Decisão Arbitral
Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Luís Janeiro e Dr. João Marques Pinto (árbitros vogais) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 12-07-2021, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., S.A., sociedade comercial anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., com sede social na Rua ..., n.º..., ...-... ... (doravante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), veio, nos termos Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a anulação da liquidação adicional de imposto n.º 2021..., da compensação n.º 2021... e do acerto de contas n.º 2021... (2017), e os actos de liquidação adicional de IRC n.º 2021..., de compensação n.º 2021... e de acerto de contas n.º 2021... (2018), acrescidos os juros compensatórios.
A Requerente pede ainda a reconstituição da situação que presumivelmente existiria se a ilegalidade de que enfermam os actos anulados não tivesse sido cometida e pagamento de juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 03-05-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 22-06-2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 12-07-2021.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 02-10-2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.
As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
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Foi efectuada uma inspecção à Requerente ao abrigo das ordens de serviço n.ºs OI2019... e OI2020... de âmbito parcial aos períodos de tributação de 2017 e 2018;
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A Requerente iniciou a sua actividade a 26-12-1974 no sector do abate de gado suíno para produção de carne, e exerce a actividade nos seguintes códigos de actividade:
1. CAE Principal 10110 – Abate de gado para produção de carne, e,
2. CAE Secundário 10130 – Fabricação de produtos à base de carne
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A Requerente possui um matadouro próprio onde efectua o abate dos suínos que adquire aos seus fornecedores;
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Após o abate, segue-se o trabalho necessário à limpeza e preparação da carne para posteriormente ser vendida
i. quer na forma de carne fresca – em carcaça ou em partes do suíno após ter sido desmanchado (actividade CAE 10110);
ii. quer na forma de produtos transformados à base de carne de porco (actividade CAE 10130), onde se incluem o chouriço, fiambre, paio, salsicha fresca e bacon, entre outros;
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Nos períodos de tributação de 2017 e 2018 a Requerente deduziu à sua
colecta de IRC importâncias despendidas em investimentos realizados no contexto da sua actividade de transformação e comercialização de produtos de carne;
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No exercício de 2017:
– a Requerente apurou uma colecta de € 29.300,97 e um valor a recuperar de € 116.8909,70 (quadro 10 da declaração modelo 22 que consta do documento n.º4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
– a Requerente deduziu à colecta o valor de € 14.650,48 referente ao benefício fiscal do RFAI (quadro 10, campo 355 da declaração Modelo 22 e quadro 715 do seu anexo D);
– transitou o saldo do RFAI de € 143.209,35 relativo a investimento realizado em 2016;
– a Requerente realizou investimentos no âmbito da actividade referida que totalizaram € 1.096.985,56, tendo indicado no campo 714 do anexo D da declaração modelo 22 a «dotação do período» de RFAI no valor de € 274.246,39;
– transitou para o ano seguinte o saldo de RFAI de € 402.805,26;
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No ano de 2018:
– a Requerente apurou uma colecta de € III.377,81 (quadro 10 da declaração modelo 22 que consta do documento n.º5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
– a Requerente deduziu à colecta o valor de € 55.688,91 referente ao benefício fiscal do RFAI (quadro 10, campo 355 da declaração Modelo 22 e quadro 715 do seu anexo D);
– a Requerente dispunha de um saldo do RFAI de € 128.588,87 referente ao período de 2016, e de 274.246,39 relativo a investimento realizado em 2017;
– a Requerente realizou investimentos no âmbito da actividade referida que totalizaram € 47.077,08 tendo indicado no campo 714 do anexo D da declaração modelo 22 a «dotação do período» de RFAI no valor de € 11.769;
– transitou par a ano seguinte o saldo de RFAI de € 358.885,62;
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Nas inspecções referidas foram elaborados os Relatórios que contam dos documentos n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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No Relatório da Inspecção Tributária relativo à inspecção ao exercício de 2017 refere-se, além do mais, o seguinte:
E) CONCLUSÃO,
Sendo certo que o art.º 2.º do CFI inclui a elegibilidade da indústria transformadora e atividades agrícolas, o n.º 1 do art. 22.º do CFI exclui do âmbito de aplicação do RFAI os sujeitos passivos que exerçam uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
E de facto, já as Orientações (OAR) já excluem claramente a «transformação e comercialização de produtos agrícolas».
