Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 482/2020-T
Data da decisão: 2021-11-29  IMT  
Valor do pedido: € 6.485,78
Tema: IMT. Artigo 236.º, n.º 2, da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro. Violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal. Violação do princípio da confiança dos cidadãos.
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SUMÁRIO:

1.            O IMT é um imposto de obrigação única, em que a proibição da retroatividade implica o respeito pelos factos tributários passados, ou seja, a não aplicação da lei nova a esses factos, pois a obrigação tributária nasceu e está concluída.

2.            O artigo 236.º, n.º 2, da lei 83-C/2013, de 31 de dezembro, em conjugação com o nº 16º do artigo 8º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro, na redação da lei 83-C/2013, estabelece uma tributação retroativa (retroatividade autêntica), violadora do artigo 103º, nº 3, da CRP, bem como infringe ainda a constituição, por violação do princípio da proteção da confiança.

3.            A norma do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, um caso de retroatividade.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

O árbitro designado para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído em 17 de dezembro de 2020, Rui Miguel Zeferino Ferreira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), decide o seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., S.A, adiante “Requerentes”, titular do número de identificação de pessoa coletiva..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... ..., na qualidade de sociedade gestora e em representação do B...– FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO PARA ARRENDAMENTO HABITACIONAL, com o número de identificação de pessoa coletiva 720.011.248, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

 

O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto as liquidações de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), e correspondentes juros compensatórios, com os números ... e ..., no montante global de € 6.485,78 (seis mil quatrocentos e oitenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), resultantes dos despachos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IMT.

 

A Requerente peticiona que seja declarada a ilegalidade dos despachos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da liquidação, bem como anulados os atos de liquidação de IMT, que considera ilegais, por no seu entender padecerem de manifesto erro nos pressupostos de facto e de direito. Nesse sentido, peticiona a restituição do imposto pago, no montante global € 6.485,78 (seis mil quatrocentos e oitenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios.

 

Como fundamento da sua pretensão, os Requerentes invocam, em síntese:

 

a)            Que, o fundo representado pela Requerente foi constituído, em 19 de Novembro de 2009, ao abrigo do Regime Especial aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (“REFIIAH”), aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro e, bem assim, que no exercício da sua atividade, antes de 2014, adquiriu diversos imóveis destinados a arrendamento para habitação permanente, tendo beneficiado da isenção de IMT consagrada no REFIIAH para as aquisições de prédios urbanos ou de frações autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente.

 

b)           Que, os prédios urbanos inscritos sob os artigos matriciais ... e ..., sitos na freguesia de ... e na União das freguesias ..., ..., ... e ..., ambos do concelho de Santarém, beneficiaram da mencionada isenção de IMT.

 

c)            Que, a isenção caducou por força da alteração legislativa introduzida pelo n.º 2 do artigo 230.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do REFIIAH, tendo em consequência disso sido notificado dos atos de liquidação de IMT, mas que não se encontram em conformidade com a legislação aplicável.

 

d)           Que, padece de inconstitucionalidade, a disposição legal correspondente ao artigo 236.º, n.º 2, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do regime jurídico aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional (FIIAH) e às sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (SIIAH), na versão decorrente das alterações levadas a cabo pela aludida lei, de acordo com a qual as isenções em sede de IMT e de Imposto de Selo previstas nos n.ºs 7, alínea a), e 8, daquele artigo 8.º caducam se o imóvel adquirido for alienado no prazo de três anos, contados de 1 de Janeiro de 2014.

 

e)           Que, da identificada disposição legal, a aplicação daqueles benefícios fiscais, em IMT, na esfera dos FIIAH não se encontrava subordinada a qualquer condição de cariz temporal, bastando, para o efeito, a mera observância do facto tributário, ou seja, o ato de aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis.

 

f)            Que, as alterações legislativas promovidas pela Lei n.º 83-C/2013, de 21 de dezembro (lei do orçamento de Estado para 2014), têm caráter marcadamente retroativo, e vêm estipular condições ou requisitos adicionais para a aplicação de benefícios fiscais a operações realizadas até 31 de dezembro de 2013, que já haviam obtido os benefícios fiscais.

 

g)            Que, a aplicação retroativa de novas condições e requisitos gerou situações de "desaplicação" dos benefícios fiscais legitimamente concedidos no passado, ao abrigo da anterior redação das normas aplicáveis, pelo que a mesma viola o princípio da não retroatividade da lei fiscal e, ainda, o princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica, todos constitucionalmente consagrados.

 

h)           Que, entre o mais, a jurisprudência do Tribunal Constitucional já decidiu que "será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar" e "quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.º revisão)".

 

i)             Que, existe uma manifesta violação deste princípio da proteção da confiança, sustentando que a aplicação de novos requisitos e condições, com efeitos retroativos, e com consequências agravadoras da situação do sujeito passivo, implica uma manifesta situação de abuso e arbitrariedade por parte do Estado.

 

j)             Que, por conseguinte, deverá aquela norma ser desaplicada, no caso concreto, por manifesta inconstitucionalidade.

 

k)            Que, a situação dos presentes autos configura uma retroatividade de cariz autêntico, por no seu entendimento, que sustenta na jurisprudência, estar em causa uma situação que já se produziram todos os efeitos do facto tributário ao abrigo da lei antiga.

