Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2021-T
Data da decisão: 2021-11-30  IVA  
Valor do pedido: € 6.470.904,43
Tema: IVA - Locação financeira e ALD. Afectação real e pro rata. Percentagem. Ofício circulado 30108, 30-01-2009.
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SUMÁRIO: A norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

1. RELATÓRIO

 

A..., S.A., número único de pessoa colectiva e matrícula..., com sede na Rua ..., n.º..., Porto, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, em conjugação com o disposto na alínea a) do artigo 99.º e n.º 1 do artigo 102.º todos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pedir a constituição de um Tribunal Arbitral a 03/03/2021.

 

É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 22/06/2021.

 

O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto imediato a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e, por objecto mediato, a liquidação de IVA relativa ao ano de 2018 resultante da declaração periódica número ..., melhor identificadas no P.P.A., nos termos do qual, por motivo de erro relativamente ao regime jurídico do direito à dedução do imposto nos recursos de utilização mista, a Requerente procedeu, entende, à entrega, em excesso, do montante de IVA de 6.470.904,43€, pugnando a Requerente pela respectiva anulação e, ainda, pelo reconhecimento do seu direito a ser reembolsada dos valores indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

 

A Requerida apresentou, a 17/09/2021, a sua Resposta, pugnando pela manutenção da decisão e da liquidação que são objecto do P.P.A., e juntou, na mesma data, aos autos o processo administrativo.

 

O Tribunal proferiu, a 28/09/2021, despacho arbitral convidando a Requerente a, em cinco dias, indicar nos autos se mantinha interesse na produção de prova testemunhal requerida e, em caso afirmativo, quais, de entre os alegados, os factos que pretendia ver objecto desse meio de prova ou requerer eventualmente o aproveitamento para estes autos da prova testemunhal produzida noutro processo.

 

A Requerente, em resposta, veio declarar manter interesse na produção da prova testemunhal e requerer o aproveitamento da prova testemunhal produzida no processo arbitral 885/2019-T no que respeita à dedução de IVA na actividade de crédito com reserva de propriedade e de locação financeira, por apresentarem aqueles autos identidade factual e da causa de pedir relativamente ao processo sub judice no que respeita à actividade de CRP e à actividade de locação financeira.

 

Notificada a Requerida para se pronunciar, veio, a 15/10/2021, declarar que não se opõe ao aproveitamento da prova, mas que repudia a decisão sobre a matéria de facto tomada naquele processo arbitral 885/2019-T.

 

O Tribunal proferiu, seguidamente, despacho, decidindo considerar, na apreciação e para a decisão da matéria de facto, os depoimentos registados prestados no processo nº 885/2019-T, que correu termos no CAAD entre as mesmas partes alegadamente com discussão sobre a mesma matéria de facto destes autos, esclarecendo que aprecia livremente e apenas para efeito de prova os depoimentos prestados, sem se sentir vinculado à apreciação e decisão resultante desses depoimentos no citado processo nº 885/2019-T, e, ainda, no sentido de que, não se tratando de processo passível duma definição de trâmites processuais específicos e não tendo sido suscitada matéria de exceção, se lhe afigurava dispensável a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT,  convidando as partes a apresentarem alegações finais escritas no prazo simultâneo de vinte duas e designando, para a prolação da decisão arbitral, o dia 18/12/2021, a data limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT, e advertindo a Requerente de que deve previamente proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

A 19/10/2021 foram juntas aos autos as gravações e a acta das inquirições realizadas no processo nº 885/2019-T.

 

A Requerente juntou aos autos o comprovativo, as suas alegações a 11/11/2021 e a Requerida, a 15/11/2021.

 

 

São estas, sumariamente, as posições das partes:

 

Posição da Requerente:

Sumariamente, a Requerente entende que, na declaração para liquidação do IVA de Dezembro de 2018, no que diz respeito à dedução de IVA incorrido em recursos de utilização mista efectuada no âmbito das áreas de actividade crédito com reserva de propriedade  e locação financeira, não procedeu à dedução do IVA que suportou e que tinha, segundo ela, direito a deduzir em conformidade com a legislação nacional e comunitária aplicáveis, tendo (incorrectamente) desconsiderado i) os valores relativos à transmissão das viaturas adquiridas no âmbito da actividade de CRP e ii) os valores respeitantes às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira (ou leasing) por si celebrados, e que a desconsideração daqueles valores originou uma dedução de IVA inferior àquela a que tinha direito nos termos da legislação aplicável, com a consequente entrega de um valor de prestação tributária em excesso.

 

Alega que aplicou uma percentagem de dedução definitiva de 7%, a qual, quando aplicada ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse período (no montante de € 34.057.391,75), se materializou no valor de € 2.384.017,42 de IVA dedutível. 

Sustenta que se, no cálculo daquela percentagem de dedução, tivessem sido (correctamente) considerados como deviam, nos termos da lei, os valores relativos à transmissão das viaturas relacionadas com a actividade de CRP e os valores relativos às amortizações financeiras do leasing, tal percentagem ascenderia a 26% (ao invés de 7%).

