DECISÃO ARBITRAL
a. RELATÓRIO
A..., Lda, número de identificação fiscal ..., com sede na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 2, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”) com o n.º 2019..., relativo ao ano de 2015 e da respetiva liquidação do IRC a título de juros compensatórios, dos quais resultou um montante global a pagar de € 1.147,20.
De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 21 de maio de 2021, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
Por despacho datado de 02.11.2021, o Tribunal, usando da faculdade prevista no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, prorrogou o prazo para emissão da decisão por dois meses.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 5 de julho de 2021.
1. A Requerente alega, em síntese, que:
a) É uma sociedade comercial por quotas de direito português que tem por objeto social a comercialização, exportação, importação, representação e fabrico de calçado, vestuário, marroquinaria, acessórios, cd’s, restauração e outras atividades hoteleiras similares (CAE 47721 – Comércio a retalho de calçado em estabelecimentos especializados).
b) Em 2019, a Requerente foi objeto de uma ação inspetiva, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., de natureza externa e âmbito geral, que incidiu sobre o exercício de 2015 e da qual resultou uma correção à matéria tributável de IRC, no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
c) Em resultado da mencionada ação inspetiva, a AT emitiu o ato de liquidação de IRC n.º 2019..., contestado pela Requerente por via da apresentação da competente reclamação graciosa, a qual foi indeferida pela AT.
d) A correção que esteve na base da liquidação adicional de IRC refere-se a perdas por imparidade em inventários contabilizadas pela Requerente, tendo os Serviços de Inspeção Tributária sustentado que “são aceites nos termos do artigo 28.º, n.º 1 do CIRC e sempre que estejam reunidas as condições definidas neste artigo”, concluindo que “no caso da desvalorização de mercadorias contabilizada pela A... não foi apresentado qualquer documento que comprove que a emprese efetuou o referido abate, nos termos e condições já referidos, pelo que os € 25.000,00, registados na conta 65222 – perdas por imparidade de mercadorias são desconsiderados, para efeitos de apuramento do lucro tributável”.
e) A Requerente referiu que a perda por imparidade em questão se deveu um acidente ocorrido na loja sita no Centro Comercial B... nomeadamente de uma explosão de um extintor, do qual resultou a deterioração total do valor das mercadorias – essencialmente calçado – conforme se podia comprovar através da participação apresentada à Seguradora C... e junta ao processo administrativo.
f) Referiu ainda a Requerente que, o incêndio determinou a destruição total dos inventários (e não de uma perda de valor dos mesmos) motivo pelo qual a perda por imparidade não foi corretamente contabilizada.
g) Não obstante a Requerente assumir que a perda em questão deveria ter sido contabilisticamente registada como uma perda (definitiva) em inventários e não como uma desvalorização dos mesmos, entende a Requerente não existir nenhum dispositivo legal que impeça que a destruição acidental de inventários seja fiscalmente dedutível, não podendo o comerciante sofrer o prejuízo económico daí inerente e, ainda, ser onerado com o imposto sobre esse mesmo prejuízo. Tal situação violaria o princípio da tributação sobre o rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
h) Mais refere que os itens inutilizados estão discriminados na conta 39.9.2 do balancete, motivo pelo qual a Requerente não entende quais os documentos que, no entender dos Serviços de Inspeção Tributária, deveriam discriminar os itens para efeitos de se poder aferir o gasto.
i) Por fim, refere ainda a Requerente que não se pode inferir a (in)dedutibilidade do gasto pelo facto de o risco que esteve na base da contabilização do gasto não se encontrar coberto por seguro, uma vez que não existe no CIRC nenhum dispositivo legal que permita sustentar tal entendimento.
j) Considerando o exposto, a Requerente entende que não existe suporte legal para a correção efetuada pela AT, o que deverá determinar a anulação dos atos tributários de IRC referentes ao exercício de 2015.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT que, na “Resposta” apresentada, veio invocar o seguinte:
a) A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva, ao abrigo da ordem de serviço OI2018..., da qual resultou a seguinte correção à matéria coletável de IRC: perdas por imparidades em inventários - € 25.000,00.
