção que tenham considerado esses coeficientes podem ser anuladas com fundamento em invalidade”, entendendo-se, a este respeito, que “as avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, conforme decorre do artigo 168, n.º 1, do CPA”.
12. Pelo exposto, conclui-se que as questões essenciais a decidir nos presentes autos dizem respeito: i) ao apuramento da tempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral; ii) ao apuramento da legalidade da cumulação de pedidos nos presentes autos; iii) ao apuramento da competência material do presente Tribunal Arbitral; iv) ao apuramento da tempestividade (ou intempestividade) do pedido de revisão oficiosa, e da existência (ou não) de indeferimento tácito do mesmo; v) à avaliação da legalidade das liquidações de IMI e AIMI emitidas, entre os anos de 2018 e 2020, relativamente ao lote de terreno ora em causa, que a Requerente alega “padece[rem] de ilegalidade, por terem como base um VPT determinado em virtude da aplicação de uma fórmula manifestamente ilegal, por duplicação de critérios”; vi) à avaliação da alegação, feita pela Requerida, segundo a qual “as avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, conforme decorre do artigo 168, n.º 1, do CPA”.
13. Como as questões relativas à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral (que convoca indiretamente as questões da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e da existência ou não de indeferimento tácito da mesmo), à cumulação de pedidos e à competência material deste Tribunal Arbitral são de conhecimento prioritário, as mesmas serão analisadas no ponto IV.4.1 (Questões Prévias), ficando a análise das restantes para momento posterior – isto se, como se disse no ponto 8, estas não ficarem prejudicadas pela resposta a dar às primeiras.
IV. Fundamentação
IV.1. Matéria de facto
14. Com relevância para a presente decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:
A. A Requerente foi proprietária, até 31/1/2020, do terreno para construção identificado na Caderneta Predial Urbana constante de Doc. 1 apenso aos presentes autos.
B. Nos termos da referida Caderneta Predial Urbana, o VPT do referido terreno, que deu origem às liquidações ora em causa, foi apurado em 31/12/2014.
C. A Requerente efetuou o pagamento das liquidações de IMI (dos anos de 2018 e 2019, pelo montante de €40.942,51 cada) e AIMI (dos anos de 2019 e 2020, pelo montante de €54.590,02 cada) ora em causa, como se prova pelos respetivos comprovativos de pagamento, constantes de Docs. 2 e 3 apensos aos presentes autos.
D. Não concordando com as referidas liquidações, a Requerente apresentou, a 29/1/2021, junto do Serviço de Finanças de Lisboa …, um pedido de revisão oficiosa, solicitando a anulação das mesmas, nos termos do disposto no art. 78.º da LGT (vd. Doc. 4 apenso aos presentes autos).
E. Presumindo a formação de indeferimento tácito desse pedido de revisão oficiosa, por transcurso do prazo previsto no art. 57.º, n.º 1, da LGT, a Requerente apresentou, em 26/8/2021, o presente pedido de pronúncia arbitral.
F. Ainda que a Requerente alegue, na sua p.i., que o presente pedido de pronúncia arbitral incide sobre a “legalidade das referidas liquidações”, justifica a sua discordância com as mesmas apenas no facto de “entender que [elas] têm por base um VPT determinado com base numa fórmula de cálculo ilegal” (vd. §11.º da p.i.). A Requerente não alega quaisquer vícios específicos ou próprios das liquidações de IMI e AIMI em causa.
G. Não obstante o motivo da referida discordância dizer respeito a ato de fixação de valores patrimoniais, a Requerente não promoveu ou requereu uma segunda avaliação do prédio em causa, “no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro [sujeito passivo] tenha sido notificado” (vd. art. 76.º, n.º 1, do CIMI). Tal facto releva porque apenas do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) é que cabe impugnação judicial nos termos do CPPT (vd. art. 77.º, n.º 1, do CIMI). Não tendo sido esgotados os referidos meios graciosos, a ora Requerente ficou impossibilitada de proceder à impugnação autónoma de tal ato destacável, no prazo de 3 meses após “a notificação [do ato de fixação dos valores patrimoniais] ao contribuinte” (vd. art. 134.º, n.os 1 e 7, do CPPT). A não impugnação tempestiva do referido ato pela ora Requerente permite concluir que se formou caso decidido ou resolvido sobre a avaliação do prédio em causa.