 

E que, aplicando a (correcta) percentagem de dedução de 26% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista (no montante de € 34.057.391,75), a Requerente teria o direito a deduzir IVA no valor de € 8.854.921,86 (ao invés de € 2.384.017,42).

 

Defende que a actividade por si prosseguida encontra-se abrangida por distintos regimes de dedução de IVA e que, relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa (direct attribution), ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA. 

 

Como é o que sucede no âmbito da aquisição de bens objecto dos contratos de locação financeira – v.g. a aquisição de uma viatura para subsequente locação financeira –, relativamente aos quais foi deduzido, na íntegra, o IVA incorrido, em virtude de tais bens estarem directamente ligados a operações tributadas, realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, as quais conferem o direito à dedução. 

Ao passo que nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

 

Como tal, nas situações em que identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objectivos do nível/grau de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.  

 

Este método foi aplicado, em concreto, com referência aos encargos especificamente associados à aquisição de Terminais de Pagamento Automático – (“TPA’s”).  

Alega que, para determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), a Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

Com efeito, relativamente a estes encargos comuns ou recursos de utilização mista, alega que não lhe foi possível à Requerente proceder à aplicação do outro método de dedução parcial, como a afectação real, na medida em que este método de dedução implicaria sempre a clara distinção dos bens e serviços adquiridos para cada tipo(logia) de operações – o que sempre se revelaria impraticável em determinadas situações, designadamente nas aquisições de recursos utilizados no desenvolvimento da globalidade das operações da Requerente, nomeadamente, os consumos de electricidade, de água, de papel, de material informático (hardware e software), de telecomunicações, entre muitos outros. 

 

Sustenta a Requerente, que não sendo viável determinar um ou vários critérios objectivos passíveis de permitir, de forma rigorosa e segura, o montante do IVA dedutível, através do método da afectação real (critérios objectivos a que alude o n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA), nas aquisições daqueles recursos de utilização mista, lhe restou a aplicação do referido método da percentagem de dedução.

A determinação da percentagem de dedução foi concretizada no cumprimento dos ditames constantes no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA, com o qual, porém, discorda.

 

A Requerente entende que deveria ter incluído, na sua percentagem de dedução, i) os valores relativos à transmissão das viaturas no âmbito da actividade de CRP; e ii) os montantes respeitantes às amortizações financeiras dos contratos de leasing celebrados.

Sustenta que, atendendo à natureza daquelas actividades e à forma como as mesmas são desenvolvidas pela Requerente, aqueles valores não poderiam deixar de ser incluídos no apuramento da sua percentagem de dedução.

 

Defende que os procedimentos adoptados pela Requerente no âmbito das suas actividades de leasing e de CRP integram um universo significativo de actividades atinentes à disponibilização dos bens locados e que essas actividades consomem um significativo conjunto de recursos (tanto de utilização específica como de utilização mista).

 

E, uma vez que, com base nas orientações, que considera ilegais, da AT – constantes do Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA –, a Requerente, no ano 2018, incorreu em erro relativamente ao regime jurídico que rege o exercício do direito à dedução do imposto vertido nos recursos de utilização mista por si adquiridos (“erro de direito”), lhe assiste o direito a corrigir a sua dedução de imposto, regularizando, a seu favor, o montante de imposto que, por motivo daquele erro, não deduziu.

 

Sustenta, que o Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 viola a Directiva do IVA (Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro) quando determina que as instituições financeiras que, a par de operações financeiras (como a concessão de crédito), desenvolvam igualmente actividades de leasing e de ALD tributadas apurem montante de IVA a deduzir com referência aos recursos de utilização mista de acordo com o método da afectação real (ali designado “coeficiente de imputação específico”).

 

Mais defende que o Ofício não pode ser aplicado à actividade de crédito com reserva de propriedade. pretendendo somente regulamentar – ilegalmente – a dedução do IVA de recursos de utilização mista com referência às actividades de leasing e de ALD. 

Defende que, atendendo ao consumo de recursos necessários para realizar a actividade de CRP e na medida em que estes recursos são, naturalmente, parte constitutiva do preço das referidas operações, a consideração da componente de transmissão das respectivas viaturas no coeficiente de imputação específico, atendendo ao consumo de recursos necessários para a realizar se revela fulcral para aferir a exacta medida do direito à dedução da Requerente. 

 

Resultando, no entender da Requerente, inequívoco que são integralmente sujeitas a IVA as rendas de contratos de locação financeira (desde que não seja aplicável uma isenção, como ocorre nas operações imobiliárias), quer na parte correspondente à consideração da amortização financeira ou do capital, quer na parte correspondente aos juros e remuneração de outros encargos (ou ganhos).

