Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 374/2020-T
Data da decisão: 2021-12-23  IVA  
Valor do pedido: € 61.014,18
Tema: IVA – Formalidade não essencial; Métodos indirectos
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SUMÁRIO:

I – A recusa ilícita de permitir a assistência de advogado a diligência procedimental, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar, ou outra, dos envolvidos, apenas é susceptível de gerar a invalidade do acto final, caso se demonstre que a formalidade preterida é abstractamente susceptível de influir no conteúdo daquele.

II – Demonstrados os pressupostos que legitimam o recurso à avaliação da matéria tributável por métodos indirectos, cabe ao contribuinte demonstrar que é possível a determinação da matéria colectável por métodos directos.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 17 de Julho de 2020, A… Lda, NIPC …, com sede na Rua … Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IVA n.ºs 2020……….., 2020……….., 2020………., 2020……….., 2020……….., 2020………., 2020……….., 2020……….., 2020……….., 2020…………….., 2020…………., 2020…………, 2020………….., e das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2020……………, 2020…….., 2020………………….., 2020………………., 2020…………, 2020………….., 2020…………., 2020……………., 2020……….., 2020………….., 2020………….., 2020…………….., relativas aos períodos de 2016 e 2017, no valor global de €61.014,18.
  2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
  1. preterição de uma formalidade essencial decorrente da violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1 do CPPT, 66.º, n.º 3 do EOA e 20.º, n.º 2 da CRP;
  2. vício de violação de lei em virtude de não estarem reunidos os pressupostos para a aplicação de métodos indirectos.

 

  1. No dia 20-07-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 09-09-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 12-10-2020.

 

  1. No dia 16-11-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. No dia 25-05-2021, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente registou na sua contabilidade, nos anos de 2016 e 2017, os seguintes valores de aquisições intracomunitárias: 2016 – € 49.688,09 e 2017 – € 69.334,71.
  2. Em 2016, a Requerente enviou à consignação uma remessa de calçado, onde consta como local de descarga da mercadoria, a Avenida Amílcar Cabral.
  3. A Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo externo, de âmbito geral, aos anos de 2016 e 2017, a coberto das Ordens de Serviço n.º OI2018… e n.º OI2018….
  4. No âmbito do procedimento de inspecção, a Requerente foi notificada na pessoa da Sra. B…, representante para as relações com a AT, para, no prazo de 15 dias apresentar os seguintes elementos referentes aos anos de 2015, 2016 e 2017:

- Balancetes analíticos dos exercícios antes do apuramento de resultados;

- Balancete analítico após o apuramento de resultados;

- Cópia de Inventários;

- Extrato da conta 31/32;

- Extrato da conta 71;

- Extrato das contas 2432 e 2433.

  1. Em resposta ao solicitado, a Requerente apresentou os referidos elementos, não tendo disponibilizado os documentos de suporte da contabilidade do ano de 2016.
  2. A acção inspectiva culminou com correcções através de métodos indirectos, em sede de IVA e IRC, dos anos de 2016 e 2017.
  3. Do relatório de inspecção consta, além do mais, o seguinte:

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  1. A Requerente apresentou de pedido de revisão da matéria tributável, nos termos do artigo 91.º da LGT, contestando, nessa sede, os pressupostos para a aplicação de métodos indirectos.
  2. A Requerente foi notificada de que no dia 09-03-2020, teria lugar a reunião de peritos a que se refere o artigo 91.º e 92.º da LGT.
  3. No dia 09-03-2020, a Requerente compareceu na reunião de peritos, na pessoa do perito nomeado e do seu mandatário.
  4. Não foi permitida a participação do mandatário da Requerente na reunião de peritos.
  5. O mandatário da Requerente lavrou protesto manuscrito na Direcção de Finanças de Lisboa, requerendo a indicação dos fundamentos legais para a recusa da sua presença na reunião de peritos.
  6. Até à data da apresentação do pedido arbitral, a Requerente não obteve resposta ao protesto lavrado.
  7. No âmbito do procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, os peritos designados não chegaram a acordo.
  8. Na sequência disso, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA n.ºs 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, e as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, 2020…, relativas aos períodos de 2016 e 2017, no valor global de €61.014,18.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

a. Da matéria de excepção: da incompetência material

Na sua resposta a Requerida começa por notar que “a Requerente vem apontar vícios não apenas aos actos de liquidação adicional que resultaram da aplicação de métodos indirectos, como ainda aponta alegados vícios relativos ao mecanismo de revisão da matéria colectável”.