IV.2. Factos não provados
15. Inexistem factos não provados com relevo para a apreciação da causa.
IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
16. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
17. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
18. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados.
IV.4. Matéria de Direito
IV.4.1. Questões Prévias
IV.4.1.1. Sobre a competência do Tribunal Arbitral
19.1. Seguindo de perto o Processo 540/2020-T, deste Centro , a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
19.2. Refere-se nesta norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)
Para além da apreciação direta da legalidade de atos deste tipo, incluem-se ainda nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências para apreciar atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, designadamente de atos que decidam reclamações graciosas ou pedidos de revisão oficiosa e recursos hierárquicos, como se depreende das referências expressas que se fazem no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT (que se reporta à impugnação judicial de decisões de reclamações graciosas), aos «atos suscetíveis de impugnação autónoma» e à «decisão do recurso hierárquico».
19.3. Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).
Mas, resulta do teor do artigo 2.º do RJAT que a arbitragem tributária não foi implementada quanto às matérias suscetíveis de serem objeto de ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois é manifesto que não se enquadram em qualquer das situações previstas.
19.4. De qualquer forma, extrai-se também da referida autorização legislativa, designadamente da alínea a) do n.º 4 do referido artigo 124.º, ao fazer referência aos «atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», que não se pretendeu estender o âmbito da arbitragem tributária à apreciação de atos que, nos termos do CPPT, não podem ser objeto de impugnação judicial. Na verdade aquela expressão tem ínsita a exclusão dos «atos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação» e das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de atos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do artigo 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses atos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação. ( )
Porém, como exceção a esta regra de delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa, poderão considerar-se os casos de impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, independentemente do seu conteúdo, pelo facto de a utilização do processo de impugnação judicial ter sido prevista numa norma especial, que é o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, atualmente revogado, em de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. No mesmo sentido aponta a alínea c) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, ao referir «a impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos atos tributários». ( ) ( )
No caso em apreço, a Requerente não apresentou uma reclamação graciosa, mas sim um pedido de revisão oficiosa, que não foi apreciado no prazo previsto no artigo 57.º, n.º 5, da LGT, pelo que se formou indeferimento tácito.
19.5. Nos casos de indeferimento tácito não há, obviamente, apreciação expressa da legalidade de ato de liquidação, mas, tratando-se de uma ficção de ato destinada a assegurar a impugnação contenciosa em meio processual que tem por objeto um ato de liquidação, o meio de impugnação adequado depende do conteúdo ficcionado.
No caso de impugnação administrativa direta de um ato de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do ato de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito de meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objeto direto ato de liquidação se baseia em razões substantivas e não por razões formais. ( )
Diferente é a situação nos casos em que se está perante o indeferimento tácito de um recurso hierárquico, subsequente a indeferimento expresso de reclamação graciosa, pois este não tem por objeto direto um ato de liquidação, mas sim um anterior ato de indeferimento da impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa). Se o ato expresso proferido na impugnação administrativa não conheceu da legalidade de ato de liquidação (por ter entendido existirem obstáculos formais, como a ilegitimidade ou a intempestividade), o indeferimento tácito presume-se ter mantido o ato anterior e, por isso, se este não comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação, o indeferimento tácito do recurso hierárquico também não a comporta. ( )
19.6. Com efeito, nos casos de recurso hierárquico, em que é impugnado um anterior ato expresso, existe já um anterior ato impugnável, pelo que, no caso de indeferimento tácito do recurso hierárquico, é esse anterior ato expresso e não o indeferimento tácito o objeto da impugnação, como resulta do preceituado no artigo 198.º, n.º 4, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT: o decurso do prazo para decisão do recurso hierárquico «sem que haja sido tomada uma decisão, conferem ao interessado a possibilidade de impugnar contenciosamente o ato do órgão subalterno ou de fazer valer o seu direito ao cumprimento, por aquele órgão, do dever de decisão». Assim, o ato do subalterno, que se presume confirmado tacitamente no caso de o recurso hierárquico não ser decidido no prazo legal, é o relevante para aferir a idoneidade do meio processual. É neste sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre o indeferimento tácito de recurso hierárquico (à face do artigo 175.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo de 1991, que, para este efeito, tem alcance substancialmente idêntico ao artigo 198.º, n.º 4, do Código do Procedimento Administrativo de 2015), como pode ver-se pelo acórdão de 21-11-2007, processo n.º 0444/07, em que se entendeu: «Nos casos de indeferimento tácito de recurso hierárquico considera-se indeferido o recurso (art. 175.º, n.º 3, do CPA), pelo que, quando a decisão da reclamação graciosa impugnada conheceu da legalidade de ato de liquidação (no caso, deferindo parcialmente a pretensão formulada), aquele indeferimento tácito considera-se também ter por objeto a legalidade do ato de liquidação cuja legalidade foi apreciada na decisão da reclamação.»
