Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 240/2021-T
Data da decisão: 2021-11-30  IRC  
Valor do pedido: € 169.752,93
Tema: IRC - Dedução de gastos; Princípio da especialização dos Exercícios.
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A.SUMÁRIO

 

  1. A contabilização de gastos num período de tributação diferente daquele em que foram incorridos, implicando a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, viola o princípio da especialização dos exercícios.
  2. Sem prejuízo de se considerar que o princípio da especialização dos exercícios não é absoluto, cedendo em alguns casos perante o princípio da justiça e/ou da igualdade, não é possível afastar o critério da periodização anual do imposto, nos casos em que o registo em exercício subsequente resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

B.RELATÓRIO

 

  1. No dia 23 de abril de 2021, A..., Lda., com sede na ..., ...-... ..., Beja, NIPC ... (“Requerente”) apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (“RJAT”), visando a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), n.º 2019..., e correspondentes juros compensatórios, no montante global de €169.615,39, referente ao exercício de 2015, mantido na sequência do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2020..., proferido pelo Exmo. Senhor Diretor de Finanças de Beja em 12 de novembro de 2020, e notificado em 16 de novembro de 2020.
  2. No dia 26-04-2021, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite, tendo disso sido notificada a AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, al. b) e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 15-06-2021, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 05-07-2021.
  6. No dia 22-09-2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
  7. No dia 27-09-2021 foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, tendo sido indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 5 de dezembro.
  8. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
  9. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  10. O processo não enferma de nulidades. Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
  11. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:
    1. Foi notificada da liquidação de IRC n.º 2019..., relativa ao exercício de 2015 e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019..., nos termos das quais deveria efetuar o pagamento do valor global de €169.615,39, incluindo juros compensatórios, até ao passado dia 31 de dezembro de 2019;
    2. Não tendo procedido ao pagamento do supra referido montante dentro do prazo de pagamento voluntário, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2020..., para cobrança coerciva do mesmo;
    3. Em conformidade com a Ordem de Serviço n.º OI2019..., a AT ordenou a ação inspetiva interna, ao exercício de 2015, com vista à análise da sua declaração periódica de rendimentos, no âmbito da qual a AT decidiu efetuar, entre outras, uma correção à matéria coletável no montante de €1.107.273,50, em virtude de a Declaração Periódica de Rendimentos Modelo 22, para o exercício de 2015, não considerar o resultado líquido do período apurado na contabilidade (i.e., prejuízo fiscal no montante de € 1.009.957,08), em violação do disposto no artigo 15.º, n.º 1, al. a) e artigo 17.º, n.º 1, al. a) do Código do IRC, correção com a qual se conformou;
    4. A AT decidiu efetuar uma correção à sua matéria coletável em virtude de não ter sido acrescido para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2015 a quantia de €1.220.221,46, referente a gastos com juros de financiamento, contabilizados como custo e alegadamente não aceites fiscalmente, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC;
    5. De acordo com as Conclusões da Ação Inspetiva efetuada, “são considerados gastos dos exercícios de 2013 e 2014 os juros de financiamentos obtidos e respetivos montantes de imposto do selo – verba 17.3.1 continente referentes às prestações vencidas nesses anos, pagas fora do prazo em 2015 (na condição de prestações já vencidas)”,
    6. Pois, alegadamente, “à data de vencimento de cada prestação o sujeito passivo já seria conhecedor de tais gastos, seja através do plano do crédito contratualizado, seja através dos avisos de cobrança emitidos pela instituição financeira em resultado dos incumprimentos verificados”,
    7. Concluindo a AT no sentido de que os referidos gastos com juros de financiamento inerentes a prestações vencidas em 2013 e 2014, contabilizados no exercício de 2015, “por não serem imprevisíveis à data de encerramento das contas dos respetivos anos de vencimento não podem ser considerados gastos fiscais do ano de 2015, conforme prevê o art.º 18.º, n.º 2 do CIRC”,
    8. Correção com a qual não se conforma;
    9. No âmbito da Ação de Inspeção Tributária, decidiu ainda a AT efetuar uma correção à sua matéria coletável, em virtude de não ter sido acrescido para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2015 a quantia de €454.939,05, referente a gastos com juros de financiamento, contabilizados como custo e alegadamente não aceites fiscalmente, nos termos do disposto no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea c) do Código do IRC;
    10. De acordo com as conclusões da ação inspetiva efetuada, no âmbito da ordem de serviço n.º OI2019..., “o lançamento 12.060, datado de 2015-12-31, registado no diário 20, evidencia a escrituração de gastos superiores em € 454.939,05 aos ainda passíveis de reconhecimento contabilístico (movimentos do dia 2015-10-30, extratados pela B... e que estariam por contabilizar no final do ano), correspondendo, assim, tal diferença a gastos não devidamente documentados, por falta de justificação válida para o seu reconhecimento contabilístico”, correção com a qual a Requerente se conformam;
    11. As correções efetuadas pela AT à matéria coletável do ano de 2015 resultaram na passagem de um prejuízo fiscal de € 1.621.384,58 para o apuramento de lucro tributável no montante de € 667.258,34;
    12. Na medida em que a Requerente não se conformou com a liquidação de IRC em crise, em virtude de parte das referidas correções efetuadas pela AT serem manifestamente ilegais, apresentou, em 2 de julho de 2020, Reclamação Graciosa contra a liquidação em crise, a qual pugnava pela ilegalidade parcial da referida liquidação, defendendo, em estreita síntese, a dedutibilidade fiscal dos gastos com juros de financiamento no montante de € 1.220.221,46, atenta a prevalência, in casu, do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios;
    13. A referida Reclamação Graciosa foi, contudo, indeferida por Despacho de 12 de novembro de 2020;
    14. Segundo o princípio da especialização dos exercícios, os rendimentos e os gastos, bem como outras componentes positivas e negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período em que são obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, o que significa que, a imputação das componentes positiva e negativa do lucro se efetua a partir da verificação dos respetivos eventos económicos geradores dos rendimentos ou dos gastos, sem consideração da sua efetivação financeira;
    15. Resulta da conjugação do artigo 18.º com o artigo 23.º, n.º 1, ambos do Código do IRC, que os juros de financiamento se consideram gastos dos exercícios nos quais se venceram as respetivas prestações – evento económico gerador do gasto sendo –, em princípio, apenas nesses exercícios que se lhes pode ser atribuída relevância fiscal;
    16. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender uniformemente que uma das situações em que é conveniente não dar prevalência absoluta às normas que definem a atuação da AT, restringindo o seu alcance de forma a assegurar a sua compatibilidade com os princípios consagrados no artigo 55.º da LGT, são precisamente os casos em que a AT, com base no princípio da especialização dos exercícios, efetua correções à matéria coletável dos contribuintes, causando uma situação de manifesta injustiça;
    17. Tem sido entendido que o princípio da especialização dos exercícios não deve ser interpretado e, consequentemente aplicado, de forma rígida e absoluta, devendo, ao invés, ser tendencialmente conformado e interpretado de acordo com o princípio da justiça, previsto no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 55.º da LGT;
    18. Do entendimento vertido na jurisprudência, resulta que, não obstante a AT estar perante um poder de controlo, predominantemente vinculado – correção da matéria coletável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios –, deve, numa situação como a que sucede in casu, fazer uma ponderação de valores, de modo que, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios não conduza a uma situação manifestamente injusta;
    19. Apenas “em regra” deve a AT aplicar o princípio da especialização dos exercícios, sendo certo que, em situações flagrantemente injustas, em que a imputação a um exercício de um custo referente a exercícios anteriores não resulta de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios, a AT deve fazer operar o princípio da justiça;
    20. Se a AT tinha, de facto, razão quando considerou que o custo fiscal, no exercício de 2015, no montante de € 1.220.221,46, violou o princípio da especialização dos exercícios por estarmos perante gastos com juros de financiamento cujas prestações se venceram em anos anteriores, a verdade é que a Requerente foi a única prejudicada pelo seu próprio erro ao declarar tais gastos apenas no exercício de 2015, pois, deduzindo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante de imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte;
    21. A AT não teve qualquer prejuízo, pois recebeu nos exercícios de 2013 e 2014 - exercícios nos quais a Requerente apurou lucro tributável - um montante de IRC em montante superior ao devido, pois não foram tidos em conta os gastos com juros de financiamento;
    22. Dúvidas não restam de que a imputação, no exercício de 2015, do montante de € 1.220.221,46 referente a gastos com juros de financiamento de exercícios anteriores, não resultou de qualquer omissão voluntária ou intencional da Requerente, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios ou fugir à tributação;
    23. Por outro lado, refira-se ainda que, a taxa geral de IRC, prevista no artigo 87.º do Código do IRC, era no ano de 2013 de 25% e no ano de 2014 de 23%, pelo que o benefício a nível da diminuição de imposto que adveio para a Requerente de ter imputado os gastos ao exercício de 2015 (no qual a taxa era de 21%) foi consideravelmente menor do que se lhe tivesse dado relevância fiscal em qualquer um dos exercícios anteriores;
    24. A obediência ao princípio da especialização dos exercícios não pode colocar em causa o conjunto de princípios que devem nortear a atuação da AT e, muito menos, afrontar os princípios constitucionais e os valores que lhe estão subjacentes, nomeadamente, o princípio da justiça;
    25. A própria Autoridade Tributária reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios no Ofício-Circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado com o respetivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.os 307-309, páginas 781-791, em que se adotou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

“Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores”.

  1. Não se compreende – nem se aceita – a posição absolutamente contraditória assumida pela Autoridade Tributária ao longo de todo procedimento gracioso, ao fazer tábua rasa do conteúdo e sentido do seu próprio Ofício-Circular e ao afirmar perentoriamente que “a Autoridade Tributária tem que se limitar a aplicar a legislação em vigor à data dos factos nos termos do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT), em obediência ao princípio da legalidade a que se encontra adstrita” e que “não cabe à AT analisar [o princípio da justiça] e aferir, uma vez que tem que se cingir à legislação aplicável” (comentário da Requerente - cfr. Documento n.º 9);
  2. Deve, por isso, aceitar-se a dedução dos gastos com os juros de financiamento no exercício de 2015, atendendo a que não houve uma intenção deliberada em proceder à transferência de resultados de exercício ou de fugir à tributação – nem tal vem sequer alegado pela AT;
  3. Por seu turno, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) alega, em síntese que:
    1. A Requerente intentou a presente ação arbitral contra o indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., deduzida contra o ato de liquidação de IRC e Juros Compensatórios referente ao exercício de 2015, n.º 2019... identificado no pedido arbitral e com origem na ação inspetiva efetuada ao abrigo da ordem de serviço OI2019...;
    2. A Requerente pede a anulação daqueles atos tributários, nomeadamente a anulação parcial do ato de liquidação n.º 2019..., a reformulação da mesma, a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, anulando-se o imposto, os juros no montante de €169.615,39, e reembolsando o montante indevidamente pago no valor de €137,54, como se demonstra no quadro infra:

Liquidação

 

N.º

Valor

Adicional de IRC

 

2019 ...

