SUMÁRIO:
No domínio de vigência das alterações operadas pela Lei 42/2016, de 27 de dezembro, por não prever uma desvalorização relativamente à “componente ambiental” relevante no cálculo do valor do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutro Estado‑Membro e postos em circulação no território português, o art. 11º do CISV violava o art. 110.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
A..., LDA., NIPC..., com sede na ..., ..., ...-... – Vila Real apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
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O pedido
A Requerente pede a anulação parcial de um conjunto de liquidações de ISV, sustentando que são ilegais no montante global de € 52.849,35, cuja restituição peticiona, acrescida de juros indemnizatórios.
B) Posição das partes
A Requerente entende, em suma, que a alteração ao CISV operada pela Lei 42/2016, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), a qual deu nova redação ao art. 11º do CISV e à tabela D que integra esse mesmo artigo - norma aplicada nas liquidações impugnadas - viola o art. 110º do TFUE, pois limitou a aplicação das percentagens de redução do imposto, que exprimem a desvalorização do veículo em razão do seu uso, à “componente cilindrada” prevista em tal tabela, excluindo a “componente ambiental” (emissão de CO2), também prevista em tal tabela.
Em concreto, entende que à “componente ambiental” do cálculo do imposto liquidado deveria ter sido aplicada a mesma redução que foi considerada relativamente à “componente cilindrada”, o que, por não ter acontecido, originou um excesso de pagamento de imposto ilegal, no valor de € 52.849,35.
A Requerida não apresentou resposta, tendo feito juntar aos autos o PA.
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Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 03/05/2021.
A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a sua designação (árbitro singular) competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.
O árbitro designado aceitou tempestivamente a nomeação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 12/07/2021.
Notificada para tal, a requerida não apresentou resposta.
Por despacho arbitral de 02/11/2020, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, por manifestamente desnecessárias. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.
Posteriormente, a Requerida apresentou dois requerimentos, o primeiro dos quais intitulado “alegações”, nos quais afirma:
-que no doc. 2 junto ao requerimento inicial (listagem, elaborada pela Requerente, das liquidações impugnadas emitidas pela Alfândega de Bragança) se encontram repetidas: a liquidação resultante da DAV n.º 2018/..., relativa ao veículo a que foi atribuída a matrícula...; a liquidação resultante da DAV n.º 2018/..., relativa ao veículo a que foi atribuída a matrícula...; a liquidação resultante da DAV n.º 2018/..., relativa ao veículo a que foi atribuída a matrícula ....
Pelo que conclui ter sido peticionada em dobro a restituição do montante de €522,57.
- entende ainda que, quanto às restantes liquidações impugnadas, caso o pedido formulado venha a ser julgado procedente, a quantificação do montante de imposto a ser devolvido deve acontecer em execução de sentença e, ainda, que os juros indemnizatórios peticionados não deverão ser calculados nos termos formulados pela Requerida.
No segundo dos referidos requerimentos, a Requerida alega que a DAV n.º 2019/..., de 06.09.2019, relativa ao veículo de matrícula ... cuja liquidação a que deu origem consta do doc. 2 junto ao requerimento inicial - se refere a uma liquidação efetuada pela Delegação Aduaneira de Peso da Régua, a qual foi objeto de outro procedimento de revisão oficiosa, cuja decisão de indeferimento foi impugnada no Proc. n.º 270/2021-T, pelo que se verifica uma exceção perentória.
Em 16/11/20121 a Requerida fez juntar aos autos vários documentos (cópia das DAV em causa).
Exercendo o seu direito ao contraditório, a Requerente veio aceitar a existência dos referidos lapsos materiais.
II - SANEAMENTO
O Tribunal é competente e a ação tempestiva.
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não existem exceções de que cumpra conhecer.
III – PROVA
III.1 - Factos provados:
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A Requerente introduziu em Portugal, os veículos automóveis a seguir indicados, provenientes de Alemanha, Bélgica, França, Itália e Luxemburgo, com primeira matrícula registada num desses países.
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A Requerente procedeu à declaração aduaneira de cada um dos seguintes veículos:
- Junto da Alfândega de Braga:
Junto da Alfândega de Bragança:
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Relativamente à “componente cilindrada”, no cálculo do valor do imposto foi considerada a redução legalmente prevista, resultante do número de anos de uso dos veículos.