b) A Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual foi indeferida, por não ter sido apresentado qualquer documento que comprovasse a desvalorização das mercadorias nos termos e condições do n.º 1 do artigo 28.º do CIRC.
c) Na resposta apresentada, em sede arbitral, a AT veio reforçar este argumento sublinhando que os Serviços de Inspeção Tributária indicam que a Requerente não apresentou qualquer documento para comprovar a perda, e só em sede do exercício do direito de audição é que juntou a participação do sinistro à companhia de seguros.
d) Refere ainda a AT que da análise ao documento apresentado à seguradora não existe qualquer identificação dos bens danificados (calçado) sendo, pois, difícil de perceber como foi determinada a perda para efeitos fiscais.
e) Segundo entende a AT é essencial partir das normas contabilísticas que regem a classificação e mensuração de inventários – NCRF 18 – e o seu enquadramento em sede de IRC para estarmos em condições de avaliar as perdas reconhecidas pela Requerente.
f) Nos termos do parágrafo 9 da NCRF 18, os inventários devem ser mensurados pelo custo ou valor realizável líquido, consoante o que for mais baixo. O n.º 28 da mesma norma contabilística refere que o custo dos inventários pode não ser recuperável se esses inventários estiverem danificados, se se tornarem total ou parcialmente obsoletos ou se os seus preços de venda tiverem diminuído, referindo ainda o n.º 29 que os inventários são geralmente reduzidos para o seu valor realizável líquido item a item.
g) Adiantando, ainda, que o reconhecimento como gasto deve observar o disposto no parágrafo 34 da mesma NCRF, isto é, a quantia escriturada deve ser reconhecida como um gasto do período em que o respetivo rédito seja reconhecido e qualquer ajustamento dos inventários e todas as perdas devem ser reconhecidas como um gasto do período em que o ajustamento ou perda ocorra.
h) No entender da AT, o gasto em questão deveria ter sido registado na conta 6841 Perdas em inventários – Sinistros, refletindo-se, para efeitos fiscais, numa componente negativa do lucro nos termos do n.º 1, do artigo 23.º do CIRC, impondo-se analisar a fundamentação apresentada pela Requerente para apurar a dedutibilidade do gasto.
i) A este propósito, a AT invoca a informação 271/2008, de 26 de fevereiro da Direção de Serviços do IRC que aqui transcrevemos parcialmente: “5. As componentes negativas do lucro encontram-se estabelecidas nos artigos 23.º e 24.º do CIRC. 6. A perda por quebra de existências, apesar de não se encontrar expressamente prevista nestes dois artigos, reflete-se no lucro sendo uma componente negativa, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, em virtude de o elenco dos custos nele previstos não ser taxativo, face ao advérbio nomeadamente e de no Plano Oficial de Contabilidade se encontrar previsto o registo de quebras e de quaisquer outras variações nas contas de existências não derivadas de compras, vendas ou consumos, para efeitos de apuramento do resultado liquido. 12. (…) Para as quebras identificadas deve ser elaborado documento interno donde conste todos os elementos identificativos do produto (descrição, código, quantidade, motivo da quebra e destino do produto), assinado pelo responsável da secção e pelo gerente da loja. Este documento interno deve servir de suporte à regularização do sistema de stocks, devendo ser emitida por este sistema uma listagem de regularização de stocks que suportará os lançamentos contabilísticos de quebras de existências. Para as quebras não identificadas deve ser elaborado documento de inventário com as diferenças de stock, ser assinado pelos analistas de inventário e pelo gerente da loja. Este documento deverá servir de suporte à regularização do sistema de gestão stocks bem como servir como documento de suporte aos lançamentos contabilísticos de quebras de existências. Um sistema organizativo com os elementos indicados deverá dispensar a elaboração de autos de destruição e de abate.
