DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Paula Cristina Gomes Florindo e Jorge Belchior de Campos Laires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 21 de maio de 2021, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A… – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., doravante “Requerente”, pessoa coletiva com o número único de matrícula e de identificação fiscal ………, com sede na Rua ………., n.º .., ….-… Setúbal, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, e nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março, na redação vigente.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019 ………., reportada ao período de tributação de 2015, no valor total a pagar de € 127.866,13, na parte que resulta da tributação autónoma de despesas não documentadas e, bem assim, na que respeita a gastos incorridos com a compensação por deslocação em viatura própria, no montante conjunto de € 117.221,82 (incluindo juros compensatórios), com a consequente restituição dessa quantia e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
Em 31 de dezembro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, de seguida, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 21 de maio de 2021.
Em 28 de junho de 2021, a Requerida apresentou a Resposta com defesa por impugnação e juntou o processo administrativo (“PA”). Entende ser dispensável a prova testemunhal e conclui que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 9 de julho de 2021, o Tribunal, tendo em vista a descoberta da verdade material, determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente.
Em 27 de setembro de 2021, realizou-se a referida reunião. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas sucessivas, no prazo de 15 dias, fixando-se o prazo para prolação da decisão até à data limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).
Em 14 de outubro de 2021, a Requerente apresentou alegações, tendo a Requerida contra-alegado em 29 de outubro de 2021.
Por despacho de 22 de novembro de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a prorrogação por dois meses do prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivada da tramitação processual e da interposição de períodos de férias judiciais.
SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERENTE
A Requerente suscita diversas ilegalidades que, na sua perspetiva, invalidam o enquadramento preconizado pela AT, de “despesas não documentadas”, em relação às divergências verificadas entre o saldo de Caixa e os meios monetários disponíveis, pressuposto da sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, nos termos do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC. Neste âmbito, argui que:
a) A diferença apurada na contagem de Caixa pela AT ficou a dever-se à aquisição de barras de ouro, devendo-se a mero lapso contabilístico da Requerente estas não se encontrarem registadas em rubrica própria do ativo, na conta #1421 – Ativos Financeiros;
b) Os valores monetários do saldo de Caixa foram, assim, substituídos por barras de ouro, adquiridas em 2010 no montante aproximado de € 200.000,00, pelo que se está perante uma mera substituição de um ativo por outro, não existindo qualquer “gasto” indocumentado, nem saída do património líquido da empresa;
c) A AT, ao colocar em causa a contabilidade da Requerente, deveria, caso considerasse ser a mesma impossível de reconstituir, ter recorrido à aplicação de métodos indiretos, nos termos do artigo 87.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), não o tendo feito;
d) Nestas circunstâncias, suscita-se uma situação de incontornável dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, a ser valorada a favor da Requerente, em face da regra do ónus da prova – artigo 74.º, n.º 1 da LGT – e do disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”);
e) Mesmo que se entendesse estar em causa um gasto que devesse ser tributado nos termos veiculados pela AT, essa tributação teria de ter ocorrido por referência ao exercício de 2010, ano em que foram adquiridas as barras de ouro, que à data da liquidação, já estava caducado, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.ºs 1 e 4 da LGT;
f) Não foi observado o princípio do inquisitório vertido no artigo 58.º da LGT e da verdade material, consagrado no artigo 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e artigo 266.º da Constituição;
g) Resulta infringido o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do Código do IRC, dada a imputação ao exercício de 2015 de despesas ocorridas em 2010;
h) A correção não se baseia em despesas que tenham influenciado o resultado líquido contabilístico do exercício [de 2015];
i) Estão devidamente comprovados por mapas de itinerário os gastos incorridos com a compensação por deslocação da sócia-gerente em viatura própria, não tendo base legal a exigência da AT de apresentação de documentos adicionais para esse efeito, à luz do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea h) do Código do IRC;
j) A AT não cuidou de trazer ao procedimento as provas relativas à situação fáctica em que assentou a sua decisão, v.g., sobre a efetiva realização das deslocações, verificando-se, também quanto a esta correção, a violação do princípio do inquisitório e da verdade material.
SÍNTESE DA POSIÇÃO DA REQUERIDA
Por seu turno, a Requerida preconiza que a liquidação (parcialmente) impugnada decorre diretamente da aplicação da lei e não enferma das ilegalidades arguidas pela Requerente. Neste sentido, sustenta que:
(a) A AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, ao demonstrar a referida divergência entre a contabilidade e a contagem física, desconhecendo-se a natureza, origem e finalidade do dispêndio subjacente;
(b) A Requerente não fez prova dos factos alegados, designadamente da existência física de barras de outro a integrar o património empresarial, adquiridas por sua conta, em seu nome e com a mobilização de meios financeiros saídos da conta Caixa. Apenas demonstrou a aquisição de barras de ouro pela sócia-gerente, a título pessoal, no valor aproximado de € 200.000,00;
(c) Tal ónus impendia sobre a Requerente (v. artigo 74.º, n.º 1 da LGT), que também não refletiu na contabilidade a alegada aquisição de barras de ouro por contrapartida das saídas de meios financeiros da conta Caixa;
(d) A incidência de tributação autónoma não depende da relevação contabilística das despesas não documentadas numa conta de gastos;
(e) Fazer recair sobre a AT, ao abrigo do princípio do inquisitório e da verdade material, a recolha de elementos relativos a despesas (e o ónus de as provar) em relação às quais inexistem documentos comprovativos e registos contabilísticos dos exfluxos monetários, em circunstâncias em que a Requerente é a única que se encontra em condições de satisfazer esse ónus, redundaria numa exigência de probatio diabolica;
(f) Afrontaria a própria natureza e finalidade de dissuasão/sancionatória adstrita à tributação autónoma das despesas não documentadas “premiar” fiscalmente os contribuintes que se eximem da obrigação básica de contabilização e/ou declaração daquele tipo de despesas, infringindo também o princípio da igualdade, na aceção de que todos sejam chamados a contribuir de acordo com a sua real capacidade contributiva;
(g) Incidindo a tributação autónoma sobre as despesas não documentadas, não sobre o rendimento sujeito a IRC, não lhe é aplicável o princípio da especialização dos exercícios, como é enunciado no artigo 18.º, n.º 1 do Código do IRC, nem, dadas as suas especificidades, todas as regras do IRC, conforme reconhecido na jurisprudência arbitral e constitucional;
(h) Perante tais omissões imputáveis à Requerente, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, só pode ser determinada por recurso a um critério supletivo, que é o do momento da evidenciação da falta dos meios financeiros, ou seja, na data da contagem física de Caixa e, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2015;
(i) Deste modo, reportando-se o facto tributário a 2015, a liquidação promovida pela AT, em 2019, encontrava-se dentro do prazo de caducidade;
(j) Em relação aos mapas de deslocações (compensação por deslocação em viatura própria da sócia-gerente), a análise dos mesmos revela falta de verosimilhança, não sendo apresentada, apesar de solicitada, qualquer justificação para que a sócia-gerente da Requerente tenha frequentado, em simultâneo, nos mesmos dias, diversos cursos, em Lisboa, no Porto e no Entroncamento;
(k) Os mapas em causa cumprem os requisitos do ponto de vista formal, mas revelam indícios de não corresponderem à realidade, retirando credibilidade ao conteúdo dos documentos e impedindo o controlo das deslocações: sobreposições de dois e três cursos diferentes nos mesmos dias, em alguns casos a centenas de quilómetros de distância (Lisboa, Porto, Entroncamento), e a frequência de um curso no dia 1 de janeiro;
(l) Não tendo a Requerente clarificado as situações colocadas em crise, não são os encargos correspondentes aceites como dedutíveis, segundo o disposto nos artigos 23.º, n.º 1 e 23.º-A, n.º 1, alínea h) do Código do IRC;
(m) A Requerente alega factos constitutivos da posição jurídica que se arroga, sem os provar, como lhe caberia (v. artigo 342.º do Código Civil e 74.º, n.º 1 da LGT);
(n) Em consequência da improcedência do pedido, deve também ser julgada improcedente a pretensão de juros indemnizatórios.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRC (com as legais consequências no ato de segundo grau que sobre esta recaiu), à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
A. A sociedade A……. SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., constituída em 2006, aqui Requerente, tem por objeto a atividade de “[c]omercialização, venda, dispensa de especialidades farmacêuticas e manipulados galénicos e em geral tudo o que se relacione com a preparação de manipulados e o comércio de produtos químico-farmacêuticos, cosméticos e seus derivados, incluindo o comércio de acessórios de farmácia, de produtos destinados à higiene e profilaxia, de águas mineromedicinais, de produtos dietéticos, de artigos de perfumaria, de óptica, de acústica médica e de prótese em geral, de produtos de fitofarmácia, nomeadamente de pesticidas, de produtos homeopáticos, de medicamentos homeopáticos e de produtos farmacêuticos homeopáticos” – cf. Documento 3 junto pela Requerente e Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).