O Sujeito Passivo dedica-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos agrícolas, conforme foi demonstrado. As OAR, porém, aplicam-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas (1.1. ponto 10), pelo que a atividade da A..., SA está excluída das OAR. Relembra-se que as OAR remetem os auxílios estatais à transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo l do Tratado para as regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola (nota de rodapé (11) do ponto 10) e que é aplicável ao setor de atividade do Sujeito Passivo (...).
Por outro lado, as OAR aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42. º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais, não sendo por esta via aplicável ao Sujeito Passivo, em virtude de estarmos perante uma medida de auxílio de finalidade regional que não se encontra abrangida pelos Fundo/financiamento acima descrito.
Assim, o setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas por constarem no Anexo I ao Tratado estão excluídos da aplicação da OAR conforme ponto 10 da OAR e nota de rodapé (11) articulado com as definições do art.º 2º, pontos 10) e 11) do RGIC, por remissão do art.º 2º, n.º 1 da Portaria 297/2015, sem esquecer o artigo 38º do Tratado. Por conseguinte, nos termos do nº 1 do artigo 22º do CFI não é aplicável o RFAI (sublinhado nosso], pois se trata de uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR.
Por sua vez, e olhando para o âmbito sectorial de aplicação do RGIC temos então de verificar se atividade exercida pelo A... SA, relativa à fabricação de produtos à base de carne e abate de gado (produção de carne) se encontra excluída, ainda que esta última não tenha sido alvo do investimento (para efeitos de elegibilidade do RFAÍ) segundo o Sujeito Passivo.
É determinado no nº 1 do artigo 1º que o Regulamento (RGIC) deve ser aplicável nomeadamente aos auxílios com finalidade regional (alínea a)) e o Código Fiscal do Investimento (CFI) no nº 2 do artigo 1º refere que o RFAI constitui regime de auxílio com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC.
No âmbito setorial de aplicação do RGIC há exclusões previstas no n.º 3 do seu artigo 1º que já foram expostas, onde se conclui que pelo facto de o RFAI não ficar eliminado, indica que ao abrigo do Regulamento (RGIC) os Estados Membros possuem a possibilidade de beneficiar da isenção de notificação prévia à Comissão, de determinadas categorias de auxílio (onde se inclui o RFAI), desde que verificadas as condições e critérios enunciados no RGIC, ou seja, os Estados Membros poderão aplicar essas medidas de auxílios sem a existência de uma apreciação adicional por parte da Comissão.
No entanto, a legislação nacional já mencionada veio ainda limitar o benefício fiscal apenas a determinados setores atividade, ainda que os mesmos não sejam excluídos pelo Regulamento (RGIC).
Neste sentido, já na decisão do Centro Arbitragem (CAAD) do processo n.º 218/2019 - T, datada em 2019-12-19, interpreta esta matéria:
«(...) Os auxílios estatais assumem carater de excecionalidade e, quando se considerem compatíveis com o direito europeu, carecem de ser aplicados limitadamente. (...).
(...) Os Estados Membros não estão vinculados a atribuir, em iodos os casos, os auxílios estatais que sejam declarados como compatíveis com o Direito da União Europeia e a Portaria para que a lei remeteu a definição dos códigos de atividade económica poderia selecionar, no interesse geral, determinadas atividades em detrimento de outras, ainda que estas se encontrassem também incluídas no âmbito objetivo de aplicação dos benefícios fiscais (...).»
Assim, pelo nº 1 do artigo 22º do CFI, "O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º do CFI." A conjugação do n.º 3 do art.º 2.º do CFI com a restante legislação referida, verifica-se que a elegibilidade do investimento fica dependente, do respeito:
- pelo âmbito sectorial de aplicação das OAR (Orientações relativas aos Auxílios com Finalidade Regional)
- Pelo âmbito sectorial de aplicação do RGIC (Regulamento Geral de Isenção por Categoria),
- E da aprovação, por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia, dos CAE correspondentes às atividades referidas (n.ºs 2 e 3 do art. 2.º do CFI).