Assim, nos casos de indeferimento tácito de recurso hierárquico interposto de ato expresso, é à face do conteúdo deste ato recorrido que se afere se foi ou não apreciada a legalidade de ato de liquidação.
De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objeto direto atos de liquidação, é de considerar que o ato ficcionado conhece da legalidade de atos de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o processo arbitral.
19.7. Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:
– de 6-10-2005, processo n.º 01166/04: «o indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se, para efeito das alíneas d) e p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, como um ato que comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação»;
– de 02-02-2005, processo n.º 01171/04, de 08-07-2009, processo n.º 0306/09, de 23-09-2009, processo n.º 0420/09, de 12-11-2009, processo n.º 0681/09: «o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o ato silente atribuído a diretor-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um ato de liquidação de um tributo é a impugnação judicial».
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o ato ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral.
19.8. Nestes termos, improcede a exceção invocada.
IV.4.1.2. Sobre a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral
20.1. A este respeito, informa “a Requerente [que] apresentou, em 29.01.2021, um pedido de revisão oficiosa, tendo por objeto os atos de liquidação de IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, requerendo a anulação dos mesmos (cfr. documento n.º 4 acima junto) [e que,] [a]té à presente data, a Requerente não obteve qualquer resposta ou decisão por parte da AT em relação ao referido pedido de revisão oficiosa”. Como “[d]a conjugação do disposto nos artigos 54.º, n.º 1, alínea c) e 57.º, n.ºs 1 e 3, ambos da LGT, resulta que o procedimento tributário (que compreende o pedido de revisão oficiosa do ato tributário) deve estar concluído no prazo de quatro meses, sendo este prazo contado de forma contínua e de acordo com os termos do Código Civil”, resulta, no entender da Requerente que “a AT deveria, até 31.05.2021 (uma vez que 29.05.2021 era dia não útil), ter apreciado e decidido o pedido de revisão oficiosa de ato tributário que lhe foi oportunamente apresentado pela Requerente”. Não o tendo feito, conclui a Requerente que, “[à luz do prazo constante do art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT], [...] o pedido de constituição do tribunal arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias a contar da formação da presunção de indeferimento tácito, que ocorreu no dia 31.05.2021, pelo que o presente pedido é tempestivo.”
20.2. O raciocínio da Requerente é o de que, tendo apresentado um pedido de revisão oficiosa em 29/1/2021, que tinha por objeto os atos de liquidação de IMI dos anos de 2018 e 2019 e de AIMI dos anos de 2019 e 2020, requerendo a anulação dos mesmos (vd. Doc. 4 apenso aos autos), e não tendo obtido, desde então, resposta ou decisão por parte da AT quanto ao mesmo, o procedimento tributário não teria sido concluído no prazo de 4 meses contado nos termos do Código Civil (conforme os artigos 54.º, n.º 1, alínea c), e 57.º, n.os 1 e 3, da LGT), pelo que a ora Requerente pode presumir que ocorreu indeferimento tácito do referido pedido a 31/5/2021 e, consequentemente, pode apresentar pedido de constituição do tribunal arbitral no prazo de 90 dias a partir dessa data (vd. art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT).
20.3. Por seu lado, a Requerida, embora não conteste diretamente o cumprimento deste prazo de 90 dias, alega que, atendendo ao prazo do n.º 4 do art. 78.º da LGT, “o pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos tributários impugnados [...] é intempestivo.” (pelo que daqui se depreende que alega, também, que não chegou a existir o indeferimento tácito a partir do qual a ora Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral). A Requerida alega, também, no §8.º da sua resposta, que “o tribunal arbitral é incompetente para apreciar vícios de atos de fixação do valor patrimonial, atos esses que são destacáveis e autonomamente impugnáveis e encontra-se consolidados na ordem jurídica.”