B. A Requerente encontra-se registada para o exercício da atividade com o CAE 47730 – Comércio a retalho de produtos farmacêuticos, em estabelecimentos especializados, e é um sujeito passivo de IRC, nos termos do Código deste imposto, sendo tributada pelo regime geral de determinação do lucro tributável – cf. RIT.
C. A sede da Requerente localiza-se na Rua …………, n.º …, ….-… Setúbal – cf. Documento 3 junto pela Requerente e RIT.
D. A Requerente tinha, até 31 de dezembro de 2015, como única sócia e gerente B……. (adiante B……). A partir de 1 de janeiro de 2016, a titularidade do capital e a gerência passaram para C……. – cf. RIT.
E. A Dra. B…… deu ordens manuscritas de compra de barras de ouro, em formulários do Banco …, referenciando a conta número 5-…….-000-001 (com autorização de débito na mesma) e indicando a morada na Rua …………., …, ...º …., ….-…. Lisboa, nas seguintes datas e valores – cf. Documento 5 junto pela Requerente:
a) Em 14 de junho de 2010, no valor de € 20.129,00;
b) Em 29 de junho de 2010, no valor de € 77.328,40; e
c) Em 15 de outubro de 2010, no valor de € 97.887,00 autorizando o respetivo débito na mesma conta acima mencionada,
perfazendo o total de aquisição de € 195.344,40.
F. No âmbito do Despacho n.º DI2015….., foi a Requerente visitada por funcionário da Requerida, no local da sua sede, no dia 25 de setembro de 2015, com o objetivo de se proceder à contagem física dos valores de caixa. Nessa contagem, apurou-se o montante de € 175.352,72 de valores físicos em caixa – cf. RIT.
G. Por consulta ao Balancete disponibilizado pelo sujeito passivo, reportado à data de 30 de abril de 2015, constatou-se que a conta 111- Caixa evidenciava um saldo de € 466.740,76, apurando-se uma diferença no valor de € 291.388,04 – cf. RIT. Comentário Jorge Laires: considerando que a liquidação da tributação autónoma não incidiu sobre esta diferença, mas sim sobre a diferença do saldo a 30 de setembro de 2015 (€ 389.754,94) e a contagem de € 175.352,72 (sendo portanto a base tributável € 214.402,22), seria de ponderar apresentar antes estes valores, dado que são os valores relevantes para o caso.
H. Questionada nesta data [25 de setembro de 2015], a sócia-gerente declarou que tinha cerca de € 200.000,00 euros em barras de ouro, adquiridas com o dinheiro de caixa da farmácia, para segurança dos pagamentos, na eventualidade de qualquer instabilidade que pudesse ocorrer no país – cf. RIT .
I. Em 3 de abril de 2019, foi iniciado um procedimento inspetivo externo, ao abrigo das Ordens de Serviço OI2018….. e OI2019….., com origem no despacho n.º DI2015….., relativo à ação de controlo de caixa, tendo por objeto a análise da situação tributária de âmbito geral da Requerente, nos anos 2015 e 2016, respetivamente, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, alínea a) do RCIPTA. Salienta-se que nos presentes autos estão apenas em causa factos respeitantes ao período de tributação de 2015 – cf. RIT.
J. Nesse mesmo dia, foi ouvida, em auto de declarações, a sócia-gerente C….., sobre o facto de a Requerente ter sido notificada em 25 de setembro de 2015, para apresentar comprovativo da aquisição das barras de ouro e de até essa data [3 de abril de 2019] este não ter sido apresentado. Esta declarou que : “[a]s barras de outro existem e pertencem ao sujeito passivo [a Requerente], no entanto, não é possível apresentar o documento comprovativo da sua aquisição porque não o consegue encontrar.” – cf. RIT.
K. Em 2 de julho de 2019, a sócia-gerente C…….., reforçando o declarado anteriormente, informou que solicitou o comprovativo da referida aquisição à D…………., entidade através da qual referiu que foram adquiridas as mencionadas barras de ouro, e que a instituição bancária lhe transmitiu que sem a informação concreta sobre a(s) data(s) e valor(s) de compra/venda, não é possível aceder a essa informação e fornecer o comprovativo solicitado – cf. RIT.
L. Através do Ofício n.º ……., de 9 de agosto de 2019, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária, com proposta de correções de IRC e de IVA , bem como para, pretendendo, exercer o seu direito de audição, à luz do princípio da participação previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) – cf. Documento 4 junto pela Requerente.
M. O direito de audição foi exercido, em 9 de setembro de 2019, relativamente à parte sujeita a tributação autónoma por diferença do saldo de caixa do exercício de 2015, cifrada em € 214.404,22, tendo a AT concluído pela manutenção das correções propostas e emitido o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) com os fundamentos que infra se transcrevem na parte relevante – cf. RIT:
“III.1. EM SEDE DE IRC
III.1.1. ANO DE 2015
III.1.1.1 Saldos de Caixa
Conforme o exposto no ponto II.3.2.5 do presente relatório e a análise efetuada aos elementos disponibilizados pelo sujeito passivo, constatou-se que o balancete reportado a setembro de 2015, evidenciava um saldo devedor da conta caixa no montante de € 389.754,94, o qual não tem correspondência com o valor de € 175.352,72, apurado na contagem física de caixa, realizada no dia 25 de setembro de 2015, verificando-se uma divergência no valor de € 214.402,22.
Junta-se no Anexo 5 – Balancete Geral (Analítico) do mês de setembro/2015
Confrontado com este facto, o sujeito passivo declarou que foram adquiridas barras de ouro no valor de cerca de € 200.000,00, com o dinheiro de caixa da empresa, no entanto, como já foi referido no ponto II.3.2.5 do presente relatório, o mesmo não apresentou até à data da elaboração do presente relatório o comprovativo da aquisição das mencionadas barras de ouro, impossibilitando, assim, a sua confirmação.