j) Com base nas normas contabilísticas identificadas e na posição dos serviços do IRC, entende a AT que a Requerente deveria estar na posse de um documento de inventário com a identificação dos bens (calçado) que foram inutilizados na sequência do sinistro, valorizados ao custo de aquisição, como suporte ao lançamento contabilístico.
k) Importaria, pois, na ótica da AT, que a Requerente identificasse e valorizasse os produtos, o motivo da quebra e o destino dado aos mesmos.
l) Tendo a AT concluído que as provas juntas pela Requerente não são suficientes para comprovar, em termos razoáveis, as perdas registadas na contabilidade, com base em critérios objetivos, lógicos e racionais, o que se traduz na não aceitação da dedutibilidade fiscal do gasto em questão.
3. Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2 do RJAT) foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, por despacho de 22.09.2021.
4. A Requerente não apresentou alegações finais.
5. A Requerida apresentou alegações finais escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente exposta na “Resposta” apresentada.
6. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído. nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1 do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legitimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo não enferma de nulidades. Não há, assim, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo isto, cumpre decidir do mérito do pedido.
b. FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
A Requerente é uma sociedade comercial por quotas de direito português que tem por objeto social a comercialização, exportação, importação, representação e fabrico de calçado, vestuário, marroquinaria, acessórios, cd’s, restauração e outras atividades hoteleiras similares (com o CAE 47721 – Comércio a retalho de calçado em estabelecimentos especializados), conforme consta da certidão permanente e do relatório de inspeção tributária.
No ano de 2019, a Requerente foi objeto de uma ação inspetiva - ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018... - de natureza externa e âmbito geral, que incidiu sobre o exercício de 2015, da qual resultou uma correção à matéria tributável da Requerente no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
Em resultado do exposto, a AT emitiu o ato de liquidação de IRC n.º 2019..., no montante de € 1.147,20 (mil cento e quarenta e sete euros e vinte cêntimos).
Por não se conformar com a legalidade do ato de liquidação acima referido, a Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual foi objeto de indeferimento por parte da AT por meio de despacho proferido a 29.10.2020 pelo Chefe de Divisão de Direção de Finanças de Lisboa. Posteriormente, a Requerente deduziu o presente pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRC.
Na base da correção à matéria tributável da Requerente está a contabilização de uma perda por imparidade em inventários (conta #SNC 65222). Não tendo a Requerente apresentado qualquer documento que comprovasse o abate das mercadorias, nos termos e condições do artigo 28.º do CIRC, o gasto foi desconsiderado para efeitos de apuramento do seu lucro tributável.
A referida perda deveu-se a um acidente ocorrido na loja do Centro Comercial B... (explosão de um extintor) do qual resultou a inutilização de parte das mercadorias da Requerente.
O incêndio foi participado à companhia de seguros C..., a qual não atribuiu à Requerente qualquer compensação pelos danos sofridos em virtude de os mesmos não estarem cobertos pela apólice de seguro
Junto ao processo administrativo está um balancete analítico, disponibilizado pela Requerente, referente ao mês de dezembro de 2015, no qual se pode analisar os movimentos das contas SNC #31 Compras e #32 Mercadorias (até #326).
A.2. Factos dados como não provados
Não resultou provado o montante da perda em inventários, registada na contabilidade pela Requerente em € 25.000,00.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/131, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
c. DO DIREITO
7. O presente litígio tem como questão principal saber se as perdas registadas em inventários no valor de €25.000, decorrentes da explosão de um extintor na loja da Requerente, são dedutíveis à luz do disposto no artigo 23.º do CIRC e, em caso positivo, qual a documentação que a Requerente deveria ter para suportar o referido gasto, e/ou a prova que deveria ter sido produzida que permitisse ao Tribunal avaliar a efetividade e montante do gasto.
8. O n.º 2, do artigo 3.º do CIRC esclarece que o lucro tributável das entidades que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola é apurado com base na diferença entre o ativo líquido no fim e no início do período de tributação.
9. Adicionalmente o n.º 1, do artigo 17.º do CIRC diz-nos que o lucro tributável das pessoas coletivas é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período, e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do Código.