20.4. Justifica-se, pelo exposto, também a análise das questões relativas à tempestividade (ou não) do pedido de revisão oficiosa das liquidações em causa nestes autos e, consequentemente, à existência (ou não) de indeferimento tácito desse pedido de revisão (que a Requerente também coloca aqui em causa).
IV.4.1.3. Sobre a tempestividade do pedido de revisão oficiosa
21.1. Com efeito, se a tempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral depende da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IMI e AIMI em causa (dado que a data de apresentação desse pedido de revisão serviu para a Requerente presumir, por transcurso do prazo constante do n.º 1 do art. 57.º da LGT, que se tinha formado a presunção de indeferimento tácito – a partir do qual a ora Requerente contou o prazo de 90 dias do art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT), é necessário fazer a demonstração da mesma.
21.2. Nesse sentido, alegou a Requerente que: i) o pedido de revisão oficiosa é tempestivo porque o mesmo “pode ser espoletado, no prazo de quatro anos, pelo próprio contribuinte, desde que com fundamento em erro imputável aos serviços – o que manifestamente se verificou no caso em apreço”, uma vez que “existiu um erro manifesto na fixação do VPT do lote de terreno acima melhor identificado, o que determinou o apuramento do IMI e AIMI em valor superior ao que seria devido pela detenção desse lote”; ii) sendo tempestivo o pedido de revisão oficiosa, é indiscutível, por transcurso do prazo de 4 meses sem haver decisão da AT, a formação da presunção de indeferimento tácito do mesmo e – pelas razões que já foram supra assinaladas – também o cumprimento do prazo de interposição de pedido de pronúncia arbitral a partir da data da formação da referida presunção de indeferimento.
21.3. Por seu lado, a Requerida entendeu que “[o] prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária”, pelo que, “tendo a revisão oficiosa sido pedida apenas em 04/12/2020 [sic], tem de se concluir que o pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos tributários impugnados na presente ação é intempestivo” (depreende-se, deste excerto, que a Requerida também alega a inexistência do indeferimento tácito na origem do presente processo arbitral).
21.4. Vejamos, então.
21.5. Conforme carimbo aposto ao pedido de revisão oficiosa constante de Doc. 4 apenso aos estes autos, a revisão oficiosa deu entrada a 29/1/2021 (e não a 4/12/2020, como alegado pela Requerida). Assim sendo, alega a ora Requerente que, “ao abrigo do n.º 2 do artigo 129.º do Código do IMI, os prazos de reação à liquidação se contam «a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da última ou da única prestação do imposto», [pelo que] é evidente que, terminando o prazo para pagamento voluntário da última prestação da liquidação de IMI do ano de 2018 em 30.11.2019, se encontrava inequivocamente cumprido o prazo de 4 anos para apresentar pedido de revisão oficiosa da mesma.”
21.6. Podia a Requerente interpor pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos, como alega?
21.7. A resposta a dar à questão é negativa. Como bem refere a Decisão arbitral de 9/11/2021, proferida no processo n.º 40/2021-T: “Das várias situações de revisão oficiosa previstas no artigo 78.º da LGT, as referidas nos n.ºs 1 e 6 reportam-se a atos de liquidação (como se infere do termo inicial do prazo de quatro anos previsto no n.º 1). Apenas as situações previstas nos seus n.ºs 4 e 5 se referem a atos de fixação da matéria tributável, categoria a que se reconduzem os atos de fixação de valores patrimoniais. Ora, analisando estas normas, é manifesto que não foi observado pela Requerente o prazo de três anos fixado no n.º 4 deste artigo 78.º.” (Sublinhados nossos.)