Tendo sido apurado valores de caixa em falta, duas situações podem ocorrer:
Tratar-se de saídas de caixa sem documento de suporte ou seja despesas não documentadas, recaindo sobre esse montante tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC;
Tratar-se de distribuição e/ou adiantamento por conta de lucros (Rendimentos de Capitais – Categoria E), havendo lugar à obrigação de retenção na fonte relativa a rendimentos de capitais nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, à taxa liberatória prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.
O sujeito passivo enviou em 13/07/2017, a primeira declaração IES-DA, relativa ao ano de 2016, na qual evidencia um movimento de saída de caixa no montante de € 452.083,27, por contrapartida da conta de resultados transitados, refletindo um saldo de caixa no valor de € 6.919,18.
Questionado o sujeito passivo, sobre uma eventual distribuição de resultados ocorrida na empresa no ano de 2016, informou o seu contabilista certificado que:
«…
• Do livro de actas não consta nenhuma deliberação no sentido de distribuir qualquer montante de resultados, resultados transitados, ou reservas livres;
• Este cliente, à semelhança do que sucede na nossa organização foi atribuído a um contabilista na nossa estrutura, que, estranhando o valor do saldo e caixa, entendeu efetuar uma regularização do mesmo, movimentando em contrapartida a conta 561 – Resultados Transitados e eu própria nas conferências que fiz também não me apercebi deste facto;
• Sucede que este movimento foi feito sem que o cliente / contribuinte tivesse sido consultado, e sem que tivesse existido alguma deliberação nesse sentido, ou distribuição efetiva de qualquer tipo de valor;
• Existiu portanto um erro material, que vai ser corrigido de imediato nas declarações envolvidas (IES 2016 e 2017), repondo a verdade material dos factos na contabilidade;»
[…]
Em 12/03/2019, o sujeito passivo enviou declarações IES-DA, de substituição, relativamente aos anos de 2016 e 2017, sendo que a do ano de 2016, reflete um saldo de caixa final no valor de € 459.002,45.
Conforme referido anteriormente a comparação entre o saldo devedor da conta caixa, evidenciado pela contabilidade em 30-09-2015 e o montante de € 175.352,72, apurado na contagem física de caixa realizada em 25-09-2015, revela uma divergência que ascende a € 214.402,22 (389.754,94 – 175.352,72), facto este que se considera constituir uma infração ao disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º do CIRC.
Conforme resulta do princípio estabelecido no artigo 74.º da Lei Geral Tributária, compete ao sujeito passivo fazer prova das operações efetuadas com base em documentos justificativos, e no caso em análise, o sujeito passivo não apresentou qualquer documento ou justificação para a divergência apurada no montante de € 214.402,22 .
De acordo com os esclarecimentos prestados pela contabilista certificada, não existiu qualquer distribuição de resultados, pelo que o montante de € 214.402,22, em falta em caixa não foi utilizado para esse fim.
Concluindo-se que esse montante respeita a meios financeiros retirados do património da empresa sem suporte documental, pelo que, se considera como despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma, conforme determina o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC.
Por consulta à declaração de rendimentos Modelo 22, do ano de 2015, entregue pelo sujeito passivo, constata-se que foram declaradas tributações autónomas, pelo que se vai proceder à correção das mesmas, e consequentemente do valor de IRC a pagar, conforme se apresenta no quadro seguinte:
Quadro 12 – Tributação autónoma
Descrição 2015
Tributação autónoma calculada pelo SP 757,53 €
Correção apurada (*) 107.201,11 €
Tributação autónoma apurada 107.958,64 €
(*) TA – Despesas não documentadas = 214.402,22 x 50% = 107.201,11
III.1.1.2. Gastos não dedutíveis
[…]
III.1.1.2.2 Deslocações e estadas – Art.º 23.º n.º 1 e Art.º 23.º-A, n.º 1, al. h) – Ano 2015
Dispõe o artigo 23.º do CIRC, que são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, ou seja, para que um gasto possa ser aceite fiscalmente deve existir uma relação causal entre tal gasto e os rendimentos obtidos pela empresa, no desenvolvimento da sua atividade.
De acordo com o n.º 3 do artigo 23.º do CIRC, a lei prevê que os gastos considerados dedutíveis devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito, sendo o lucro tributável apurado com base nos registos contabilísticos do sujeito passivo.
As empresas podem ressarcir os seus trabalhadores pela deslocação em viatura própria ao serviço da empresa, no entanto, a sua aceitabilidade fiscal depende da comprovação dos encargos efetivamente suportados com a compensação por uso de viatura própria (Kms), através de um mapa itinerário, no qual conste o nome do beneficiário, o local onde se deslocou, a data da deslocação, tempo e objetivo de permanência, matrícula da viatura, bem como o montante pago por quilómetro, de modo a aferir se o mesmo excede os limites legais de sujeição a IRS. Está previsto legalmente que os quilómetros pagos aos trabalhadores têm que ser declarados na DMR – Declaração Mensal de Remuneração.
Estas despesas encontram-se sujeitas a tributação autónoma, nos termos do n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC.
O valor por quilómetro percorrido isento de IRS é fixado anualmente por Portaria do Ministro das Finanças ou Decreto Lei do Governo (em 2015, estava em vigor o valor previsto no Decreto Lei n.º137/2010 de 28 de dezembro, dado que o valor do Km é o mesmo desde 2011). Assim, para 2015, este valor limite era, e é até à presente data, de € 0,36 por Km e consta dos recibos.
Da análise ao extrato da subconta SNC 625122 Quilómetros, verificou-se que o sujeito passivo contabilizou em 31-12-2015, sob o registo n.º 21, um gasto no montante total de € 10.292,40, cujo documento de suporte são recibos de Compensação por deslocação em viatura própria (Kms), nos quais se encontra mencionado o nome da sócia gerente e a matrícula da viatura utilizada.
Junta-se no anexo 7 – Extrato da conta 625122 - Quilómetros e cópia dos Recibos de Compensação por deslocação em viatura própria (Kms) do ano de 2015
Da análise aos referidos recibos importa salientar o seguinte:
• Encontram-se contabilizados 12 recibos emitidos pelo sujeito passivo para titular a Compensação por deslocação em viatura própria (Kms), verificando-se que três deles referem-se ao mês de janeiro/2015 e os restantes referem-se aos meses de fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro e dezembro;
• Nos recibos que titulam a Compensação por deslocação em viatura própria (Kms) constam deslocações da sócia gerente, de setúbal a diversos locais (Lisboa, Porto, Évora e Entroncamento), apresentando como justificação a frequência de vários cursos (veterinária,patologias cardiovasculares, formação em farmácia, geriatria, gestão de recursos humanos e também de uma pós graduação), gestão financeira e congresso farmacêutico. Verificou-se no entanto que na contabilidade apenas se encontra registado um gasto com o pessoal, na conta 63864 Operações isentas, relativo a um curso de Homeopatia via e-learning, titulado pela Fatura Nº …. emitida em 26/02/15, pelo E……., SA, NIF EL-………. no valor de € 3.000,00.
Foram solicitados ao sujeito passivo documentos comprovativos da frequência dos referidos cursos, os quais não foram rececionados até à presente data.