 

Conclui a Requerente que, não tendo optado pela dedução do imposto por si incorrido em recursos de utilização mista de acordo com o método da afectação real, nem tão pouco se verificando quaisquer distorções significativas na tributação invocadas pela AT – requisitos essenciais para a imposição do critério da afectação real, previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA – não pode o critério da afectação real ser imposto in casu.

 

Por isso, no seu entender, deve a liquidação efectuada com referência ao ano de 2018 ser anulada na parte referente ao IVA que, a Requerente, em cumprimento de instruções ilegais da AT, não deduziu, correspondente a 6.470.904,43€ (i.e., € 8.854.921,86 - € 2.384.017,42) e que tal montante consubstancia a prestação tributária que entregou em excesso e que lhe deve ser restituído, acrescido de juros indemnizatórios, vencidos desde o pagamento e vincendos até à efectiva restituição, o que peticiona.

 

Posição da Requerida:

 

A Requerida defende que a pretensão da Requerente pressupõe uma alteração de metodologia no apuramento do coeficiente de imputação específico no sentido de considerar, no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista, os valores relativos à transmissão das viaturas adquiridas no âmbito da actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade, e os valores respeitantes às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira (ou leasing) por si celebrados.

 

Sustém, que desenvolvendo a Requerente uma actividade que envolve operações que permitem a dedução do imposto suportado a montante, como sejam a locação financeira mobiliária, e outras que não a possibilitam, designadamente a concessão de crédito, porque isentas sem direito a dedução nos termos da al. 27) do art.º 9.º do Código do IVA, tem de se observar o previsto no art.º 23.º, do mesmo Código, para efeitos de apuramento da parcela dedutível do imposto contido nos recursos adquiridos e que foram objecto de utilização mista.

 

Mais sustenta, que o principal ponto sobre que o qual a Requerente deveria derramar luz era  a demonstração e quantificação, através de elementos fidedignos, dos inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão, mas que, em nenhum ponto do P.P.A. ou, mais tarde, do requerimento de ampliação da matéria de facto, a Requerente logrou invocar e, mais importante, distinguir entre custos incorridos na disponibilização dos veículos e em custos com a gestão e financiamento do mesmo, tratando-os globalmente como custos comuns. 

 

Defende, que o serviço prestado pela Requerente é o da cedência do gozo temporário de um veículo, mediante retribuição, o qual envolve, - numa primeira fase, breve e inicial, a encomenda e disponibilização ao cliente do veículo e, depois,  - numa segunda fase, tão longa quanto o for o período de vida útil do contrato de locação financeira, o financiamento e sobretudo a gestão do contrato de locação pela entidade bancária, implicando uma panóplia de serviços e despesas, da qual o banco se remunera através de comissões e através da aplicação e agravamento de taxas de financiamento.

 

A entrega/disponibilização do veículo é instrumental face à concessão do crédito, porque o que o cliente remunera, através do pagamento do juro, é o preço do dinheiro que o Banco disponibilizou em sua substituição junto de um stand de automóveis, e que, ao longo dos anos, será restituído através do cumprimento do pagamento das rendas.

Reitera, que a Requerente não juntou uma única cópia de contrato, a fim de provar que nos seus contratos existe uma cláusula específica em que se faz prever que é o Banco e não o cliente quem suporta os gastos despesas de transporte, seguro, montagem, instalação ou reparação do bem, entre outras. 

 

Não o tendo feito, terá que resultar como não provado que este tipo de custos seja suportado pelo Banco, dado que a lei estipula que tais despesas incorrem exclusivamente por conta do locatário.

 

Sustenta que a Requerente não fez prova de que nos contratos insira uma cláusula de exceção face ao regime geral, patente no artigo 14.º do DL n.º 149/95, no sentido de ser o Banco e não o cliente a suportar as despesas.

 

No que concerne à questão de descortinar sobre se os gastos mistos despendidos tanto com a gestão e financiamento dos contratos como com a disponibilização dos respectivos veículos se encontram totalmente reflectidos na taxa de juro estipulada entre locador e locatário, assim como reflectidos acessoriamente nas comissões debitadas ao cliente durante o período útil de vida do contrato de locação financeira, a resposta à questão tem que ser irremediavelmente positiva.

 

Os custos mistos despendidos tanto com a gestão e financiamento dos contratos como com a disponibilização dos veículos junto dos clientes reflectem-se por meio da fixação e agravamento das taxas, como por meio de comissões.

 

As rendas, por sua vez, são compostas por vários segmentos, entre os quais a amortização financeira, o juro, os encargos, o risco.

 

No segmento dos encargos e do risco, estão provisionados os montantes que permitem a remuneração dos custos mistos, sobre os quais incide IVA à taxa em vigor, cobrado aos clientes, ressarcindo assim o Banco destas despesas.

 

Isso, a fim de que todas as despesas, sem exceção, susceptíveis de o Banco incorrer no período de vida útil do contrato, fiquem acomodadas. 

 

Conclui a Requerida, que não há despesas ou custos que fiquem por remunerar.