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O mesmo não aconteceu relativamente à “componente ambiental”, por falta de previsão legal.
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A Requerente procedeu ao pagamento dos impostos liquidados.
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A Requerente, em 13.01.2021, requereu às Alfândegas de Braga e de Bragança a revisão oficiosa das liquidações de imposto acima identificadas.
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Tais pedidos de revisão foram expressamente indeferidos por despachos notificados à Requerente em 22.04.2021.
Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de controvérsia.
Note-se que o dado por provado em b) é transcrição do constante das decisões dos procedimentos de revisão oficiosa juntas aos autos, sendo que nesta listagem não surgem as duplicações presentes nos doc. 1 e 2 juntos ao requerimento inicial, nem a inclusão da liquidação correspondente à DAV n.º 2019/..., de 06.09.2019, relativa ao veículo de matrícula ... .
III.2 - Factos não provados
Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.
IV- O DIREITO
A questão foi, muito recentemente, apreciada pelo TJUE, no seu acórdão C‑169/20, de 2 de setembro de 2021. Transcrevemos parcialmente:
A Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
O TJUE entendeu o seguinte:
35 Assim, a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.º TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 25 e jurisprudência referida).
36 Para efeitos da aplicação do artigo 110.º TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado‑Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar‑se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado‑Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 26 e jurisprudência referida).
37 Neste contexto, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto (v., por analogia, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 38).
38 Além disso, o Tribunal de Justiça especificou que, a partir do momento em que se paga um imposto de matrícula num Estado‑Membro, o montante desse imposto é incorporado no valor do veículo. Deste modo, quando um veículo matriculado no Estado‑Membro em causa é, em seguida, vendido como veículo usado nesse mesmo Estado‑Membro, o seu valor de mercado, que inclui o montante residual do imposto de matrícula, será igual a uma percentagem, determinada pela desvalorização desse veículo, do seu valor inicial (Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 40 e jurisprudência referida).
39 No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.
40 Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.
41 Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.
42 A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.
43 Ora, importa recordar que, embora os Estados‑Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C‑213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).
44 A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C‑290/05 e C‑333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).
45 Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).
46 Em contrapartida, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado‑Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º TFUE.
(…)
51 Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
Como é sabido, cabendo ao TJUE assegurar o primado do direito da União sobre direito de cada estado-membro, as suas decisões impõe-se aos tribunais nacionais, pelo que apenas há que aplicar no presente processo a decisão transcrita.
4 – Entende-se assim que, tal como peticionado, deve ser aplicada à componente ambiental a redução que se encontrava prevista no artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data das introduções no consumo, para a componente cilindrada.
A Requerida procedeu ao cálculo do montante que entende que lhe deverá ser restituído, concluindo que o mesmo seria de €52.849,35. Tal cálculo, como já referido, sofria vários lapsos materiais.
Certo é que o tribunal não possui elementos que lhe permitam fixar, com segurança, o quantitativo de imposto a ser restituído pelo que a quantificação do montante de imposto a ser devolvido à Requerente tem, necessariamente, que ser relegado para execução de sentença.
3 - Juros indemnizatórios
Nos termos da al c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
É jurisprudência pacífica do STA que os juros indemnizatórios só são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto.
Assim, atendendo a que os pedidos de revisão ora em causa foram rececionados em 13.01.2021, só haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios a partir de 13.01.2022.
V- Decisão arbitral
- Anulam-se parcialmente as liquidações constantes de b) dos factos provados, devendo, em execução de sentença, as mesmas ser reformadas, com aplicação à “componente ambiental” da mesma redução que se encontrava prevista no artigo 11.º do CISV, para a “componente cilindrada”, na redação em vigor à data das introduções no consumo
- Ao montante de imposto a ser devolvido à Requerente acrescerá juros indemnizatórios contados desde 13.01.2022.
VI - Notificação ao Ministério Público
Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.
VALOR: €52.849,35.
CUSTAS, que se fixam em € 2.142,00, pela Requerida, uma vez que foi total o seu decaimento relativamente às liquidações objeto do presente processo.
06 de dezembro de 2021
O árbitro
Rui Duarte Morais