• No mês janeiro/2015, verificou-se que nos três Recibos analisados consta que a referida viatura é utilizada em deslocações a locais distintos, no mesmo dia, conforme se apresenta nos seguintes quadros:
Quadro 14 – Compensação por deslocação em viatura própria (Kms) – janeiro/2015 (Anexo 7/pag.3/14)
Dia Local origem Local de destino Justificação Nº Kms
5 Setúbal Lisboa Curso Geriatria 150
6 Setúbal Lisboa Curso Geriatria 150
7 Setúbal Lisboa Curso Geriatria 150
8 Setúbal Lisboa Infarmed 150
13 Setúbal Porto Curso Suplementos 800
Quadro 15 – Compensação por deslocação em viatura própria (Kms) – janeiro/2015 (Anexo 7/pag.4/14)
Dia Local origem Local de destino Justificação Nº Kms
5 Setúbal Lisboa Pós-Graduação em Marketing 150
6 Setúbal Lisboa Pós-Graduação em Marketing 150
7 Setúbal Porto Patologias cardiovasculares 700
8 Setúbal Lisboa OF: Alterações ao Cód. 150
13 Setúbal Lisboa Pós-Graduação em Marketing 150
Quadro 16 – Compensação por deslocação em viatura própria (Kms) – janeiro/2015 (Anexo 7/pag.5/14)
Dia Local origem Local de destino Justificação Nº Kms
1 Setúbal Lisboa Curso Geriatria e ajud 150
5 Setúbal Lisboa Curso Suplementos A 150
6 Setúbal Entroncamento Curso Veterinária 400
13 Setúbal Porto Patologias cardiovasculares 700
• De referir o facto que dia 1 de janeiro é feriado, revelando-se incoerente a frequência de um curso de Geriatria.
• Relativamente às deslocações relativas a ANF, entrega de medicamentos sem identificação do destinatário, noites na OF e outras, não constam em anexo aos Recibos (Mapas itinerário) documentos comprovativos que permitam o seu controlo e a confirmação da sua realização. No decurso do presente procedimento solicitaram-se ao sujeito passivo esses documentos comprovativos, os quais não foram rececionados, até à data da elaboração do presente relatório.
Em suma, a análise efetuada aos recibos mensais (Mapas itinerário) do ano de 2015 revelou a existência de várias incongruências, nomeadamente ao nível da justificação constante dos Recibos (Mapas itinerário) para as deslocações efetuadas pela sócia gerente no mês de janeiro. Foram solicitados documentos comprovativos, bem como quaisquer outros elementos que permitam atestar a veracidade das mencionadas deslocações, os quais não foram rececionados, até à data da elaboração do presente relatório.
Pelo exposto, conclui-se que os Mapas de itinerário relativos aos encargos com a compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador existem, no entanto mostram-se incongruentes e inverosímeis, assim são de desconsiderar os respetivos gastos contabilizados, no montante de € 10.292,40, por não ser possível comprovar a efetiva realização dessas deslocações, nos termos do artigo 23.º do CIRC.
O sujeito passivo tributou autonomamente estas despesas na declaração de rendimentos modelo 22, à taxa de 5% nos termos do disposto no n.º 9 do artigo 88.º do CIRC.
Tendo em conta que os valores registados nesta conta foram objeto da tributação autónoma a uma taxa de 5%, nos termos do disposto no n.º 9 do artigo 88.º do CIRC, mostra-se devida uma regularização de IRC, a favor do sujeito passivo, no valor de € 514,61.
[…]
III.1.1.2. RESUMO DAS CORREÇÕES EM SEDE DE IRC
Conforme exposto nos pontos anteriores apuram-se as seguintes correções ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo nos anos de 2015 e 2016:
Quadro 19 – Resumo das correções ao lucro tributável declarado
Pontos 2015 2016
Lucro tributável declarado 58.782,83 € […]
III.1.1.2.1 e
III.1.2.1.1 artigo 23.º do Código do IRC – gastos diversos 17.839,26 € […]
III.1.1.2.2 e
III.1.2.1.2 artigo 23.º do Código do IRC – deslocações e estadas 10.292,40 € […]
Total das correções 28.131,66 € […]
Lucro tributável corrigido 86.914,49 € […]
Quanto às tributações autónomas as correções apuradas são as seguintes:
Quadro 20 – Resumo das correções à tributação declarada
Pontos 2015 2016
Tributações autónomas declaradas 757,53 € […]
III.1.1.1 artigo 88.º n.º 1 do Código do IRC – Despesas não documentadas 107.201,11 € […]
III.1.1.2.2 e
III.1.2.1.2 artigo 23.º do Código do IRC – deslocações e estadas não dedutíveis -514,61 € […]
Total das correções 106.686,50 € […]
Tributações autónomas corrigidas 107.444,03 € […]
IX. DIREITO DE AUDIÇÃO
[…]
Analisados os factos e fundamentos apresentados em sede de direito de audição, cumpre informar o seguinte:
De acordo com os factos e fundamentos descritos no presente relatório, concluiu-se que a diferença, no montante de € 214.402,22, entre o saldo devedor da conta caixa, reportado a setembro de 2015 e a contagem física de caixa, realizada em 25 de setembro de 2015, respeita a meios financeiros retirados do património da empresa sem suporte documental, sujeitas a tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC.
No que concerne ao alegado descuro pela inspeção tributária de saber se o saldo de caixa verificado em 2015 estava ou não próximo dos saldos de caixa existentes, é de salientar que nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária:
«Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes, apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos»
Ora, na declaração anual – IES do período anterior a 2015, ou seja 2014, o campo referente à deliberação e aprovação das contas (Quadro 07 – do Anexo A), refere que os sócios aprovaram as contas desse período em 31/03/2015, e que o saldo final da conta caixa de 2014 (ou seja o inicial de 2015), era de € 459.928,76.
Assim, os próprios sócios confirmam nas demonstrações financeiras aprovadas que o dinheiro constava da caixa da sociedade em 31/12/2014, revelando-se, pois, líquido, que o montante de € 214.402,22, foi retirado das suas disponibilidades entre 31/12/2014 e a data da contagem física de caixa, sem que se conheça qual o seu destino, uma vez que apesar do sujeito passivo ter alegado terem sido adquiridas barras de ouro, não apresentou qualquer documento comprovativo dessa aquisição.
Junta-se no Anexo 16 – Página 9 e 54 da IES, de 2014, apresentada pelo sujeito passivo, referentes, respetivamente, ao mapa de fluxos de caixa e à delibera de aprovação de contas desse período.
Prossegue o sujeito passivo, alegando que as correções propostas não se basearam em gastos, contabilizados em 2015 e que tenham concorrido para a formação do resultado liquido desse exercício.
A este respeito convém referir o disposto no Processo n.º 256/2018-T do CAAD: Arbitragem Tributária:
«Interessa recordar que os conceitos de despesa e de gasto não são sinónimos, nem do ponto de vista contabilístico, nem na perspetiva fiscal que, para além da relação de dependência parcial do IRC relativamente à contabilidade expressa no artigo 17.º do Código deste imposto, confere aos gastos um tratamento específico, conforme resulta da análise dos seus artigos 23.º e 23.º-A.»
(…)
«As despesas são saídas de recursos financeiros ou dispêndios pecuniários de uma entidade ou organização e podem referir-se a gastos ou a outras realidades, como, por exemplo, a investimentos. Ou seja, há despesas que não são relativas a (ou qualificáveis como) gastos. E, por outro lado, se em regra os gastos supõem um desembolso financeiro, i.e., uma despesa, tal não significa que não existam múltiplos gastos que não têm associada qualquer despesa, pelo menos diretamente, como as depreciações e amortizações, as perdas por imparidade ou as provisões, entre muitas outras.»