Face a tal circunstância, conclui a Requerida que “a AT não se encontra vinculada à jurisdição arbitral relativamente a actos de determinação da matéria colectável por métodos indirectos e, bem assim, à decisão do procedimento de revisão, bem como a discussão da legalidade de actos de liquidação adicional que provenham da aplicação de métodos indirectos”, motivo pelo qual “deve a presente acção ser julgada improcedente atenta a excepção de incompetência material do tribunal arbitral ou perante a excepção dilatória inominada por falta de vinculação da AT”.

Em causa está o teor dos artigos 2.º, n.º 1 do RJAT, e 2.º, alínea b) da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março, cuja redacção é a seguinte:

- art.º 2.º, n.º 1 do RJAT: “A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.”;

- art.º 2.º, alínea b) da Portaria n.º 112-A/2011: “Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes: (...)

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;”

Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, crê-se não assistir, na matéria, razão à Requerida.

Com efeito, o objecto da presente acção arbitral são os actos de liquidação adicional de IVA, cuja competência para apreciação da respectiva legalidade é deferida a este Tribunal Arbitral pelo n.º 1, alínea a) do art.º 2.º do RJAT, e não é excluída pelo art.º 2.º da Portaria, maxime, pela sua alínea b).

Uma coisa é o acto de determinação da matéria tributável, cuja apreciação da legalidade foi excluída pela al. b) do art.º 2 da Portaria, e outra é o acto de liquidação.

Sendo certo que, por força do princípio da impugnação unitária, o acto de determinação da matéria tributável deverá ser impugnado aquando da impugnação do acto de liquidação[2], daí não resultará que um e outro são o mesmo acto.

Como aponta a Requerente, o objecto da presente lide é a apreciação da legalidade da liquidação do imposto, e não a fixação da matéria coletável, o que não afasta que a invalidade de actos interlocutórios do processo de liquidação afecte a legalidade deste último.

Daí que, numa situação paralela, face à norma do art.º 86.º da LGT, tenha já a jurisprudência esclarecido que:

“1. Por força do acordo obtido na comissão de revisão e face ao disposto no nº 4 do art. 86.º da LGT está a impugnante, ora recorrida, impedida legalmente de impugnar a liquidação com fundamento na ilegalidade do recurso aos métodos indirectos por falta de adequada fundamentação, de facto e de direito, da respectiva decisão.

2. Não questionando a actuação do perito por ela indicado na comissão de revisão nem a elaboração do acordo aí firmado, está a mesma vinculada aos termos do mesmo acordo, não podendo, pois, impugnar a liquidação com o fundamento admitido na decisão recorrida dado que este se contém nos limites e âmbito do acordo firmado.

3. Só poderão, assim, ser invocados fundamentos não contidos no acordo, isto é, que não lhe estejam ligados e ou associados.”[3].

Ou, dito de outra forma: “A medida da inimpugnabilidade da liquidação feita com base no acordo, tendo a sua razão de ser na existência deste acordo, terá de ter (de) ser restringida ao que foi objecto deste, que é a medida da matéria tributável. Por isso, a existência de acordo não poderá afastar o direito do contribuinte impugnar a liquidação feita com base no acordo por qualquer razão que não lhe esteja ligada, como, por exemplo, vícios de forma (falta de fundamentação, incompetência, violação de direitos procedimentais) ou de violação de lei (como erro na taxa aplicável ou sobre a existência de uma isenção total ou parcial)”[4].

Daí que, tendo “a liquidação impugnada resultado da aplicação simultânea dos métodos indirectos e de correcções técnicas (avaliação directa), e o impugnante questionado, quer a aplicação desses métodos, quer as correcções técnicas efectuadas, imputando aos actos tributários impugnados vícios de preterição da formalidade legal de audiência prévia consagrada no artº 60º da LGT e preterição de formalidades, em relação a estes fundamentos, a impugnação da liquidação não está dependente do pedido prévio de revisão da matéria tributável”[5].

Isto mesmo, de resto, é confirmado pela doutrina que se debruçou sobre o contencioso arbitral tributário[6].

Ora, embora, como indica a Requerida, a matéria tributável tenha sido fixada por métodos indirectos, não está em causa, na presente acção arbitral, a legalidade daquele acto de fixação, tal como pressuposto pela al. b) do art.º 2.º da Portaria, mas, unicamente, dos actos de liquidação subsequentes, por vícios que lhe são próprios, matéria relativamente à qual não se tem dúvidas estar atribuída a este Tribunal arbitral competência para se pronunciar.