 

Mais refere, que todas estas comissões, somadas à fixação inicial das taxas de financiamento e ao  subsequente ajustamento dessas mesmas taxas sempre que existem custos acrescidos que resultem do acto de gestão dos contratos de locação financeira, bem como somadas às despesas que nos termos do contratos de locação financeira e da legislação aplicável à locação financeira são imputadas aos clientes, permitem concluir que a Requerente acomoda todos e quaisquer custos (incluindo os mistos) em que incorre.

 

Mais argumenta, que é evidente que os custos que o Banco alega ir incorrendo no decurso dos contratos – ainda que, salienta-se novamente, não os tenha alegado e provado minimamente com apresentação de facturas que cada um dos contratos celebrados (que também não apresentou) no ano dissídio acaba por gerar através das despesas que lhes são inerentes – se encontram abarcados no juro aplicado, naquilo que representa o interesse económico do Banco.

 

O IVA referente ao suportado na aquisição do veículo e, de seguida, deduzido pelo Banco, é calculado sobre a parte da renda que corresponde à amortização do capital, o que significa que o cliente final, já depois de o Banco ter deduzido IVA que suportou, ainda lho restitui.

Por seu turno, o IVA calculado sobre comissões e juros corresponde verdadeiramente ao interesse económico do Banco, directamente relacionado com o lucro que obtém e que serve para suportar todos os custos inerentes à actividade económica.

 

 

2. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

 

 

 

3. MATÉRIA DE FACTO

 

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAT.

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).

 

Pelo que, com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

1. A Requerente é uma sociedade comercial cujo objecto consiste na realização das operações descritas no n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

 

2. A Requerente é sujeito passivo misto de IVA, enquadrada no regime normal com periodicidade mensal.

 

3. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza várias operações financeiras, tais como operações de financiamento/concessão de crédito, operações relativas a pagamentos e, em geral, as transacções relativas à negociação e venda de títulos e locação financeira mobiliária, locação de cofres, custódia de títulos.

 

4. A Requerente celebra contratos de crédito com reserva de propriedade, nos termos dos quais celebra, assim, num primeiro momento, um contrato de compra e venda com uma entidade terceira, adquirindo o veículo pretendido pelo seu cliente, e, num segundo momento, um contrato de mútuo com os seus clientes para que estes adquiram os ditos veículos automóveis, novos ou usados, ficando estes a constar do seu registo de propriedade enquanto proprietários, mas sendo constituída reserva de propriedade a favor da Requerente.

 

5. A actividade prosseguida pela Requerente encontra-se abrangida por distintos regimes de dedução de IVA.

 

6. A Requerente entregou a declaração periódica IVA referente ao ano de 2018, na qual, relativamente às operações afectas à aquisição de bens e serviços de utilização mista, recorreu ao método da percentagem de dedução determinada através da aplicação de um coeficiente de imputação específico obedecendo à fórmula prevista no ofício Circulado n.º 30.108 e apurou uma percentagem de dedução definitiva de 7%, que determinou um valor a deduzir de 2.384.017,42€.

 

 

7. A Requerente apresentou, em 25/09/2020, Reclamação Graciosa contra o referido acto liquidação de IVA, que recebeu o n.º ...2020... .

 

8. Aquela Reclamação Graciosa foi indeferida por despacho datado de 25/11/2020, que foi notificado à Requerente por carta registada que lhe foi remetida no mesmo dia.

 

Factos não provados

 

Não se provou que:

 

1. Não foi possível à Requerente proceder à aplicação de outro critério de afectação real, na medida em que tal implicaria uma clara distinção dos bens e serviços adquiridos para cada tipologia de operações, o que é impraticável face à natureza dos recursos (de utilização mista) em causa, nomeadamente, os consumos de electricidade, de água, de papel, de material informático (hardware e software), de telecomunicações, entre outros;

 

2. A utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Recorrida no âmbito das operações de leasing, aluguer de longa duração e crédito com reserva de propriedade foi sobretudo determinada pela disponibilização dos veículos aos clientes.

 

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida nas suas peças processuais, não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta por ambas, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas, bem como no depoimento das testemunhas prestado no âmbito do processo n.º 885/2019-T sobre idêntica matéria de facto, cuja acta e gravação foram apensadas aos presentes autos.

 

5. MATÉRIA DE DIREITO

 

A questão decidenda é sobretudo uma questão de Direito e não é uma questão nova, tendo sido já amplamente debatida em Tribunais, arbitrais e judiciais, e objecto de pronúncia por parte do TJUE, jurisprudência que, aliás, quer a Requerente quer a Requerida citam, pretendendo ambas que vai no sentido que propugnam.

 

No caso concreto, no pedido de pronúncia arbitral a Requerente levanta uma sub-questão, pela qual cumpre começar.

 

Assim:

 

1. O Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 não pode ser aplicado à actividade de crédito com reserva de propriedade?