(…)
«A hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos”, sem prejuízo de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto. Como afirmado naquela norma, o facto de a despesa não ser considerada como gasto fiscalmente dedutível ao abrigo do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b) do Código do IRC (que determina a não dedução, como componente negativa do lucro tributável, das despesas não documentadas) não prejudica a tributação autónoma.»
Salienta-se ainda que o regime das tributações autónomas surgiu em 1990, com o Decreto-lei n.º 192/90, de 2 de Junho. O legislador criou esta figura tendo como finalidade anti abusivas e penalizadoras, aptas a prosseguir objetivos de combate à evasão fiscal, incidindo sobre as despesas confidenciais ou não documentadas das empresas a tributação, uma vez que não se conhece o verdadeiro beneficiário desses rendimentos.
Ora, o que se constatou à data da contagem física realizada aos valores em caixa, é a falta de meios financeiros, concluindo-se que foram retirados sem que existam comprovativos do respetivo destino. Além disso, o facto de não existirem registos contabilísticos (em gastos), prova que não existem documentos comprovativos que permitam concluir qual o destino dado à diferença apurada entre o valor do saldo devedor, evidenciado na contabilidade, e a contagem física dos valores existentes em caixa, realizada em 25-09-2015.
Assim, desconhecendo-se o destino que foi dado ao montante de € 214.402,22, e não o logrando provar o sujeito passivo, estamos perante despesas não identificadas quanto à sua natureza, origem e finalidade, o que justifica a sua qualificação como despesas não documentadas com a consequente tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC.
Pelo exposto, considera-se que são de manter as correções propostas, uma vez que o sujeito passivo não apresentou quaisquer elementos que contrariem as conclusões expressas no projeto de relatório.
[…]”.
N. Em síntese, no que se refere às divergências de caixa, uma vez que o Balancete reportado a 30 de setembro de 2015 apresentava um valor de saldo devedor da conta Caixa de € 389.754,94, tendo a contagem física de 25 de setembro de 2015 resultado no apuramento do valor de disponibilidades de Caixa de € 175.352,72, a AT considerou que a diferença (de caixa), de € 214.402,22 devia ser tributada autonomamente à taxa de 50%, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC – cf. RIT.
O. A Requerente foi notificada da liquidação de IRC n.º 2019 …………, datada de 7 de outubro de 2019, referente ao período 2015, no montante global de imposto a pagar de € 127.866,13, dos quais € 14.850,00 a título de juros compensatórios – cf. Documento 1 junto pela Requerente.
P. Em 26 de novembro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de IRC (incluindo tributações autónomas e juros compensatórios) supra identificada, relativa ao período de 2015, na mencionada importância de € 127.866,13 – cf. Documento 7 junto pela Requerente.
Q. Inconformada parcialmente com a liquidação acima identificada, a Requerente apresentou, em 25 de março de 2020, reclamação graciosa, com vista à anulação daquela, na parte respeitante às tributações autónomas relativas às alegadas despesas não documentadas (artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC) e à desconsideração dos custos incorridos com a compensação por deslocação em viatura própria da sócia-gerente (artigos 23.º, n.º 1 e 23.º-A, n.º 1, alínea h) do mesmo diploma), com fundamentos idênticos aos do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) sob apreciação, que ascendem ao montante global de € 117.221,82 – cf. documento 8 junto pela Requerente.
R. Com a apresentação da reclamação graciosa a Requerente juntou documentação comprovativa da aquisição de barras de ouro por B……. referida no facto E supra – cf. Documentos 5 e 8.
S. A reclamação graciosa foi indeferida, por despacho de 28 de setembro de 2020, notificada por ofício da mesma data, após exercício do direito de audição pela Requerente – cf. Documentos 2 e 10 juntos pela Requerente.
T. Em discordância parcial com a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios relativa ao período de 2015, supra identificada, nos moldes acima enunciados, a Requerente apresentou no CAAD, em 31 de dezembro de 2020, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão não se provou que o saldo da conta Caixa da Requerente tivesse derivado de erros ou irregularidades contabilísticas de determinados lançamentos, nem que a divergência apurada se tenha ficado a dever à aquisição, em 2010, com recurso ao património da Requerente e para integrarem o seu ativo, de barras de outro no montante total de aproximadamente € 200.000,00.
O que se provou é que essa aquisição foi feita a título pessoal, pois todos os elementos das ordens de compras manuscritas pela sócia-gerente da Requerente nos formulários do Banco indicam os seus dados pessoais e não fazem referência a quaisquer elementos que possam ser relacionados com a sociedade [aqui Requerente], nem com essa qualidade ou atuação a título de sócia-gerente e, portanto, por conta e em representação da Requerente. De salientar que a conta de onde provêm os fundos que custearam a aquisição das barras de ouro não foi identificada como sendo uma conta da sociedade e que a morada indicada pela ordenante é em Lisboa, sem qualquer ligação com a sede e estabelecimento comercial da Requerente, sitos em Setúbal.
Não se provou de igual forma que a divergência identificada entre o saldo da conta Caixa e as disponibilidades financeiras existentes fosse proveniente de exercícios anteriores a 2015.
Não foram identificados outros factos que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção dos árbitros fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente. A única testemunha inquirida pelo Tribunal, F……, é sócio de uma empresa de contabilidade que começou a prestar serviços de contabilidade à Requerente em 2019, mais de três anos volvidos sobre a data dos factos em discussão, referindo que não tinha qualquer contacto com a Requerente até essa data, ou seja, nos anos relevantes, de 2010 a 2015. Assim, o seu depoimento não foi considerado relevante por este Tribunal.
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÕES DECIDENDAS
A questão fundamental a apreciar prende-se com a qualificação da divergência apurada, de € 214,402,22, entre o saldo de Caixa contabilístico, no montante de € 389.754,94, a 30 de setembro de 2015, e a contagem presencial da Caixa efetuada em 25 de setembro de 2015, que se cifrou na quantia de € 175.352,72.
Está em causa o enquadramento dessa divergência a título de despesas não documentadas e a consequente sujeição a tributação autónoma, à taxa de 50%, em conformidade com o disposto no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, bem como a aferição do critério temporal definidor dessa tributação e a caducidade do direito à liquidação.
Suscita-se também a não comprovação da realização efetiva das deslocações em viatura própria da sócia-gerente, com a inerente não aceitação desses gastos à luz do disposto nos artigos 23.º, n.º 1 e 23.º-A, n.º 1, alínea h) do Código do IRC.
2. REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO APLICÁVEL E NATUREZA DA TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA DE DESPESAS NÃO DOCUMENTADAS
O artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, dispõe o seguinte:
“Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma
1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.”
Esta disciplina teve como antecedente a tributação das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90, de 9 de junho, à taxa autónoma de 10%, incrementada para 25% pelo artigo 29.º da Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – “LOE” – para 1995).
Mais tarde, o artigo 6.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou ao Código do IRC o artigo 69.º-A que, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, passou a integrar esta matéria no Código, determinando a respetiva tributação à taxa agravada de 50%, ao abrigo do seu n.º 1. Foi simultaneamente revogada, pelo artigo 7.º, nº 11 daquela Lei [n.º 30-G/2000], a norma avulsa constante do artigo 4.º do citado Decreto-lei n.º 192/90.
Com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (LOE para 2008), foi eliminada a referência a despesas confidenciais, passando o artigo 81.º (atual artigo 88.º) do Código do IRC a contemplar apenas a expressão “despesas não documentadas”, mantendo-se a taxa de 50%.