149.395,59

Juros Moratórios

 

2019 - ...

0,24

Juros Compensatórios

 

2019 - ...

20.219,56

Total

 

169.615,39

 

  1. Da leitura do PPA, constata-se que o mesmo reporta-se a correções levadas a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da DF Beja, decorrentes de erros praticados pela agora Requerente no apuramento dos resultados fiscais, por reconhecimento fiscal de gastos relativos aos períodos de 2013 e 2014, em violação do disposto pelo art.º 18.º do CIRC;
  2. O montante global das correções efetuadas pelos SIT reveste naturezas distintas:
  1. Por um lado, correções desfavoráveis à agora Requerente, efetuadas ao prejuízo fiscal por si declarado, identificadas no quadro infra:

 

Rubrica

Valor / Correção

Resul tado Líqui do Perío

do

Declarado

- 2.117.230,58

 

Corrigido

- 1.009.957,08

1.107.273,50

Gastos Fiscais

Período Anteriores

1.220.221,46

 

Não documentados

454.939,05

 

Juros mora aceites

- 493.791,09

1.181.369,42

Resul tados Fis cais

Declarado

- 1.621.384,58

 

Corrigido

667.258,34

- 2.288.642,92

                                             

  1. Consequentemente, a matéria coletável declarada veio a ser fixada nos seguintes termos:

 

Matéria Coletável

2015

Declarada

0,00

Correções

667.258,34

Corrigida

667.258,34

                           