 

É isso o que entende a Requerente. A Requerente invoca, a seu favor, jurisprudência deste CAAD e a do TJUE expressa no Acórdão Volkswagen Financial Services (Processo C-153/17), considerando que, sendo evidentes as semelhanças entre a situação vertida no Acórdão e a presente situação, a desconsideração que a AT pretende impor ao Requerente em relação ao peso da actividade de CRP, fixando um rácio de dedução que desconsidera o valor inicial da aquisição do veículo, não é admissível à luz daquele Acórdão do TJUE e da interpretação da Directiva IVA por este levada a cabo.

 

A Requerida, na sua Resposta, sustenta que não são plausíveis os motivos avançados pela Requerente para alterar o método de imputação específica para cálculo do montante a deduzir do IVA, já que, ainda que, no âmbito dessa actividade, a Requerente adquira viaturas e transmita essas viaturas aos seus clientes (a quem concede crédito para a sua aquisição), a verdade é que o “negócio” não é a aquisição e transmissão de viaturas, que não gera qualquer valor acrescentado, antes a concessão do crédito, e que os ganhos desse negócio se consubstanciam nos juros.

 

A verdade é que, para o que aqui se discute, que é a dedução do IVA incorrido nos custos com a disponibilização das viaturas, o crédito com reserva de propriedade pouco difere da locação financeira ou do aluguer de longa duração, na medida em que, em todos os casos, a Requerente adquire a viatura que o cliente escolhe.

 

A diferença está apenas no negócio que celebra a seguir, que lhe confere garantia diferente e que está sujeito, em IVA, a diverso tratamento.

 

Na primeira parte do negócio, a disponibilização da viatura, cujos custos constituem o âmago desta questão, i.e., as démarches iniciais de encomenda do veículo e todos demais procedimentos relacionados com a aquisição do automóvel, que depois se venderá ao cliente, com reserva de propriedade, se locará, ao abrigo de contrato de locação financeira ou se alugará por contrato de aluguer de longa duração, é a mesma e merece idêntico tratamento  , pelo que nada impede que o Ofício em causa seja aplicado a este tipo de operações.

 

Nada havendo a separar as questões, há, portanto, que as analisar em conjunto.

 

Prosseguindo, pois:

 

2. A imposição genérica da correcção plasmada pela Administração Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 ao método pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do Código do IVA carece de base legal e que a imposição do coeficiente de imputação específico, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, apurada caso a caso, viola o direito da União Europeia, em concreto o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA?

 

É considerável o lastro já adquirido sobre este tema, considerando que a questão objecto de duas pronúncias no Tribunal de Justiça, nos processos Banco Mais, C-183/13, de 10 de Julho de 2014, e Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018, a que acresce o profuso debate na jurisprudência nacional da última década.

 

No que respeita ao Acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd., porém, há quinada fazer notar que estava em causa uma sociedade financeira do Reino Unido – que também realizava operações de leasing automóvel –, mas cujo direito do Reino Unido, diferentemente do que acontece em Portugal, obrigava à desagregação das rendas de leasing em duas operações para efeitos de IVA.

 

A componente do juro estava isenta de imposto e apenas a componente da amortização era tributada, sendo que, a somar a isto, as autoridades fiscais locais também excluíam a componente de amortização do pro rata, por entenderem que os custos mistos estavam predominantemente associados à componente juro do financiamento, que era o cerne da actividade.

 

Assim, estando a componente de juros isenta enquanto operação de crédito, o método aplicado pelo Reino Unido tinha um resultado mais gravoso para os contribuintes e não tão rigoroso quanto o assumido a nível nacional, uma vez que para o cálculo da percentagem de dedução, não eram tidas em conta as despesas com os bens e serviços repercutidos na componente juros.

 

O raciocínio do Acórdão Volkswagen não pode ser aplicado à situação em concreto, porquanto o IVA incide sobre a totalidade da renda, abarcando a componente juro; componente que, de acordo com o Acórdão do TJUE C-183/13, e que é secundado pelo Acórdão Fundamento, constitui a contrapartida dos custos (bens e serviços) incorridos no financiamento e na gestão dos contratos de locação financeira suportados pelo locador financeiro, uma vez que constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel – ponto 34 do Acórdão TJUE C-183/134.

 

 

A questão em causa nos presentes autos já se colocou por diversas vezes ao Supremo Tribunal Administrativo, que respondeu de forma uniforme nos diversos Acórdãos proferidos a seu respeito – veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos proferidos por esta Secção do STA a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, a 3 de Junho de 2015 no Processo n.º 0970/13, a 17 de Junho de 2015 no Processo n.º 01874/13, a 27 de Janeiro de 2016 no Processo n.º 0331/14 e a 15 de Novembro de 2017 no Processo n.º 0485/17 e, mais recentemente, em dois Acórdãos do pleno da Secção de Contencioso Tributário, proferidos nos processos n.ºs 084/19.8BALSB e 0101/19.1BALSB, de 24 de Fevereiro de 2021 e de 20 de Janeiro de 2021, respectivamente, foi no sentido da admissibilidade do critério de imputação específica consagrado no n.º 9 do Ofício-circulado n.º 30108, à luz do direito da União Europeia e da legislação nacional.

