DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A…, S.A., pessoa coletiva número …, com sede em …, MAIA, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 3.º, alínea a) do n.º1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei n.º10/2011, de 20 de Janeiro - Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), visando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de retenções na fonte de IRS e juros compensatórios com o n.º 2020 …, no montante global de € 4.228,20, relativas ao período de tributação de 2017.
2. Como fundamento do pedido, apresentado em 12-01-2021, a Requerente alega, em síntese, que:
2.1 Em cumprimento de Ordem de Serviço Externa com o número OI2019…, com despacho de 19 de fevereiro de 2019, a Requerente foi alvo de um procedimento inspetivo ao período de 2017;
2.2 Em resultado, foram efetuadas correções relativas a retenções na fonte de IRS no montante de € 3.775,00, relativas a importâncias que a AT considerou não respeitarem a efetivas compensações por deslocação em viatura própria;
2.3 A Requerente, apesar de discordar, efetuou o pagamento do imposto liquidado e juros compensatórios;
2.4 Reitera a Requerente que os valores pagos tiveram como primordial objetivo a deslocação de trabalhadores em ações comerciais junto de fornecedores e potenciais parceiros e que não se encontrava obrigada a conservar ou apresentar quaisquer comprovativos demonstrativos da efetividade das deslocações efetuadas;
2.5 Não obstante, a ora Requerente é um mero substituto tributário, pelo que só depois de apurado o montante do imposto a pagar pelos trabalhadores é que poderá existir uma situação de responsabilidade solidária pela Requerente, relativamente ao montante que vier a ser apurado, na medida em que não o for voluntariamente.
2.6 Acrescenta ainda existir um erro no modo de determinação do imposto a reter. Não poderia a AT, em 2020, na liquidação adicional sujeitar a retenção na fonte os rendimentos de trabalho dependente pagos e sujeitos a retenção em 2017 e já sujeitos a tributação a final, na esfera dos sujeitos passivos singulares.
3. Em resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, nos seguintes termos:
3.1 Alega, em primeiro lugar, a incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação adicional de retenção na fonte de IRS do ano de 2017, por não ter sido precedida do recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
3.2 Sem prescindir, refere também que a Requerente não se esforçou sequer por demonstrar em que medida as deslocações efetuadas em viatura própria ao serviço da entidade patronal “tiveram como primordial objetivo a deslocação dos trabalhadores em ações comerciais.”
3.3 Além de não ter explicitado as deslocações efetuadas, a Requerente também não apresentou os mapas de deslocações a que por lei estava obrigada, nos termos do artigo 23.º-A, n.º 1, al. h) do CIRC, ou sequer outro qualquer documento que comprovassem a existência da despesa.
3.4 Em conformidade, aqueles rendimentos deverão ser sujeitos a tributação em sede de IRS, nos termos da al. a) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS.
3.5 Quanto à responsabilidade da Requerente na qualidade de substituto tributário, resulta do n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS, a responsabilidade solidária pelos rendimentos sujeitos a retenção na fonte que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o que se verifica no caso em análise.
3.6 Por fim, a Requerida esclarece que, nos termos dos artigos 99.º-C, n.ºs 1 e 2, e 99.º-E, n.º 2, ambos do Código do IRS, no apuramento dos montantes sujeitos a IRS subsumiu-se todos os rendimentos da categoria A auferidos pelos colaboradores em cada um dos períodos em causa, a fim de se apurar a taxa de retenção na fonte correspondente e o consequente imposto devido mensalmente, deduzindo-se, após esta operação, o imposto anteriormente retido na fonte e já pago.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 12-01-2021, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 21-05-2021.
8. As partes, devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).
9. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, considerando que a “posição das partes estar plenamente definida nos Autos e suportada pelos meios de prova documental juntos”, “ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º2 e 29.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), por despacho de 25-06-2020, decidiu dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do referido Regime, bem como a apresentação das alegações escritas, sendo indicada como data limite para prolação da decisão arbitral o dia 21-12-2021.