  1. Por outro lado, foram ainda efetuadas correções em sede de imposto, favoráveis à agora Requerente, no valor de €137,56, relativas a tributações autónomas.
  1. Do montante global das correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção da Direção de Finanças de Beja, a Requerente afirma apenas contestar a correção relativa a gastos de financiamento respeitantes a períodos tributários anteriores (2013 e 2014), cujo quantitativo ascende a €1.220.221,46;
  2. Os gastos com os juros de financiamento no montante de €1.220.221,46 foram ilegalmente considerados como custo fiscal no exercício de 2015 por respeitarem a prestações vencidas em períodos de tributação anteriores (2013 e 2014) e por não serem imprevisíveis nem manifestamente desconhecidos à data do encerramento das contas dos respetivos anos de vencimento;
  3. As razões de facto e de direito invocadas pela Requerente estão longe de fundamentar ou sustentar a sua pretensão;
  4. Os SIT agiram em rigorosa conformidade com o quadro legal – contabilístico e fiscal, aplicável às situações em causa – artigo 18.º do Código do IRC como se encontra vertido no § «III.- 1 Correções à matéria tributável de IRC» do RIT. (Pontos 2) a 5), de pg-5/9 a pg-7/9 do RIT);
  5. A obrigação de as entidades elaborarem as suas demonstrações financeiras por respeito ao regime contabilístico do acréscimo (ou da periodização económica), encontra-se estabelecido nos §§ 22, 23 e 92, entre outros, da Estrutura Conceptual do SNC;
  6. A NCRF 27 trata do reconhecimento de passivos financeiros, decorrentes de obrigações contratuais de pagar dívidas a terceiros;
  7. A obrigação contratual de um passivo resulta de uma fatura ou acordo contratualmente formalizado como o credor. Este passivo, designado de passivo financeiro nos termos da NCRF 27, deve ser reconhecido no momento em que a entidade devedora se torne uma das partes contratuais, ou seja, quando formalmente (através de fatura ou contrato) assuma uma obrigação presente de pagar uma determinada quantia no futuro à outra parte;
  8. Quanto ao momento do reconhecimento dos juros implícitos no empréstimo, determina o referido normativo que os mesmos devem ser reconhecidos como gasto de juros nos resultados do período, atendendo ao pressuposto do regime do acréscimo. (Sobre esta matéria, entre outros, os §§ 5, 10 e 13 do normativo contabilístico);
  9. Fiscalmente, face ao disposto no artigo 17.º, n.º 3, al. a) do Código do IRC, os sujeitos passivos encontram-se obrigados a cumprir as regras de normalização contabilística que lhes sejam aplicáveis;
  10. Do princípio expressamente consagrado pelo próprio legislador fiscal no artigo 18.º do Código do IRC decorre, também, que na determinação do lucro tributável os sujeitos passivos se encontram obrigados a observar a periodização económica ou especialização dos exercícios;
  11. O princípio da periodização económica dos exercícios, a que se refere o artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC, traduz-se na regra de que devem ser considerados como rendimentos ou gastos de determinado período os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse período digam respeito, sendo irrelevante o período em que eles se materializam;
  12. No artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC prevê-se uma exceção apenas para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data de encerramento das contas de determinado período, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, o que revela bem que, nos outros casos, essas componentes positivas ou negativas apuradas à data do encerramento das contas relevam para apuramento da liquidação desse período;
  13. Assim, ainda que as normas fiscais não dispusessem sobre a obrigação de cumprimento do princípio da periodização económica do lucro tributável, por força da dependência parcial da fiscalidade face à contabilidade (artigo 17.º, n.º 1 do Código do IRC), essa exigência resulta de imediato das normas contabilísticas;
  14. Deste modo, as normas fiscais, nesta matéria, têm um carácter reforçado pois limitam-se a reiterar o que o legislador contabilístico já determina;
  15. Por isso, está em causa não só a falta de cumprimento das regras fiscais, mas, desde logo num primeiro momento, a violação das regras de normalização contabilística;
  16. Resulta, assim, que independentemente de a questão ser apreciada face ao normativo contabilístico, ou atentas as normas fiscais, uma componente negativa do lucro tributável - gastos - só poderá ser imputada ao lucro tributável de um período posterior se, à data de encerramento das contas do período a que respeita era manifestamente desconhecida ou imprevisível;
  17. No caso em apreço, é manifesto que não se está perante uma situação enquadrável nesta exceção, pois era do perfeito conhecimento da requerente todos os factos envolvendo as operações em causa, sendo os gastos de financiamento suportados perfeitamente apuráveis/quantificáveis no final de cada período de tributação;
  18. O princípio da periodização económica, da periodização do lucro tributável, especialização dos exercícios ou balanceamento de rendimentos e gastos, independentemente da terminologia adotada ou do quadro legal em que estejamos inseridos - seja ele o direito contabilístico ou fiscal, tem na sua génese uma única exigência: que os rendimentos sejam reconhecidos para efeitos de determinação de resultados à medida que os gastos sejam incorridos;
  19. Reforçando o legislador este princípio no artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC, afirmando expressamente que as componentes respeitantes a períodos anteriores só podem ser imputáveis ao período, se anteriormente fossem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas;
  20. Quando esta norma - artigo 18.º, n.º 2 se refere às “componentes positivas ou negativas […] imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” no período a que respeitam, o mesmo não se destina a cobrir erros contabilísticos ou atos dos próprios sujeitos passivos. Antes pelo contrário, a norma deverá ser interpretada no sentido de que tais pressupostos, para serem relevantes, devem decorrer de situações externas que os sujeitos passivos não podem controlar;
  21. Isto é, sempre que essa imprevisibilidade ou desconhecimento decorra de situações/factos externos os quais não são suscetíveis de controlo pelos próprios sujeitos passivos (cfr. entre outros Acórdão do STA de 2008-06-25, proc.º n.º 0291/08);
  22. A atividade das empresas desenrola-se em vários ciclos, com características e objetivos distintos. Sendo certo que o exercício de atividade por parte das empresas se desenrola no seio da realidade económica, e pese embora essa atividade flua de forma continuada, bem se compreende que, tanto o legislador fiscal quanto o legislador contabilístico não permitam, por via do princípio da periodização do lucro tributável, que aos sujeitos passivos seja deixada a discricionariedade de escolherem o momento para o reconhecimento de rendimentos e/ou de gastos, impossibilitando, assim, a manipulação de resultados, seja ela por razões de mera economia fiscal, sejam quaisquer outras;
  23. O princípio constitucional da tributação das empresas que o legislador bem expressa “fundamentalmente” pelo rendimento real se traduz que esse rendimento real terá de ser o efetivamente obtido e não aquele que as empresas entendam dever sujeitar a tributação. Ou seja, estamos em presença de um princípio aplicável em obediência a duas realidades:
  1. Por um lado, as empresas não podem ser tributadas por um rendimento que não tenham obtido mas,
  2. Por outro lado, e por força desse mesmo rendimento real, também não podem ser sujeitas a tributação relativamente a um rendimento manifestamente inferior ao que efetivamente foi alcançado no exercício da sua atividade económica.
  1. A Requerente não se limitou a imputar ao período de 2015 factos fiscalmente relevantes imputáveis a períodos anteriores, numa situação que porventura pudesse ser qualificada de imprevisível, oportunamente desconhecida, ou até mesmo aceitavelmente desculpável;
  2. O procedimento por si adotado foi muito mais grave, já que durante pelo menos três períodos repetidamente cometeu os mesmos erros e inexatidões nos atos de autoliquidação concretizados com a entrega das suas DR MOD 22 de IRC e, bem assim, nas IES;
  3. Assim foi no período de 2015, como também nos períodos de 2013 e de 2014;
  4. Ora, o princípio da justiça deve ser compatibilizado com outros, como o sejam desde logo os princípios da igualdade e da legalidade;
  5. O procedimento adotado pelos SIT é o que qualquer sujeito passivo na situação da Requerente teria tido da parte da AT, para uma mesma situação fáctica;
  6. De nada serve invocar o princípio da justiça sem relevar o facto - determinante -, de a Requerente não ter logrado provar que efetivamente estamos perante uma situação de negligência;
  7. A Requerente não comprova, sem margem para dúvidas, pois não demonstrou, como lhe competia e como deveria ter feito, que os erros e omissões cometidos no apuramento do lucro tributável dos períodos de 2013, 2014 e 2015, não foram voluntários e ou intencionais. Antes pelo contrário, dos mesmos resultam um conjunto de incongruências que demonstram que as sucessivas incorreções praticadas pela Requerente nos atos de autoliquidação ao longo de pelo menos 3 períodos foram praticadas intencionalmente de forma a manipular os valores evidenciados nas suas DF e DR MOD 22, como ainda demonstraremos;
  8. A Requerente admite que a AT tem razão quando considerou que o custo fiscal no exercício de 2015 - € 1.220.221,46 - violou o princípio da especialização dos exercícios, pois a existência de gastos com juros de financiamento cujas prestações se venceram em anos anteriores, invocando, contudo, que a Requerente foi a única prejudicada pelo seu próprio erro ao declarar tais gastos apenas no exercício de 2015, tendo desconsiderado aquele montante como custo fiscal do exercício de 2015;
  9. A Requerente alega também que da situação não resultou para si qualquer vantagem ou benefício pois até pagou imposto antecipadamente, na medida em que nos períodos de 2013 e 2014 apurou matéria coletável e imposto a pagar, ao invés de ter prejuízos fiscais, por consideração dos gastos em causa;
  10. As vantagens e benefícios obtidos não se restringem a uma apreciação redutora e simplista como a Requerente pretende fazer valer. Nos períodos de 2013 e 2014, os procedimentos de autoliquidação efetuados pela requerente foram sustentados nos seguintes valores:

Rubrica

2013

2014

Resultado Líquido

409.090,05 

651.359,05 

Lucro Tributável

461.730,60 

867.791,77 

Prejuízos deduzidos

346.297,95 

10.266,41 

Matéria Coletável

115.432,65

857.525,36

 

  1. Na determinação da Matéria coletável destes períodos, a Requerente deduziu um total de €356.564,36 de prejuízos reportáveis, nos termos do disposto pelo artigo 52.º do Código do IRC;
  2. Prejuízos apurados nos seguintes períodos:

            Período

Prejuízos 

Caducidade Dedução

Apurados

Deduzidos

2009

- 165.919,87

 

2015

2010

- 146.554,96

 

2014

2011

0,00

161.384,09

 

2012

- 205.473,62

 

2017

2013

 

346.297,95

 

 

Período

Prejuízos 

Caducidade Dedução

Apurados

Deduzidos

2014

 

10.266,41

 

Total

- 517.948,45

517.948,45

 

 

  1. Constata-se que existe uma vantagem obtida pela Requerente e se exprime no facto de a caducidade de dedutibilidade dos prejuízos fiscais declarados no período de 2010 ocorrer em 2014, pelo que, se nos períodos de 2013 e 2014 não tivesse declarado lucro tributável perderia o direito à dedução dos mesmos;
  2. A manipulação dos resultados possibilitou-lhe, por essa via, utilizar na totalidade do reporte de prejuízos apurados nos períodos de 2009 e 2010;
  3. As vantagens não se limitam à integral utilização do reporte de prejuízos. Atentas as alterações introduzidas na norma, a caducidade do direito à dedução dos prejuízos que no período era de 5 anos, a partir do período de 2014 passou a ser de 12 anos. Desse modo, enquanto relativamente aos prejuízos apurados no período a sua caducidade ocorre em 2018, já quanto aos apurados em 2015, essa caducidade só se irá verificar em 2027;
  4. Quanto à transferência de resultados/prejuízos do período de 2014 para 2015, pese embora o prazo para a sua dedução seja o mesmo - 12 anos, quanto à respetiva caducidade, os de 2014 caducam em 2026 enquanto os apurados em 2015, como referido, caducam um ano mais tarde, i.e., em 2027;
  5. Importa ainda referir que o limite à dedutibilidade de prejuízos, fixado pelo artigo 52.º, n.º 2, do IRC, em 2013 era de 75%, após 2014 passou a ser 70%, tendo sido em 2013 que a Requerente deduziu a quase totalidade do reporte de prejuízos dedutíveis, i.e., mais de 97%;
  6. O saldo que ascendia a €356.564,36, utilizou no período de 2013, deduzindo ao lucro tributável, o quantitativo de €346.297,95;
  7. Acresce que a quase totalidade do valor correção efetuada pelos SIT que ascendeu a €1.220.221,46, cerca de 90% respeita a gastos imputáveis precisamente ao período de 2013, em concreto, €1.094.161,20;
  8. Os valores evidenciados nas demonstrações financeiras são vertidos na IES e nos seus vários anexos. (Veja-se, entre outros diplomas, as portarias: n.º 208/2007, de 16 de fevereiro; n.º 8/2008, de 03 de janeiro; n.º 64-A/2011, de 3 de Fevereiro e ainda a n.º 26/2012, de 27 de janeiro);
  9. Como é sabido, a finalidades de tais documentos vai muito além de fins exclusivamente fiscais destinando-se, mormente:
  1. À comunicação das contas anuais junto das conservatórias do registo comercial;
  2. Efeitos de tratamento estatístico pelo INE;
  3. Efeitos de tratamento estatístico pelo Banco de Portugal; e
  4. Subsequentemente, para fins de tratamento estatístico junto dos vários organismos da União Europeia.
  1. Sobre a necessidade de as demonstrações financeiras representarem fiavelmente a situação patrimonial dos sujeitos passivos, acresce referir que é suportando-se nelas que, por exemplo, as entidades competentes:
  1. Analisam pedidos de financiamento;
  2. Projetos de investimento;
  3. Pedidos de auxílios/ajudas estatais,
  1. Traduzindo-se muitas destas situações em factos que conduzem à ocorrência de despesa pública, intrínseca aos benefícios fiscais que lhes estão subjacentes;
  2. Conforme informações evidenciadas na IES, a Requerente obteve subsídios estatais de naturezas diversas (Cfr. quadro «Comentários Preenchidos» pg-56/63, PT 2013);
  3. A não observância, por parte dos SIT, das orientações vertidas no ofício-circulado não resultam de uma qualquer violação dos deveres que sobre os mesmos impendem mas, outrossim, porque a situação em apreço se enquadra numa das exceções nela previstas, que a própria Requerente destaca;
  4. Como bem salientam os SIT no RIT, entendimento reforçado no despacho que indeferiu o procedimento de RG, a AT está subordinada ao princípio da legalidade, que tem suporte no artigo 266.º, n.º 2 da CRP e no artigo 55.º da LGT, em face dos quais, o princípio da legalidade apresenta uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a atuação da atividade da AT. Assim, a AT apenas pode praticar os atos especificamente previstos pela lei, não lhe sendo permitir praticar atos que não se encontrem previstos ou aqueles que por essa mesma lei sejam proibidos;
  5. A possibilidade de a AT decidir à luz de poderes discricionários poderia, ainda, conduzir à violação de um outro princípio constitucional exigido pelo artigo 266.º, n.º 1 da CRP, do qual resulta que a AT tem de exercer as suas funções na prossecução do bem comum, princípio fundamental que necessariamente se sobrepõe à defesa dos interesses pessoais, individuais e egoísticos de cada cidadão;
  6. Não se vislumbra, pois, que a atuação dos SIT ou ao despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, ambos aqui colocados em causa, sejam passíveis de reparo ou aos mesmos possa ser imputado qualquer vício ou ilegalidade;
  7. Na eventualidade de o pedido vir a merecer provimento por parte deste Tribunal, o imposto que eventualmente venha a apresentar-se em falta não decorre, pura e simplesmente, da anulação do ato de liquidação adicional de IRC contestado, e a consequente devolução do imposto autoliquidado em excesso pela requerente como se encontra apurado no ponto 96.º do PPA. Isto porque, estando em causa gastos de financiamento, impõe-se proceder à aplicação do disposto pelo artigo 67.º do Código do IRC, e aferir se o montante de gastos deduzidos fiscalmente respeita os limites de dedutibilidade fixados no referido normativo;
  8. O artigo 67.º, n.º 1, al. a) do Código do IRC, um limite máximo de €1.000.000,00, de gastos de financiamento dedutíveis, e tendo já sido considerado pelos SIT o reconhecimento à dedutibilidade do montante de €571.682,85, eventualmente poderia vir a ser aceite fiscalmente a diferença entre o limite fixado na norma e o valor já reconhecido em sede de inspeção;
  9. Impõe-se, igualmente, aferir se deverá aplicar-se o limite previsto na al. a) ou o fixado pela al. b), da mesma norma o qual, relativamente ao período de 2015, estabelecia ainda uma limitação dos gastos de financiamento a 50% do EBITDA;
  10. Com base nos elementos disponíveis (evidenciados na IES, cumulativamente com os firmados no RIT), salvo erro ou omissão, este limite de 50% poderá ser determinado nos seguintes termos:

Rubrica

Valor

Resultado Líquido

-1.009.957,08

Gastos de financiamento

1.790.201,60

Amortizações/Depreciações

1.038.318,03

Total

1.818.562,55

Limite 50% - al. b) n.º 1 artigo 67.º

909.281,28

Gastos já aceites fiscalmente

571.682,85

 

Rubrica

Valor

Limite dedutível

337.598,43

 

  1. Na medida em que os limites à dedutibilidade dos gastos de financiamento, estabelecidos pelo artigo 67.º, n.º 1 do Código do IRC, impõe a limitação do valor de €1.000.000,00 ou de 50% do EBITDA, sendo este inferior ao primeiro, terá de observar-se aquele;
  2. Consequentemente, o montante global dos gastos de financiamento que, eventualmente, possa vir a ser reconhecido fiscalmente ascende apenas a €428.317,15, apurado como seguidamente se explicita:

 

Rubrica

Valor

Diferença Limites29

Limites estabelecidos pelo n

.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC

 

al. a)

1.000.000,00

428.317,15

al. b) - 50% EBITDA

909.281,28

337.598,43

Gastos financiamento já aceites fiscalmente

571.682,85

 

Valor máximo gastos dedutíveis30

428.317,15

 

                                  

C.MATÉRIA DE FACTO

 

C.1. Factos provados

 

  1. A Requerente intentou a presente ação arbitral contra o indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., deduzida contra o ato de liquidação de IRC e Juros Compensatórios referente ao exercício de 2015, n.º 2019 ... identificado no pedido arbitral e com origem na ação inspetiva efetuada ao abrigo da ordem de serviço OI2019... .
  2. As correções efetuadas pela AT à matéria coletável do ano de 2015 resultaram na passagem de um prejuízo fiscal de € 1.621.384,58 para o apuramento de lucro tributável no montante de € 667.258,34;
  3. Os gastos com os juros de financiamento no montante de €1.220.221,46, considerados como custo fiscal no exercício de 2015, por respeitavam a prestações vencidas em períodos de tributação anteriores (2013 e 2014) e não eram imprevisíveis nem manifestamente desconhecidos à data do encerramento das contas dos respetivos anos de vencimento.
  4. A consideração fiscal, no exercício de 2015 dos gastos de financiamento vencidos em 2013 e 2014 geraram benefícios para a Requerente.