 

l)             Que, no caso estamos perante um imposto de obrigação única, em que está subjacente um ato instantâneo, que se esgota num único e determinado momento do tempo, cujo respetivo facto gerador do tributo surge isolado no tempo, pelo que o IMT anterior a 1 de janeiro de 2014 já tinha produzido todos os efeitos, legais e fiscais, ao abrigo do anterior regime jurídico consagrado para os FIIAH.

 

m)          Que, a alegada caducidade da isenção de IMT aplicada às operações de aquisição de bens imóveis realizadas pelo fundo e a (consequente) liquidação retroativa de imposto, objeto dos presentes autos, não pode ser aceite, porque contraria à lei.

 

n)           Que, deve a identificada disposição legal ser desaplicada, por manifesta inconstitucionalidade, sendo anulados os atos tributários de liquidação de IMT, por manifesto erro tão-somente imputável à AT.

 

É demandada a AT (Autoridade Tributária e Aduaneira), doravante também designada por “Requerida”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 23 de setembro de 2020, e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 25 de setembro de 2020 e, de seguida, notificado à AT.

 

A Requerida, em 30 de outubro de 2020, ao abrigo do disposto no artigo 13.º do RJAT, veio comunicar ao Exmo. Presidente do CAAD a revogação dos atos tributários contestados por Despacho, de 19 de outubro de 2020, do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), Divisão de Justiça Tributária.

 

A Requerente notificada do identificado despacho de revogação, em 4 de novembro de 2020, veio informar que não mantinha o interesse no prosseguimento da ação, ao abrigo do disposto do artigo 13.º, n.º 2, do RJAT.

 

Posteriormente, em 6 de novembro de 2020, a Requerida veio comunicar a perspetivação da anulação administrativa do anterior ato de revogação, comunicado em 30 de outubro de 2020. Essa perspetiva veio a ser concretizada por Despacho, de 5 de novembro de 2020, do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), Divisão de Justiça Tributária, objeto de comunicação ao Exmo. Presidente do CAAD em 6 de novembro de 2020. Em consequência foi reaberto na mesma data o presente processo.

 

Nos termos do disposto do artigo 5.º, n.º 2, do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo.

 

Em 13 de novembro de 2020, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral singular foi constituído em 17 de dezembro de 2020.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

Em 16 de abril de 2021, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação, pugnando, pela improcedência total do pedido de pronúncia arbitral, com todas as consequências legais

 

A Requerida alega, em resumo:

 

a)            Que, não assiste razão à Requerente, por no seu entendimento as liquidações e os atos de indeferimento impugnados terem sido praticados ao abrigo da legislação em vigor, legislação essa que entende conforme com a Constituição da República Portuguesa.

 

b)           Que, as liquidações impugnadas foram emitidas com fundamento na caducidade da isenção de IMT, a que se refere o nº 7 do artigo 8º do Regime Jurídico Aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH), aprovado pelos artigos 102º e 104º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro (LOE de 2009), de que o fundo representado pela Requerente, beneficiara aquando da aquisição, nos anos de 2011 e 2013, dos imóveis identificados nos autos.

 

c)            Que, mostram-se reunidos os pressupostos de caducidade de isenção de IMT em causa, uma vez que os imóveis não foram objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente nos termos das alterações introduzidas pelos artigos 235º e 236º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro, ao Regime Jurídico dos FIIAH, além de que, conforme fundamentado nas liquidações de IMT, os imóveis foram vendidos.

 

d)           Que, o regime tributário dos FIIAH é regulado autonomamente pelo artigo 8º do respetivo Regime Jurídico, e com as alterações introduzidas pelo artigo 235.º da Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2014, segundo a qual, se trata de um regime jurídico especial, autónomo e transitório, que determina que ficam isentos daqueles impostos as aquisições de prédios urbanos ou de frações autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a habitação própria e permanente, pelos fundos de investimento referenciados na mencionada legislação.

 

e)           Que, do artigo 236º da mesma Lei nº 83-C/2013, de 31.12, estabelece uma norma transitória sobre o âmbito de aplicação do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, segunda a qual, entre o demais, “... é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH, antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.”.

 

f)            Que, a partir de 1 de Janeiro de 2014, a isenção de IMT dos imóveis integrados no fundo tendo em vista o arrendamento foi alargada até 2015, contudo, para efeitos de cumprimento do pressuposto de arrendamento para habitação permanente, passou a ser exigida prova da existência de contrato de arrendamento, pelo que em rigor não estabeleceu nenhum novo requisito, mas apenas fixou um prazo para cumprimento desse requisito.

 

g)            Que, aquilo que o legislador fez foi estabelecer um período transitório para aplicação das alterações de forma a que o requisito expressamente estabelecido na lei seja aferido para futuro, para os prédios adquiridos antes e após 01.01.2014.

 

h)           Que, os imóveis não foram objeto de contrato de arrendamento e a Requerente vendeu os imóveis, razão pela qual a Requerida entendeu, a existência de caducidade da isenção de impostos anteriormente concedida, pelo que não ocorrendo o arrendamento dos imóveis, finalidade para a qual foram adquiridos, tal determina a caducidade da isenção concedida, por violação da ratio legis da norma de isenção fiscal.