A portaria para a qual remete o n.º 1 do art.º 22.º do CFI, é a Portaria n.º 282/2014 de 30 dezembro.
Se a atividade agrícola e a indústria transformadora da produtos agrícolas parecem ser elegíveis para efeitos do incentivo fiscal, por outro lado, a portaria n.º 282/2014, de 30 dezembro, refere que, em conformidade com as orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional 2014-2020 e com o RGIC (Regulamento Geral de Isenção por Categoria) [sublinhado nosso], não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades dos setores da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo l do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, (...)
Destinando-se o investimento em causa à ampliação das instalações usadas no âmbito da atividade de preparação/confeção/transformação dos produtos já identificados, e tendo-se concluído que cada um dos produtos integram os vários números/códigos do capítulo 2 e 16 da Nomenclatura de Bruxelas, a que se refere o Anexo l do TFUE, logo são considerados produtos agrícolas de acordo com o ponto 10 e 11 do art.º 2º do RGIC e artigo 38º do Tratado. E ainda que a restante atividade que segundo o Sujeito Passivo, não tenha sido abrangido, também os produtos dela resultante constam dos capítulos a que se refere o Anexo l do Tratado.
Em face do ex posto conclui-se que a inelegibilidade do projeto de investimento em apreço, para efeitos do RFAI não resulta assim do RGIC.
Mas a inelegibilidade do projeto de investimento realizado pela A... para efeitos do RFAI resulta da conjugação das disposições constantes do n.º 1 do art.º 22.º do CFI e do art.º 1.º da Portaria n.º 282/2014 de 30 dezembro, do n.º 1 do art.º 2º da Portaria n.º 297/2015 de 21 de dezembro e das definições presentes nos pontos 10) e 11) do artigo 2.º do RGIC e do ponto 10 das OAR e art.º 38º do Tratado (TFUE), que excluem do âmbito de aplicação do RFAI as atividades relacionadas com "a produção agrícola e a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia".
Do antes exposto, resulta ser de corrigir no ano de 2017 o valor de 14.650,48 EUR de imposto (IRC), correspondente à dedução à coleta de IRC, constantes do campo 355 do Quadro 10 da DR M22 IRC e o saldo a transitar para o(s) período(s) seguinte(s) de 402.805,26 EUR.
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No Relatório da Inspecção Tributária relativo à inspecção ao exercício de 2018 refere-se, além do mais, o seguinte:
III-3 Conclusão
Apesar do art º 2. º do CFI incluir a elegibilidade da indústria transformadora e atividades agrícolas, o n.º 1 do art.º: 2.º do CFI exclui do âmbito de aplicação do RFAI os sujeitos passivos que exerçam uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
Assim, como já referido, a transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola enumerado no Anexo l do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia encontra-se excluída do âmbito do RFAI, por força do disposto no art.º 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do art.º 22.º do CFI, e do próprio n.º 1 do art.º 22.º deste diploma que, na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC.
A alínea a) do n.º 1 do art.º 1º do RGIC estipula que o regulamento (RGIC) deve ser aplicável às categorias de auxílio com finalidade regional e o n.º 2 e n.º 3 do mesmo artigo define os auxílios que são excluídos. Assim, verifica-se que o RGIC não exclui o RFAI.
O setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas por constarem no Anexo l ao Tratado estão excluídos da aplicação da OAR conforme ponto 10 da OAR e nota de rodapé (11) articulado com as definições do art.º 2º, pontos 10) e 11) do RGIC, por remissão do art.º 2º, n.º 1 da Portaria 297/2015, sem esquecer o artigo 38º do Tratado. Por conseguinte, nos termos do nº 1 do artigo 22º do CFI não é aplicável o RFAI, pois se trata de uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR.
O SP dedica-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos agrícolas, conforme foi demonstrado, nomeadamente, através dos artigos/produtos constantes no seu inventário e da listagem de artigos vendidos, e da sua comparação com a relação de produtos constantes da nomenclatura combinada e do Anexo l do Tratado, nomeadamente, os incluídos nos capítulos 2 e 16 antes referidos, resulta que os produtos comercializados e transformados pelo SP aí se enquadram.