II. Matéria de facto
10. Com relevância para a apreciação da questão suscitada, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base no acervo documental junto aos autos, mormente o processo administrativo e documentos que o integram, se consideram provados:
10.1 Em cumprimento de Ordem de Serviço Externa n.º OI2019…, com despacho de 19 de fevereiro de 2019, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva, de âmbito parcial, em sede de IVA e IRC ao ano de 2017;
10.2 No âmbito da inspeção, verificou-se que a sociedade registou na contabilidade, a título de “gastos com o pessoal – km” (subconta 62313) o valor de € 14.415,53, sem que existam mapas ou documentos comprovativos destes gastos;
10.3 Em resultado da inspeção, foram efetuadas correções relativas às retenções na fonte de IRS no montante de € 3.775,00 por ter entendido a inspeção tributária que os valores pagos a título de compensação por deslocações em viatura própria dos colaboradores constituem rendimentos sujeitos e não isentos de IRS, enquadráveis na categoria A.
10.4 Com base nos elementos declarados foi desencadeado o procedimento de liquidação de IRS n.º 2020 …, no valor de imposto de € 3. 775,00 €, e juros compensatórios de € 453,20;
10.5 A Requerente procedeu ao pagamento voluntário da quantia liquidada.
10.6 Em 12-01-2021, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
11. A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada, designadamente a constante do processo administrativo junto pela Requerida.
12. Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
III. Matéria de direito
1. Questão prévia – Da exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral
Como questão prévia, cabe apreciar a exceção arguida pela AT de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido de declaração dos atos de liquidação ora impugnados.
O n.º 1 do art.º 2.º do RJAT determina que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
O n.º 1 do artigo 4.º do mesmo RJAT remete a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que especifica designadamente o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
Nos termos da alínea a) do art.º 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais tem por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja confiada, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, com exceção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos respetivamente dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
Sustenta a AT, na sua Resposta, a apreciação pelo Tribunal Arbitral da pretensão da Requerente não é legalmente possível, por não ter sido precedida de reclamação prévia deduzida nos termos do n.º 1 do art.º 132º do CPPT, aplicável à impugnação das retenções na fonte, o que resultaria da parte final da alínea a) do art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Essa exceção é, no entanto, improcedente já que o ato impugnado não é qualquer retenção na fonte feita pelo contribuinte, mas o ato de liquidação adicional feito pela AT (e não pelo sujeito passivo), resultante do incumprimento por este do dever de retenção do imposto, com a consequente não entrega da prestação tributária que deveria ter sido retida, no âmbito da substituição tributária.
Ou seja, o Ato impugnado não é, assim, qualquer erro na retenção, mas antes, ao contrário, a liquidação proveniente da inexistência de qualquer retenção e consequente entrega do imposto retido, legalmente obrigatórias.
Conforme estabelece o artigo 34.º da LGT, a retenção na fonte é a entrega pecuniária efetuada por dedução nos rendimentos pagos ou postos à disposição pelo substituto tributário. Ocorre substituição quando a prestação tributária, por imposição legal, é exigida a pessoa diferente do contribuinte através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido (artigo 20.º da LGT).
Nesta circunstância, em caso de erro do substituto tributário, por entrega de imposto em quantidade superior à que reteve, é-lhe conferida legitimidade para impugnação da retenção na fonte efetuada (n.ºs 1 e 2 do artigo 132.º do CPPT). Esta impugnação depende de reclamação graciosa prévia, a contar no prazo de dois anos do termo do prazo nele referido (n.º 3).
Conforme refere o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, em anotação ao artigo 131.º do CPPT, aplicável mutatis mutandis aos artigos 132.º e 133.º, a reclamação prévia “justifica-se por a administração tributária não ter tido previamente possibilidade de tomar posição sobre a autoliquidação, efetuada pelo contribuinte por sua própria iniciativa.”
Não é, de todo, o caso. A impugnação da liquidação apresentada perante este tribunal resulta da liquidação feita pela AT, pelo não está sujeita ao regime especial do n.º 1 do art.º 132.º do CPPT, mas segue o regime geral de impugnação dos atos tributários, não se aplicando o disposto na Secção VIII do Capítulo II do Título III do CPPT.
Apenas assim aconteceria, caso a pretensão da Requerente fosse a apreciação da legalidade da retenção na fonte. Sucede que o objeto da pretensão da Requerente não é, no entanto, uma inexistente retenção, mas uma liquidação oficiosamente promovida pela AT.
Improcede, pelos fundamentos ora expressos, a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, pelo que cabe ao presente tribunal pronunciar-se sobre o pedido apresentado pela Requerente.
2. Da legalidade da exigibilidade da prestação tributária à Requerente
Cabe ainda, a título prévio, saber se o Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares (IRS), alegadamente indevidamente não retido, no caso dos autos, sobre os montantes pagos a título de “deslocações efetuadas em viatura própria ao serviço da entidade patronal”, poderá́ ser liquidado e o seu pagamento exigido diretamente à Requerente, nos termos do artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS.