 

i)             Que ocorreu a caducidade da isenção simplesmente por os prédios não terem sido objeto de contrato de arrendamento, pelo que mesmo que se entenda que não seja aplicável o prazo de três anos previsto no número 15 do artigo 8º do Regime dos FIIAH, as isenções previstas nos n.ºs 6 a 8 ficam sem efeito.

 

j)             Que, no caso dos presentes autos, atento o Regime Especial dos FIIAH, tendo ocorrido a caducidade da isenção por via da aplicação do disposto no artigo 8.º, n.º 7, do Regime dos FIIAH, nem sequer se coloca a questão da retroatividade ou não da norma prevista no artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31/12.

 

k)            Que, é verdade que o facto tributário em sede de IMT verifica-se aquando da aquisição do imóvel, mas que tal não significa que, no caso dos autos, se possa concluir pela existência de uma circunstância de retroatividade, uma vez que sustenta que a lei nova não veio simplesmente determinar, e sem mais, que os imóveis anteriormente adquiridos fossem objeto de tributação em sede de IMT.

 

l)             Que, a lei nova veio somente densificar critérios já previstos na lei antiga, designadamente, o conceito de afetação a arrendamento para habitação permanente, estipulando um prazo mais do que suficiente para que os sujeitos passivos se pudessem adaptar, reunindo um meio de prova inequívoco (contrato de arrendamento), bem como a explicitação das situações em que a alienação do imóvel destinado ao arrendamento não faz caducar a isenção nos termos então até aí previstos no EBF.

 

m)          Que, não se verifica a introdução ex novum de um regime de caducidade do benefício, e, ainda menos se constata qualquer frustração das expectativas dos sujeitos passivos ou violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.

 

n)           Que, não são devidos juros indemnizatórios, por não se verificar qualquer “erro imputável aos serviços”, uma vez que, à data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei, vinculadamente, nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43º da LGT.

 

 

Em 30 de julho de 2021 e 30 de setembro de 2021, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, fez-se uso da possibilidade aí prevista, e determinou-se a prorrogação do prazo acima identificado por um período de 2 (dois) meses, indicando-se o dia 30 de novembro de 2021 como data previsível para prolação da decisão arbitral.

 

Em 3 de novembro de 2021, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e foi concedido o prazo de 10 dias para alegações. A Requerente prescindiu da apresentação de alegações por requerimento de 5 de novembro de 2021. A Requerida não apresentou alegações no prazo concedido.

 

III. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral Singular é materialmente competente, e encontra-se regularmente constituído nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º e 6º do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidas e legalmente representadas (artigos 3º, 6º e 15º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

IV.          DA FUNDAMENTAÇÃO

A.           MATÉRIA DE FACTO

A.1.  FACTOS PROVADOS

 

Com relevo para a decisão do processo arbitral, importa atender à seguinte factualidade, que se julga provada:

 

A.           Em 19/06/2013, conforme o registo n.º 2013/123152, do IMT, o B... -FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIARIO PARA ARRENDAMENTO

 HABITACIONAL, adquiriu pelo valor de € 185.400,00, o prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ..., do concelho de Santarém inscrito na matriz sob o artigo matricial nº... .

 

B.            A aquisição beneficiou de isenção de IMT e da verba 1.1 da TGIS, nos termos dos artigos 7° e 8° do regime dos FIIAH.

 

C.            O prédio urbano respeitante ao artigo matricial nº ... foi vendido, em 08/05/2015, a que estão associadas os IMT's registos números 2015/... de 07/05/2015.

 

D.           Em 25/08/2011, conforme o registo n.º 2011 /..., do IMT, o B...- FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIARIO PARA ARRENDAMENTO

 HABITACIONAL, adquiriu pelo valor de € 113.500,00, a fração autónoma “C”, do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ... (extinta), do concelho de Santarém, inscrita na matriz sob o artigo matricial nº ..., atual artigo ..., da União das freguesias de ..., ..., ... e ... .

 

E.            A aquisição beneficiou de isenção de IMT e da verba 1.1 da TGIS, nos termos dos artigos 7° e 8º do regime dos FIIAH.

F.            O prédio urbano respeitante, respeitante à fração “C”, identificada em D., foi vendida em 25/05/2016, a que estão associadas os IMT's registos números 2016/ ...e ..., de 24/05/2016.

 

G.           A Requerente requereu a liquidação dos impostos em falta em 23/11/2016.

 

H.           Em 26/01/2017, foram emitidas as liquidações de IMT, referentes aos dois imóveis.

 

I.             Em 14/02/2017, a Requerente efetuou o pagamento das liquidações referidas.

 

J.             Em 17/11/2017 deu entrada o pedido de revisão oficiosa, a que foi atribuído o n.º ...2020..., correspondente às liquidações de IMT, referentes ao artigo ..., da União das freguesias de ..., ..., ... e ..., do concelho de Santarém.