10. O referido dispositivo enuncia o princípio geral de tributação das pessoas coletivas segundo o qual o lucro tributável é apurado com base no resultado contabilístico ainda que este último fique sujeito a algumas correções, impostas por interesses fiscais. Trata-se do modelo de dependência parcial do direito fiscal face ao direito contabilístico .
11. Um dos campos onde essas correções ganham particular relevância é a dos gastos.
12. O n.º 1 do artigo 23.º do CIRC estabelece o princípio geral, nesta matéria, segundo o qual para a determinação do lucro tributável são, em geral, dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC. Seguindo-se, no n.º 2, uma listagem exemplificativa de gastos e perdas que se consideram abrangidos pelo referido conceito de dedutibilidade e, no n.º 3, uma exigência formal quanto à comprovação documental dos gastos.
13. Adicionalmente, o artigo 23.º-A do CIRC identifica aqueles gastos que, mesmo quando considerados encargos do período de tributação, não são considerados para efeitos fiscais.
14. No caso concreto, e conforme indicado acima, está em causa a dedutibilidade de uma perda (definitiva) em inventários, fruto da explosão de um extintor na loja da Requerente.
15. Não é o incorreto enquadramento contabilístico do gasto pela Requerente – na conta SNC #652 em vez da consta SNC #6841 – que vai determinar a sua não dedutibilidade fiscal, caso se encontrem preenchidos os requisitos legais do artigo 23.º do CIRC. Com efeito, a Administração fiscal tem o poder-dever de, no seu juízo de avaliadora, procurar a verdade material do caso, sugerindo a retificação de erros dos contribuintes que possam obstar à sua tributação com base no lucro real.
16. Considerando que a Requerente tem como objeto social (entre outros) a comercialização, exportação, importação, representação e fabrico de calçado e que a mercadoria danificada, na sequência da explosão, se trata de calçado, parece-nos que não resultam dúvidas que a referida perda se encontra, em abstrato, dentro do escopo comercial da Requerente. Assim, podemos dizer que, em abstrato, a referida perda é suscetível de ser incorrida para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC pelo que não pode, com base neste fundamento, ser-lhe negada a dedutibilidade fiscal.
17. Veremos, no entanto, que a indedutibilidade da perda resulta, não da sua inaptidão abstrata (para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC), nem tão pouco da conta em que foi contabilizada, mas antes de uma total ausência de suporte documental, ou prova que a substitua, que permita ao Tribunal confirmar e quantificar o montante da perda incorrida.
18. Para Vítor António Manuel Faveiro “se a existência de mercadorias é havida como um valor positivo porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade que foi indispensável suportar para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora”. Também este tem sido o entendimento da Jurisprudência. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no âmbito do processo n.º 101/06.1BESN: “A existência de mercadorias deve ser entendida como um valor positivo porquanto se destinam à realização de proveitos no âmbito da atividade. Logo, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade indispensável para suportar a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora, logo subsumível no artigo 23.º do CIRC”. No mesmo sentido também o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0943/10.
19. Conforme indicado, o Relatório de Inspeção indica a falta de suporte documental da perda como fundamento para as correções impostas ao lucro tributável da Requerente.
20. Sustenta a Requerida, em sede de inspeção, que a Requerente não evidencia qualquer documento que comprove a dedutibilidade das perdas à luz do artigo 28.º do CIRC. Mais sustenta que, da participação feita à companhia de seguros C..., não constam discriminados os itens em concreto, motivo pelo qual não se pode aferir o gasto.
21. Já em sede de “Resposta”, no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerida vem pugnar pela não dedutibilidade da perda à luz do disposto no artigo 23.º do CIRC, suportando-se para o efeito, nas Normas de Contabilidade e de Relato Financeiro – em, concreto na norma 18 (inventários) e, ainda, numa instrução de Serviço da Direção de Serviços de IRC segundo a qual a quebra de existências deverá estar sustentada por um documento interno que contenha todos os elementos identificativos do produto e que seja assinado pela responsável de loja.