Assim, e face ao exposto, deve improceder a excepção da incompetência material do presente Tribunal arbitral arguida pela Requerida.

 

b. Fundo da causa: da preterição de formalidade essencial

            Invoca a Requerente a violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1 do CPPT, 66.º, n.º 3 do EOA e 20.º, n.º 2 da CRP, uma vez que, em seu entender, ao ter sido vedada a participação do seu mandatário na reunião de peritos, foi preterida uma formalidade essencial que afecta a legalidade das liquidações adicionais de IVA subsequentes.

            Por sua vez, sustenta a Requerida que a lei não exige a presença de mandatário, nem do próprio contribuinte na reunião a que se refere os artigos 91.º e 92.º da LGT, pelo que a não participação do mandatário da Requerente naquela reunião não contende com a legalidade das liquidações.

            A questão que se coloca é, portanto, a de saber se a falta de participação do mandatário da aqui Requerente na reunião de peritos a que se referem os artigos 91.º e 92.º da LGT, constitui a preterição de uma formalidade essencial que afecta a legalidade das liquidações emitidas na sequência daquela reunião.

Determina o artigo 5.º, n.º 1 do CPPT:

“Os interessados ou seus representantes legais podem conferir mandato, sob a forma prevista na lei, para a prática de actos de natureza procedimental ou processual tributária que não tenham carácter pessoal.”

E dispõe o artigo 66.º, n.º 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados:

            “3 - O mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza.”.

Com efeito, encontra-se legalmente prevista a possibilidade de o contribuinte se fazer representar por mandatário no âmbito do procedimento tributário onde se inclui, naturalmente, o procedimento de revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, pelo que a preterição daquela formalidade é susceptível de ter reflexos no acto final da liquidação, tornando-a anulável.

            Sucede, porém, que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher o princípio do aproveitamento do acto, que encontra acolhimento no n.º 5 do artigo 163.º do CPA, que dispõe:

“5 - Não se produz o efeito anulatório quando:

a) O conteúdo do acto anulável não possa ser outro, por o acto ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;

b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;

c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”

            Deste modo, a preterição de formalidades do procedimento nem sempre conduzirá à anulação, designadamente não a justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

            A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las[7].

Entre as situações em que se admite que não se produza o efeito anulatório da preterição de formalidades procedimentais, está a situação em que o exercício desse direito não poderia influenciar de modo algum a decisão.

Assim, o direito de participação do mandatário na reunião só seria verdadeiramente violado se através dessa participação houvesse a possibilidade, ainda que ténue, de vir a exercer influência, quer pelos esclarecimentos prestados, quer por trazer para a discussão certos aspectos de facto e de direito, na decisão a proferir, no termo do procedimento de revisão.

Todavia, no caso dos autos, a Requerente não alega sequer em que medida a participação do mandatário na reunião poderia ter conduzido a uma decisão diferente daquela que resultou da reunião de peritos – quais os concretos fundamentos que este utilizaria, assim como as concretas questões que seriam suscitadas por este de modo a que a decisão proferida pudesse ser diferente.

Não basta, assim, ao interessado, invocar a irregularidade, é-lhe também exigível que alegue e demonstre em que medida essa irregularidade condicionou a decisão final que veio a ser proferida no âmbito daquele procedimento, sob pena de, não sendo aquela irregularidade susceptível de influir na decisão final, se degradar numa formalidade não essencial não sendo passível de influenciar as liquidações subsequentes.

Face a tudo quanto se expôs, não tendo a Requerente alegado em que medida a não participação do seu mandatário condicionou a decisão que veio a ser proferida no âmbito do procedimento de revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, sempre será de concluir pela improcedência da alegada preterição de formalidade essencial.

 

c. Do vício de violação de lei

            A Requerente contesta a utilização de métodos indirectos, defendendo que não estão reunidos os pressupostos para a aplicação dos mesmos.

            Apesar de vigorar no sistema fiscal português, o princípio da tributação do rendimento real, o legislador não deixou de, para situações excepcionais, expressamente definidas na lei, admitir o recurso subsidiário à avaliação dos rendimentos sujeitos a tributação por via de indícios, presunções, ou outros elementos de que disponha a AT.

            Assim, só nas situações, expressamente previstas na lei, em que não possa apurar-se a matéria tributável com base nas declarações do contribuinte, é que está a Administração Tributária legitimada a lançar mão de métodos indirectos de avaliação do rendimento tributável (artigo 87.º, n.º 1, alínea b) da LGT).

