Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 166/2021-T
Data da decisão: 2021-11-05  IRC Selo  
Valor do pedido: € 159.447,51
Tema: IRC; IS; organismos de investimento coletivo; liberdade de circulação de capitais; dividendos; discriminação de não residentes
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SUMÁRIO:

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Manuel Luís Macaísta Malheiros (árbitro-presidente), Jónatas Eduardo Mendes Machado e Mariana Vargas (árbitros vogais), designados, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

I. Relatório

1. A…………. PLC, sociedade de investimento mobiliário constituída ao abrigo da lei irlandesa, com sede em …………………, Dublin 2, Irlanda, contribuinte fiscal número …….., contribuinte fiscal português número …………, em representação dos subfundos B………….. STOCK INDEX FUND, C………………. STOCK INDEX FUND e D………………. STOCK INDEX FUND, veio, na sequência do despacho de indeferimento proferido, por subdelegação, pela Exma. Senhora Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de ……………., datado de 14.12.2020, no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º ………………, relativo aos atos de retenção na fonte respeitantes a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 2018, consubstanciados nas guias n.º ………….. e n.º …………, referentes aos períodos de maio e setembro de 2018, respetivamente, que incidiram sobre os dividendos auferidos em território nacional melhor identificados infra, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo com vista à declaração de ilegalidade daquela decisão e dos atos tributários que dela foram objeto.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 23.03.2021, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 12.05.2021, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 01.06.2021.

 

6. Na sua Resposta, apresentada a 05.07.2021, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio sustentar a improcedência do presente pedido, por não provado, e, consequentemente, absolvição da Requerida do pedido, ou, a procedência do pedido de suspensão do processo até decisão por parte do TJUE em sede do pedido de reenvio prejudicial das questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo n.º 93/2019-T.

 

7. A 24.08.2021, em aplicação dos princípios da autonomia na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT, e não havendo outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, entendeu o presente tribunal dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, concedendo um prazo para apresentação de alegações.

 

1.1.        Apresentação dos factos

8. A Requerente é uma sociedade de investimento mobiliário constituída e a operar de acordo com o direito irlandês, encontrando-se organizada em subfundos ou compartimentos patrimoniais autónomos.

9. São subfundos da Requerente os B……….. STOCK INDEX FUND, C………………. STOCK INDEX FUND e D……………….. STOCK INDEX FUND.

10. Em 2018 a Requerente era residente, para efeitos fiscais, na Irlanda, tendo investido, através dos identificados subfundos, em participações sociais de sociedades com sede em Portugal, auferindo nesse ano dividendos da participação no capital social daquelas sociedades.

11. Os dividendos auferidos pela Requerente foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 15% (cf. artigo 94.º do Código do IRC e artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre a República Portuguesa e a Irlanda) de acordo com a discriminação na tabela infra:

 

12. Entendendo a Requerente que os atos de retenção na fonte em apreço têm como fundamento jurídico normas que estabelecem uma distinção do regime fiscal aplicável a fundos de investimento residentes e não residentes e que configuram, por isso, uma restrição à livre circulação de capitais que está a ser exercida por um residente num Estado-membro, a mesma. em 20.05.2020, deduziu reclamação graciosa contra o ato tributário em causa, tendo sido notificada, em dezembro de 2020, da decisão de indeferimento, por considerar a AT não assistir razão à Requerente no que respeita à violação do Direito da União Europeia.

 

1.2.        Argumentação das partes

 

13. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos:

a)            Em face do disposto no artigo 22.º do EBF, na versão do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13.01, não são considerados para efeitos de apuramento do lucro tributável dos organismos de investimento coletivo (OIC) (i) os rendimentos de capitais, rendimentos prediais e mais-valias (exceto se provenientes de entidades “offshore”); (ii) os gastos relacionados com estes rendimentos; (iii) os encargos não dedutíveis para efeitos fiscais nos termos do artigo 23.º-A do CIRC; e (iv) os rendimentos e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para os OIC, esclarecendo a Circular n.º 6/2015, de 17.06, que esta exclusão, tal como prevista no artigo 22.º, n.º 3, abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais; 

b)           Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do EBF, este regime aplica-se apenas a fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional;

c)            Diferentemente, os rendimentos de capitais, rendimentos prediais e mais-valias auferidos em território nacional por fundos de investimento ou sociedades de investimento que não tenham sidos constituídos nem operem de acordo com a legislação nacional, e por essa razão sejam não residentes, não estão excluídos de tributação, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, do Código do IRC, sendo efetuada retenção na fonte, de acordo com o artigo 94.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3, alínea c), e artigo 87.º, n.º 4, do CIRC;  

d)           A diferente tratamento conferido pela legislação nacional aos dividendos auferidos por fundos de investimento ou sociedades de investimento consoante a residência tributária destes, configura uma restrição à liberdade de circulação de capitais, por discriminar em função da residência, a qual é proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que goza de primado sobre o direito interno, como resulta do artigo 8.º, n.º 4,  da CRP e da jurisprudência firmada do TJUE consolidada desde o caso Costa v. ENEL;  

e)           À luz da Diretiva 88/361/CEE do Conselho de 24.06.1988, a livre circulação de capitais abrange todas as formas de investimento direto, incluindo o investimento em valores mobiliários, sendo que a Requerente, residente na Irlanda – Estado-membro –, investe em Portugal mediante aquisição de ações de sociedades com sede em território nacional; 

f)            A discriminação implica um efetivo tratamento diferenciado por um Estado-Membro de uma operação ou situação transnacional, por comparação com uma situação interna, que partilhe com aquela uma identidade quanto aos seus aspetos essenciais;

g)            Para aferir da existência de um tratamento discriminatório é conveniente ponderar quatro elementos, quais sejam: (i) a existência de duas situações (ii) sujeitas a um tratamento diferenciado, (iii) apesar de comparáveis, (iv) e de que resulta um tratamento desvantajoso para uma das situações; 

h)           Quanto à exclusão de tributação de dividendos, a legislação nacional distingue consoante a residência do fundo de investimento ou sociedade de investimento, excluindo de tributação apenas os dividendos auferidos por fundos de investimento e sociedades de investimento residentes, não estabelecendo um tratamento equivalente entre sociedades de investimento residentes e sociedades de investimento não residentes, sendo que a situação da Requerente não pode deixar de ser objetivamente comparável à de uma sociedade de investimento residente;

i)             Os fundos residentes e não residentes são colocados numa posição comparável a partir do momento em Portugal opta por tributar os não residentes de maneira menos favorável do que os residentes, dissuadindo aqueles, na qualidade de acionistas, de investirem das empresas residentes distribuidoras de dividendos e dificultando a obtenção de capital no exterior por parte destas mesmas empresas;