Assim, a razão pela qual se conclui não ser elegível, para a concessão de benefícios fiscais (RFAI), o projeto de investimento que teve por objeto a atividade económica enquadrada no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas não resulta do RGIC em si mesmo, mas da conjugação das disposições constantes do n.º 1 do art.º 22.º do CFI e do art.º 1.º da Portaria n.º 282/2014 de 30 dezembro, do n.º 1 do art.º 2" da Portaria n.º 297/2015 de 21 de dezembro e das definições presentes nos pontos 10) e 11) do artigo 2º do RGIC e do ponto 10 das OAF e art.º 38º do Tratado (TFUE), que excluem do âmbito de aplicação do RFAI as atividades relacionadas com a "produção agrícola e a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia".
Do antes exposto, resulta ser de corrigir o valor deduzido no campo 355, quadro 10, da modelo 22, dedução à coleta, no montante de 55 688,91 €.
Importa referir que a correção referente ao ano de 2018 totaliza 11.769,27€ relativos à dotação do período e o restante no montante de 43.919,64€ correspondente a saldo transitado de anos anteriores não aceites por força de correções efetuadas no âmbito de procedimentos inspetivos efetuados ao ano de 2017.
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Na sequência das inspecções, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu;
– a liquidação adicional de IRC n.º 2021... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., com as respectivas compensação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021... (2017);
– a liquidação adicional de IRC n.º 2021 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ..., com as respectivas compensação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... (2018), acrescidos os juros compensatórios;
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Em 15-03-2021, a Requerente pagou a quantia de € 16.016,78, relativamente às liquidações referente a período de 2017 (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 20-04-2021, a Requerente pagou a quantia de € 59.222,48, relativamente às liquidações referente a período de 2018 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 30-04-2021, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
3. Matéria de direito
A Requerente dedica-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos agrícolas.
A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que essa actividade está excluída do âmbito de aplicação do Regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI), previsto no artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento (CFI), que estabelece o seguinte:
Artigo 22.º
Âmbito de aplicação e definições
1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
2 - Para efeitos do disposto no presente regime, consideram-se aplicações relevantes os investimentos nos seguintes ativos, desde que afetos à exploração da empresa:
a) Ativos fixos tangíveis, adquiridos em estado de novo, com exceção de:
i) Terrenos, salvo no caso de se destinarem à exploração de concessões mineiras, águas minerais naturais e de nascente, pedreiras, barreiros e areeiros em investimentos na indústria extrativa;
ii) Construção, aquisição, reparação e ampliação de quaisquer edifícios, salvo se forem instalações fabris ou afetos a atividades turísticas, de produção de audiovisual ou administrativas;
iii) Viaturas ligeiras de passageiros ou mistas;
iv) Mobiliário e artigos de conforto ou decoração, salvo equipamento hoteleiro afeto a exploração turística;
v) Equipamentos sociais;
vi) Outros bens de investimento que não estejam afetos à exploração da empresa;
b) Ativos intangíveis, constituídos por despesas com transferência de tecnologia, nomeadamente através da aquisição de direitos de patentes, licenças, «know-how» ou conhecimentos técnicos não protegidos por patente.
3 - No caso de sujeitos passivos de IRC que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, as aplicações relevantes a que se refere a alínea b) do número anterior não podem exceder 50 % das aplicações relevantes.
4 - Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:
a) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade;
b) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos;
c) Mantenham na empresa e na região durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, ou cinco anos nos restantes casos, os bens objeto do investimento ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pelas Leis n.ºs 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 2/2014, de 16 de janeiro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC;
d) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer contribuições, impostos ou quotizações ou tenham o pagamento dos seus débitos devidamente assegurado;
e) Não sejam consideradas empresas em dificuldade nos termos da comunicação da Comissão - Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 249, de 31 de julho de 2014;
f) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c).
5 - Considera-se investimento realizado o correspondente às adições, verificadas em cada período de tributação, de ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis e bem assim o que, tendo a natureza de ativo fixo tangível e não dizendo respeito a adiantamentos, se traduza em adições aos investimentos em curso.
6 - Para efeitos do disposto no número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso transitado de períodos anteriores, exceto se forem adiantamentos.