 

Diversamente, a jurisprudência arbitral que se pronunciou inicialmente sobre esta matéria propendia para a inadmissibilidade do mencionado critério de imputação específica, em linha com a argumentação da Requerente, por entender que se estaria perante um terceiro método, sem cabimento no artigo 23.º do Código do IVA, resultando, desse modo, violado o princípio da legalidade tributária.

 

Porém, na sequência do STA de 4 de Março de 2020, no processo n.º 07/19, assistiu-se a uma inflexão no sentido das decisões arbitrais, de que são exemplos as proferidas nos processos n.º 759/2019-T, de 5 de Setembro de 2020, e n.º 927/2019-T, de 21 de Setembro de 2020, concluindo-se, ao contrário da Requerente, que “a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno”.

 

O Acórdão do STA de 24 de Março de 2021, proferido no processo 087/20.0BALSB, veio uniformizar jurisprudência no sentido de que:

“Nos termos do disposto no artº. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações (inputs promíscuos) através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

 

Na tese da Requerente, o artigo 23.º do Código do IVA só prevê dois métodos de dedução, o pro rata e a afectação real, constituindo o coeficiente de imputação específico um terceiro método, desprovido de base legal, pois, em seu entender, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de utilização dos recursos mistos e, por essa razão, não tem assento no mencionado preceito, nem em qualquer outro previsto na lei interna.

 

Assim, sem prejuízo de reconhecer que o artigo 173.º, n.º 2 alínea c) da Directiva IVA contempla tal possibilidade, atribuindo essa prerrogativa aos Estados-Membros, sustenta que a norma comunitária não foi em parte transposta pelo legislador português, que não previu a possibilidade de um pro rata mitigado.

 

Afigura-se, todavia, que sem razão.

 

Desde logo, no processo C-183/13, o Tribunal de Justiça considerou que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA, correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva, posição que foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplos acórdãos. Neste âmbito, referimos, a título ilustrativo, além dos supracitados, os acórdãos de 29 de Outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de Março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de Novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

 

Com efeito, o legislador português reproduziu no artigo 23.º do Código do IVA o essencial do regime de dedução parcial, i.e., aplicável aos recursos de utilização mista, previsto nos artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA.

 

Tal como na Directiva, o método do pro rata é consagrado como método supletivo de dedução do IVA (artigo 23.º, n.º 1, alínea b) do Código). Alternativamente, os sujeitos passivos podem optar pelo método da afectação real, sem prejuízo de a AT poder “impor condições especiais ou [] fazer cessar esse procedimento” se verificar que o mesmo provoca ou pode provocar [em função dos critérios objectivos empregues] distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 2 do Código). Por fim, pode ser a própria AT a impor a afectação real em detrimento do pro rata quando o sujeito passivo exerça actividades distintas ou este método seja passível de causar distorções significativas na tributação (artigo 23.º, n.º 3 do Código).

 

Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça C-183/13, inexistindo, na Directiva, regras que concretizem o método da afectação real, cabe aos Estados-Membros estabelecê-las, tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida directiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas”. Importa, para tanto, ter em conta as características específicas próprias às actividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução .

 

Declara a este propósito o recente acórdão (Pleno) do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 084/19.8BALSB) que a norma do artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “ao permitir que a AT imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA”, que estabelece que os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou parte dos bens ou serviços, nos exactos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Directiva IVA.

 

Assim, não se verifica o vício de ilegalidade abstracta que a Requerente sindica em relação ao ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, que funda a liquidação controvertida, esclarecendo o Acórdão, também daquele Supremo Tribunal (Pleno), no processo n.º 101/19.1BALSB, que a expressão «afectação real» empregue pelo artigo 23.º do Código do IVA corresponde à expressão «utilização» adoptada na Sexta Directiva, a qual, “por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efectivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (cit. José Guilherme Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, in «Desfazendo  mal-entendidos em matéria do direito à dedução…», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, número 1, pág. 50). Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «…com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito»”.

 

E agora, acrescentamos nós, menos dúvidas existirão, pois, a própria Directiva passou a mencionar, em vez da expressão «utilização», outra coincidente com a empregue no Código do IVA: a “afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

 

Seguindo ainda este aresto, “[a] questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do ofício circulado n.º 30108 [...] era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efectiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Directiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.”

 

E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.

 

Desde que fosse apurado que a utilização de bens ou serviços de utilização mista pelo sujeito passivo era sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira (parágrafo 33 do acórdão). […].

 

Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redacção do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.

 

Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária”.

 

Sobre a alegação de que um pro rata mitigado não constitui um método de afectação real, que a aqui Requerente também aduz, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que não é assim, porque não existe apenas uma forma de proceder à afectação de bens e serviços. “A confirmar que o sistema de afectação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da actividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito, segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução. Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.”

 

E conclui que, sob este prisma, as referências à violação do princípio da legalidade e da reserva de lei não têm cabimento.