j)             O artigo 22.º, n.º 3, do EBF, que exclui de tributação os dividendos auferidos por fundos de investimento e sociedades de investimento residentes em território nacional, pretendeu eliminar a tributação em cadeia dos dividendos distribuídos por uma sociedade com sede em território nacional, embora consinta na dupla tributação dos dividendos auferidos por um fundo de investimento ou por uma sociedade de investimento não residente;

k)            O artigo 22.º, n.º 3, do EBF, consente efetivamente um tratamento desvantajoso dos fundos de investimento e sociedades de investimento não residentes, visto que a carga fiscal aplicada aos dividendos por eles auferidos não é idêntica à aplicada aos dividendos (da mesma origem) auferidos por um fundo de investimento ou por uma sociedade de investimento residente;

l)             A legislação nacional não prevê qualquer mecanismo ulterior que permita atenuar ou eliminar a carga fiscal a que os dividendos auferidos por um fundo de investimento ou por uma sociedade de investimento não residente estão sujeitos;

m)          Um fundo de investimento ou uma sociedade de investimento residente não suportam qualquer imposto sobre os dividendos auferidos, ao passo que um fundo de investimento ou uma sociedade de investimento não residente, como é o caso da Requerente, têm de suportar imposto sobre os dividendos auferidos em território nacional;

n)           Tem sido jurisprudência uniforme e constante do TJUE que a liberdade de circulação de capitais consagrada no TFUE se opõe a tratamentos discriminatórios suscetíveis de demover determinado sujeito de investir noutro Estado-membro, sendo que esta diferença de tratamento, claramente desvantajosa e discriminatória, é suscetível de dissuadir investidores, residentes em países terceiros ou noutros Estados-membros, de investir em sociedades com sede em território português;

o)           Não pode admitir-se, para este efeito, o confronto entre a tributação em duas cédulas distintas como é o caso do Imposto do Selo (IS) e do IRC, uma vez que o IS não visa tributar o rendimento obtido em determinado momento, mas o valor líquido global do OIC, que não é suscetível de comparação com a tributação sobre o rendimento auferido – dividendos – e não releva qualquer diferença de tratamento ao nível do rendimento auferido por um OIC residente;

p)           A tributação autónoma, do artigo 88.º, n.º 11, do CIRC, à taxa de 23%, dos lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, não elimina nem neutraliza o tratamento desvantajoso a que estão sujeitos os fundos de investimento não residentes, na medida em que não opera em todas as situações, mas apenas nas situações de detenção de partes sociais por período inferior a um ano, e não abrange os lucros distribuídos aos OIC, uma vez que estes não estão isentos de IRC, mas apenas de derrama estadual e derrama municipal;

q)           As isenções a que se refere o n.º 11 do artigo 88.º do CIRC são benefícios fiscais (artigo 2.º, n.º 2, do EBF) e não se consideram benefícios fiscais as situações de não sujeição tributária, designadamente «as medidas fiscais estruturais de carácter normativo que estabeleçam delimitações negativas expressas da incidência» (artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do EBF);

r)            A não consideração, para efeitos do apuramento do lucro tributável dos OIC residentes, dos rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, constitui uma medida estruturante do próprio modelo de tributação dos fundos de investimento adotado pelo legislador – retirando da incidência do imposto sobre o rendimento os rendimentos, distribuídos aos fundos constituídos e funcionando segundo a legislação nacional – pertencendo à tipologia das normas delimitadoras da sujeição; 

s)            Existe um tratamento claramente discriminatório em matéria de tributação de dividendos de origem nacional, em razão da residência do fundo ou sociedade de investimento que os aufere, que configura uma restrição à livre circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE;

t)            A derrogação à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo  65.º, n.º1, do TFUE – a) se a diferença se tratamento se verificar em relação a situações não objetivamente comparáveis ou b) se a restrição se justificar por uma razão imperiosa de interesse geral –  para além de não poder constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada, deve ser interpretada restritivamente, e não no sentido de permitir que uma regulamentação que distinga entre os contribuintes em função do lugar onde residem ou do Estado-membro onde investem, seja considerada compatível com o TFUE;

u)           No que concerne à alínea a) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, a situação da Requerente é objetivamente comparável à de uma sociedade de investimento residente e relativamente à alínea b) não se pode considerar que a restrição à livre circulação de capitais resultante da legislação nacional esteja justificada por uma razão imperiosa de interesse geral, caso em que, além do mais, deveria não apenas ser adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue mas também não ultrapassar o que é necessário para atingir esse objetivo, respeitando um princípio de proporcionalidade;

v)            Não se pode justificar a restrição em causa pelo risco de evasão fiscal uma vez que decorre de jurisprudência constante que esse fundamento não justifica, por si só, uma restrição fiscal à livre circulação de capitais, se não for invocado em ligação com um objetivo específico de luta contra expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo objetivo é de eludir o imposto normalmente devido, sendo que para prevenção da evasão fiscal vigora a Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e a Irlanda, a qual permite a troca de informações (cf. artigo 26.º);

w)          Havendo, segundo o TJUE, que demonstrar a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício através de uma determinada cobrança fiscal, é evidente, no caso em apreço, a inexistência desse nexo direto entre a exclusão de tributação da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional recebidos por uma sociedade de investimento residente e a tributação na esfera dos participantes, quando da “redistribuição” desses mesmos dividendos;

x)            A redução de receitas fiscais não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral, suscetível de ser invocada para justificar uma medida, em princípio, incompatível com uma liberdade fundamental;

y)            Os artigos 63.º e 65.º do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-membro, nos termos da qual os dividendos pagos por uma sociedade residente nesse Estado-membro a uma sociedade de investimento não residente estão sujeitos a tributação, mas que exclui de tributação esses mesmos dividendos se pagos a uma sociedade de investimento residente.

14. A Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos:

a)            No âmbito do presente PPA não se mostra devidamente comprovado que o imposto retido, no montante total de montante total de 159.447,51 €, tenha sido entregue nos cofres do Estado, porquanto as guias de retenção na fonte que surgem indicadas pelo sujeito passivo (nºs … e … dos períodos de maio a setembro de 2018), apresentam valores muito superiores ao reclamado; 

b)           A Requerida não tem elementos suficientes que permitam salvaguardar que houve efetivamente estas retenções na fonte à «A… PLC» referentes ao identificado período ou que permitam comprovar a entrega nos cofres do Estado dos valores em causa, nem tão pouco a Requerente o demonstra;

c)            Tendo em conta o documento apresentado como anexo ao presente PPA, designado como «Certification of Tax Residence for Tax Year 2018», constata- se que a Requerente sendo, no seu país, uma entidade não fiscalmente transparente, não consegue demonstrar que não tem ao seu dispor qualquer um mecanismo de eliminação da dupla tributação;