Segundo a Requerente, a AT deveria ter, em relação a cada trabalhador, liquidado adicionalmente o IRS que este deveria pagar e, caso este não cumprisse com o pagamento no prazo legal, poderia ser exigido à Requerente, enquanto responsável solidária, o imposto devido, até ao limite das retenções que não tivessem sido efetuadas.
Em sentido contrário, argumenta a Requerida que o artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, na versão introduzida no ordenamento jurídico pela Lei do OE de 2007, determina que, no caso de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, deve o substituto assumir a responsabilidade solidária pelo imposto não retido.
A questão já foi objeto de análise designadamente nas Decisões Arbitrais correspondentes aos processos n.ºs 119/2015-T, 120/2015-T e 539/2017-T, no sentido defendido pela Requerente e, em sentido contrário, como defendido pela Requerida, no proc. n.º 118/2015-T.
Sobre esta matéria, já nos pronunciámos na decisão relativa ao proc. 616/2019-T, fundamento e sentido que seguiremos.
O artigo 21.º do CIRS estabelece que quando, através da substituição tributária se exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respetivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal, ressalvado o disposto no artigo 103.º.
No artigo 103.º, em vigor à data, determina-se a responsabilidade do substituído e do substituto em caso de anomalia no mecanismo de substituição tributária, em termos similares às regras gerais previstas no artigo 28.º da Lei Geral Tributária.
No n.º 1 estabelece-se que quando houver retenção sem entrega pelo substituto das quantias retidas, o substituto é exclusivamente responsável pelas quantias retidas e não entregas.
No n.º 2 prevê-se que, quando a retenção for efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária.
Nos restantes casos, determina o n.º 3 que o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente foram.
A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, aditou a este artigo um n.º 4 que estabelece que: tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.
Esta norma visou especificamente consagrar um regime de responsabilidade solidária relativamente aos pagamentos de rendimentos que constituam «remunerações» não contabilizados nem comunicados como explica o Relatório do Orçamento do Estado para 2007, em que se refere, na página 29, o seguinte:
Responsabilidade Solidária
Instituição de um regime de responsabilização solidaria do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (v.g. ajudas de custo).
Isto é, perante uma prática “fraudulenta” de não contabilização nem comunicação aos beneficiários das “remunerações”, o n.º 4 do artigo 103.º do CIRS estabelece como regra a responsabilidade solidária do substituto tributário e não a responsabilidade subsidiária como prevê no n.º 2 para as situações de retenção na fonte de rendimentos efetuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final. Agrava-se, intencionalmente, a responsabilidade do substituto como forma de combater comportamentos lesivos da receita tributária.
Esta exceção não retira ao substituído a responsabilidade do devedor originário, mas agrava-se a responsabilidade do substituto a quem cabia contabilizar aquelas remunerações e comunicá-las ao substituído que fica, nestes termos, solidariamente responsável até ao limite da retenção na fonte a que estava obrigado.
A principal divergência das partes resulta de a Requerente considerar que para que a responsabilidade solidária opere, o imposto tem de ser liquidado ao responsável originário (no caso, os trabalhadores) e a Requerida entender que o regime de solidariedade aqui definido, constitui o substituto autonomamente responsável pelo imposto não retido, dispensando-se a liquidação do imposto ao responsável principal.
Para a devida compreensão, há que distinguir os conceitos de devedor originário e responsabilidade solidária por dívidas de outrem.
Como se refere na Decisão Arbitral proferida no proc. n.º 120/2015-T, “A solidariedade entre devedores originários está prevista para as situações em que «os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa», em que, em regra, «todas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária» (artigo 21.º, n.º 1, da LGT).
Diferente desta é a situação do «responsável solidário», que é uma «pessoa alheia à constituição do vínculo tributário que, pelas suas particulares conexões com o originário devedor ou com o objeto do imposto, a lei considera garante do pagamento da dívida de imposto, numa posição de fiador legal».
Esta distinção aparece clara no artigo 22.º da LGT, referente à «Responsabilidade tributária» em que se refere que «para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas», o que evidencia que o responsável solidário (como o responsável subsidiário) não passa a ser considerado sujeito passivo originário.
É uma situação de responsabilidade solidária que se prevê̂ para o substituto no n.º 4 do artigo 103.ºdo CIRS, pois os pressupostos do facto tributário verificam-se em relação aos contribuintes de IRS que são os trabalhadores da Requerente.