 

C.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

C.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

  1. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (Cfr. n.º 2, do artigo 123.º, do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi als. a) e e) do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT).
  2. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (Cfr. artigo 596.º, aplicável ex vi do al. e) do n.º 1, do artigo 29.ºdo RJAT).
  3. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7, do artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados;

 

D.DO DIREITO

 

  1. Sem prejuízo da forma como o caso foi exposto quer pela Requerente, quer pela Requerida, considera este Tribunal que, no essencial, a questão que cumpre analisar respeita à possibilidade de relevar fiscalmente gastos de períodos diferentes daqueles em que os gastos são incorridos.
  2. A este respeito, começamos por referir que o princípio da especialização económica dos exercícios, consagrado artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC, consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efetivo recebimento ou pagamento.
  3. Acresce, nos termos do artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC, os proveitos ou custos respeitantes a exercícios anteriores podem ser imputáveis a um outro exercício quando à data do encerramento das contas daquele eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.
  4. O que acabámos de descrever significa que o custo ou proveito está tendencialmente associado ao momento da emissão do documento, sendo esse um critério que reflete o princípio da periodização anual do imposto.
  5. Em todo o caso, do que acabámos de dizer, também é, desde já possível verificar que o princípio da especialização dos exercícios não é absoluto.
  1. Com efeito, os Tribunais superiores, nomeadamente o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), tem vindo a defender que os “proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios. As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas (artº 18°, n.°s 1 e 2, do CIRC).” (Cfr., Acórdão do STA, processo 01463/12, de 06/18/2014).
  2. As regras que resultam do Código do IRC, artigo 18, n.ºs 1 e 2, são, assim, a não imputação de custos e outras componentes negativas do lucro tributável relativas a períodos anteriores.
  3. Contudo, a regra geral prevista no artigo 18.º do Código do IRC, e confirmada pela jurisprudência, deverá comportar exceções para além da prevista no artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC. Caso contrário, estar-se-iam a criar as condições para tributar o rendimento bruto, ao invés do rendimento líquido, ao arrepio dos princípios da capacidade contributiva (i.e., violando o princípio da igualdade), da tributação pelo lucro real e da justiça.
  4. A relevância fiscal do gasto é um elemento nevrálgico do funcionamento do Código do IRC e da sua conformação constitucional. Naturalmente, o princípio da especialização dos exercícios, corolário da anualidade do IRC é, também ele, um garante da tributação pelo lucro real.
  5. Assim, é óbvia a tensão entre o princípio da especialização dos exercícios, por um lado, e uma necessária solidariedade dos exercícios por força dos princípios da capacidade contributiva e justiça por outro.
  6. Como resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA-S”), processo 74/01.7BTLRS, o “princípio da justiça, deve visualizar-se como limite ao abordado princípio da especialização ou do acréscimo, nomeadamente, quando confrontado com o imperativo da tributação pelo rendimento real ou de acordo com a capacidade contributiva demonstrada. Do referido artº.18, do C.I.R.C., resulta uma vinculação para a A. Fiscal, a qual, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes. Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artºs.266, nº.2, da C.R.P., e 55, da L.G.T., para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição. Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário que pode abarcar mais do que um ano fiscal e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de conflito, se deve dar prevalência a este último princípio. Numa situação destas, em que não seja possível a “correcção simétrica”, por razões de tempestividade, a doutrina e a jurisprudência vêem afirmando que o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, nomeadamente quando a respectiva imputação não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”.
  7. Esta flexibilização do princípio da especialização dos exercícios, atendendo a princípios de justiça tem vindo a ser reiterada em diversos Acórdãos dos Tribunais superiores.
  8. Como tem defendido o STA, o princípio da especialização dos exercícios “deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”. (Cfr., Acórdão do STA, processo 0807/07, de 04/02/2008).
  9. Também no Acórdão do STA processo 0291/08, de 06/25/2008, se reitera que em “matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios – artigo 18.º do CIRC – traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis.”, mas que “[n]ão põe em causa tal princípio a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios”, sendo tal postulado  “exigido pelo princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 50.º da LGT”.
  10. Resulta, aliás, do Acórdão do STA processo 0291/08, de 06/25/2008, “que erros humanos não são imprevisíveis nem podem ser manifestamente desconhecidos”, pelo que o artigo 18.º, n.º 2 do Código do IRC, “não pode cobrir erros contabilísticos ou actos do próprio contribuinte (…). Todavia, a predita rigidez ainda por outros caminhos deve ser atenuada.

O que tem tido eco tanto na doutrina como na jurisprudência e, até, na própria administração fiscal.

Na verdade e em idêntica matéria, ainda que respeitante à abolida Contribuição Industrial, onde vigoravam princípios e normas semelhantes, aquela rigidez foi flexibilizada, através do Ofício-Circular C-1/84, de 18 de Junho, consequência do parecer do Centro de Estudos Fiscais publicado in Ciência e Técnica Fiscal 307/309, p. 781 e ss., sobre que recaiu despacho de concordância do Secretário de Estado do Orçamento de 8 de Junho de 1984, acabando o fisco por adoptar, pois, posição mais flexível quanto ao problema.

E, bem assim, a jurisprudência deste STA – cfr. os acórdãos de 13 de Novembro de 1996 – recurso n.º 20.456, de 23 de Fevereiro de 2000 – rec. 24.039 e, mais recentemente, de 25 de Janeiro de 2006, recurso n.º 0830/05.