 

K.            Foi atribuído o n.º ...2020..., ao referente ao pedido de revisão oficiosa do prédio urbano, respeitante ao artigo ..., fração C, da freguesia do ... concelho de Santarém;

 

L.            Em 10/08/2020, foram proferidos os despachos de indeferimento referentes às Revisões oficiosas indicadas, da qual consta como fundamentação que:

 

 

 

M.          O presente pedido de pronúncia arbitral deu entrada no dia 23/09/2020.

 

A.2.  FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

A.3.  FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA

 

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

B.            QUESTÕES A DECIDIR

 

                Cumpre solucionar as seguintes questões:

 

a)            Ilegalidade dos atos de liquidação objeto do presente processo, por inconstitucionalidade na norma vertida no artigo 236.º, n.º 2, da Lei n.º 82-C/2013

 

Em caso de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação,

 

b)           Direito da Requerente à restituição do imposto pago;

c)            Direito da Requerente a juros indemnizatórios

 

C.            DO DIREITO

 

                               Com relevância para a decisão dos presentes autos, importa atentar que tal como estabelece o artigo 102º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro:

 

“É aprovado o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH), que faz parte integrante da presente lei, e que consta dos artigos seguintes.” (negrito nosso).

 

                               Por outro lado, resulta do artigo 8.º, do regime fiscal especial destes fundos, na sua redação originária, o seguinte:

 

“1 - Ficam isentos de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) os rendimentos de qualquer natureza obtidos por FIIAH constituídos entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2015, que operem de acordo com a legislação nacional e com observância das condições previstas nos artigos anteriores.

2 - Ficam isentos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e de IRC os rendimentos respeitantes a unidades de participação nos fundos de investimento referidos no número anterior, pagos ou colocados à disposição dos respectivos titulares, quer seja por distribuição ou reembolso, excluindo o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação das unidades de participação.

3 - Ficam isentas de IRS as mais-valias resultantes da transmissão de imóveis destinados à habitação própria a favor dos fundos de investimento referidos no n.º 1, que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento.

4 - As mais-valias referidas no número anterior passam a ser tributadas, nos termos gerais, caso o sujeito passivo cesse o contrato de arrendamento ou não exerça o direito de opção previsto no n.º 3 do artigo

5.º, suspendendo-se os prazos de caducidade e prescrição para efeitos de liquidação e cobrança do IRS, até final da relação contratual.

5 - São dedutíveis à colecta, nos termos e limites constantes da alínea c) do n.º 1 do artigo 85.º do Código do IRS, as importâncias suportadas pelos arrendatários dos imóveis dos fundos de investimento referidos no n.º 1 em resultado da conversão de um direito de propriedade de um imóvel num direito de arrendamento.

6 - Ficam isentos de IMI, enquanto se mantiverem na carteira do FIIAH, os prédios urbanos destinados ao arrendamento para habitação permanente que integrem o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.

7- Ficam isentos do IMT:

a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;

b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1. (negrito nosso)

 8 - Ficam isentos de imposto do selo todos os actos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos, bem como com o exercício da opção de compra previsto no n.º 3 do artigo 5.º

9 - Ficam isentas de taxas de supervisão as entidades gestoras de FIIAH no que respeita exclusivamente à gestão de fundos desta natureza.

10 - Ficam excluídas das isenções constantes do presente artigo as entidades que sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.

11 - As obrigações previstas no artigo 119.º e no n.º 1 do artigo 125.º do Código do IRS devem ser cumpridas pelas entidades gestoras ou registadoras.

12 - Caso os requisitos referidos no n.º 1 deixem de se verificar, cessa a aplicação do regime previsto no presente artigo, passando a aplicar-se o regime previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, devendo os rendimentos dos fundos de investimento referidos no n.º 1 que, à data, não tenham ainda sido pagos ou colocados à disposição dos respetivos titulares ser tributados às taxas previstas no artigo 22.º-A do referido diploma, acrescendo os juros compensatórios correspondentes.

13 - As entidades gestoras dos fundos de investimento referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto dos fundos cuja gestão lhes caiba.”

 

Posto isto, no caso de as aquisições de prédios urbanos ou de frações autónomas de prédios urbanos, como sucede in casu com os prédios abrangidos pelas liquidações de IMT impugnadas, as mesmas estão isentas desde que “destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente”, o que constitui norma especial relativamente à isenção.

 

Subsequentemente, a Requerente vem questionar a constitucionalidade da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, no que se refere ao regime transitório consagrado no seu artigo 236.º, n.º 2.

 

A Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, aprovou o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional. Conforme acima plasmado, o seu artigo 8.º estabeleceu o regime tributário aplicável aos fundos de investimento imobiliário. No que se refere ao Imposto Municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, foi estabelecido no nº 7, o seguinte:

 

“7 — Ficam isentos do IMT:

a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;

b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.”

 

Por sua vez, a lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, aditou ao referido artigo 8.º os números 14.º a 16.º com a seguinte redação:

 

“14 — Para efeitos do disposto nos nºs 6 a 8, considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respetivo arrendamento efetivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.

15 — Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.ºs 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto. (negrito nosso)

16 — Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.” (negrito nosso)

 

A Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, veio, ainda, consagrar no seu artigo 236.º, o seguinte regime transitório:

 

“1 — O disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.

2 — Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.” (negrito e sublinha nosso)

 

Em face deste quadro legal, a Requerente entende estar-se, em primeiro lugar, perante uma inconstitucionalidade por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, bem como do princípio da confiança dos cidadãos, sustentando que a retroatividade em causa é autêntica, dada a natureza de imposto de natureza única, em que se enquadra o IMT. Em segundo lugar, sustenta a violação do princípio constitucional da proteção da confiança dos cidadãos.

