SUMÁRIO
1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o direito comunitário, por violação do artigo 110.º do TFUE.
2. Consequentemente, encontram-se feridos de ilegalidade os atos tributários praticados ao abrigo da citada norma, devendo ser objeto de anulação parcial.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I. Relatório
1. A..., Ld.ª, NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ...-..., Póvoa de Varzim, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 29-04-2021, tem como objeto imediato a revogação de decisão de indeferimento expresso de pedido de revisão oficiosa e, como objeto mediato, a declaração de ilegalidade e anulação parcial dos atos de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) resultantes da apresentação das Declarações Aduaneiras de Veículos na Alfândega de Braga, n.ºs ..., de 31.1.2017, ..., de 21.2.207, ..., de 12.1.2018, ..., de 14.2.2018, ..., de 7.2.2018, ..., de 25,3,2019, ..., de 25.3.2019, ..., de 28.3.2019, ..., de 9.4.2019, ..., de 23.4.2019, ..., de 15.5.2019 e ..., de 26.2.2020, na importância total de € 46 551,10, sendo € 37 573,93 correspondente à componente cilindrada, € 28 085,61 à componente ambiental, e considerada uma redução de €19 108,44, conforme discriminação constante do seguinte quadro:
3. A Requerente pede também a devolução do imposto que considera indevidamente cobrado, no valor de € 15 071,67, acrescido dos correspondentes juros indemnizatório contados nos termos legais.
4. Como fundamento do pedido argumenta a Requerente, em síntese, que as liquidações impugnadas, efetuadas ao abrigo das normas dos artigos 7.º e 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos (CISV), enfermam de ilegalidade por, em conformidade com disposto no citado artigo 11.º, não ter sido considerada qualquer percentagem de redução do imposto relativamente à antiguidade do veículo e à componente ambiental, em violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
5. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)
6. Embora notificada nos termos e para efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida não se pronunciou quanto ao presente pedido de pronúncia arbitral.
7. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro.
8. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo, oportunamente, notificado as partes.
9. Devidamente notificadas dessa designação, as Partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
10. Pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral foi constituído em 12-07-2021.
11. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pela Requerente, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, considerando o disposto no artigo 130.º, do Código de Processo Civil, aplicável na jurisdição arbitral por remissão expressa do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT; decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a junção de alegações e produção de prova testemunhal, por desnecessárias.
II. Saneamento
12. O tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
13. A Requerente goza de personalidade e capacidade judiciárias, é legítima e encontra-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).
III. Matéria de facto
14. Com base nos elementos documentais que integram o presente processo, designadamente cópia da informação e despacho que recaíram sobre o pedido de revisão oficiosa que constitui o objeto imediato do presente pedido de pronúncia arbitral, destacam-se os seguintes elementos factuais que, não sendo contestados, se consideram inteiramente provados:
14.1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como objeto a comercialização de veículos automóveis usados;
14.2. No exercício dessa atividade introduziu no consumo em território nacional veículos automóveis provenientes de diversos Estados-Membros da União Europeia.
14.3. Com base nas DAV oportunamente apresentadas foram efetuadas as liquidações de ISV relativas aos veículos identificados na petição inicial e na informação constante do pedido de revisão oficiosa das correspondentes liquidações, conforme se sintetiza no quadro inserido no ponto 2 da presente decisão.
14.4. O imposto apurado nessas liquidações foi oportunamente pago, conforme se extrai da informação que fundamenta a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
14.5. Tempestivamente, a Requerente apresentou, junto da Alfândega de Braga, um pedido de revisão oficiosa das liquidações de ISV acima referidas, com base na 2ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, alegando, em suma, que as mesmas se encontram feridas de ilegalidade por terem sido determinadas com base em norma legal incompatível com o Direito da União por violar o princípio da não discriminação constante do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
14.6. O pedido foi indeferido, por despacho do Diretor da Alfândega de Braga, de 7.4.2021, comunicado à Requerente através do ofício n.º 1589, de 8.4.2021.
15. factos provados baseiam-se nos documentos juntos ao processo, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.
IV. Cumulação de pedidos
16. O presente pedido de pronúncia arbitral reporta-se a diversas liquidações de ISV. Todavia, atendendo à identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o tribunal considera que, face ao disposto nos artigos. 3.º do RJAT e 104.º do CPPT, nada obsta à cumulação de pedidos.