7 - Nas regiões elegíveis para auxílios nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constantes da tabela do artigo 43.º, no caso de empresas que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, apenas podem beneficiar do RFAI os investimentos que respeitem a uma nova atividade económica, ou seja, a um investimento em ativos fixos tangíveis e intangíveis relacionados com a criação de um novo estabelecimento, ou com a diversificação da atividade de um estabelecimento, na condição de a nova atividade não ser a mesma ou uma atividade semelhante à anteriormente exercida no estabelecimento.
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3.1. Posições das Partes
A Administração Tributária efectuou correcções não aceitando a dedução à colecta de IRC, com base, no RFAI, relativamente a investimentos efectuados pela Requerente, por entender, em suma, que
«a transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola enumerado no Anexo l do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia encontra-se excluída do âmbito do RFAI, por força do disposto no art.º 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do art.º 22.º do CFI, e do próprio n.º 1 do art.º 22.º deste diploma que, na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC.
A alínea a) do n.º 1 do art.º 1º do RGIC estipula que o regulamento (RGIC) deve ser aplicável às categorias de auxílio com finalidade regional e o n.º 2 e n.º 3 do mesmo artigo define os auxílios que são excluídos. Assim, verifica-se que o RGIC não exclui o RFAI.
O setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas por constarem no Anexo l ao Tratado estão excluídos da aplicação da OAR conforme ponto 10 da OAR e nota de rodapé (11) articulado com as definições do art.º 2º, pontos 10) e 11) do RGIC, por remissão do art.º 2º, n.º 1 da Portaria 297/2015, sem esquecer o artigo 38º do Tratado. Por conseguinte, nos termos do nº 1 do artigo 22º do CFI não é aplicável o RFAI, pois se trata de uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR».
A Requerente defende o seguinte, em suma:
– o CFI (e a regulação que dele consta do RFAI) e [as Portarias] devem ser entendidos como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nos arts. 107.º a 109.º do TFUE, no RGIC e nas OAR”, daí que esses instrumentos legislativos (ou quem os interpreta) não possam ter pretensões de aplicar requisitos mais exigentes do que que as próprias normas europeias sob pretexto de as “complementar” ou “regulamentar”, sob pena de ofender o princípio da legalidade;
– em matéria de competência exclusiva, só a UE pode legislar e adotar atos juridicamente vinculativos, cabendo aos Estados-Membros produzir a legislação e regulamentação nacional em execução das disposições europeias, em aplicação do princípio do primado do direito europeu e é neste contexto institucional e normativo que devem ser interpretados os normativos internos;
– por força do princípio da legalidade, haverá que dizer que todos os elementos que determinam o âmbito de aplicação de um benefício fiscal derivam do art. 22.º, n.º 1 do CFI, que é o instrumento legislativo principal onde está previsto o RFAI;
– no art. 22.º, n.º 1 do CFI temos:
a. Uma remissão para os sectores de atividade previstos no art. 2.º, n.º 2 do CFI;
b. Uma remissão para o art. 2.º, n.º 3 do CFI e, consequentemente, para os CAE da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro;
c. Uma remissão para as limitações impostas pelo âmbito sectorial das OAR; e
d. Uma remissão para as limitações impostas pelo âmbito sectorial das RGIC.