 

Por seu lado, a Requerida apresenta posicionamento diverso, por sustentar que não se verifica a introdução ex novum de um regime de caducidade do benefício, bem como, que não existe qualquer frustração das expetativas dos sujeitos passivos ou violação do princípio da não retroatividade fiscal. No seu entendimento a lei nova não determinou, sem mais, que os prédios adquiridos anteriormente a 1 de janeiro de 2014 fossem objeto de tributação em sede de IMT, mas antes, densificar o conceito de afetação a arrendamento para habitação permanente e as situações em que a alienação não faz caducar a isenção.

 

Ora, face ao quadro legal a questão jurídica que cumpre solucionar é a de saber se, à luz do n.º 2, do artigo 236º, da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro e dos nºs 14º, 15º e 16º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redação conferida por aquele diploma, a aquisição do imóvel em causa, ocorrida antes de 1 de Janeiro de 2014, pode ser tributada por o imóvel ter sido vendido antes de decorrido o prazo de três anos contados a partir de 1 de Janeiro de 2014 e, por outro lado, em caso afirmativo, se tal solução legal é conforme com o artigo 103º, n.º 3, da CRP, que determina que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroactiva (…)”. E, bem assim, se tal solução legal é conforme com o respeito pelo princípio constitucional da proteção da confiança dos cidadãos.

 

Não nos restam dúvidas que, face ao quadro legal transcrito, que um fundo de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, como aquele que se apresenta nos presentes autos, a partir de 1 de janeiro de 2014, a venda de um imóvel adquirido em ano anterior, que tenha beneficiado de isenção por o imóvel ter como destino o arrendamento para habitação permanente e que o venda antes de decorridos 3 anos após 1 de janeiro de 2014, fica sujeito a imposto por força da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.

 

No entendimento deste Tribunal arbitral, que segue o entendimento expresso pelo Dr. Marcolino Pisão Pedreiro, na decisão arbitral proferida no processo 40/2018-T, em 26 de setembro de 2018, in casu o facto tributário em causa, correspondente à aquisição da propriedade por parte do Requerente, verificou-se inteiramente ao abrigo da lei antiga. Na mesma linha de entendimento, é patente que o facto tributário em causa é sujeito a tributação face à lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, mas não o era face à Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na sua redação originária.

 

Com efeito, estamos perante um imposto classificado como imposto de obrigação única, entendimento em que ambas as partes convergem, pelo que nos ensina a Professora Doutora Ana Paula Dourado que:

 

“Nos casos dos impostos de obrigação única a proibição da retroatividade implica o respeito pelos factos tributários passados, ou seja, a não aplicação da lei nova a esses factos, pois a obrigação tributária nasceu e está concluída” (in DIREITO FISCAL, Lições, Almedina, 2015, p. 175).

 

                Conforme salienta a decisão proferida no processo 40/2018-T, em 26 de setembro de 2018, a utilização do:

“(...) vocábulo “destinar” expressa a intenção do sujeito passivo no momento do facto tributário e que, declarada perante a Requerida, legalmente se presume verdadeira face ao art. 75º, nº 1, da Lei Geral Tributária, sem prejuízo da Administração Tributário poder ilidir tal presunção nos termos gerais. (...) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não parece que estejamos perante uma condição resolutiva. Efetivamente, como escreve Sá Gomes “A condição é resolutiva quando a eficácia do facto tributário suspende os seus efeitos pelas verificação dos pressupostos do benefício fiscal, que é concedido, mas este fica, pela verificação dos pressupostos da referida condição resolutiva, sujeita a caducidade, renascendo então a obrigação tributária (…)” (TEORIA GERAL DOS BENEFÍCIOS FISCAIS, Cadernos de ciência e Técnica Fiscal, CEF, Lisboa, 991, pags 147-148). Ora, na redação primitiva do regime não foram tipificados os pressupostos da ocorrência de hipotética condição resolutiva, nem a lei a estabeleceu. Esta foi, sim, no nosso entendimento, estabelecida pela Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.”

 

                Por outro, do acórdão n.º 617/2012, de 19 de dezembro de 2012 (processo n.º 150/12), do Tribunal constitucional decidiu-se que:

 

 “(...) o facto gerador da obrigação fiscal (...)ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídicofiscal complexo de formação sucessiva. A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroactividade autêntica. O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento. (…) Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.”

 

                De acordo com o exposto, e na linha da doutrina e jurisprudência citadas, no entender do tribunal, o artigo 236.º, n.º 2, da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o nº 16º do artigo 8º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redação da lei 83-C/2013, estabelece uma tributação retroativa (retroatividade autêntica), violadora do artigo 103º, nº 3, da CRP, pelo que não pode o tribunal deixar de desaplicar as mesmas, em obediência à norma consagrada no artigo 204º da CRP.

 

                No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional, proferido no processo n.º 915/18, sobre idêntica questão, decidiu nos seguintes termos:

 

“Em face do exposto, decide-se:

a) julgar inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional e às Sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional, na versão decorrente das alterações levadas a cabo pela aludida Lei, de acordo com a qual as isenções em sede de IMT e de Imposto de Selo previstas nos n.os 7, alínea a), e 8, daquele artigo 8.º caducam se o imóvel adquirido for alienado no prazo de três anos, contados de 1 de janeiro de 2014, por violação do princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2.º da Constituição; (...)”