d)           O artigo 63.º do TFUE visa assegurar a liberalização da circulação de capitais dentro do mercado interno europeu e entre este e países terceiros, portanto, proíbe qualquer restrição ou discriminação que resulte do tratamento fiscal diferenciado concedido pelas disposições da lei nacional a entidades de Estados-membros ou de países terceiros que crie condições financeiras mais desfavoráveis a estes últimos e seja suscetível de os dissuadir de investir em Portugal;

e)           A opção legislativa de “aliviar” os OIC da tributação em IRC, mediante a subtração à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do CIRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do CIRS) e das mais-valias (artigo 10.º do CIRS) conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, coexiste com a deslocação da tributação para a esfera do IS;

f)            Foi aditada à TGIS, da Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, o valor tributável, determinado nos termos do n.º 5 do artigo 9.º do CIS, inclui o valor investido nas ações que dão origem aos dividendos e estes rendimentos, em caso de reinvestimento pelos OIC, sendo que a tributação em IS apenas recai sobre os OIC e sociedades de investimento abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira;

g)            Os dividendos, além de não integrarem a matéria coletável do IRC, também beneficiam da isenção de retenção na fonte (cfr. n.º 10 do artigo 22.º do EBF) , sendo que os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF – tal como ocorre com os fundos de pensões - por beneficiarem de isenção parcial de IRC, estão, nos termos do disposto no n.º 11 do artigo 88.º do CIRC, obrigados a liquidar e entregar a tributação autónoma incidente sobre os lucros distribuídos, a uma taxa de 23%, quando as correspondentes partes sociais não sejam detidas, de modo ininterrupto, há pelo menos um ano, sendo que os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso da Requerente, não estão sujeitos à tributação autónoma sobre os dividendos;

h)           Um OIC ou uma sociedade de investimento mobiliário constituídos e estabelecido em Portugal, embora isentos de retenção na fonte, estão sujeitos a uma tributação autónoma sobre os dividendos, à taxa de 23%, se as correspondentes partes sociais não forem detidas, de modo ininterrupto, pelo período de um ano e, além disso, o montante do investimento em ações bem como os dividendos reinvestidos integram o valor líquido global determinado, em cada trimestre, para efeitos da liquidação do IS, ao passo que os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal a uma sociedade de investimento mobiliário constituída ao abrigo da legislação irlandesa apenas foi objeto de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 15% (taxa máxima estabelecida no artigo 10.º da CDT);

i)             O regime de tributação da sociedade de investimento mobiliário constituída e estabelecida na Irlanda não é comparável com o regime de tributação a que se encontram sujeitos os OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional pois que a tributação destes últimos compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa, sobretudo, no IS, ao passo que o regime aplicável à sociedade irlandesa aproxima-se de um regime de transparência fiscal e, aparentemente, não há incidência de outros impostos, não podendo afirmar-se de forma categórica que a situação da Requerente, sociedade de investimento não residente, encontra-se numa situação comparável à de uma sociedade de investimento residente;

j)             Para avaliar da existência de um tratamento discriminatório, a análise da comparabilidade deve ser realizada, não com base na consideração estrita na sujeição/isenção da retenção na fonte sobre os dividendos mas entrando em linha de conta com a carga fiscal global passível de incidir sobre tais rendimentos quando auferidos por sociedades de investimento mobiliárias residentes e não residentes, já que só deste modo, é possível concluir se existe, ou não, um tratamento desvantajoso para uma das situações, que seja suscetível de dissuadir os não residentes de investir em Portugal;

k)            Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos;

l)             Não está demonstrado cabalmente que, embora a Requerente não consiga recuperar o imposto retido na fonte (Portugal) no seu estado de residência (Irlanda), devido ao seu estatuto de entidade abrangida por um regime de semi-transparência fiscal, a parte do imposto não recuperado pelo fundo não venha a ser recuperado pelos investidores; 

m)          Se a Requerente tivesse sido constituído ao abrigo da legislação nacional, não teria incidido qualquer retenção na fonte em sede de IRC sobre os dividendos auferidos no ano de 2016, mas poderia ter incidido a tributação autónoma, à taxa de 23%, e, eventualmente, o imposto do selo previsto na Verba 29 da TGIS, sendo por isso mais acertado falar em diferentes modalidades de tributação que, até, pode redundar, em certos casos, numa carga fiscal menor dos dividendos auferidos em Portugal por sociedades de investimento constituídas ao abrigo da legislação de outros Estados-Membros da UE; 

n)           Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes pelo contrário, existindo uma aparência de discriminação e não uma discriminação em substância;

o)           É arriscado e prematuro retirar conclusões gerais que são dirigidas a resolver casos concretos, o que justifica que a AT se considere inibida de transpor para os casos que lhe são submetidos, de forma direta e automática, as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu;

p)           Não padecendo as retenções em apreço, de qualquer ilegalidade que pudesse conduzir à sua anulação e inexistindo, quanto às mesmas, qualquer erro, quer de facto, quer de direito, imputável aos serviços que tenha resultado em pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, não são devidos juros indemnizatórios à luz do artigo 43.º da LGT.

 

 

II. Saneamento

15. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.

16. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

III. Fundamentação

3.1. Factos provados

17. Com base nos documentos constantes nos autos consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é uma sociedade de investimento mobiliário constituída e a operar de acordo com o direito irlandês, encontrando-se organizada em subfundos ou compartimentos patrimoniais autónomos (Doc. 1).

b)           9. São subfundos da Requerente os B… STOCK INDEX FUND, C… STOCK INDEX FUND e D… STOCK INDEX FUND.

c)            10. Em 2018 a Requerente era residente, para efeitos fiscais, na Irlanda (Documento n.º 2) tendo investido, através dos identificados subfundos, em participações sociais de sociedades com sede em Portugal, auferindo nesse ano dividendos da participação no capital social daquelas sociedades (Documento n.º 3).

d)           11. Os dividendos auferidos pela Requerente foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 15% (cf. artigo 94.º do Código do IRC e artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre a República Portuguesa e a Irlanda) de acordo com a discriminação na tabela infra:

 

 

3.2. Factos não provados

 

18. Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

3.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

19. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

20. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

21. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no art. 110.º, n.º 7, do CPPT, as provas apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

3.4. Questão decidenda

 

22. O n.º 1 do artigo 22.º do EBF estabelece que “são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, pelo que exclui do âmbito do regime aí previsto as sociedades como a Requerente, que não foram constituídas de acordo com a legislação nacional.

 

23. Como resulta do argumentário exposto no relatório, no âmago da questão decidenda encontra-se o artigo 22.º do EBF, que estabelece um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, pois que, nos termos do seu n.º 3, não considera os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (v.g. juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – exceto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1 e isenção de derramas estadual e municipal. O n.° 10 do mesmo artigo dispensa as empresas que distribuem dividendos aos OIC da obrigação correspondente de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.