Assim, sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, permite-se a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, exemplificando-se com casos - em que tal se presumiria - como “quando está para acabar ou, para se iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir os prejuízos de determinado exercício, para retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para reduzir a contribuição industrial” - Cfr. Ciência e Técnica Fiscal 349-84 e Manuel Henrique de Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável, 1986.

Como, aliás, desenvolvidamente comentam Diogo Leite Campos, Benjamin Rodrigues e Jorge de Sousa, in Lei Geral Tributária anotada, 3.ª edição, pp. 242-243:

Transcorrido «o prazo em que podiam ser efectuadas correcções», «se a administração fiscal tinha razão na correcção que efectuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria colectável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir» pois, em tal circunstância, «o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efectuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito».

“Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 50.º da Lei Geral Tributária, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.

Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga qualquer vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.

Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.

Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na actuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de actuar.

Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que conduzam a situações injustas deste tipo”.

Pelo que é de aceitar, para efeitos fiscais, a contabilização efectuada pela contribuinte, já que não vem sequer alegada qualquer das preditas ressalvas.

Nem, assim, se posterga o dito princípio da especialização dos exercícios, que ficaria na disponibilidade do contribuinte, pois se trata de uma evolução positiva e que exclui as referidas omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

Tanto mais que, em princípio, do diferimento da contabilização dos custos só resultaram prejuízos para o contribuinte, pois só viu o lucro tributável desonerado de tais custos em momento posterior àquele em que tal deveria ter ocorrido.”.

  1. Naturalmente, a existência de omissões “voluntárias e intencionais” implica uma análise que, no limite, seria profundamente subjetiva, porque baseada na intencionalidade.
  2. Como resulta da jurisprudência citada e até deste Centro de Arbitragem Administrativa “[s]ubjacente à referida jurisprudência está a circunstância de o sujeito passivo ter sido prejudicado ou não ter tido vantagem pelo atraso da relevância fiscal do gasto, que, a verificar-se, é um elemento de relevo decisivo para presumir que o erro foi involuntário e não intencional” (Cfr. Processo n.º 553/2019-T, CAAD).
  3. Assim, a análise dos desvios ao princípio da especialização dos exercícios requer, naturalmente, uma verificação casuística, na qual salientamos os seguintes elementos:
    1. A regra será a da aplicação do princípio da especialização dos exercícios;
    2. A referida regra comporta exceções, quando a aplicação do princípio da especialização dos exercícios leve a situações injustas ou violadoras do princípio da capacidade contributiva. Ou seja, a mera invocação, sem mais, do princípio da especialização dos exercícios não será suficiente para afastar, por si só, a dedutibilidade de gastos incorridos em exercícios diferentes em todos os casos;
    3. A flexibilização do princípio da especialização dos exercícios deve ter como limite omissões voluntárias e intencionais;
    4. A concretização da intencionalidade da omissão pode ser aferida, nomeadamente, pela existência de prejuízos ou vantagens na não dedução do gasto no período em que este deveria ter sido considerado nos termos do artigo 18.º do Código do IRC.
  4. Por outras palavras, a desconsideração, sem mais de gastos com base do princípio da especialização dos exercícios levaria, em determinados casos, a situações manifestamente injustas e violadoras do princípio da capacidade contributiva, razão pela qual em situações excecionais deve aquele princípio ser flexibilizado.
  5. De qualquer forma, a flexibilização é a exceção, pelo que não deve ser utilizada como forma de planeamento pelos sujeitos passivos.
  6. Sempre será de referir que o princípio da justiça, resultante, entre outros, dos artigos 5.º e 55.º da LGT, e 262.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa não balizam apenas a atuação da AT quando a aplicação de determinadas normas poderia conduzir a resultados indesejáveis. O referido princípio obsta ainda a que a aplicação das normas (e.g., do Código do IRC) permita uma aplicação desigual entre sujeitos passivos ou convole determinados princípios do sistema em comandos meramente programáticos.
  7. Ora, no caso concreto, a AT não se limitou a aplicar o princípio da especialização dos exercícios tendo também sido bastante convincente na sua demonstração de que a Requerente teve vantagens na dedução dos gastos em períodos diferentes dos que deveria ter considerado nos termos do artigo 18.º do Código do IRC, ou seja, de que aquele princípio não deveria ser flexibilizado na situação em apreço.
  8. Com efeito, por força das diferentes regras de reporte e utilização de prejuízos fiscais, bem como das regras relativas à caducidade do reporte, parece que a Requerente tirou, efetivamente, partido da consideração fiscal dos gastos em período diferente daquele em estes foram incorridos.
  9. Desta feita, considera-se que o princípio da especialização dos exercícios deve ser mantido neste caso, dando-se provimento às pretensões da Requerida, ou seja, mantendo-se a liquidação de IRC n.º 2019 ...  na ordem jurídica.

 

E.DECISÃO

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC n.º 2019..., e correspondentes juros compensatórios, no montante global de €169.615,39, referente ao exercício de 2015, mantido na sequência do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2020... .

 

F.VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, e 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) fixa-se ao processo o valor de €169.752,93.

 

G.CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas €3.672.00, de harmonia com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 30 de novembro de 2021

 

Os Árbitros

Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente)

Luciano dos Santos Carvalho

Leonardo Marques dos Santos