 

                O referido acórdão do Tribunal Constitucional apesar que entender que a situação é de retroatividade inautêntica, posicionamento do qual não se concorda, a verdade é que apesar disso, refere expressamente que “ela não basta, porém, para concluir que nela não vai implicada violação de norma ou princípio constitucional”.

 

                A esse propósito, o acórdão n.º 175/2018, do Tribunal Constitucional, citado pelo mencionado acórdão do Tribunal Constitucional (processo n.º 915/18), afirma que:

 

15. A conclusão de que a norma constante do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 não é, pelo menos com a evidência pressuposta pelo acionamento da proibição consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, autenticamente retroativa, não é suficiente, porém, para concluir pela respetiva conformidade constitucional.

E isto porque, nos casos de retroatividade inautêntica ou imprópria – isto é, os respeitantes a normas que preveem, de forma inovadora, consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm (ou podem manter-se) nessa data –, tem este Tribunal reiteradamente sublinhado que, também no âmbito tributário, as mutações da ordem jurídica não podem atingir as expetativas criadas ao abrigo da lei antiga em termos incompatíveis com aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.

Tal entendimento, que coloca sob incidência dos limites decorrentes do princípio da proteção da confiança as situações de retroatividade inautêntica, foi sintetizado no Acórdão n.º 128/2009, já referido, onde a tal propósito se escreve do seguinte:

«Conforme sublinhado na jurisprudência constitucional, a proibição expressa da retroatividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da proteção da confiança. Como diz Casalta Nabais, (Cfr. “Direito Fiscal”, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 149) a proteção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroativas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroativas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente – não há lugar a ponderações: a norma retroativa é, por força do nº 3 do artigo 103º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroatividade imprópria, ou até de não retroatividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança».

Ora, é essa, justamente, a questão de constitucionalidade suscitada pela norma sob fiscalização.

Ao adicionar ao pressuposto originariamente previsto para a isenção – destinação do imóvel adquirido exclusivamente a arrendamento para habitação permanente – os novos pressupostos resultantes do aditamento ao artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH dos seus atuais n.ºs 14 a 16 –  a exigência de celebração efetiva de contrato de arrendamento para habitação e de não alienação do mesmo dentro de certo prazo –, a norma do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, um caso de retroatividade inautêntica.

Apesar de não se encontrar sob incidência da proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição    e de não ser, por isso, sancionável de forma automática, nos termos em que o são as situações de retroatividade autêntica, a norma constante do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 apenas poderá ser considerada constitucionalmente conforme se, em face dos elementos que integram a relação jurídico-tributária atingida, for de concluir que a aplicação da nova disciplina jurídica a factos iniciados sob a vigência da lei antiga é compatível com as exigências que, em caso de mutação da ordem jurídica, o legislador ordinário é obrigado a respeitar por força do princípio da proteção da confiança.

Enquanto refração do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, o princípio da tutela da confiança vem sendo densificado na jurisprudência constitucional nos termos seguintes:

«Para que [a confiança] seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição)».

De acordo com tal formulação, seguida no Acórdão n.º 287/90 e retomada no Acórdão n.º 128/2009, atrás citado, a lesão da confiança constitucionalmente censurável pressupõe, por força daquele primeiro critério, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos destinatários expectativas de continuidade, que essas expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões e, por último, que os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do “comportamento estadual”, que possam sair frustrados por mutações normativas do ordenamento com que os destinatários das normas não pudessem razoavelmente contar.

Deste ponto de vista – importa esclarece-lo desde já  – , é irrelevante que o prazo de três anos, previsto no n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, seja um prazo futuro, isto é, que apenas se inicia com a entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, a 1 de janeiro de 2014. O que releva no plano da confrontação da norma impugnada com o princípio da tutela da confiança é, em si mesma, a integração de novos pressupostos na condição resolutiva aposta ao benefício: é o facto de, por força da retroatividade imposta no n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, as isenções concedidas ao abrigo do artigo 8.º, n.º 7, alínea a), e n.º 8, do Regime jurídico aplicável aos FIIAH, na versão aprovada pela Lei n.º 64-A/2008, caducarem não apenas se o imóvel adquirido não for disponibilizado para arrendamento habitacional em momento ulterior ao da respetiva aquisição, mas ainda se, não obstante aquela disponibilização, nenhum contrato de arrendamento vier a ser efetivamente celebrado por razões não imputáveis ao fundo e/ou o imóvel adquirido acabar por ser alienado na sequência dessa impossibilidade, dentro dos três anos subsequentes à entrada em vigor da nova lei.

17. Conforme salientado já, o conjunto de benefícios fiscais incluídos no Regime jurídico especial aplicável aos FIAAH e SIAAH teve como propósito atrair o investimento privado para a constituição de fundos imobiliários, bem como a aquisição por estes de imóveis destinados ao mercado do arrendamento habitacional.