– É necessário que o sujeito passivo de IRC, para beneficiar do RFAI, desenvolva projetos de investimento produtivo cujo objeto esteja compreendido nas atividades económicas previstas n.º 2 do art. 2.º do CFI, tendo em consideração os CAE definidos na Portaria CAE, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC. O n.º 3 do mesmo art. 2.º estabelece que, pela Portaria CAE, são definidos os códigos de atividade económica correspondentes a essas atividades relevantes para efeitos do RFAI. Vejamos analiticamente como é que cada um destes instrumentos recorta o âmbito de aplicação do RFAI;
– a al. b) do art. 2.º da Portaria CAE considera incluídas no âmbito de aplicação do RFAI as indústrias transformadoras previstas nas divisões 10 a 33 da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE -Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro;
– a Requerente se dedica a uma atividade transformadora, constante da divisão 10 da CAE -Rev.3, em observância do disposto nos arts. 22.º, n.º 1 e 2.º, n.ºs 2 e 3 do CFI, bem como do disposto no art. 2.º, al. b) da Portaria CAE;
– tanto a atividade económica da agricultura, como as atividades de produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE não estão per se excluídos das OAR, sem prejuízo de, em determinados aspetos, estarem sujeitas a regulação mais detalhada por outro instrumento, nomeadamente por se tratar de um sector que carece de um nível de proteção (e de incentivos) mais relevante;
– só quando e se as OAR estivessem comprovadamente derrogadas relativamente à atividade da transformação e comercialização de produtos de carne é que se poderia afirmar que o âmbito sectorial de aplicação das mesmas não estava preenchido e que o RFAI não deveria aplicar-se, o que, não se verifica in casu;
– A AT não fez prova de que, perante a concreta atividade económica desenvolvida pela A..., houve uma efetiva derrogação total ou parcial das OAR, com vista a evidenciar que efetivamente se aplicaram as Orientações Relativas aos Auxílios Estatais nos Sectores Agrícola e Florestal e nas Zonas Rurais para 2014-2020, previstas na Comunicação da Comissão n.º 2014/C 204/01, e, por isso, não estava preenchido o pressuposto do âmbito sectorial de aplicação das OAR;
– “Isto significa, desde logo, que as liquidações enfermam de um erro de direito, quanto à invocação das OAR como obstáculo à aplicação do benefício fiscal, pois era primacialmente com base nas específicas «Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola» que a questão tinha de ser apreciada e só se se concluísse que estas não derrogam, total ou parcialmente as OAR se poderia concluir pela exclusão do benefício fiscal com base nestas”»
– Assim, somos de concluir que (i) as atividades transformadoras de produtos agrícolas prosseguidas pela A... são diretamente reguladas pelas OAR [ponto 10 e nota de rodapé (11) das OAR que a própria AT convoca]; e (ii) essas atividades transformadoras de produtos agrícolas, mesmo quando deem origem a um produto agrícola, são também reguladas pelas OAR [ponto (33) do Capítulo 2 das orientações relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal nas zonas rurais para 2014-2020]. Logo, a disciplina normativa das OAR não é total ou parcialmente derrogada em tais atividades, o que concorre para a elegibilidade dessas atividades para efeitos de RFAI;
– o RGIC não exclui as atividades de agricultura nem de transformação e comercialização de produtos agrícolas na aplicação de auxílios com finalidade regional, pelo que não poderá este instrumento ser mobilizado para legitimar – indevidamente – a exclusão da atividade económica prosseguida pela A... do âmbito de aplicação do RFAI, como pretende a AT nos RIT. Até porque o RGIC é um regulamento europeu, o qual, atenta essa natureza e o princípio do primado do Direito Comunitário, se sobrepõe às normas nacionais, que não justifica a exclusão das atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas para efeitos do RFAI;
– o RFAI não se enquadra em nenhum dos tipos de auxílios previstos no RGIC;
– na medida em que dizem respeito à matéria europeia dos auxílios de Estado, o CFI (e a regulação que dele consta do RFAI) e a Portaria CAE devem ser entendidos como instrumentos de execução, efetivação e aplicação dos princípios e regras contidos nos arts. 107.º a 109.º do TFUE, no RGIC e nas OAR, e nesse sentido a Portaria não pode ser tida como um mero regulamento de complementação do n.º 2 do art. 2.º do CFI, mas como um diploma de execução de disposições de direito europeu. Não há motivo, por conseguinte, para fazer prevalecer a regra que consta do art. 1.º da Portaria sobre a acima mencionada norma europeia contida na al. c) do n.º 3 do art. 1.º do RGIC, à luz da supremacia do direito da UE, que resulta do n.º 4 do art. 8.º da CRP;
No presente processo, a Administração Tributária acompanha a posição adoptada no Relatório da Inspecção Tributária e diz o seguinte, em suma:
– a Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove;
– os benefícios fiscais são, na sua génese, hermenêutica e teleologia, um afastamento do quadro normativo do imposto 6, instrumentalizados por políticas económico-sociais ou outras finalidades que o legislador tenha em vista, derrogando a tributação padrão 7 em que se visa, deste modo, influenciar o comportamento dos contribuintes;
– as normas que os estabeleçam não são susceptíveis de integração analógica – dada a sua natureza excepcional (art.º 10.º do EBF e n.º 4 do art.º 11.º, da LGT);
– a actividade desenvolvida pela Requerente se reconduz à transformação de produtos agrícolas em outros produtos agrícolas, e, como tal, não se enquadra no âmbito de aplicação do RFAI, face ao disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 2.º n.º 1 do art.º 22 do CFI, e artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, e ao âmbito sectorial de aplicação das Orientações Relativas aos Auxílios com Finalidade Regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, nº C 209, de 23 de Julho de 2013 (OAR) e do Regulamento (UE) n.º 651/2014, da Comissão, de 16 de Junho 2014 (RGIC);
– , o RIT é omisso quanto ao enquadramento dos investimentos realizados no conceito de “Investimento inicial”, nos termos da alínea a) do parágrafo 49 do art.º 2.º do RGIC e da alínea d) do n.º 2 do art.º 2.º da Portaria n.º 297/2015, de 21/09, porquanto, a análise dos SIT centrou-se, no essencial, na questão da elegibilidade das actividades económicas em que se inserem os investimentos para efeitos de beneficiar do RFAI;
– em decorrência das restrições ao âmbito de aplicação das OAR e do RGCI, o legislador, no art.º 1.º da Portaria, afasta da elegibilidade, para a concessão benefício do RFAI, os projectos de investimento que tenham por objecto as actividades económicas de determinados os sectores, nomeadamente:
(i) da indústria agrícola primária; e
(ii) da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
– os investimentos realizados pela Requerente tiveram por objecto a actividade de fabricação de produtos identificados como “produtos à base de carne” (código CAE 10130) que por integrarem o âmbito dos capítulos 2 e 16 da Nomenclatura Combinada da União Europeia, previstos na lista do Anexo I do TFUE são considerados “produtos agrícolas”, tal como definidos no artigo 38,º, n.º 110 do TFUE, no artigo 2.º, 11) do RGIC11 e na Parte I, Capítulo 2, Ponto 2.4 (35) das Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal nas zonas rurais para 2014-2020;
– a actividade da Requerente enquadra-se na definição de «agricultura» que consta do respeitante às OAR, o Ponto 1.1, n.º 10, com o esclarecimento da nota de rodapé (11);
– na Parte I, Capítulo 2, Ponto 2.1 (14) das Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola afirma-se que “Regra geral, em conformidade com o artigo 211.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1308/2013, as regras relativas aos auxílios estatais são aplicáveis à produção e comercialização dos produtos agrícolas”, sendo fornecidas, no Ponto 2.4, definições abrangentes de expressões relevantes: «Setor agrícola14» (n.º 2), «Produto agrícola15» (n.º 3) de ««Atividade agrícola16» (n.º 8) e de «Transformação de produtos agrícolas» (n.º 11)
– o âmbito de aplicação do RGIC não corresponde às características do benefício do RFAI, mas subsiste a exclusão do âmbito de aplicação das OAR, o que se insere no âmbito da liberdade de conformação do legislador;
– a tese da Requerente viola o princípio da separação de poderes;
3.2. Apreciação das questões
A Requerente efectuou investimentos relativos à sua actividade de transformação e comercialização de carnes, designadamente à ampliação das instalações usadas no âmbito da atividade de preparação/confeção/transformação dos produtos, que se enquadra na CAE 10130.
O fundamento das correcções efectuadas pela Administração Tributária é apenas a falta de enquadramento da actividade da Requerente no âmbito sectorial de aplicação do RFAI, por força do preceituado no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, por um lado, e do próprio n.º 1 do artigo 22º do Código Fiscal do Investimento (CFI), que «exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC».
Não é invocada pela Administração Tributária a falta de qualquer outro requisito para aplicação do RFAI. Sendo o processo arbitral tributário um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele], os actos têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. ( [1] )
Assim, a questão essencial que é objecto do presente processo é a de saber se a actividade da Requerente no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas à base de carne se enquadra no âmbito de aplicação do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), concretamente se este não deve ser aplicado por se tratar de actividade excluída do âmbito setorial de aplicação das OAR.