Assim, como o artigo 21.º do CIRS, apesar de estabelecer a regra de que o substituto se considera «como devedor principal do imposto», ressalva o disposto no artigo 103.º, tem de se concluir que nestas situações enquadráveis no n.º 4, o substituto não é considerado como devedor principal do imposto não retido, mas sim responsável solidário, isto é, está numa situação de garante do pagamento da dívida de imposto, numa posição de fiador legal.
A questão que a Requerente coloca é a de saber se, nestas situações de responsabilidade solidária do substituto, lhe pode ser exigido o pagamento da dívida na fase de pagamento voluntario, designadamente sendo ele e não o devedor originário notificado para o pagamento voluntario da quantia liquidada.
A razão por que no n.º 2 do artigo 103.º do CIRS, para os casos de retenção «efetuada meramente a titulo de pagamento por conta de imposto devido a final», se afasta a regra do seu artigo 21.º de considerar o substituto como devedor principal do imposto, é a de que, à face do regime geral do IRS, na sequência dos pagamentos ocorridos em determinado ano, haverá́, no ano subsequente, que fazer um acerto de contas, com base na globalidade dos rendimentos de várias categorias sujeitos a englobamento, depois de feitos abatimentos, deduções previstos (artigo 22.º, n.º 1 do CIRS) e também no imposto retido. E nesta liquidação relativa à globalidade dos rendimentos de determinado ano, é o respetivo sujeito passivo de IRS quem é o devedor originário, se houver imposto a liquidar e na medida em que houver impostos a liquidar.
Por isso, nestes casos de retenção efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, só́ depois de efetuada a liquidação de IRS se pode saber se há ou não a pagar imposto pelo sujeito passivo e se pode saber se será́ necessário ou não responsabilizar o substituto pelo imposto não retido.
É a esta luz que há́ que determinar o regime de exigência aos responsáveis solidários do pagamento das dívidas resultantes de incumprimento do dever de retenção na fonte.
Nem a LGT nem o CPPT prevêem explicitamente esse regime, pelo que há́ que inferi-lo das normas que se reportam aos responsáveis solidários.
O artigo 9.º, n.º 2, do CPPT estabelece que «a legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal».
Desta norma conclui-se que pode ser exigido o pagamento da obrigação tributária aos responsáveis solidários mesmo sem o ser o devedor principal, como revela a expressão final «ainda que em conjunto com o devedor principal», que deixa entrever que a exigência pode ser feita ao responsável solidário, sem que o seja também ao devedor principal.
No entanto, se é certo que desta norma se conclui que a exigência da dívida ao responsável solidário pode ser efetuada sem que o seja ao devedor principal e é seguro que tal possibilidade existe no caso de pagamento coercivo, também é certo que esta norma não permite concluir que essa «exigência» pode ser feita também na fase de pagamento voluntario.
Há́, porém, outra norma que permite concluir que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, que é o n.º4 do artigo 22.º da LGT, que estabelece que «as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais».
Com efeito, a exigência de pagamento da dívida em relação ao responsável subsidiário é sempre feita através de «citação» no processo de execução fiscal [art. 23.º, n.ºs 1 e 4 da LGT e art. 191.º, n.º 3, alínea b), do CPPT], pelo que a referência a «notificação» contida naquele n.º 4 do art. 22.º só pode reportar-se aos responsáveis solidários, e só tem lugar antes da execução fiscal, pois o chamamento do responsável solidário ao processo de execução fiscal é também efetuada através de citação e não de notificação como se vê pelo referido art. 191.º, n.º 3, alínea b), do CPPT.
Aliás, esta possibilidade está em sintonia com a regra primacial da solidariedade passiva, enunciada no citado art. 512.º, n.º 1, do Código Civil, que é aplicável tanto à exigência da dívida quer por via judicial quer por via extrajudicial.
No entanto, relativamente à exigência da obrigação tributária, há que atender à especificidade das normas tributárias que prevêem a notificação da liquidação, pois elas pressupõem que a notificação da liquidação ao devedor originário, como se depreende das referências ao «contribuinte» e não também aos responsáveis solidários, que se fazem no art. 86.º, n.ºs 2 e 7, do CPPT e no art. 45.º, n.º1, da LGT.