A eliminação das despesas confidenciais do elenco dos factos sujeitos a tributação autónoma, mantendo-se, no entanto, o mesmo regime de tributação sob a categoria de despesas não documentadas, das quais as primeiras são um subconjunto, limitou-se a remover uma redundância, pois a despesa confidencial é também uma despesa não documentada, sendo “duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”, como assinala a decisão arbitral n.º 7/2011-T, de 20 de setembro de 2012 (ponto 12).
Neste âmbito, convém também notar que a tributação autónoma incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos e “as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas” (cf. decisão arbitral proferida no processo n.º 256/2018, de 12 de fevereiro de 2019).
Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de setembro de 2017, no processo n.º 0146/16, há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – em idêntico sentido vide os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de março de 2012, processo n.º 0830/11, e de 31 de março de 2016, processo n.º 0505/15.
Refere ainda o aresto citado [processo n.º 0146/16] que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma. […] “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.”
Ressalta notória a finalidade anti elisiva da tributação autónoma das despesas não documentadas e a clara afirmação de que estas, ao contrário do que alega a Requerente, não têm de ser despesas que em termos contabilísticos afetam o resultado do exercício.
Existem, de facto, algumas situações em que a dedução fiscal do gasto é pressuposto da incidência de certas tipologias de tributações autónomas, mas no caso específico das despesas não documentadas tal não sucede. Aliás, pelo contrário, conforme referido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no citado processo n.º 146/16, as despesas não documentadas (anteriormente também designadas de “confidenciais”) reportam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis.
Assim, é de entender que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC se reconduzem a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que assegura o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.
A respeito da análise de uma questão de retroatividade no domínio fiscal , também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a caracterização da tributação autónoma de despesas não documentadas, fazendo-o nos seguintes moldes:
“[…] estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.” – acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011.
Com relevância para a determinação da natureza da tributação autónoma, afirma ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, que:
“A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).
Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.
Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período de tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).
Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”
Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades além da reditícia, destacando-se no caso das despesas não documentadas, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de, provavelmente, ou em muitos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos. A que acresce, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente a práticas ilegais de corrupção .
Por outro lado, da jurisprudência constitucional citada infere-se que o facto gerador da tributação autónoma corresponde à “realização da despesa” e é caracterizado como um facto tributário instantâneo que gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso, de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos.
3. SOBRE A NÃO JUSTIFICAÇÃO DAS DESPESAS E A SUA QUALIFICAÇÃO
O significado de despesas não documentadas reconduz-se, como acima dito, a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.
Na situação sub iudice, verifica-se uma divergência, no montante de € 214.404,22, entre o saldo de Caixa e os valores monetários que estavam na disponibilidade da Requerente à data dos factos. A própria Requerente confirma a divergência de valores entre o saldo de Caixa e as quantias que efetivamente estavam na sua disponibilidade, o que revela sem grandes dificuldades que o valor monetário que existia na sociedade foi gasto, foi despendido.
A Requerente fornece uma narrativa assente na aquisição de barras de ouro em valor aproximado ao da diferença de caixa, ocorrida em 2010, para justificar a divergência de Caixa identificada pelos Serviços de Inspeção da Requerida. Porém, não logrou demonstrar o que alega. Na verdade: (i) não relevou contabilisticamente a dita aquisição de barras de ouro; (ii) também nunca exibiu à data da contagem física, ou posteriormente, as citadas barras, mostrando que estavam na disponibilidade da sociedade; (iii) ou evidenciou que estivessem à guarda e sob custódia de um banco, como seria usual e expectável, fornecendo, por exemplo, elementos sobre qualquer gasto incorrido, como comissões bancárias (“comissão de guarda de ouro”) que lhe tivessem sido debitadas a esse título. Limitou-se a Requerente, em momento ulterior à liquidação contestada, quando da apresentação da reclamação graciosa, a juntar documentos que titulam a aquisição, pela sua sócia-gerente, a título pessoal, de barras de ouro, na quantia aproximada de € 200.000,00.
Atento o quadro fáctico descrito, que não vai ao encontro da narrativa (diga-se, pouco robusta e convincente) tentada pela Requerente, continua sem se saber qual o destino dos meios monetários correspondentes à divergência de valores entre o saldo de Caixa e as disponibilidades monetárias daquela. Na conceção perfilhada por este Tribunal, verificada uma saída de valores monetários da sociedade, desprovida de justificação, deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado.
Podem existir múltiplas explicações para a saída não documentada de fundos da sociedade, como, a título de exemplo, lucros ou adiantamentos por conta de lucros efetuados a sócios, empréstimos efetuados a sócios, erros em lançamentos contabilísticos, entre tantas outras. Todavia, na ausência de documentos de suporte ou outros elementos de prova que possam indicar a respetiva finalidade (dos dispêndios), a saída de fundos permanece na categoria de despesa não documentada.
Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020, em caso análogo, a ausência dos meios financeiros que a conta 11- Caixa evidencia, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Fundamenta este aresto que:
“À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.”
À face do exposto, não pode considerar-se demonstrada a mobilização dos meios monetários da conta Caixa para aquisição de barras de outro pela Requerente, concluindo-se que a divergência assinalada do saldo da conta Caixa não está justificada.
Sobre a desnecessidade de tais despesas afetarem o resultado líquido como requisito sine qua non da tributação autónoma, importa assinalar que a hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos” (sem prejuízo de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto). Como prescrito naquela norma, o facto de a despesa não ser considerada como gasto fiscalmente dedutível ao abrigo do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b) do Código do IRC (que determina a não dedução, como componente negativa do lucro tributável, das “despesas não documentadas”) não prejudica a tributação autónoma.
Neste sentido, seguimos a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T, de 20 de outubro de 2020, de que se retira o seguinte excerto ilustrativo:
“Defende a Requerente a interpretação de que […] tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afetar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018.
É manifesto que não é assim. Trata-se de petição de princípio. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta. E como não as contabilizou, não fez diminuir o resultado líquido do exercício.
Aliás, como bem se consagra em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a lei não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.”
4. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO E REPARTIÇÃO DO ÓNUS PROBATÓRIO
Na tese da Requerente, a AT teria o dever de carrear para o procedimento a documentação/informação necessária à descoberta da verdade material. Não o fazendo de forma ativa, nomeadamente ao não demonstrar que as despesas foram incorridas noutros exercícios (em 2010), estaria a infringir o princípio do inquisitório, vertido no artigo 58.º da LGT, que estabelece que “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”.
Convém, antes de mais, sublinhar que o facto de não se ter apurado a que se ficou a dever a elevada divergência entre a conta Caixa e a caixa física deriva unicamente de incumprimento dos deveres acessórios declarativos do contribuinte. É sobre este que recai o dever de declarar as suas operações com verdade e rigor, declarações que se presumem válidas nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT.
Acresce que, no decurso do procedimento inspetivo a Requerente foi solicitada a fornecer elementos do que alegava, não o tendo feito, pelo que não satisfez o ónus que lhe competia (v. artigo 74.º, n.º 1 da LGT) de demonstrar que adquiriu barras de ouro com os montantes do saldo da conta Caixa que não foram encontrados na contagem física, limitando-se a invocar que não encontrava os documentos comprovativos.
Deste modo, a Requerente, que era quem dispunha (ou devia dispor) dos elementos passíveis dessa comprovação, não os facultou à Requerida, como devia, ao abrigo do princípio da colaboração (v. artigo 48.º, n.º 2 do CPPT). De seguida, numa exigência inatingível e impraticável, com o objetivo de operar uma inversão do ónus probatório desprovida de base legal, vem invocar a violação do princípio do inquisitório numa dimensão que este não comporta, a de impor à AT a comprovação dos factos alegados pela Requerente.