V. Matéria de direito
17. É estritamente de direito a questão que o Requerente suscita no seu pedido de pronúncia arbitral e prende-se com a alegada incompatibilidade com o direito comunitário de norma do Código do Imposto sobre Veículos (CISV) aplicada nas liquidações impugnadas.
Do mérito do pedido
18. O presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, relevante nas liquidações ora impugnadas, por violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia (TFUE).
19. Alega, assim, o Requerente que a referida norma, aplicável aos veículos portadores de matrículas comunitárias com vista a contemplar no cálculo do imposto devido a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo, mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.
20. Segundo a Requerente, a norma aplicada nas liquidações que contesta conduz a que seja cobrado sobre os veículos "importados" de outros Estados Membros da União Europeia um imposto determinado com base em valor superior ao valor real do veículo onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
21. Com a base na fundamentação acima sumariada, conclui o Requerente que devem ser parcialmente anulados os atos impugnados de forma a aplicar-se a redução prevista no artigo 11.º do CISV à componente ambiental com a consequente restituição das importâncias a mais indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondentes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
22. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das liquidações ora impugnadas vem fundamentada nos seguintes termos: “No que respeita à existência de erro, tendo as liquidações de ISV sido efetuadas de acordo com a disciplina legal aplicável, é posição da AT de que as mesmas não enfermam de qualquer vício, pois encontrando-se estas em total consonância com as normas legais aplicáveis à factualidade que lhe está subjacente, são as mesmas legais (logo, isentas de erro). No exercício do direito de audição prévia a requerente continua a sindicar na argumentação da existência de erro de direito consubstanciada na ilegalidade do art.11.º do CISV, que na sua opinião se encontra em violação do disposto no art. 110.º do TFUE, pelo que se reitera que a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do princípio da legalidade, não dispondo da prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos Tribunais), cujas decisões avulsas invocadas, não podem servir de fundamento do presente pedido de revisão oficiosa, para além da relação material controvertida que constitui o seu objeto de decisão, pois, só quanto a esta opera a força obrigatória geral, decorrente do seu trânsito em julgado material. As decisões arbitrais proferidas pelo CAAD e referenciadas pela requerente em sede de audição prévia não produzem efeitos para além da composição do litígio que constitui o seu objeto, isto é, a sua eficácia cinge-se ao processo e as respetivas partes, não se estendendo a processos diversos daqueles onde foram proferidas. Não têm, pois, força obrigatória geral que implique a sua aplicação a outras pretensões, distintas da apreciada, ainda que lhe sejam similares.”
23. Equacionada, nas suas linhas essenciais, a posição da AT expressa na fundamentação do indeferimento do pedido de revisão dos atos tributários que vêm impugnados, importa, antes de mais, uma breve incursão pela legislação relevante.
24. Salienta-se, desde logo, ser invocado, como fundamento da alegada ilegalidade das liquidações impugnadas, o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na medida em que a tributação em causa seria mais gravosa para os veículos introduzidos no consumo em Portugal provenientes de outros Estados Membros de União Europeia do que a que recai sobre veículos usados transacionados no mercado nacional.
25. Com efeito, estabelece aquele preceito i que "Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.
Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções."
26. A legislação nacional que, segundo o Requerente, viola a norma comunitária, são as normas constantes dos artigos 7.º e 11.º do CISV, em particular esta última, cuja redação, à data da ocorrência dos factos tributários e no que concerne a veículos ligeiros de passageiros, movidos a gasóleo, é a seguinte:
“Artigo 7.º
Taxas normais – automóveis
1 - A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:
a) Aos automóveis de passageiros;ii
b) (...)
TABELA A
Componente cilindrada
Escalão de Cilindrada
(centímetros cúbicos) Taxas por centímetros cúbicos
(Euros) Parcela a abater
(euros)
Até 1 000 0,99 767,50
Entre 1 001 e 1 250 1,07 769
Mais de 1 250 5,06 5 600,00
...