22. Neste contexto, impõe-se ao Tribunal Arbitral responder às duas questões seguintes: (I) se assiste razão à Requerida nos argumentos por si invocados para sustentar a correção efetuada ao lucro tributável da Requerente e (II) se, no caso, se encontram, ou não, preenchidos os requisitos legais de que depende a aceitação fiscal da perda.
23. Em sede de relatório final de inspeção, a AT mantem a posição inicialmente adotada no sentido de enquadrar a perda da Requerente no âmbito das perdas por imparidades em inventários, o que manifestamente não é o caso. A este propósito limitar-nos-emos a referir que os parágrafos invocados da NCFR18 não se aplicam ao caso concreto uma vez que aqueles preveem regras de mensuração para os casos de diminuição do valor realizável líquido dos inventários, o que não é manifestamente o caso (vejam-se os parágrafos 9, 28 e 29 da NCRF 18 citados pela Requerida).
24. Mas será que o exposto, nos permitir concluir pela aceitação do gasto à luz dos requisitos previstos no artigo 23.º do CIRC, artigo e critério a que o Tribunal se considera vinculado, no seu prudente juízo, a aplicar ao caso?
25. Conforme referido, o n.º 3, do artigo 23.º do CIRC estabelece uma exigência de comprovação documental dos gastos. Segundo este normativo, os gastos dedutíveis devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados.
26. Adicionalmente, o n.º 1 do artigo 123.º do CIRC prevê a obrigatoriedade de as sociedades comerciais disporem de contabilidade organizada e o n.º 2 estabelece a necessidade de todos os lançamentos contabilísticos estarem devidamente apoiados em documentos justificados, suscetíveis de ser exibidos sempre que solicitados.
Decreto-Lei n.º 158/2009
Decreto-Lei n.º 158/2009
27. O Decreto-Lei 158/2009 de 13 de julho, que aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (posteriormente alterado por via do Decreto-Lei n.º 98/2015, de 2 de junho) estabelece a obrigatoriedade de adoção do sistema de inventário permanente para as entidades a que seja aplicável o SNC ou as normas internacionais de contabilidade. Nos termos do sistema de inventário permanente, as entidades estão obrigadas a identificar os bens quanto à sua natureza, quantidade e custos unitários e globais, por forma a permitir a verificação, a todo o momento, da correspondência entre as contagens físicas e os respetivos registos contabilísticos e a proceder às contagens físicas dos inventários, pelo menos, uma vez em cada período. De fora desta obrigação ficam as entidades que não ultrapassem determinados limites legalmente previstos.
28. No caso concreto, a Requerente contabilizou uma perda no montante de € 25.000,00 sem que tenha apresentado qualquer documento, ou prova, que suporte o valor registado na contabilidade.
29. Se é certo que não dispomos de informação suficiente que nos permita concluir no sentido saber se a Requerente estava, ou não, obrigada, a dispor de um sistema de inventário permanente, não é menos verdade que tal situação não desonera a Requerente de ter uma contabilidade devidamente organizada. O que se traduzia na necessidade de dispor de um sistema de inventário (ou qualquer outro sistema de suporte interno) que lhe permitisse fazer o controlo das suas mercadorias e que suportasse o montante inscrito na contabilidade, nomeadamente para efeitos de comprovar o montante da perda em questão.
30. Não compreende o Tribunal Arbitral o motivo pelo qual a Requerente não só não disponibilizou tais documentos à AT como não juntou (ou sequer referiu) os mesmos em sede de pedido de pronúncia arbitral. Sendo certo que, em momento algum, a Requerente invocou a destruição dos seus documentos contabilísticos na sequência da explosão. Pelo que assumimos a boa manutenção dos mesmos.