Embora o objetivo último de tal regime fosse dar resposta à situação das famílias que haviam deixado de conseguir suportar o empréstimo contraído para financiamento da aquisição dos imóveis em que residiam, permitindo-lhes manterem-se nos prédios adquiridos, mediante a celebração de contratos de arrendamento habitacional, apesar da respetiva alienação aos fundos imobiliários, o meio escolhido para o alcançar passou pela instituição de um conjunto de benefícios fiscais destinados a incentivar a constituição de fundos imobiliários e a fomentar o investimento destes na aquisição de imóveis para aquele efeito: era através do investimento a realizar pelos fundos imobiliários, incentivado pelo conjunto de vantagens fiscais associadas à aquisição de imóveis para ulterior arrendamento habitacional, que, na lógica subjacente ao regime instituído, tal finalidade seria em definitivo alcançada.

Sob a vigência da lei antiga, a destinação do imóvel adquirido ao arrendamento habitacional, através da sua efetiva disponibilização para tal efeito, constituía condição simultaneamente necessária e suficiente para atribuição das isenções concedidas no âmbito do IMT e do imposto de selo. Conforme notado, e bem, pelo Tribunal a quo, nada ali se previa sobre a necessidade de o imóvel adquirido vir a ser efetivamente arrendado e/ou de permanecer na propriedade do fundo adquirente durante um certo prazo, sob pena de caducidade do benefício.

Incentivados pelo regime fiscal previsto na Lei n.º 64-A/2008, os fundos imobiliários realizaram um conjunto de investimentos na aquisição de imóveis, na legítima convicção de que os benefícios fiscais associados a tais aquisições apenas caducariam se o imóvel adquirido não viesse a ser disponibilizado para arrendamento habitacional após a respetiva aquisição e não também se, não obstante essa disponibilização, nenhum contrato de arrendamento viesse efetivamente a ser celebrado dentro de determinado prazo por razões inerentes ao próprio funcionamento do mercado e/ou a fração adquirida acabasse por ser alienada por ausência de qualquer outra alternativa financeiramente viável para a respetiva rentabilização.

A confiança depositada pelos fundos na constância do regime fiscal contemporâneo dos investimentos que decidiram realizar, para além de digna de tutela, não pode deixar de considerar-se atingida pelas consequências da aplicação retroativa dos novos pressupostos da isenção.

Ao determinar a caducidade dos benefícios fiscais no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efetivamente arrendado dentro de determinado prazo por razões não imputáveis ao fundo e/ou acabar por ser por essa razão alienado de modo a conter ou minorar os prejuízos advenientes da objetiva impossibilidade da sua rentabilização no âmbito do destino legalmente prescrito, a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis.

De forma totalmente inovatória, passou a decorrer do regime aprovado pela lei nova que, independentemente das razões que possam ter inviabilizado a efetiva celebração do contrato de arrendamento sobre o imóvel, o benefício fiscal caduca pelo mero facto de tal contrato não chegar a ser efetivamente celebrado e/ou de o imóvel adquirido não ter permanecido na propriedade do fundo por determinado prazo, apesar da ausência de qualquer alternativa financeiramente sustentável para a sua detenção. Deste último ponto de vista – que é o que diretamente releva no caso sub judice –, decorre da aplicação do novo regime às aquisições realizadas sob a vigência da Lei n.º 64-A/2008 que o fundo imobiliário, ainda que tenha envidado todos os esforços para viabilizar a celebração de um contrato de arrendamento sobre o imóvel adquirido, é obrigado, sob pena de extinção do benefício, a manter a propriedade do prédio, suportando todos os encargos respetivos, durante os três anos subsequentes à entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, mesmo na duradoura e persistente impossibilidade de concretização daquele desiderato.

Ao originar a caducidade das isenções fiscais previstas no âmbito do IMT e do Imposto de selo por via do aditamento dos novos pressupostos, não contemplados na lei vigente à data da adquisição dos imóveis, a aplicação retroativa das alterações introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013 frustra as expectativas legitimamente incutidas nos fundos investidores pelo regime fiscal em vista (e sob incentivo) do qual tais aquisições foram decididas realizar, violando aquele mínimo de certeza e de segurança que todos os intervenientes no tráfego jurídico, ao planearem a sua ação e ao realizarem as suas escolhas, devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.

Não se descortinando qualquer interesse constitucionalmente protegido cuja salvaguarda pudesse justificar a lesão da confiança dos fundos imobiliários na manutenção do regime fiscal contemporâneo do ato de aquisição dos imóveis, é de concluir pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da tutela da confiança, da norma constante do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do regime jurídico aplicável aos FIIAH e às SIIAH, na versão decorrente da aludida Lei n.º 83-C/2013, por dela resultar que os prédios adquiridos na vigência da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, têm de ser efetivamente arrendados num prazo fixo, sem que possam ser vendidos na hipótese de o contrato de arrendamento não vir a ser celebrado, sob pena de caducidade da isenção.

[…]” (sublinhados acrescentados).

 

 Assim, sendo entende o Tribunal Constitucional, no processo n.º 915/18, que:

 

“O alargamento das causas de caducidade dos benefícios fiscais – no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efetivamente arrendado dentro de determinado prazo, ainda que por razões não imputáveis ao fundo, e/ou no caso de alienação, ainda que determinada pelo prejuízo daí adveniente – impõe-se como inelutável a apontada conclusão de que “[…] a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis”, resultado não tolerado pela tutela constitucional da confiança.”. (negrito nosso).