21.8. Com efeito, o prazo aplicável é, pelas razões supra citadas, o prazo de 3 anos constante do n.º 4 do artigo 78.º da LGT (e não o prazo de 4 anos alegado pela Requerente). E, como se observa pela leitura dos autos, estão em causa, nestes autos, liquidações do IMI dos anos de 2018 e 2019 e do AIMI dos anos de 2019 e 2020. Assim sendo, e tendo presente que o pedido de revisão das liquidações foi apresentado pela ora Requerente em 29/1/2021 (sustentado no entendimento de que “as mesmas têm por base um VPT determinado com base numa fórmula de cálculo ilegal”: vd. Doc. 4 apenso aos autos), e tendo também presente que “[o]s «três anos posteriores ao do ato tributário» terminam no dia 31 de Dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foi praticado o ato tributário” (vd. Decisão arbitral de 10/5/2021, proferida no proc. n.º 487/2020-T), mostra-se evidente que, à data do pedido de revisão, ainda não tinha expirado o “prazo de três anos posteriores ao do ato tributário” (n.º 4 do art. 78.º da LGT) em que podia ser autorizada a revisão do mencionado ato de fixação de valores patrimoniais, com “fundamento em injustiça grave ou notória” (vd., também, n.º 5 do referido art. 78.º da LGT).
Verificada a competência, a tempestividade do pedido e da revisão oficiosa, cumpre então apreciar o pedido.
IV.4.2. Questão de fundo
22. A Requerente vem impugnar atos de liquidação de IMI com fundamento em erros dos atos de fixação dos valores patrimoniais tributários (VPT) dos prédios sobre que incidiu o imposto, pelo que é necessário averiguar os seguintes pontos:
a) Questão da possibilidade de impugnar liquidações de IMI e de AIMI com fundamento e vícios de atos de fixação de valores patrimoniais;
b) Questão da admissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação de valores patrimoniais.
IV.4.2.1. Questão da possibilidade de impugnar liquidações de IMI e de AIMI com fundamento e vícios de atos de fixação de valores patrimoniais
23.1. Antes de mais, é necessário esclarecer se os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de IMI e de AIMI que os têm como pressupostos.
23.2. A Autoridade Tributária e Aduaneira defende globalmente o seguinte: “[n]o que respeita à avaliação dos terrenos para construção, a jurisprudência tem entendido que, na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, na redação do artigo 45.º do CIMI anterior a 1 de janeiro de 2021, não há lugar à consideração do coeficiente de afetação e do coeficiente de localização” – contudo, “importa aferir se, face do entendimento jurisprudencial, as avaliações dos prédios urbanos terrenos para construção que tenham considerado esses coeficientes podem ser anuladas com fundamento em invalidade”, entendendo-se, a este respeito, que “as avaliações efetuadas há mais de cinco anos, em que foram considerados os coeficientes de localização e afetação na determinação do valor patrimonial tributários dos terrenos para construção, já não podem ser objeto de anulação administrativa, conforme decorre do artigo 168, n.º 1, do CPA”.
23.3. Afigura-se correto este entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira.
23.4. Na verdade, podemos até acrescentar, e seguindo de perto o Processo 540/2020-T, deste Centro , por força do preceituado no artigo 15.º do CIMI a avaliação dos prédios urbanos é direta e, por isso, ela é «suscetível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa direta» (artigo 86.º, n.º 1, da LGT).
23.5. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 86.º da LGT, «a impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão».
23.6. Os termos da impugnação da avaliação direta de valores patrimoniais constam do artigo 134.º do CPPT e, que se estabelece que:
– «os atos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de três meses após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade» (n.º 1); e
– «a impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação» (n.º 7).
23.7. Como decorre do n.º 1 do artigo 134.º, ao fixar um prazo especial de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais e do n.º 7 do mesmo artigo, ao exigir o esgotamento dos meios graciosos, está afastada a possibilidade de essa impugnação se fazer, por via indireta, na sequência da notificação de atos de liquidação que a tenham como pressuposto, como são os de IMI ou de AIMI, sem observância do prazo de impugnação referido e sem esgotamento dos meios de revisão previstos no procedimento de avaliação.
23.8. No âmbito do IMI e AIMI, quando o sujeito passivo não concordar com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (artigo 76.º, n.º 1, do CIMI).
23.9. Só do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) cabe impugnação judicial nos termos do CPPT (artigo 77.º, n.º 1 do CIMI).
23.10. Isto significa que os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos.
23.11. Assim, o sujeito passivo de IMI e de AIMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes atos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT.
23.12. Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o ato de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que «o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita» (artigo 113.º do CIMI).
23.13. A natureza de atos destacáveis que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo , desde o tempo em que regime idêntico ao do artigo 134.º, n.ºs 1 e 7 do CPPT, previsto nos n.ºs 1 e 6 do artigo 155.º do Código de Processo Tributário de 1991, quer em sede de Sisa, quer de contribuição autárquica, quer de IMI quer de IMT.