 

24. Em rigor, os dividendos pagos ao requerente estariam, em princípio, igualmente isentos de imposto. No entanto, a isenção foi afastada, pelo n.° 3 do artigo 14.° do CIRC, pelo facto de o requerente não estar sujeito ao imposto sobre as sociedades no Estado de residência de maneira a assegurar uma tributação mínima dos rendimentos de dividendos obtidos por pessoas coletivas residentes no estrangeiro.

 

25. Importa saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros da União Europeia  (no caso, a Irlanda) –  ao mesmo tempo que se  isenta de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal  e se sujeita os mesmos a tributação trimestral em IS, pela verba 29 da TGIS, e à eventual aplicação da tributação autónoma, designadamente a prevista no n.º 11 do artigo 88.º do CIRC – é conforme, ou não, com o artigo 63.º do TFUE. Trata-se de aferir da conformidade com este artigo, à data dos factos relevantes, das normas relevantes do CIRC e do EBF respeitantes ao regime de tributação dos dividendos auferidos pelo Requerente, em representação dos subfundos identificados. 

 

26. O artigo 26.º do TFUE estabelece uma conexão substantiva entre a criação do mercado interno e a liberdade de circulação de capitais, elevada esta, pelo artigo 63.º do TFUE, como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia . A mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno dos Estados-Membros, cabendo aos tribunais nacionais, na sua qualidade de tribunais europeus em sentido amplo, assegurar a primazia de aplicação do direito da União Europeia, desaplicando o direito nacional de sentido contrário. O TJUE desempenha uma função interpretativa decisiva, nomeadamente em sede de ações por incumprimento e de reenvios prejudiciais, devendo os tribunais nacionais conformar-se com o entendimento das normas dos Tratados que venha a ser vertido na jurisprudência daquele tribunal, sob pena de incumprimento do direito da União Europeia e de responsabilidade por parte do Estado-Membro, na linha da jurisprudência Francovich .

27. A liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE estabelece uma íntima relação com as liberdades de circulação de pessoas, de estabelecimento e de prestação de serviços, diferenciando-se delas na medida em que se estende a terceiros Estados. A mesma implica a proibição de discriminação entre capitais de um dado Estado-Membro e capitais provenientes de fora. Trata-se de uma norma diretamente aplicável aos Estados-Membros, que devem abster-se de restringir o seu alcance por via legislativa, administrativa ou jurisdicional. Isso não impede que os Estados-Membros regulem em alguma medida a circulação de capitais.

28. A autonomia fiscal permite aos Estados Membros regularem as condições de tributação e a carga fiscal aplicável, desde que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais. Não obstante a fiscalidade direta ser da competência dos Estados Membros, o seu regime jurídico deve respeitar o direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência. O TJUE tem sustentado que a existência de meras divergências entre os sistemas fiscais nacionais não é suficiente para declarar a existência de uma tal restrição. Na ausência de harmonização no plano da União Europeia, as desvantagens que podem resultar do exercício paralelo de competências dos diferentes Estados Membros, desde que não discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação.

 

29. A criação da União Económica e Monetária (UEM) tem conduzido a um reforço progressivo da importância da liberdade de circulação de capitais no mercado interno. Um dos principais objetivos da UEM consiste, precisamente, em facilitar a livre transferência de capital entre os Estados-Membros no quadro do mercado interno e das relações económicas e financeiras com Estados terceiros. A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efetiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia através da mais fácil disponibilização de capital. O objetivo dos OIC, cujo enquadramento jurídico é definido pela Diretiva 2009/65/CE, consiste em facilitar a participação dos investidores privados no mercado de valores mobiliários.

30. A densificação do âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais tem sido levada a cabo pelo TJUE acolhendo e sublinhando o valor enumerativo, mas não exaustivo, da Diretiva n.º 88/361/CEE, incluindo o respetivo Anexo I número IV, onde se subsumem ao conceito um amplo conjunto de operações e transações transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento coletivo, em que se incluem as relevantes in caso  .  A distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal ao Requerente deve ser qualificada como movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE e da própria Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988. Um dos domínios do âmbito e do programa normativo da liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE e diz respeito ao tratamento fiscal dos movimentos de capitais .

 

31. A questão do tratamento fiscal da distribuição de dividendos tem ocupado um lugar central na jurisprudência europeia, incluindo não apenas o TJUE, mas também o Tribunal EFTA . Este último órgão, no caso Focus Bank , e o TJUE, em casos como, entre outros, ACT GLO , Denkavit , Amurta , Truck Center , Aberdeen Property , Comissão v. Países Baixos , Comissão v. Portugal , Santander Asset Management  e Sofina SA , a despeito das diferenças factuais e jurídicas nas respetivas decisões, apontam globalmente no sentido de dever considerar-se que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes – v.g. imputando aos investidores residentes um crédito de imposto e sujeitando as entidades não residentes a retenção de imposto sem imputação; retendo imposto sobre dividendos pagos a não residentes e não retendo no caso de dividendos pagos a residentes – configurar, em princípio, uma violação da liberdade de circulação de capitais e nalguns casos também da liberdade de estabelecimento, pondo em causa o funcionamento do mercado interno. Por seu lado, o CAAD apresenta, nas suas diversas formações arbitrais, distintas orientações jurisprudenciais, sem prejuízo das mesmas também resultarem das particularidades de cada caso concreto.

 

32. Confirmando a existência de uma área apreciável de divergências interpretativas neste domínio, as conclusões da Advogada Geral (AG) Kokott recentemente apresentadas a propósito de um reenvio prejudicial apresentado num processo arbitral do CAAD , envolvendo o regime fiscal em causa também no presente processo, vieram sustentar, com argumentos ponderosos, aquilo que se afigura uma leitura menos formalista do artigo 63.º do TFUE,  reconhecendo uma maior margem de manobra dos Estados-Membros na conformação do regime fiscal dos OIC residentes e não residentes, concluído que esse artigo não se opõe à aplicação de retenção na fonte aos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, quando esses dividendos são distribuídos a um OIC não residente que não está sujeito ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no seu Estado de residência. O mesmo é aplicável quando esses dividendos, se distribuídos a um OIC residente, não estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, mas são objeto de outra técnica de tributação destinada a assegurar que só em caso de redistribuição ao investidor haja lugar à tributação do rendimento correspondente, e até esse momento é aplicada uma tributação trimestral (v.g. imposto de selo) sobre a totalidade do património líquido do OIC residente. Os argumentos por ela sustentados não deixarão de ser considerados.