Componente ambiental
Veículos a Gasóleo iii
Escalão de C02
(gramas por quilómetro) Taxas
(euros) Parcela a abater
(euros)
Até 79 5,22 396,88
De 80 a 95 21,20 1 671,07
De 96 a 120 71,62 6 504,65
De 121 a 140 158,85 17 107,60
De 141 a 160 176,66 19 635,10
Mais de 160 242,65 30 235,96
Artigo 11.º
Taxas - veículos usados
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA Div
Tempo de uso Percentagem de redução
Até 1 ano 10
Mais de 1 a 2 anos 20
Mais de 2 a 3 anos 28
Mais de 3 a 4 anos 35
Mais de 4 a 5 anos 43
Mais de 5 a 6 anos 52
Mais de 6 a 7 anos 60
Mais de 7 a 8 anos 65
Mais de 8 a 9 anos 70
Mais de 9 a 10 anos 75
Mais de 10 anos 80
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.
3 - Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado dos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:iv
ISV=((V/VR) x Y) + C
em que:
ISV representa o montante do imposto a pagar;
V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;
VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;
Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;
C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.iv
4 - Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume-se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.v
27. Na situação em análise, a liquidação do ISV sobre viaturas provenientes de outros Estados Membros da União Europeia foi efetuada com observância da norma do artigo 11.º do CISV, sendo considerada a redução relativa ao número de anos de uso dos veículos na componente cilindrada. Na componente ambiental não foi considerada qualquer redução.
28. Está, assim, em causa determinar-se se a referida norma do artigo 11.º do CISV, na medida em que não considera qualquer redução de imposto em função do número de anos de uso do veículo na componente ambiental viola ou não o direito comunitário, em especial o já referido artigo 110.º do TFUE e, consequentemente, se as liquidações impugnadas se encontram, ou não, feridas de ilegalidade.
29. A questão da conformidade com o direito comunitário das normas nacionais relativas à tributação de veículos usados "importados" de outros Estados Membros tem vindo, de forma recorrente, a ser objeto de apreciação no Tribunal de Justiça da União Europeia.
30. Desde logo, ainda na vigência do revogado imposto automóvel, que precedeu o atual ISV, aquele Tribunal não teve dúvida em declarar que "A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional." (Ac. de 09-03-1995, proc. C-345/03, Nunes Tadeu).
31. Sobre a mesma matéria, e com referência aquele mesmo tributo, voltaria o Tribunal de Justiça a pronunciar-se, no sentido de que "A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional" (Ac. de 22-02-2001, proc. C-393/98, Gomes Valente).
32. É, pois, constante orientação do Tribunal de Justiça sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos "importados" de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia: "O artigo 95.°, primeiro parágrafo, do Tratado só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional" (Ac. de 20-09-2007, proc. C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica).
33. Abordando a consideração da componente ambiental no âmbito da tributação automóvel no direito húngaro, o Tribunal de Justiça viria a considerar que: "52. No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.
53. Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados Membros do que os produtos nacionais similares.
54. Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado. Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.
55. Ora, resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90.°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor." Com base neste considerandos, o Tribunal viria a declarar que "2 - O artigo 90.°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida – em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado Membro e – em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação." (Ac. de 05-10-2006, processos pensos C-290/05 e C-33/05, Akos Nadasdi).
34. Debruçando-se sobre o sistema nacional de tributação automóvel e já sobre a norma do artigo 11.º do CISV, na redação em vigor até à alteração introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, o Tribunal de Justiça viria a tecer as seguintes considerações:
"26 Para efeitos da aplicação do artigo 110.° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).
"27 No caso em apreço, o artigo 11.°, n.° 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
"28 Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
"29 Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.° 78).
"30 Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
"31 Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.° TFUE". Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que "1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE."(Ac. de 16-06-2016, proc. C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa).
35. No sentido de acolher a decisão do Tribunal de Justiça, foi, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, alterada a redação do citado artigo 11.º, passando a ser considerada a desvalorização do veículo a que a mesma se refere mas tão-somente quanto à componente cilindrada, ficando agora, de todo, excluída qualquer redução no tocante à componente ambiental.
36. É, pois, nesta exclusão que se centra a questão que opõe a Requerente à AT, entendendo aquela que a atual redação da norma da norma do artigo 11.º do CISV, na medida em que envolve a descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, relativamente aos comercializados em Portugal, proibida pelo artigo 110.º do TFUE.