 

Posição que, pelas razões acima expostas, aqui se acompanha.

 

SÉRGIO VASQUES vai mais além e conclui que “aquilo que, no contexto do sistema IVA, consubstancia o método da afectação real, é questão que não está na disponibilidade dos tribunais nacionais determinar.”, numa remissão implícita para a competência do Tribunal de Justiça para dirimir tal questão, conforme este a exerceu no caso Banco Mais.

 

 

Assente o pressuposto de que o critério de imputação específica é enquadrável no método da afectação real, uma segunda questão que daí deriva prende-se com saber se esse método constitui um critério objectivo e é ajustado, no sentido de constituir “uma modalidade do cálculo de dedução que reflicta objectivamente a parte real das despesas efectuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.”

 

Com efeito, de acordo com o Tribunal de Justiça, importa que o critério adoptado seja mais preciso do que o resultante do método residual do pro rata, considerando as especificidades do sujeito passivo, o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais.

 

Neste âmbito, o citado Ofício-circulado n.º 30108 invoca que se trata de um método menos susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação. O que, de uma forma geral, é uma asserção válida, atentas as características-padrão da actividade de locação financeira.

 

De facto, a remuneração da actividade de leasing e ALD, apesar de juridicamente configurada como uma renda unitária, do ponto de vista económico corresponde tendencialmente a apenas uma das duas componentes compreendidas nesta renda, “os juros e outros encargos”, o que é reflectido no tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16, que as equipara às operações de financiamento ou concessão de crédito.

 

O valor do capital que é “amortizado” (no sentido de reembolsado ou pago), representa o valor do bem escolhido pelo locatário e que a este foi cedido. Ou seja, quando essa quantia é paga pelo locatário, nomeadamente via rendas, não constitui a remuneração da actividade do locador, mas o pagamento parcelar do custo de aquisição do bem locado, in casu, viaturas automóveis, ou, dito de outro modo, o reembolso gradual e progressivo do preço da viatura que findo o contrato, e se este se executar e desenvolver dentro da normalidade, passará para a esfera jurídica do locatário.

 

Assim, a actividade do locador, que disponibiliza a viatura ao locatário porque despendeu os meios financeiros para o efeito, é remunerada pela componente da renda, aqui denominada de “juros e outros encargos”, que excede o valor do reembolso do capital usado para adquirir a viatura.

 

Do ponto de vista do IVA, o valor do imposto liquidado na renda (output) referente à componente de reembolso do capital (originariamente usado para adquirir a viatura) está afecto por imputação directa, à dedução, na sua esfera, do IVA incorrido na aquisição dessa viatura (input). O valor do capital debitado ao locatário e do IVA liquidado corresponderá ao do custo de aquisição da viatura e do respectivo IVA deduzido, em virtude dessa imputação/afectação directa, e em razão de tal componente, não contemplar, à partida, qualquer margem para acomodar ou prever outros inputs, como os de utilização mista em causa nesta acção, nem o “lucro” da operação.

 

Deste modo, é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afecto ao input da viatura adquirida para locação) que, em princípio, reflecte a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa, em regra, a (única) remuneração económica dos gastos da actividade de leasing e ALD, pois a outra, a do capital, esgota-se com o input da aquisição da viatura, não sobrando qualquer valor para imputar a outros gastos/inputs.

 

Assim sendo, para efeitos de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da actividade financeira da Requerente apenas será a priori proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, em princípio, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição do veículo, já deduzido integralmente pelo método da imputação directa.

 

Caso contrário, estaríamos a comparar realidades diversas, nomeadamente juros de financiamentos concedidos no contexto da actividade geral, com juros e capital do leasing. Nesta situação, a comparação apenas será paritária se incluirmos na fracção que apura a proporção do IVA dedutível, para além do capital e juros do leasing, o valor dos empréstimos e dos juros recebidos na restante actividade.

 

O método do pro rata que a Requerente pretende aplicar traduzir-se ia no incremento significativo da percentagem de dedução sem que o mesmo tivesse qualquer conexão com um presumível consumo equivalente de IVA nos gastos mistos pela actividade de leasing. Pelo que se verifica a condição de que o método do pro rata é, em abstracto, passível de causar na situação em análise um acréscimo injustificado do nível de dedução do IVA nos recursos de utilização mista, derivado da consideração da componente de capital da renda de leasing (que, em princípio, não tem conexão directa com esses gastos) no cômputo da percentagem de dedução acompanhada, em simultâneo, da não consideração do capital mutuado, relativo à restante actividade financeira, por forma a que as realidades sejam comparáveis/equivalentes.

 

Ao contrário do afirmado pela Requerente, o critério em análise é um critério de natureza objectiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objectivos comummente aceites e aplicados no método da afectação real, como o número de pessoas afectas às actividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objectivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso.

 

Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afectação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exacta medida de consumo dos recursos por cada uma das actividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto não dedutível em imposto efectivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa).