Não se afigura assistir qualquer razão à Requerente na suscitada violação dos princípios do inquisitório e da verdade material, nem aquela especifica de que forma e em que medida a resulta infringido o disposto no artigo 266.º da Constituição .
Por outro lado, como salienta a decisão arbitral referida (235-2020-T):
“[…] o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.
Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.
Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.
[…]
Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.”
De igual modo, a decisão arbitral no processo 752/2019-T, de 3 de outubro de 2020, pronuncia-se no sentido de que, tendo sido a Requerente “notificada para apresentar elementos contabilísticos e prestar esclarecimentos”, teve a oportunidade de juntar documentos de suporte de despesas a justificar a divergência. Acrescenta que “o Relatório de Inspecção Tributária tem valor probatório próprio que apenas poderia ter sido posto em causa caso a Requerente tivesse logrado pôr em dúvida os resultados probatórios aí coligidos, o que manifestamente não ocorreu. Com efeito a Requerente não prova quais as despesas efetivas que a sociedade teve no ano de 2015 e quais terão sido despesas que possam ter ocorrido nos anos anteriores e que tivessem deixado de passar pela contabilidade.”
No caso, a Requerente não demonstrou erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11- Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos, devendo assumir-se que, conforme por aquela contabilizado, tais valores chegaram a ingressar na sua esfera patrimonial. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na sua contabilidade configuram, como já afirmado, despesas não documentadas, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, uma vez que também não logrou demonstrar a substituição de ativos (por barras de ouro) que alega.
É inaplicável, neste âmbito, o disposto no artigo 100.º do CPPT, que postula a anulação do ato de liquidação sempre que exista dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário. Tal dúvida não se verifica in casu, em virtude de a Requerente não ter produzido qualquer prova suscetível de abalar ou fragilizar os registos contabilísticos de lançamento de valores na conta Caixa e os pressupostos de aplicação do regime da tributação autónoma pela AT, que são, sem mais, originados nos elementos inscritos na sua própria contabilidade [da Requerente].
5. IMPUTAÇÃO TEMPORAL DAS DESPESAS, ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS E CADUCIDADE
Segundo a Requerente, o facto de o saldo da conta Caixa no ano que precedeu 2015 ser substancialmente elevado denota que o saldo de Caixa do período em análise [2015] é oriundo do saldo de anos anteriores, e que a existir tributação esta teria de ter ocorrido em 2010, ano em que foram adquiridas as barras de ouro. Em consequência, em 2019, data da liquidação, já estaria caducado o direito de a Requerida proceder à liquidação, conforme estipulado no artigo 45.º, n.º 1 da LGT.
Não é, porém, assim.
A tributação autónoma, apesar de inserida do Código do IRC, apresenta uma natureza particular, o seu facto gerador corresponde à realização da despesa, e não ao lucro, e é um facto tributário instantâneo, de obrigação única, e não de formação sucessiva como o IRC.
Como salienta a decisão arbitral n.º 235/2020, para a qual se remete, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas. Não revestindo a tributação autónoma a natureza de um imposto periódico afigura-se que não lhe é aplicável o princípio da anualidade e da especialização dos exercícios que pressupõe a abrangência de um período prolongado de formação do facto tributário [o exercício], que em Portugal corresponde, em regra, ao ano civil (artigos 8.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1 do Código do IRC).
O momento da tributação das despesas deve, desta forma, reportar-se à data em que ocorreu a saída de caixa (o desembolso), sendo as despesas imputadas ao período (exercício) em que essa data se inscreve, assim se articulando com o regime de periodização do IRC.
Todavia, nos casos em que os sujeitos passivos, incumprindo os seus deveres declarativos, omitem a contabilização das saídas de caixa, como sucede na situação vertente, é inviável a determinação da data saída de caixa, pelo que terá de recorrer-se como indicador supletivo à data da contagem física de Caixa .
Segue-se, de novo, a fundamentação da decisão arbitral n.º 235/2020-T que convoca o disposto no n.º 2.3 do “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística” , constante do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, em relação ao regime de acréscimo (periodização económica): “2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).” Argumenta a decisão n.º 235/2020-T no seguinte sentido:
“[…] as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).
E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.
Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.
Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.”
Conclui-se, desta forma, não assistir razão à Requerente: (i) quer no tocante à violação do princípio da especialização dos exercícios; (ii) quer relativamente ao momento temporal a que se reporta o facto gerador, não tendo logrado demonstrar que as saídas de Caixa em causa ocorreram em anos anteriores, pelo que o tax point ocorreu em 2015; (iii) quer, por fim, em matéria de caducidade do direito à liquidação, pois, sendo o ano de referência 2015, em 2019 ainda não tinha decorrido o prazo de 4 anos, contado nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT.
O facto de o saldo de Caixa também ser elevado em anos antecedentes a 2015, não permite inferir que nesses anos se constatava a divergência, i.e., que já então estavam em falta os meios monetários registados na correspondente conta.
Conclui-se, assim, ser correta a consideração, pela AT, das despesas não documentadas no período de 2015, no qual se constatou, por contagem física, a falta de correspondência entre as disponibilidades monetárias e o respetivo saldo registado na contabilidade.
6. SOBRE OS MÉTODOS INDIRETOS
A Requerente afirma que a AT ao colocar em causa a contabilidade da Requerente, entendendo que a mesma era impossível de reconstituir, deveria ter recorrido à aplicação de métodos indiretos, nos termos do artigo 87.º da LGT.
Todavia, a Requerida não questionou a contabilidade da Requerente, nem se suscita um quadro factológico passível de abalar a credibilidade da escrita desta, pelo que se trata de uma correção hipotética, que não se verificou.
Acresce que os elementos necessários à correta determinação do imposto estão disponíveis, dispensando o recurso a métodos indiretos, que são subsidiários dos métodos diretos , e que implicam necessariamente que seja inexequível a quantificação direta e exata da matéria tributável, de acordo com artigo 87.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 88.º, ambos da LGT.
Na situação vertente, a quantificação não era impossível e resultou da forma mais fiável que se pode equacionar: a contagem física e direta dos valores monetários na disponibilidade da Requerente.
Sendo o saldo contabilístico de Caixa um dado, a diferença resultante da contagem física representa o total dos desembolsos indocumentados que foram feitos pela Requerente, ou seja, afere-se a base de incidência da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, precisamente as despesas não documentadas .
O facto de não se saber a que despesas respeita a base de incidência não constitui requisito de enquadramento na modalidade de avaliação indireta, que é sempre uma última ratio. Dir-se-á até que, em geral, as despesas não documentadas não são cognoscíveis, pretendendo o legislador tributar de forma agravada, mas sempre por via da avaliação direta, essa mesma opacidade por aquilo que ela pode representar (e provavelmente representa).
A aplicação de métodos indiretos prende-se com a dificuldade em alcançar a base tributável, o quantum. Ora essa, como vimos, foi objeto de quantificação direta, pela contagem física levada a efeito pela AT, na presença do representante legal da Requerente, nada havendo a censurar à correção meramente aritmética, através de avaliação direta, que lhe foi efetuada, pois não foram identificados motivos para desconsiderar a contabilidade e não se encontram reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 87.º da LGT.