 

33. A linha jurisprudencial do TJUE acima mencionada sugere, até ver, que, embora não estejam sempre numa situação comparável, residentes e não residentes são colocados nessa posição a partir do momento em que um Estado-Membro, unilateralmente ou por convenção, opte por tributar os acionistas não residentes de maneira menos favorável que os residentes, relativamente aos dividendos que uns e outros recebam de sociedades residentes. Especialmente relevante, em sede das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais, é o facto de o tratamento fiscal menos favorável dos não residentes os dissuadir, na qualidade de acionistas, de investirem no Estado da residência das empresas distribuidoras de dividendos, e constituir, igualmente, um obstáculo à obtenção de capital no exterior por parte dessas empresas.

 

34. Por outro lado, a jurisprudência europeia tem insistido na noção de que um Estado-Membro não pode deixar de cumprir as suas obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que outro Estado-Membro se encarregará de compensar de alguma maneira o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação .  As liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos dividendos pagos a residentes e não residentes pelo Estado-Membro anfitrião, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de dividendos .

 

35. O TJUE tem sustentado que, quando se trata de interpretar e aplicar as liberdades fundamentais do mercado interno, prevalece o entendimento segundo o qual a liberdade é a regra e as restrições à liberdade são a exceção. Estas últimas compreendem, quer as limitações ao exercício da liberdade, quer as discriminações no exercício da liberdade. Dado o seu caráter excecional, as mesmas devem ser devidamente fundamentadas, proporcionais e objeto de interpretação restritiva. A admissibilidade de restrições à liberdade de circulação de capitais por parte dos Estados-Membros encontra-se prevista no artigo 65.º do TFUE, na senda das derrogações à liberdade de circulação de capitais já previstas na Diretiva n.º 88/361/CEE.  A análise do caso será levada a cabo com base nas premissas normativas expostas e seguindo muito de perto os argumentos expendidos na jurisprudência do CAAD nos processos n.º 90/2019-T, de 23.07.2019, n.º 256/2019-T, 09.03.2020 e n.º 11/2020-T, de 06.11.2020, sem que isso signifique qualquer menoscabo para as opiniões e dúvidas de sentido contrário .

 

36. O artigo 65.º alínea a) do TFUE prevê a possibilidade de os Estados-Membros aplicarem disposições pertinentes de direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao lugar de residência ou ao lugar onde o capital é investido. No entanto, essa previsão deve ser atenuada pelo requisito do artigo 65.º, n.º 3, do mesmo Tratado, segundo o qual qualquer exceção não pode constituir um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida pelo artigo 63.º. Ou seja, as restrições têm como limite a garantia da própria liberdade de circulação de capitais . Importa, pois, para este efeito, saber se a situação dos fundos de investimento residentes e não residentes em Portugal é objetivamente comparável.

 

37. No caso de fundos de investimento residentes na Irlanda, o artigo 10.º, n.º 2, da CDT , permite que o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, seja limitado à taxa de 15% sobre o montante bruto dos dividendos se a pessoa que os recebe for o seu beneficiário efetivo. No entanto, como o regime fiscal aplicável à sociedade irlandesa se aproxima de um regime de transparência fiscal e, aparentemente, não há incidência de outros impostos – visto que, como consta dos autos, a base tributável é constituída pelos rendimentos não distribuídos ou imputados aos titulares do capital, desde que estes se manifestem nesse sentido – o OIC não pode deduzir o imposto pago nem é inteiramente líquido, de acordo com o critério do beneficiário efetivo, que possa sempre beneficiar dessa redução . Numa primeira análise, poder-se-ia dizer que essa impossibilidade resulta do facto de gozarem de uma vantagem fiscal, a isenção, de que os seus congéneres portugueses não usufruem. Estes, beneficiam da isenção de retenção, ao mesmo tempo que estão sujeitos a dois impostos – tributação autónoma de IRC e IS – cujo efeito cumulativo pode, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos. 

 

38. Por outro lado, o imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera dos investidores individualmente considerados. Num caso e noutro, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC residentes abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos fundos não residentes, no caso irlandeses. Estas diferenças podem ser invocadas, prima facie, para sustentar que não se trata de situações comparáveis. As mesmas são-no pela AT e pela AG Kokott, embora com o desacordo da Comissão. 

 

39. Com efeito, no que se refere à análise de comparabilidade, a AG Kokott considerou suficiente que o nível de tributação de um OIC residente e não residente seja apenas aproximadamente comparável, não sendo necessário que ambos sejam tributados de forma idêntica. O sentido substantivo deste entendimento é plenamente compreensível, do ponto de vista de uma preocupação inteiramente legítima e séria com o necessário combate à dupla não tributação. Todavia, ele afigura-se discutível do ponto de vista precisão, clareza e determinabilidade que deve caracterizar os regimes fiscais nacionais e o programa normativo de liberdade de circulação de capitais no mercado interno, garantido pelo artigo 63.º do TFUE, matérias interrelacionadas em que a segurança jurídica e a proteção da confiança dos cidadãos europeus assumem uma importância fundamental.

 

40. O entendimento preconizado pela AG Kokott, pese embora o mérito substantivo das preocupações anti-elisivas que estão na sua génese – a que este Tribunal não deixa de ser sensível – afigura-se inovador, quando comparado com a orientação formalmente mais rígida que se deduz da jurisprudência do TJUE anteriormente citada, na medida em que confere aos Estados-Membros uma maior margem de manobra e mais flexibilidade na conformação positiva dos seus regimes fiscais. No entanto, não é claro que uma abordagem deste tipo, assente em algo como uma estimativa grosseira, seja a melhor orientação a seguir, na medida em que pode gerar futuramente mais disputas interpretativas, e mais reenvios prejudiciais para o TJUE, em torno da concretização semântica do conceito de “aproximadamente comparável”.

 

41. Além disso, o argumento, da AG Kokott,  segundo o qual um OIC residente não é comparável a um OIC não residente porque Portugal tributa os residentes na sua qualidade de Estado de residência, enquanto tributa os não residentes numa base limitada na sua qualidade de Estado na fonte, embora conceitualmente indiscutível, pode levar, a que os Estados-Membros se convençam, erroneamente, de que têm o direito de tratar os pagamentos a não residentes de maneira diferente, porque estes não estão sujeitos à tributação do rendimento mundial (world wide income) no Estado da fonte. Ora, é questionável que isso esteja inteiramente de acordo com a jurisprudência existente do TJUE.