 

                Assim sendo, mesmo que se considerasse que a situação seria de retroatividade inautêntica, posição que não se perfilha, ainda assim estaríamos perante a violação da constituição, designadamente, por violação do princípio da proteção da confiança, nos termos decididos no processo arbitral n.º 40/2018-T, de 26 de setembro de 2018, e pelos arestos do Tribunal Constitucional 175/18 e 915/18.

 

                Efetivamente, a referida jurisprudência constitucional, e sobre o qual não se vê razão para se ter distinto entendimento, com exceção da questão sobre a retroatividade autêntica e inautêntica, conforme se deixou expresso nesta decisão, não tem a Requerida razão nos argumentos que vem trazer aos presentes autos de arbitragem, uma vez que aquilo que está em causa é o adicionamento ao pressuposto inicialmente previsto para a isenção, de novos pressupostos resultantes do aditamento ao artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH dos seus atuais n.ºs 14 a 16. Assim, a norma do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, um caso de retroatividade.

 

                Por outro lado, é irrelevante que o prazo de três anos, previsto no n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, seja um prazo futuro, isto é, que apenas se inicia com a entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, a 1 de janeiro de 2014. O que releva no plano da confrontação da norma impugnada com o princípio da tutela da confiança é, em si mesma, a integração de novos pressupostos na condição resolutiva aposta ao benefício, pelo que não aderimos à tese que se tratou de densificar os critérios antigos, pois, tratou-se de algo bem diferente. É, que, as isenções passaram também a caducar, apesar da disponibilização para arrendamento, nenhum contrato de arrendamento vier a ser efetivamente celebrado por razões não imputáveis ao fundo e/ou o imóvel adquirido acabar por ser alienado na sequência dessa impossibilidade, dentro dos três anos subsequentes à entrada em vigor da nova lei.

               

                Consequentemente, ao determinar a caducidade dos benefícios fiscais no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efetivamente arrendado dentro de determinado prazo por razões não imputáveis ao fundo e/ou acabar por ser por essa razão alienado de modo a conter ou minorar os prejuízos advenientes da objetiva impossibilidade da sua rentabilização no âmbito do destino legalmente prescrito, a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis.

 

Pelo que fica exposto, e designadamente pela desaplicação do nº 2, do artigo 236.º da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o nº 16º do artigo 8º da Lei nº 64- A/2008, de 31 de Dezembro, na redação da lei 83-C/2013, com fundamento na sua inconstitucionalidade, como impõe o artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, conclui-se que as liquidações de imposto em causa carecem de base legal, o que tem como consequência a anulação das mesmas.

 

                               DA RESTITUIÇÃO E DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

                               A Requerente veio ainda pedir a restituição das quantias indevidamente arrecadadas pela Requerida bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

                               No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da declaração de ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

 

                               No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.

 

                               Tal como resulta da decisão arbitral proferida no processo n.º 507/2017-T 11:

 

“No que concerne aos juros indemnizatórios, tratando-se de vícios derivados apenas da aplicação de norma inconstitucional, tem de se entender que as liquidações não enfermam de qualquer erro que seja imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que não há direito a juros indemnizatórios, à face do preceituado no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, como vem decidindo uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, pelas seguintes razões:

Nesse caso, e a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respetivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.). É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.

A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.

É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).

No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.

Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).

Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal.”.

 

                               Nos presentes autos é entendimento dever-se acompanhar tal entendimento jurisprudencial, pelo que se julga improcedente o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

III.          DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral Singular decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, decretar a anulação das liquidações objeto do processo;

 

b)           Julgar procedente o pedido de restituição das quantias pagas pela Requerente correspondente às liquidações e condenar a Requerida a devolver-lhe tal montante;

 

c)            Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e absolver a Requerida deste pedido;

 

IV.          VALOR DO PROCESSO

 

                Nos termos do n.º 2 do artigo 306.º do CPC, alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do processo é fixado em € 6.485,78.

 

 

 

V.           CUSTAS

 

Entende este Tribunal Arbitral Singular que o valor a considerar para efeitos de determinação das custas no presente Pedido de Pronúncia Arbitral é o valor que motivou a constituição deste Tribunal Arbitral Singular, i.e., o valor de € 6.485,78, correspondente ao valor das liquidações de IMT impugnadas e inicialmente indicado pela Requerente no Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, na proporção de 99%, e da Requerente, na proporção de 1%.

 

VI.          REMESSA AO MINISTÉRIO PÚBLICO

 

Nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, dispõe-se que “Sempre que seja recusada a aplicação de uma norma, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, constante de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, o tribunal arbitral notifica o representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual”.

 

No caso em apreço desaplica-se a norma do artigo 236.º, n.º 2, da lei 83-C/2013, de 31 de dezembro, em conjugação com o nº 16º do artigo 8º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de dezembro, na redação da lei 83-C/2013, por violação das normas da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, do artigo 103.º, n.º 3 da CRP, quanto à violação dos princípios da não retroatividade da lei fiscal e da proteção da confiança dos cidadãos.

 

Pelo que se ordena a notificação da presente decisão arbitral ao representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação.

Comunique-se à Senhora Procuradora-Geral da República, para os fins do artigo 280.º, n.º 5, da CRP.

 

Notifique-se às Partes e ao Ministério Público

 

Lisboa, 29 de novembro de 2021

 

O árbitro,

Rui Miguel Zeferino Ferreira