37. Com efeito, tal como o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado, a tributação automóvel pode assentar em critérios objetivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados Membros do que os produtos nacionais similares.
38. Refira-se que a desconformidade do direito nacional com a norma comunitária conduziu a procedimento de infração movido pela Comissão Europeia contra o Estado Português, na sequência do qual o Tribunal de Justiça, em acórdão de 2.9.2021, proferido no Proc. C-169/20, se pronunciou nos seguintes termos:
“43 Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).
44 A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C 290/05 e C 333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).
45 Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).
46 Em contrapartida, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º TFUE.
47 Em seguida, a República Portuguesa alega, em substância, que a componente ambiental do imposto em causa constitui, na realidade, um imposto autónomo, distinto da componente deste imposto calculada em função da cilindrada do veículo em causa.
48 A este respeito, importa observar que, no artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, a componente ambiental é apresentada como um dos dois elementos utilizados para o cálculo de um imposto único e não como um imposto distinto. Além disso, e em qualquer caso, como resulta do n.º 46 do presente acórdão, tal imposto distinto continuaria a ser discriminatório em relação aos veículos usados provenientes de outro Estado Membro, uma vez que o referido imposto excederia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares comprados e registados no território nacional.
49 Por outro lado, importa salientar que, embora, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre Veículos, os contribuintes possam optar por um método alternativo de cálculo do imposto em causa, requerendo ao diretor da alfândega que recalcule o referido imposto com base na avaliação efetiva do veículo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um método alternativo de cálculo de um imposto não dispensa um Estado Membro da obrigação de respeitar os princípios fundamentais de uma norma essencial do Tratado FUE, nem autoriza esse Estado Membro a violar esse Tratado (v., por analogia, Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 34).
50 Por último, quanto à afirmação da República Portuguesa, avançada na tréplica, de que está em discussão na Assembleia da República portuguesa uma nova redação para o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, há que recordar que esse argumento é irrelevante, na medida em que a existência de um incumprimento deve, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, ser apreciada em função da situação do Estado Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, de modo que as alterações posteriormente ocorridas não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça (Acórdão de 21 de março de 2019, Comissão/Itália, C 498/17, EU:C:2019:243, n.º 29 e jurisprudência referida).
51 Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
39. Finalmente, pode referir-se que a jurisprudência arbitral se tem vindo a pronunciar, reiterada e unanimemente, no sentido constante da posição do Tribunal de Justiça acima transcrita, como se pode ver, das decisões proferidas nos processos nºs 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 466/2019-T, 498/2019-T, 660/2019-T, 776/2019-T, 833/2019-T, 872/2019-T, 13/2020-T, 34/2020-T, 52/2020-T, 75/2020-T, 98/2020-T, 113/2020-T, 117/2020-T, 117/2020-T; 158/2020-T, 201/2020-T, 209/2020-T, 246/2020-T, 293/2020-T, 309/2020-T, 329/2020-T e 347/2020-T., entre outros.
40. Acompanhando, sem reservas, a jurisprudência arbitral referida, e tendo em consideração a reiterada e constante doutrina do Tribunal de Justiça a que acima se faz referência, mormente a que expressamente se reporta à norma em causa, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que sujeita os veículos usados “importados” de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.
41. Consequentemente, os atos de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontram-se feridos de ilegalidade devendo ser objeto de anulação, Restringindo-se, porém, a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, e nela se centrando em exclusivo o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, devem esses atos ser parcialmente anulados.
Do direito a juros indemnizatórios
42. A par da anulação parcial dos atos de liquidação e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
43. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
44. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
45. No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, a Requerente efetuou o pagamento de importância manifestamente indevida.
46. Julgando-se, assim, a ilegalidade da norma em que se fundou a liquidação impugnada, reconhece-se ao Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art.43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).
VI. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, revogar a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e determinar a anulação parcial dos atos de liquidação impugnados, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da desconsideração da redução imposto correspondente à componente ambiental do ISV, no valor global de € 15 071,67 conforme discriminado no quadro constante do ponto 2 da presente decisão, com o consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondente juros indemnizatórios contados nos termos legais.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 15 071,67 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 918,00, a cargo da Requerida.
Lisboa, 7 de janeiro de 2022,
O árbitro,
Álvaro Caneira