23.14. Podemos até citar a decisão proferida no Processo 540/2020-T, deste Centro :
«Na verdade, este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes ao facto de cada ato de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de atos de liquidação de impostos (liquidações anuais de IMI e eventuais liquidações de IMT) e ser relevante para vários efeitos a nível de IRS ( ), IRC ( ) e Imposto do Selo ( ), o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento.
Por outro lado, a caducidade do direito de ação derivada da inércia do lesado por atos administrativos durante um prazo razoável, é generalizadamente justificada por razões de segurança jurídica, necessária para adequado funcionamento da administração pública, que também é um valor constitucional ínsito no princípio do Estado de Direito democrático e é reconhecida generalizadamente em matéria administrativa e tributária.
O prazo de impugnação de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais é perfeitamente razoável, sendo o prazo geral previsto a lei para a impugnação da generalidade dos atos administrativos com fundamentos geradores de vícios de anulabilidade (artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 102.º do CPPT).
Para além disso, neste caso, a pretensão da Requerente reconduz-se a impugnar, em 2020, atos de avaliação praticados até 2015, muito depois do prazo legal de impugnação de três meses e mesmo depois do decurso do prazo de três anos em que a lei admite a revisão oficiosa de atos de fixação da matéria tributável, com fundamento em injustiça grave ou notória (artigo 78.º, n.º 4 da LGT).
Num Estado de Direito, assente no primado da Lei (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), estando os tribunais arbitrais obrigados a decidir «de acordo com o direito constituído» (artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), o intérprete tem de acatar os ditames legislativos que não colidam qualquer norma de hierarquia superior, não podendo sobrepor ao entendimento legislativo manifestado na lei os critérios classificativos pessoais que ele próprio eventualmente adotaria se, em vez de ser intérprete, fosse o legislador.»
23.15. Pelo exposto, os alegados vícios dos atos de avaliação invocados pela Requerente, que não foram objeto de impugnação tempestiva autónoma, não podem ser fundamento de anulação da liquidação de IMI e de AIMI, pelo que improcede necessariamente pedido de pronúncia arbitral.
23.16. Por isso, a liquidação de IMI não pode ser anulada com fundamento nos alegados erros nas avaliações dos prédios.
IV.4.2.2. Questão da admissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação de valores patrimoniais
24.1. A possibilidade de revisão oficiosa de atos de avaliação de valores patrimoniais não está prevista no CIMI. Assim, só à face do regime geral da revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, se pode aventar a possibilidade de revisão.
24.2. Das várias situações de revisão oficiosa previstas no artigo 78.º da LGT, as dos n.ºs 1 e 6 reportam-se a atos de liquidação (como se infere do termo inicial do prazo de quatro anos previsto no n.º 1).
24.3. Apenas as situações previstas nos seus n.ºs 4 e 5 deste artigo 78.º se reportam a atos de fixação da matéria tributável, categoria a que se reconduzem os atos de fixação de valores patrimoniais. Por isso, só dentro do condicionalismo previsto nestes n.ºs 4 e 5 se pode aventar a possibilidade de revisão oficiosa.
24.4. No entanto, é manifesto que não foi observado pela Requerente o prazo de três anos fixado no n.º 4 deste artigo 78.º.
24.5. Na verdade, todas a liquidações de IMI se baseiam nos valores inscritos as respetivas matrizes em 31/12/2014, pelo que todos os atos de fixação de valores patrimoniais são anteriores a essa data.
24.6. Por isso, quando a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa, em 29/1/2021, há muito que havia expirado o prazo em que podia ser autorizada a revisão dos atos de fixação de valores patrimoniais.
24.7. Pelo exposto, por intempestividade está afastada esta possibilidade de revisão oficiosa.
V. DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e à anulação da liquidação de IMI e AIMI respeitante, respetivamente, aos períodos de tributação de 2018 e 2019 e de 2019 e 2020;
b) Julgar improcedentes os pedidos de reembolso da quantia de € 191.065,06 com as demais consequências legais;
c) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos referidos.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 191.065,06 (cento e noventa e um mil e sessenta e cinco euros e seis cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Notifique-se.
Lisboa, 25 de janeiro de 2022.
Os Árbitros,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
(Fernando Miranda Ferreira)
(Miguel Patrício)
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art.º. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.