O conceito de impossibilidade de determinação direta e exacta da matéria tributável é densificado pelo legislador no artigo 88.º da Lei Geral Tributária, onde vem referido que  a mesma pode resultar, nomeadamente, da “inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais”, mas apenas nos casos em que tais omissões impossibilitem a comprovação e a quantificação directa e exacta da matéria tributável.

Exige-se, por isso, que as omissões, erros, irregularidades ou inexatidões das declarações ou da contabilidade do sujeito passivo sejam, no momento da avaliação operada pela AT, de tal ordem relevantes, que tornem inviável a quantificação directa da matéria coletável[8].

Assim, cabe à AT demonstrar a verificação dos pressupostos que legitimam o recurso à avaliação da matéria tributável por métodos indirectos, consubstanciando-se esse ónus na demonstração da existência de situações fácticas, designadamente irregularidades contabilísticas, que assumam um tal alcance que tornem impossível a correcção da matéria tributável através de métodos directos de avaliação. Não basta, portanto, elencar as irregularidades detectadas, no decurso do procedimento inspetivo, na contabilidade do sujeito passivo, sendo necessário demonstrar, por um lado, que essas omissões relevam para efeitos de verificação de um facto tributário e, por outro, que as mesmas inviabilizam a avaliação directa.

Perante a verificação dos pressupostos de aplicação dos métodos indirectos, por intermédio da demonstração, pela AT, de indícios e elementos de prova que apontem, com segurança, nesse sentido, passa a caber ao sujeito passivo a demonstração da inexistência, no seu caso, de fundamento para a aplicação de tais pressupostos, ou de que foi excessiva a quantificação da matéria tributável fixada, pelos serviços tributários, com recurso a métodos indirectos, sendo admitida, para o efeito, a utilização dos meios gerais de prova (artigos 74.º, n.º 3 da LGT e 115.º, n.º 1 do CPPT)[9].

Vejamos:

A AT, no caso sub judice, fundamentou a utilização de métodos indirectos na existência de omissões e inexatidões na contabilidade da Requerente, nomeadamente:

  1. Inventários impossíveis de analisar face às compras e às vendas, em cada um dos exercícios, em virtude de a mercadoria neles relacionada ter referências distintas das facturas de venda;
  2. Não terem sido apresentados os documentos de suporte da contabilidade do exercício de 2016;
  3. Omissão de vendas, nomeadamente mercadorias enviadas à consignação e para as quais a Requerente não apresentou documentos comprovativos de transporte e/ou exportação;
  4. Omissão de compras (comunicação dos fornecedores no VIES de valor superior ao declarado/contabilizado).

Concluindo que “reconhece-se que a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável, tal como referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT, resulta da insuficiência dos elementos da contabilidade e irregularidades na sua execução, preenchendo-se desta forma os pressupostos para a avaliação indireta previstos no artigo 88.º, alínea a) da LGT.”

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente começa por referir que não se encontram reunidos os pressupostos para a aplicação de métodos indiretos, questionando, depois, cada um dos pressupostos em que a AT se fundou para recorrer aos métodos indirectos.

No que respeita à impossibilidade de analisar os inventários face às compras e às vendas, em cada um dos exercícios, em virtude de a mercadoria neles relacionada ter referências distintas das faturas de venda, sustenta a Requerente que embora os inventários tenham referência diversa das faturas de venda, contêm a descrição da factura, acrescida das duas iniciais da marca de sapatos a que se referem, bem como cores e tamanhos. No entanto, a Requerente não juntou aos autos as facturas que permitissem a este Tribunal Arbitral concluir que assim é, nem produziu prova testemunhal susceptível de demonstrar a sua alegação.

Quanto à circunstância de não terem sido apresentados os documentos de suporte da contabilidade do exercício de 2016, sustenta a Requerente que foram entregues à equipa de inspecção as facturas de fornecedores e restantes e que o SAFT menciona todas as facturas da Requerente.

Conforme resulta do anexo 3 ao relatório de inspecção, foi solicitada à Sra. B…, nomeada como representante para as relações com a AT, a apresentação dos seguintes elementos relativos aos anos de 2015, 2016 e 2017: balancetes analíticos dos exercícios antes do apuramento de resultados, balancete analítico após o apuramento de resultados, cópia de inventários, extrato da conta 31/32, extrato da conta 71, extrato das contas 2432 e 2433. Em resposta ao solicitado, encontra-se documentado no referido anexo ao relatório de inspecção, que não foi impugnado pela Requerente, que não foram apresentados os documentos de suporte da contabilidade do ano de 2016.