Nos códigos tributários também se faz referência à notificação da liquidação aos «sujeitos passivos», utilizando-se esta expressão para aludir aos devedores originários, como se pode ver, designadamente, pelos arts. 2.ºe 110.ºdo CIRC, 13.º e 104.º do CIRS, 2.º, 91.ºe 92.º do CIVA, 4.º, 31.º, n.º4, e 43.ºdo CIMT. No mesmo sentido de a intervenção do responsável solidário não poder substituir, antes do processo de execução fiscal, a intervenção do devedor principal, apontam as normas que prevêem a possibilidade de intervenção dos «contribuintes» e não também dos responsáveis solidários no procedimento tributário, como é o caso das dos arts. 59.ºe 60.ºda LGT.
Por isso, é de concluir que tem de ser proporcionada sempre ao devedor principal a possibilidade de pagar voluntariamente a dívida tributária, na sequência da notificação da liquidação.
Assim, se é certo que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, antes de ser instaurada execução fiscal, também será de entender que a sua notificação deverá ser posterior à do devedor originário, só tendo lugar no caso de o pagamento voluntário por este não ser efetuado.
Em sentido idêntico, remetendo para a doutrina civilística, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015 distingue os dois tipos de solidariedade tributária:
“ Assim, e por um lado, temos a solidariedade que ocorre “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, denominada, pelo artigo 21.º da LGT, como “solidariedade passiva”, e que se poderá designar, igualmente, como “originária”, na medida em que existe uma ligação direta dos obrigados solidários, ao facto gerador da obrigação de imposto.
Por outro lado, deteta-se na LGT um outro tipo de solidariedade, que se poderá, à luz da sistemática desta, qualificar como “não originária”, e que se reporta à responsabilização de terceiros pela dívida tributária do sujeito passivo originário, conforme genericamente previsto no artigo 22.º/2 daquela Lei. Aqui, ao contrário da solidariedade originária a que se reporta o artigo 21.º, “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é – por definição – sujeito passivo originário.
Que este tipo de casos – do artigo 22.º/2 da LGT – é distintos do primeiro – a que alude o artigo 21.º da mesma Lei, não restarão dúvidas, já que nesta última situação, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, todos os obrigados serão sujeitos passivos originários do imposto, na medida em que, justamente, os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a todos eles, enquanto que na hipótese a que alude o artigo 22.º/2 da LGT, confessadamente, estão em causa terceiros, que não o sujeito passivo originário do imposto.
Ou seja: nos casos em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, como, por exemplo, na tributação do agregado familiar em sede de IRS, teremos uma situação de solidariedade tributária originária; nos casos em que “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, mas que, por força da lei, aquele é solidariamente responsável pela dívida tributária, e eventuais acessórios, do devedor originário – como acontece no caso dos gestores de bens ou direitos de não residentes – teremos uma situação de solidariedade tributária não originária.
(...) Aplicando aqui a doutrina que se vem de referir, concluir-se-á que nas situações que acima se designaram como de solidariedade originária, estaremos perante casos de verdadeira comunhão de fim, fundada na comunhão do próprio facto tributário, justificativa da aplicação directa dos preceitos civis relativos à solidariedade.
Já nas situações que acima se designaram como de solidariedade não-originária, o que verificará é a referida coincidência de fins, como, retornando ao exemplo dos gestores de bens ou direitos de não residentes, decorre da circunstância de o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo originário (não residente, no exemplo) exonerar o responsável solidário (gestor, no mesmo exemplo), enquanto que o cumprimento pelo responsável solidário (gestor), não exonerará o sujeito passivo originário da sua obrigação (que persistirá, agora, perante aquele, por via do direito de regresso), o que poderá justificar a aplicação, por via da analogia, das partes do regime geral da solidariedade, na medida em que tal se justifique.
Pode-se concluir, assim, face ao quadro legal positivo, com suficiente segurança, que as diferenças entre os dois tipos de solidariedade tributária detectada, relacionados essencialmente com as circunstâncias de:
- num deles (artigo 21.º da LGT) haver uma comunhão no facto tributário entre os devedores (que, como tal, assumirão a qualidade de sujeitos passivos originários do imposto), com a consequente existência de um nexo relacional entre eles, em termos de o cumprimento da obrigação tributária por qualquer deles, gerar o direito de regresso do cumpridor sobre os restantes;
- enquanto noutro (artigo 22.º/2 da LGT), o facto tributário se verifica apenas quanto a um devedor (ou, academicamente, a um grupo de devedores), que se assume como sujeito passivo originário, pelo que, cumprindo este a obrigação tributária, nenhum direito lhe caberá contra os restantes, que, por seu lado, cumprindo, poderão exigir do(s) devedore(s) originário(s) o pagamento de quanto lhes foi imposto pagar.