 

42. Em causa está saber se a determinação da comparabilidade da situação dos fundos residentes e não residentes em Portugal deve entrar em linha de conta com a situação fiscal em que se encontram os fundos de investimento não residentes em Portugal no respetivo Estado de residência – tendo em conta pertinente regime jurídico e as CDT’s entre Portugal e esses Estados – especialmente no caso dos Estados-Membros da União Europeia ou integrantes do Espaço Económico Europeu, ou ainda levar em conta a situação concreta dos respetivos investidores . Mesmo concedendo que se deve tomar em consideração todo o contexto fiscal da tributação dos OIC e, portanto, proceder a uma apreciação global (material), soluções normativas que obriguem a administração ou o tribunal nacional a ter em conta, para efeitos de comparação, a situação concreta dos fundos de investimento dos 27 Estados-Membros, a partir das relevantes CDT’s, se as houver, ou a indagar do impacto fiscal da retenção e das medidas de mitigação da dupla tributação económica na situação fiscal de cada investidor individualmente considerado seriam extremamente complexas, mesmo numa situação em que os acionistas fossem, eles próprios, pessoas coletivas, cada qual residente numa jurisdição diferente. A argumentação desenvolvida pela AG Kokott a propósito da imputação integral no Estado de residência do OIC a nível dos investidores parece subestimar o potencial de complexidade aqui envolvida.

 

 43. Se se quiser fazer uma determinação caso a caso para cada OIC não residente ou investidor individual, o trabalho administrativo envolvido, embora possa compensar os Estados-Membros por via de um aumento das receitas, acaba por ser, tendo em conta o grande número de investidores de alguns fundos, administrativamente impraticável. Tanto os fundos residentes em Portugal como os não residentes podem ter acionistas institucionais e individuais de todos os Estados da União Europeia e de terceiros Estados. Em causa estão, na prática, diferenças significativas de facilidade e praticabilidade administrativa. Diferentemente, se se circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não residentes a quem são distribuídos dividendos, uma única determinação será suficiente.

 

44. O que deve relevar é o impacto direto que as normas tributárias têm na atividade dos fundos e não na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, já que hoje é extremamente fácil levar a cabo investimentos transfronteiriços, sendo que esse mesmo é um dos objetivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais no âmbito da União Económica e Monetária. O rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu país de domicílio, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais.

 

45. Os fundos da Requerente, residente na Irlanda, podem ter investidores estrangeiros, incluindo portugueses, e os fundos fiscalmente residentes em Portugal podem ter investidores estrangeiros, incluindo irlandeses. A presente ação não foi intentada pelos investidores nem os mesmos são partes nela, nem é lícito chamar à colação a posição (para efeitos fiscais) dos referidos investidores. O artigo 22.º do EBF não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC —residentes ou não residentes — e a situação fiscal dos seus detentores de participações. Da mesma forma, a AT não afere da posição dos investidores em OIC estabelecidos (e residentes para efeitos fiscais) em Portugal para reconhecer a estes o regime fiscal previsto no artigo 22.º do EBF.

 

46. Ao menos enquanto o TJUE não decidir em sentido contrário, deve considerar-se decisivo, para efeitos de comparabilidade, o facto de a lei portuguesa diferenciar expressamente, para efeitos de retenção na fonte, entre fundos de investimento residentes e não residentes – e não a situação fiscal, mais ou menos vantajosa, que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados da residência ou ainda a situação fiscal individual dos respetivos investidores. Do ponto de vista do Estado-Membro que se considere, fundos residentes e não residentes estão numa situação comparável se ambos estão sujeitos à respetiva tributação . Como sublinhou o TJUE no caso Santander Asset Management , quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OIC beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação.

 

47. Também não parece a este Tribunal Arbitral ser relevante aferir do impacto fiscal que, nas mais variadas situações individuais e concretas, a sujeição da IS dos OIC residentes em Portugal possa produzir neste ou naquele fundo de investimento, visto tratar-se aí de um imposto sujeito a uma lógica patrimonial totalmente distinta da tributação do rendimento. O critério a ter em conta é, em primeira linha, o da letra do artigo 22.º do EBF, só depois havendo que tomar em consideração outros fatores.

 

48. Como se sublinhou acima, os fundos residentes e não residentes são colocados numa posição comparável a partir do momento em que Portugal opta por tributar, em IRC,  os não residentes de maneira menos favorável do que os residentes, dissuadindo aqueles, na qualidade de acionistas, de investirem nas empresas residentes distribuidoras de dividendos e dificultando a obtenção de capital no exterior por parte destas mesmas empresas. Por outro lado, Portugal não pode deixar de cumprir as obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno por considerar que os outros Estados-Membros se encarregarão, de alguma forma, de compensar o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação . 

 

49. No âmbito das liberdades fundamentais do mercado interno assume a maior importância a problemática dos chamados limites dos limites. Importa, assim, indagar sobre se a diferenciação entre fundos residentes e não residentes, nos termos do artigo 22.º do EBF na redação relevante à data dos factos, pode ser justificada, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, nomeadamente por se tratar de uma medida indispensável para impedir infrações às leis e regulamentos nacionais, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras. Sublinhe-se que a própria derrogação prevista nesse preceito é ulteriormente limitada pelo disposto n.o 3, do mesmo artigo – uma norma especial de limite dos limites – que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.o 1 “não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.°” .

 

50. No entender do presente Tribunal Arbitral, dificilmente se poderia argumentar de forma convincente no sentido da indispensabilidade da medida diferenciadora em apreciação. Em primeiro lugar, é o Estado português que, no exercício da sua jurisdição fiscal, opta deliberadamente por diferenciar entre fundos residentes e fundos não residentes, isentando os primeiros da retenção de imposto sobre a distribuição de dividendos e sujeitando à mesma os segundos, colocando-os numa situação comparável, e em seguida tratando-os de forma significativamente diferente do ponto de vista fiscal. Ora, não se vê em que medida é que essa diferenciação é indispensável à prevenção de infrações fiscais.

 

51. Com efeito, não se percebe que a diferenciação em causa possa prevenir a evasão fiscal, nada existindo na mesma que se refira à prevenção de montagens ou construções meramente artificiais, desprovidas de genuína substância económica. Recorde-se que o critério da indispensabilidade aponta para a justificação da diferenciação fiscal em causa apenas quando não existam meios alternativos menos restritivos – de limitação e diferenciação – à disposição do Estado-Membro em presença , adequados à salvaguarda do sistema fiscal ou de supervisão. Refira-se a este respeito que para prevenção da evasão fiscal vigora a Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e a Irlanda, a qual permite a troca de informações (cf. artigo 26.º).

 

52. Em segundo lugar, e na linha do que acaba de ser dito, sempre seria possível isentar de retenção (ou diminuir o respetivo montante) tanto os fundos residentes em Portugal como os fundos residentes noutros Estados-Membros e, simultaneamente, dar um tratamento fiscal em geral idêntico aos investidores residentes em Portugal pelos dividendos recebidos de sociedades residentes em Portugal ou noutros Estados-Membros, seguindo as orientações definidas pela jurisprudência do TJUE em sede de dupla tributação económica . A existência de alternativas menos restritivas de relativamente fácil concretização legislativa constitui evidência de que se está, no caso, perante uma diferenciação desproporcional e, portanto, ilegítima  . Por outro lado, o TJUE tem sustentado que um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode ser considerado compatível com o direito da União devido à eventual existência de outros benefícios . Nas suas palavras, se os Estados Membros utilizarem a liberdade de sujeitar a imposto os rendimentos gerados no seu território, são obrigados a respeitar o princípio da igualdade de tratamento e as liberdades de circulação garantidas pelo direito primário da União .