31. Saliente-se, aliás, que a Requerente remete para o balancete, alegando que os inventários estão discriminados na conta 39.9.2 (cfr. artigo 29.º do pedido de pronúncia arbitral, que remete para o Relatório) sem que o Tribunal Arbitral tenha conseguido confirmar a informação alegada. Com efeito, do processo administrativo não consta nenhum balancete da conta 39 que permita confirmar o alegado, nem tão pouco a Requerente juntou o mesmo em sede de pedido de pronúncia arbitral. E mesmo que se esteja a referir à conta #32.9 (“perdas por imparidade”, referida na pag 10 do Relatório Final de Inspeção, a mesma apenas refere perdas por imparidade num valor global de €25.000, sem qualquer discriminação, ou suporte documental do lançamento contabilístico.
32. Por outro lado, a Requerente também não indicou nenhuma testemunha que pudesse, na ausência de prova documental, clarificar o Tribunal quanto ao montante da perda incorrida.
33. É que na ausência de qualquer prova produzida neste sentido, o Tribunal Arbitral não está em condições de confirmar (pelo menos) os três pontos seguintes: (i) qual o critério utilizado pela Requerente para efeitos de valorização/contabilização da perda resultante da destruição do calçado, e (ii) se da explosão resultou a inutilização de calçado cujo valor é de € 25.000,00, conforme sustenta a Requerente; até porque (iii) não sabe, nem tem como saber, que calçado ou outras mercadorias foram destruídas.
34. A falta de documentação, ou de prova, não permite à AT, nem a qualquer Tribunal, verificar o procedimento adotado pela Requerente para efeitos de valorização das mercadorias destruídas no acidente (os €25,000.00 correspondem a quantos pares de sapatos danificados? 100? 200? 1000?)
35. Importa notar que, de acordo com o disposto no artigo 74.º n.º 1 da Lei Geral Tributária, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos recai sobre aquele que os invoca.
36. No caso, tendo a AT questionado a dedutibilidade da perda contabilizada, caberia à Requerente esclarecer e comprovar documentalmente, os factos que suportam o direito à dedução de que se arroga, provas, em sentido amplo, que apenas ela poderia dispor.
37. Neste sentido, veja a Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo 236/2014-T, a qual tinha como árbitro-presidente o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, e na qual se refere: “em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 74.º da LGT, cabe à Requerente a demonstração das bases e situações fácticas em que se sustentam os ajustamentos, desreconhecimentos e regularizações que, por ela, foram promovidos e cuja relevância e consistência tributárias afirma, recaindo, pois, sobre a Requerente o ónus de esclarecer, comprovar e documentar as operações em causa e sua justificação.”
38. E ainda o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01632/13 de 22.01.2014 que esclarece que ”tendo sido questionada a indispensabilidade dos gastos, nos termos do art. 23º do CIRC, não pode considerar-se dispensável a prova testemunhal arrolada com vista a fazer a prova de factos alegados na petição e referentes à demonstração daquele requisito, mormente se acaba por concluir-se que o contribuinte não demonstrou (como era seu ónus) nem a efectividade nem a indispensabilidade daqueles gastos.”
39. E, por fim, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que decidiu que “não provando a impugnante que o incêndio ocorrido num armazém seu inutilizou determinada quantidade de material inventariado em existências, fica logo comprometida a possibilidade da sua dedução como perda fiscal do exercício em que ocorreu o evento.”
40. Considerando todo o exposto, e na ausência de qualquer meio de prova apresentado suscetível de demonstrar e suportar os seus registos contabilísticos, entendemos que não se encontram verificados, no caso, os requisitos formais de que depende a dedutibilidade das perdas incorridas pela Requerente, previstos no n.º 3, do artigo 23.º do CIRC.
41. Por último, e em face do decidido pelo Tribunal Arbitral quanto à insusceptibilidade de dedução da perda incorrida pela Requerente por falta de documentação e de cumprimento do ónus probatório, entendemos que fica prejudicada a análise da violação do princípio da tributação sobre o rendimento real, consagrado no n.º 2, do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa invocada pela Requerente.
d. DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC n.º 2019..., relativa ao ano de 2015, no montante de € 1.147,20 e, em consequência, condenar a Requerente nas custas do processo.
e. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 1.147,20 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
f. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de janeiro de 2022
O Árbitro,
(João Taborda da Gama)