7. DESCONSIDERAÇÃO DOS GASTOS COM A COMPENSAÇÃO POR DESLOCAÇÕES DA SÓCIA-GERENTE
Não é controvertido que a Requerente dispõe de mapas de itinerário contendo os elementos detalhados enumerados no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea h) do Código do IRC, para permitir o controlo das deslocações, designadamente os respetivos locais, objetivo, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos.
Contudo, analisado o teor desses mapas com múltiplas deslocações de centenas de quilómetros, que se prendem essencialmente com a comparência da sócia-gerente a eventos de formação (cursos), foram identificados pela Requerida diversos factos-índice passíveis de abalar seriamente a sua credibilidade. É o que sucede com a frequência, no mesmo dia, de dois ou três cursos em simultâneo, sendo um em Lisboa e outro no Porto, ou a frequência de cursos no dia 1 de janeiro. Trata-se de circunstâncias pouco usuais, que se repetem múltiplas vezes nos mapas da Requerente e que constituem indícios suscetíveis de abalar a presunção de veracidade das declarações do contribuinte estabelecida no artigo 75.º, n.º 1 da LGT.
Com efeito, a ordem jurídico-fiscal parte do pressuposto de validade das declarações do contribuinte, que, no entanto, podem ser desconsideradas, não operando tal presunção, por ausência da sua premissa de suporte, quando a AT demonstre indícios fundados de que a contabilidade ou as declarações fiscais não refletem a matéria tributável efetiva, descredibilizando o valor probatório dos documentos – cf. SALDANHA SANCHES, A Quantificação da Obrigação Tributária, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (173), CEF, Lisboa 1995, de páginas 340-342. Regime que se mostra consentâneo com a compreensão atualizada do princípio da legalidade que rege toda a atuação administrativa.
Deste modo, à AT cabe demonstrar a verificação dos pressupostos legais que legitimaram a sua atuação. Ao contribuinte cumpre, nesse caso, provar a veracidade das operações em causa. A este propósito, refere VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª. edição, Almedina, página 269: “há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados estes pressupostos”.
O entendimento exposto é o que corresponde à jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, destacando-se os acórdãos de 27 de fevereiro de 2019 (Pleno da Secção do CT), processo n.º 01424/05.2BEVIS; de 16 de novembro de 2016, processo n.º 600/15; de 19 de outubro de 2016, processo n.º 511/15 (Pleno da Secção do CT); de 16 de março de 2016, processo n.º 587/15 (Pleno da Secção do CT); de 17 de fevereiro de 2016, processo n.º 591/15 (Pleno da Secção do CT); de 24 de abril de 2002, processo n.º 102/02; de 17 de abril de 2002, processo n.º 26635.
Neste âmbito, salienta o acórdão de 27 de fevereiro de 2019, proferido no processo n.º 01424/05.2BEVIS, que “[p]ara que a AT proceda à correção do lucro tributável por desconsideração dos custos suportados por faturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efetivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240.º do CC) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.” Para este efeito, “[b]asta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.”
Não é aqui posto em causa o cumprimento dos requisitos documentais (mencionados no citado artigo 23.º-A, n.º 1, alínea h) do Código do IRC), por parte da Requerente. A questão que se coloca é de índole substantiva e prende-se com saber se é razoável o juízo de inverosimilhança da AT em relação aos factos relatados nos documentos.
A resposta não pode deixar de ser afirmativa. Dificilmente é possível e viável comparecer no mesmo dia em cursos que decorrem em Lisboa e no Porto, ou ter formação no dia 1 de janeiro. Circunstâncias que justificam e legitimam que seja posto em causa o caráter fidedigno da informação que consta dos mapas de itinerário, invertendo-se o ónus da prova e passando a caber à Requerente a contraprova de que efetivamente tais eventos tiveram lugar nos moldes constantes dos documentos.
Porém, a Requerente limitou-se e concentrou-se a apontar insuficiências e falhas à argumentação da AT sem, contudo, apresentar quaisquer elementos (nem um sequer) que comprovassem a sua comparência/frequência dos diversos cursos constantes desses mapas, ou que explicassem, por exemplo, as circunstâncias da realização de cursos no dia 1 de janeiro.
Atento o exposto, há que concluir que a Requerente não demonstrou a efetividade das deslocações mencionadas nos mapas de itinerário e, por conseguinte, o respetivo enquadramento na regra geral da dedutibilidade dos gastos em IRC, enunciada no artigo 23.º, n.º 1 do Código IRC, em concreto a conexão com a atividade empresarial, tendo em vista prosseguir essa atividade (v. o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de junho de 2018, processo n.º 01402/17).
A AT notificou a Requerente para prestar esclarecimentos, no cumprimento do dever de colaboração que lhe impõe a alínea d) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT, ou realizar diligências tendentes a apurar a realidade subjacente à documentação. Mas esta não os prestou.
Neste sentido, compulsa-se a argumentação expendida na decisão arbitral do processo n.º 604/2020-T, que é transponível para a situação vertente:
“Desde logo há que notar, quanto à generalidade das correcções relativas a gastos não fiscalmente aceites, que a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, prevista no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, que a Requerente invoca, não tem o alcance de afastar a necessidade de satisfação dos requisitos de que depende a dedutibilidade de gastos, como resulta do próprio teor expresso da parte final desta norma:
Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.
Isto é, em matéria de dedutibilidade de gastos, não se aplica esta presunção, pelo que tem aplicação a regra geral do artigo 74.º, n.º 1, da LGT que estabelece que «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».
Desta regra resulta que o ónus da prova, em matéria de dedutibilidade de gastos, recai sobre o contribuinte que pretende ver deduzidos os encargos, pelo que a falta da prova exigida por lei deve, em princípio, ser valorada contra o contribuinte, afastando a dedutibilidade dos gastos não provados nos termos previstos na lei. Diz-se, «em princípio» porque esta regra geral do ónus da prova é temperada pela do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, que impõe as anulação dos actos impugnados, nos casos de «fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário».
É a esta luz que há que apreciar as correcções efectuadas em matéria de dedutibilidade de gastos.
[…]
Afigura-se que, não tendo sido requeridas ou sugeridas pela Requerente quaisquer diligências, para além de apresentação de prova documental adicional, designadamente não tendo sequer aventado a produção de prova testemunhal, a que alude no presente processo, não havia razão para a Autoridade Tributária e Aduaneira decidir produzi-la, pois os meios de prova a que o contribuinte tem acesso devem ser oferecidos, no âmbito do seu dever de cooperar com boa-fé na instrução do procedimento, como resulta do teor expresso do n.º 2 do artigo 48.º do CPPT.
Neste contexto, não se demonstra violação dos deveres de realização de diligências impostos à Autoridade Tributária e Aduaneira pelo princípio do contraditório, enunciado no artigo 58.º da LGT.”
À face do exposto, falece razão à Requerente, que não logrou evidenciar, como era seu ónus, a materialidade das deslocações relatadas nos mapas de itinerário.
8. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido por erro imputável aos Serviços, de acordo com o disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, e depende do ganho de causa da Requerente, o que não se verificou na situação em análise.
Improcede, nestes termos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por falta de preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com as legais consequências, mantendo-se o ato impugnado de liquidação de IRC e o ato de segundo grau que o confirmou.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 117.221,82 correspondente ao valor da liquidação de IRC respeitante à Tributação Autónoma aqui impugnada – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. CUSTAS
Custas no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de novembro de 2021
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Paula Cristina Gomes Florindo
Jorge Belchior de Campos Laires