53. Acresce, e este é um terceiro aspeto relevante em sede do artigo 65.º, n.ºs1 e 3, do TFUE, que o TJUE tem entendido que, para que um argumento baseado no objetivo de coerência fiscal tenha êxito, é necessário estabelecer a existência de uma relação direta entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem pela cobrança de uma determinada imposição fiscal, devendo o caráter direto desta relação ser apreciado à luz do objetivo da regulamentação em causa . A esta luz, a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção. Exigindo a jurisprudência do TJUE um nexo direto entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem através de uma imposição específica, verifica-se, no entender deste Tribunal, apenas um nexo indireto – que não suficientemente direto, como entende a AG Kokott  – entre a retenção na fonte sobre os dividendos distribuídos a OIC não residentes e a eventual sujeição dos OIC residentes às taxas de tributação autónoma de IRC e da Verba 29 da TGIS, sendo este um tributo de natureza e lógica patrimonial. 

54. Como é sublinhado no Acórdão do CAAD no Processo n.º11/2020-T, a tributação em IS dos OIC residentes incide sobre o valor líquido global, à taxa de 0,0025%, por cada trimestre, quando invistam exclusivamente em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e, nos restantes casos, em que a base tributável poderá incluir os dividendos distribuídos, à taxa 0,0125%, por cada trimestre. Trata-se, como aí se diz, de uma tributação que poderá atingir, no máximo, nesta segunda hipótese, a taxa de 0,05% anuais (na soma dos quatro trimestres), apesar de incidir sobre o valor líquido global dos OICS, não se pode considerar equivalente à que resulta da tributação dos dividendos em IRC à taxa de 15%, 300 vezes superior, o que não é despiciendo, mesmo sendo duvidoso que se possa descartar essa diferença alegando, como faz a AG Kokott, que se trata apenas de uma questão da técnica de tributação relativa à aplicação de uma taxa de imposto baixa a um stock de capital muito elevado – independentemente da distribuição de dividendos – e de uma taxa elevada para uma distribuição muito baixa de dividendos.

55. A aplicação trimestral do IS a fundos em diferentes condições (v.g. fundos com valorização súbita de ativos, seguida de alienação e distribuição de dividendos; fundos com perfil conservador de investimento e valor da carteira de investimentos relativamente constante), estando dependente da eventual capitalização dos rendimentos provenientes dos dividendos, pode gerar, dentro de cada um dos sucessivos exercícios, consideráveis disparidades arbitrárias de tratamento fiscal entre os vários fundos de investimento residentes e entre estes e os não residentes, com impacto evidente nos respetivos fundos de caixa . Esta realidade é tanto mais significativa quanto é certo que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a apreciação da existência de um eventual tratamento desvantajoso dos dividendos pagos a não residentes deve ser efetuada em relação a cada ano fiscal individualmente considerado .

 

56. Por outro lado, a aplicação da taxa de tributação autónoma de 23% prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC – por força do artigo 22.º do EBF – está dependente do facto eventual da não permanência, de modo ininterrupto, das partes sociais a que correspondem os lucros na titularidade dos sujeitos passivos aí previstos durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e da sua não manutenção durante o tempo necessário para completar esse período, situações de ocorrência eventual e incerta. Não se aplicando em todas as situações, sempre se terá de concluir que não tem potencialidade para assegurar sempre a eliminação da situação de desvantagem dos fundos não residentes.

57. Acresce que esta tributação autónoma nem sequer se aplica aos OIC´s residentes, quanto aos dividendos, pois não se trata de entidades isentas de IRC, mas apenas isentas quanto a derrama estadual e municipal, por força do n.º 6 do artigo 22.º do EBF. Na verdade, as isenções a que se refere o n.º 11 do artigo 88.º do CIRC são benefícios fiscais (artigo 2.º, n.º 2, do EBF) e não se consideram benefícios fiscais as situações de não sujeição tributária, designadamente «as medidas fiscais estruturais de carácter normativo que estabeleçam delimitações negativas expressas da incidência» (artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do EBF).

58. No caso em apreço, a não consideração, para efeitos do apuramento do lucro tributável dos OIC residentes, dos rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, constitui uma medida estruturante do próprio modelo de tributação dos fundos de investimento adotado pelo legislador, retirando da incidência do imposto sobre o rendimento os rendimentos, distribuídos aos fundos constituídos e funcionando segundo a legislação nacional. Não constituí, pois, qualquer benefício fiscal, mas pertence à tipologia das normas delimitadoras da sujeição. Por outras palavras, as disparidades de tratamento fiscal assim geradas não asseguram necessariamente a neutralização da desvantagem fiscal em que ficaram colocados os fundos não residentes, sujeitos a uma retenção de imposto suscetível de os dissuadir de investirem em Portugal e de dissuadir os residentes em Portugal de investirem em fundos de investimento de outros Estados-Membros .

 

59. Também não colhe o argumento do interesse geral na garantia de uma repartição e equilibrada do pode de tributar, devendo entender-se, com o TJUE, que quando um Estado Membro tenha optado por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional – ou tributal de forma significativamente diferente do ponto de vista da incidência objetiva e da taxa –  não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários de tais rendimentos . Ou seja, em caso algum se poderá entender que se trata aqui de restrições justificadas por razões de segurança pública ou ordem pública .

 

60. Do mesmo modo, em quarto lugar, a garantia da efetividade da supervisão financeira não justifica, por si só, a diferenciação de tratamento entre fundos residentes e fundos não residentes em Portugal. Como efeito, se é certo que um OIC constituído ao abrigo de legislação estrangeira (em concreto, ao abrigo da legislação de um outro Estado-Membro da UE) e aí sujeito aos poderes de supervisão da respetiva entidade reguladora não cumpre os pressupostos previstos na legislação portuguesa e certamente não estará sujeito à supervisão da CMVM, também o é que o TJUE já sustentou, num caso envolvendo o nosso país, a inadmissibilidade de uma regulamentação nacional que impeça de forma absoluta um determinado fundo de fazer prova de que satisfaz as exigências que lhe permitiriam beneficiar da isenção, nomeadamente fornecendo os documentos comprovativos pertinentes que permitam às autoridades fiscais nacionais verificar, de forma clara e precisa, que esses fundos preenchem, no seu Estado de residência, exigências equivalentes às previstas pela legislação nacional .