Deste modo, no caso concreto o ato de liquidação e consequente notificação, deveriam ter sido dirigidos contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. Não estando em causa uma situação abrangida pelo artigo 21.º, n. º1, da LGT, inexiste, na esfera deste, qualquer facto tributário, pelo que a liquidação terá́ de ser feita na esfera do sujeito passivo originário.
Assim, retomando o que ficou dito na Decisão Arbitral proferida no processo n. º119/2015-T “... na presente situação não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, que é aquilo que a lei refere, e não já pelas importâncias não retidas.”
“Ora, o imposto, in casu, só é definido (só se torna líquido, certo e exigível) após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, aos respetivos sujeitos passivos. Só aí é que vai ser determinado, nos termos legais, o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário, e só aí, justamente, será́ determinável a extensão da responsabilidade solidária do substituto relapso, confrontando o valor dos montantes cuja retenção foi ilegalmente omitida, com o valor do imposto devido, havendo-o, restringindo-se a responsabilidade em questão, ao menor dos dois valores”.
“Ou seja: entende-se que a responsabilidade decorrente da norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, devidamente interpretada no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido (e não pelas importâncias não retidas), daí decorrendo que se torna necessário, em primeiro lugar, determinar o quantum daquele, e só depois o valor da retenção devida.”
“Assim, e concretizando, se estiver em falta uma retenção de 100, e, liquidado o imposto nos termos do CIRS, resultar, por exemplo:
- a existência de um imposto a pagar de 120, o substituto será́ solidariamente responsável por 100;
- a existência de um imposto a pagar de 60, o substituto será́ solidariamente responsável por 60, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100;
- a inexistência de imposto a pagar (ou mesmo um reembolso), a responsabilidade solidária do substituto será́ nula, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100”.
“A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiaria (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e especifica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excecional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objeto daquela mesma responsabilidade tributária”.
“Ou seja: o artigo 103.º/4 do CIRS, em questão, altera o tipo de responsabilidade tributária, mas não o seu objeto, que não deixa de ser o imposto, para passar a ser a importância não retida”.
Em suma, no caso em apreço, a Requerente seria solidariamente responsável e demandada em primeira linha, mas apenas pelas dívidas de imposto de cada um dos trabalhadores, que ilegalmente não reteve. As importâncias não retidas servem unicamente como limite àquela responsabilidade.
Poderia, por isso, a Requerida demandar a Requerente, até ao limite do montante de imposto que deveria ter retido, depois de previamente determinado o quantum da sua responsabilidade, através da liquidação do imposto devido pelos sujeitos passivos originários, o que não ocorreu.
Em conclusão, a interpretação adequada do artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, tendo em conta os elementos hermenêuticos, sistemático e teleológico, vai no sentido propugnado pelas decisões arbitrais mencionadas que ora subscrevemos.
Deste modo, assiste razão à Requerente ao defender que inexiste facto tributário, quanto à liquidação de IRS, pois, o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário pelos devedores principais dos montantes de IRS não retidos possam ser exigido a cada um destes (e não pelo montante que devia ser retido, que é apenas o limite máximo da responsabilidade do responsável solidário, a nível do imposto), situação essa que não ocorreu.
Termos em que se justifica a anulação da liquidação de IRS, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário.
Procedendo o pedido de pronúncia quanto à liquidação de IRS, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente.
c) Do direito a juros indemnizatórios
A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, o Requerente solicitou ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do art.º 43.º da LGT.
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, a Requerente efetuou o pagamento de importâncias manifestamente indevidas.
Resulta, também, dos autos, que a ilegalidade do ato de liquidação objeto do presente processo é diretamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal, padecendo de errada aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Reconhece-se, assim, à Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre os montantes indevidamente cobrados, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, artigo 43.º, n.º 1 e CPPT, artigo 61.º).
V. Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, nesta sequência,
b) Anular a liquidação adicional em sede de IRS com o número 2020 …, no valor de imposto de € 3. 775,00 €, e juros compensatórios de € 453,20, no valor total de € 4.228,20.
c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à Requerente dos valores pagos indevidamente e pagamento de juros indemnizatórios.
Valor do processo:
Fixa-se o valor da causa em € 4.228,20 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerida (AT).
Lisboa, 20 de dezembro de 2021
O Árbitro
(Amândio Silva)