 

 

Aplica-se, neste contexto, o entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, reiterado nos dois recentes acórdãos do Pleno acima identificados (de 2021), de que quando o acto de liquidação adicional do IVA se fundamenta no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução.

 

Desta forma, caberia “ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.”

 

Prova que a Requerida não só não logrou fazer como foi, aliás, contrariada pela testemunha por ela arrolada.

 

 

3. O Ofício-Circulado n.º 30108 é inconstitucional?

 

 

A Requerente alega que o Ofício-Circulado n.º 30108 não tem, nem poderia ter, eficácia externa, atentos os limites impostos pela reserva de lei da Assembleia da República no que respeita à competência legislativa em matéria de “garantias dos contribuintes” prevista no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e inerente violação do princípio da legalidade.

 

Pelo que, no seu entender, a interpretação do artigo 23.º do Código do IVA, no sentido que a mesma permite à AT impor os limites ao direito à dedução consagrados (apenas) no Ofício-Circulado em apreço, sempre será contrária à Constituição da República Portuguesa, conquanto tal interpretação atenta contra o princípio da legalidade fiscal constitucionalmente consagrado, que determina a necessária reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República – cf. n.º 2 do artigo 103.º e alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º, ambos da Constituição da República Portuguesa - bem como com n.º 5 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Acontece que o Tribunal, para decidir a questão de direito que vinha colocada no P.P.A., não adoptou a interpretação normativa que se reputa como sendo inconstitucional.

 

Com efeito, a Requerente entende que a disposição constante do n.º 2 do art.º 23.º do Código do IVA (conjugada com o do n.º 3) não reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, acrescentando que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir.

 

É que é em consequência disso que a AT está a usar dessa faculdade através do aludido Ofício, com o que viola o princípio da legalidade, por lhe estar vedado dispor sobre a matéria, que é da competência reservada da Assembleia da República.

 

Todavia, uma tal consideração, em todo o contexto em que se desenvolve a peça processual, é feita na perspectiva de que não chegou a ocorrer a transposição para o direito interno da referida disposição da Directiva.

 

Ora, o tribunal, abordando a questão que constituía o objecto do pedido, limita-se a reconhecer, adoptando a orientação do acórdão de uniformização de jurisprudência do STA citado, que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA procedeu à transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, assim afastando a ilegalidade que era imputada aos actos de liquidação impugnados. E não formulou a interpretação normativa a que a Requerente imputa, nas suas alegações, os vícios de constitucionalidade.

 

Não tendo o tribunal adoptado uma tal interpretação normativa, é claro que não tem de conhecer da suposta violação de princípios constitucionais.

 

 

DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Peticionou a Requerente que, para além do reembolso da quantia que tinha sido voluntária e indevidamente paga, seria ainda devido o pagamento de juros indemnizatórios.

 

A este respeito dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Tendo-se determinado, nos presentes autos, que as liquidações em crise não estão viciadas por qualquer ilegalidade, fica prejudicada a apreciação do pedido de relativo aos juros indemnizatórios.

 

Finalmente,

 

DO PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE REENVIO PREJUDICIAL:

 

A título subsidiário, a Requerente solicita o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, em relação à consideração do valor das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

Na verdade, a questão de interpretação do Direito Europeu discutida nos autos foi especificamente clarificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do caso Banco Mais, C-183/13, conforme ficou acima referenciado.

 

De acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit, a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

 

- A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

 

- O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

 

- O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente. 

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas b) e c), podendo afirmar-se que o “acto” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça que já se pronunciou “de forma firme”, como o tem entendido também a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo supra-referida, pelo que actualmente não se suscitam dúvidas, nem há fundamento, para suscitar o reenvio prejudicial.

 

Pelo que, à semelhança do que vem sendo decidido por outros tribunais arbitrais constituídos neste CAAD que se têm debruçado sobre o tema, o Tribunal considerando desnecessário o reenvio prejudicial por considerar que a Jurisprudência do TJUE sobre esta matéria fornece os elementos suficientes para a aplicação do direito europeu a este litígio.

 

 

 6. DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

 

-  Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

 

 - Indeferir o pedido subsidiário de reenvio prejudicial para o TJUE e

 

- Condenar a Requerente no pagamento integral das custas.

 

Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 6.470.904,43€ (seis milhões, quatrocentos e setenta mil, novecentos e quatro euros e quarenta e três cêntimos). de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

Valor das custas

Fixa-se o montante das custas em 80.784,00€ (oitenta mil setecentos e oitenta e quatro euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, valor a suportar pela Requerente conforme decidido supra - artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

• Notifique-se.

 

Lisboa e CAAD, aos 30 de novembro de 2021

 

 

O Árbitro Presidente,

 

(Juiz José Poças Falcão)

 

 

O Árbitro Auxiliar,

 

(Prof.ª Doutora Eva Dias Costa)

 

 

O Árbitro Auxiliar,

 

 

(Dra. Rita Guerra Alves)