61. Como tem sido sucessivamente afirmado pelo TJUE, a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE deve ser interpretada em sentido amplo e as possibilidades de restrição à mesma, previstas e limitadas no artigo 65.º do mesmo Tratado devem ser indispensáveis à prossecução de interesses públicos ponderosos, devidamente fundamentadas e interpretadas de maneira estrita . Por outras palavras, medidas nacionais que restrinjam a livre circulação de capitais podem ser justificadas por uma das razões mencionadas no artigo 65.° ou por razões imperiosas de interesse geral, desde que sejam adequadas para garantir a realização do objetivo que prosseguem e não vão além do necessário para o alcançar. Ora, as diferenças estruturais existentes na tributação de OIC não residentes e residentes e a disparidades de tributação por ela potenciadas, não se afiguram compatíveis com uma interpretação estrita das restrições à liberdade de circulação de capitais – mesmo aceitando a tese da AG Kokott de que a mesma é menos protegida do que as demais liberdades fundamentais – e com o princípio da proporcionalidade.

62. É sobre o Estado português que recai o ónus de provar que os seus objetivos fiscais e financeiros não poderiam ser prosseguidos por meios alternativos menos restritivos do que a diferença de tratamento fiscal em causa , ónus esse que manifestamente não foi cumprido pela argumentação expendida pela AT, sem prejuízo de se reconhecer o empenhado e competente esforço nesse sentido, de resto corroborado pelas conclusões da AG Kokott. A orientação de fundo seguida pela jurisprudência do TJUE sobre o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais, os seus limites e os limites dos limites, torna inviável essa missão probatória no caso concreto.  

 

63. Pese embora as conclusões preconizadas pela AG Kokott , o presente Tribunal Arbitral aceita como boa a noção, várias vezes sustentada pelo TJUE, de que o reconhecimento de uma ampla margem de conformação dos Estados-Membros em sede de regulação dos capitais tornaria a respetiva liberdade de circulação ilusória .  Dada a linguagem prudente nelas incorporada, resulta claro que as exceções do artigo 65.º, nº 1, alínea a) e do n.º 3 do TFUE devem ser aplicadas somente em circunstâncias raras e especiais. Esta é uma barreira significativa de difícil superação por parte do Estado português.

 

64. A jurisprudência do TJUE acima referida permite que o presente Tribunal Arbitral sustente que o artigo 63.º do TFUE consubstancia, para o caso sub judice, uma situação de ato esclarecido (acte éclairé) . A mesma, suportada em múltiplos casos, fornece parâmetros suficientemente seguros sobre a interpretação e aplicação que deve ser feita do preceito em causa relativamente às circunstâncias fácticas e normativas do caso concreto. No entender deste Tribunal, a opinião da AG Kokott,  a despeito da indiscutível relevância material dos seus objetivos e ponderações, não apresenta ainda conceitos metodologicamente convincentes que sirvam como o melhor dissuasor contra a discriminação arbitrária e a restrição dissimulada por meio do direito fiscal nacional – para efeitos do artigo 65.º, n.º 3, TFUE – no domínio da tributação dos OIC.

 

65. Tendo o TJUE proferido diversas decisões no sentido de julgar incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais múltiplas diferenciações em matéria de retenção na fonte por dividendos distribuídos a residentes e não residentes em casos com contornos substancialmente semelhantes ao aqui presente – independentemente da natureza dos processos que levaram a essas decisões e mesmo que os factos não fossem estritamente idênticos  – o presente Tribunal Arbitral, no exercício dos poderes/deveres que lhe incumbem, de afirmar a primazia do Direito da União Europeia sobre o direito interno e seguir a orientação interpretativa acolhida pelo TJUE, conclui pela inexistência, em concreto,  de interesse substantivo e processual em aguardar pelo desfecho do reenvio prejudicial de interpretação que está na base do caso C-545-19 a que dizem respeito as mencionadas conclusões da AG Kokott, entendendo que se está claramente diante de uma restrição não indispensável nem justificada da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.

 

66. A Requerente pede a restituição da quantia € 159.447,51 relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2018, bem como de pagamento de juros indemnizatórios. Dispõe a alínea b) do artigo 24.º do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito», de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

67. Pese embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilizar a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo expressa referência a decisões condenatórias, há muito jurisprudência dominante sustenta que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, interpretação inteiramente adequada ao sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

68. Não obstante tratar-se, essencialmente, de um processo de anulação de atos tributários, o processo de impugnação de admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do teor do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se dispõe que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

69. O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretado e aplicado como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. O princípio da tutela jurisdicional efetiva e da correspondente ampliação dos poderes conformadores da jurisdição administrativa e tributária aponta precisamente nesse sentido. A Requerente tem, por conseguinte, o direito de ser reembolsada do imposto pago e juros indemnizatórios por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».

 

70. No caso em apreço, em causa está a aplicação, pela AT, da isenção e das retenções resultantes, respetivamente, dos artigos 22.º do EBF e 94.º n.º 1 alínea c), n.º 3 alínea b), e n.º 4 e 87.º, n.º 4, do CIRC, criando uma diferenciação entre OIC residentes e não residentes, com potencial impacto dentro de cada um de sucessivos exercícios fiscais, em violação da liberdade de circulação de capitais, uma liberdade fundamental do mercado interno, consagrada no artigo 63.º da TFUE, em termos, de resto, que sempre dariam lugar a responsabilidade por Estado português, na linha da jurisprudência Francovich. Na sua atuação, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como ele vem sido interpretado pelo TJUE. Sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respetiva ilegalidade. Caso em que, nos termos do artigo 43.º n.º 3 da LGT, são devidos juros indemnizatórios, a partir do trânsito em julgado da sentença.    

 

1             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

1)            Declarar a ilegalidade dos atos tributários de retenção na fonte ora sindicados por erro nos pressupostos de direito, a saber, por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE e a decisão de indeferimento de reclamação graciosa que sobre eles recaiu;

2)            Condenar a Requerida à restituição da quantia de € 159.447,51 relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2018, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 22.º do EBF e ao pagamento de juros indemnizatórios a partir do trânsito em julgado da sentença, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, da LGT;

3)            Julgar improcedente o pedido da Requerida de suspensão do processo até à decisão, pelo TJUE, do reenvio prejudicial de interpretação respeitante ao caso C-545/19, Allianzgi-Fonds Aevn v. Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 159.447,51 nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3 672.00, a cargo da Requerida, conformemente ao disposto nos art.s 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e art. 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de novembro de 2021.

 

Árbitro Presidente

(Manuel Luís Macaísta Malheiros)

 

Árbitro Vogal

(Jónatas E. M. Machado)

 

Árbitro Vogal

(Mariana Vargas)

(Vencida conforme declaração junta)

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencida por ter considerado preferível aguardar pela decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, quanto às questões formuladas no processo de reenvio prejudicial identificado no texto do presente Acórdão.

/Mariana Vargas/