Face ao disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 88.º, no qual se prevê que a impossibilidade de determinação directa e exacta da matéria tributável pode resultar da inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade, perante a não exibição dos documentos da contabilidade do ano de 2016, encontra-se legitimado, por esta via, o recurso aos métodos indirectos.

No que concerne à omissão de vendas, nomeadamente mercadorias enviadas à consignação e para as quais a Requerente não apresentou documentos de transporte e/ou exportação, refere a Requerente que as mercadorias enviadas à consignação não estavam suportadas por documentos de transporte e/ou exportação porquanto tais mercadorias não foram exportadas, dado que a guia de consignação foi emitida por engano, tendo posteriormente sido anuladas.

Não obstante, o certo é que para efectuar tal demonstração, a Requerente apenas apresentou um mero documento interno, denominado “Devolução Guia de Remessa”, que menciona como data de carga e descarga o dia 26-11-2018, não produzindo qualquer outra prova, designadamente que explique o que se passou, designadamente porque foram efectuados os registos contabilísticos em questão, porque foi emitida a Guia de Remessa, e porque, afinal, não se veio a realizar a operação.

Acresce que fica ainda por explicar se a mercadoria em questão existia ou não, bem como se, não tendo sido exportada – possibilidade suscitada pela própria AT -, qual o destino que lhe foi dado.

Por fim, quanto à omissão de compras, sustenta a Requerente que os valores em causa foram porventura incorretamente registados no exercício seguinte, juntando para prova desse facto o documento n.º 7.

O referido documento é um extrato de conta do período de 01-01-2018 a 31-12-2018, através do qual não é possível estabelecer uma correspondência entre os valores registados e as facturas a que respeitam, não permitindo a este Tribunal Arbitral, concluir que se tratam de vendas efectuadas no exercício anterior, motivo pelo qual não é susceptível de contrariar a conclusão da AT de que a Requerente contabilizou, nos exercícios de 2016 e 2017, aquisições inferiores às declaradas pelos seus fornecedores no VIES, o que indicia a omissão de compras.

Embora a Requerente conteste cada um dos factores que fundamentaram o recurso, pela AT, aos métodos indirectos, o que é certo é que nada demonstra suficientemente, nenhuma prova produziu no sentido de abalar cabalmente aqueles indícios e de demonstrar para lá de qualquer dúvida razoável que era efectivamente viável a avaliação directa da matéria colectável.

Ora, não tendo a Requerente produzido prova nesse sentido, não foi, por inerência, capaz de demonstrar, valendo-se apenas de uma narração vaga e genérica quanto ao facto de não estarem reunidos os pressupostos para a aplicação de métodos indirectos, sem sequer alegar, convenientemente, que é efectivamente possível a determinação directa da matéria colectável, pelo que não pode ter, aqui, acolhimento a sua pretensão anulatória.

Pelo exposto, há que concluir pela improcedência da alegada falta de pressupostos legais tendentes à determinação da matéria tributável com recurso a métodos indiretos, improcedendo, portanto, o pedido arbitral.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Julgar improcedente a matéria de excepção;
  2. Absolver a Requerida do pedido;
  3. Manter na ordem jurídica os actos tributários objecto da presente acção arbitral;
  4. Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €61.014,18, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

23 de Dezembro de 2021

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

O Árbitro Vogal

(Adelaide Moura)

O Árbitro Vogal

(Nuno Cunha Rodrigues)



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] “A matéria tributável é uma realidade única, independentemente da forma como foi determinada e vigorando o regime da impugnação unitária, só em sede de impugnação da liquidação sequente e consequente da fixação, é que poderiam ser alegados os vícios próprios do acto de fixação definitiva de todo o imposto em falta sob pena da violação do disposto no n.º 2 do art. 91.º da LGT.” – Ac.do TCA-Sul de 06- 10-2010, proferido no processo 04164/10.

[3] Ac. do TCA-Sul de 06-12-2005, proferido no processo 00764/05.

[4] Ac. do TCA-Norte, de 01-06-2006, proferido no processo 00185/04.

[5] Ac. do TCA-Sul de 15-07-2009, proferido no processo 03160/09.

[6] Cfr., p. ex., Carla Castelo Trindade – Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado, Coimbra, 2016, pp. 108 e ss.

[7] Cfr. Ac. do STA de 22-01-2014, proferido no processo n.º 441/13.

[8] Cf. Acórdão do TCA-Sul de 17-10-2019, proferido no processo n.º 487/11.6BECTB.

[9] Cf. Acórdão do TCA-Norte de 14-07-2016, proferido no processo n.º 00548/10.9BECBR