Antes de mais, há que esclarecer que a Portaria n.º 282/2014, de 30 Setembro, não tem relevo para a apreciação da questão, pois do teor expresso do n.º 3 do artigo 2.º do CFI resulta que o que nele se remeteu para portaria foi apenas a definição dos «códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior» e não a definição dessas actividades, o que se compreende, por nem ser constitucionalmente admissível a definição do âmbito objectivo de benefícios, que é matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por lei formal ou decreto-lei autorizado, como decorre do preceituado nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea i), e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
Por isso, tendo em mente que, por força do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da CRP, «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos», o n.º 3 do artigo 2.º do CFI não deve ser interpretado como permitindo aos membros do Governo a definição do âmbito de aplicação dos benefícios através de diploma regulamentar. Na verdade, «é a Constituição e não a lei que estabelece a hierarquia normativa. São por isso inconstitucionais as normas legais que infrinjam a proibição de delegação, sendo consequentemente ilegais os regulamentos que porventura sejam emitidos ao abrigo dessa delegação. ( [2] )
O Decreto-Lei n.º 162/2014 incluiu no CFI aprovou um novo RFAI, ao abrigo da autorização legislativa concedida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho, que tinha o seguinte sentido e extensão, definidos no n.º 3 do mesmo artigo 2.º nestes termos:
3 - A autorização prevista na alínea c) do n.º 1 tem como sentido e extensão:
a) Adaptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente:
i) Às disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria, que define as condições sob as quais certas categorias de auxílios podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno;
ii) Às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional;
b) Prorrogar a vigência do regime até 31 de dezembro de 2020;
c) Definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional;
d) Definir os limites dos benefícios fiscais a conceder, nomeadamente em função das regiões elegíveis ao abrigo da legislação europeia aplicável, e, no caso de empresas recém-constituídas, permitir uma dedução à coleta até à concorrência da mesma relativamente às aplicações relevantes efetuadas no período de tributação do início de atividade e nos dois períodos de tributação seguintes;
e) Prever que a parte da dedução à coleta que não possa ser deduzida por insuficiência de coleta possa ser deduzida até 10 períodos de tributação posteriores;
f) Reforçar os mecanismos de fiscalização e controlo deste regime de benefícios.
As actividades económicas relativamente às quais podem ser concedidos benefícios fiscais no âmbito do RFAI são indicadas no artigo 2.º do CFI, por remissão do seu artigo 22.º que estabelece o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 2.º
Âmbito objetivo
1 - Até 31 de dezembro de 2020, podem ser concedidos benefícios fiscais, em regime contratual, com um período de vigência até 10 anos a contar da conclusão do projeto de investimento, aos projetos de investimento, tal como são caracterizados no presente capítulo, cujas aplicações relevantes sejam de montante igual ou superior a (euro) 3 000 000,00.
2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:
a) Indústria extrativa e indústria transformadora;
b) Turismo, incluindo as atividades com interesse para o turismo;
c) Atividades e serviços informáticos e conexos;
d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;
e) Atividades de investigação e desenvolvimento e de alta intensidade tecnológica;
f) Tecnologias da informação e produção de audiovisual e multimédia;
g) Defesa, ambiente, energia e telecomunicações;
h) Atividades de centros de serviços partilhados.
3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.
Artigo 22.º
Âmbito de aplicação e definições
1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
Como resulta da alínea c) do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho (autorização legislativa), visou-se com o RFAI «definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional».
O artigo 2.º do CFI elenca as actividades que podem usufruir de benefícios fiscais, entre as quais inclui a «indústria transformadora»[alínea a) do n.º 2], mas reafirmando o respeito do «âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC».
O artigo 22.º, n.º 1, do CFI estabelece que «o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC».
Relativamente ao RGIC (Regulamento Geral de Isenção por Categoria, aprovado pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de Junho de 2014), a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu que «a inelegibilidade do projeto de investimento em apreço, para efeitos do RFAI não resulta assim do RGIC» (Relatório da Inspecção Tributária relativa ao exercício de 2017) e que «verifica-se que o RGIC não exclui o RFAI» (Relatório da Inspecção Tributária relativa ao exercício de 2018).
A questão que se coloca, assim, restringe-se a saber se a actividade da Requerente está excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR (Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013)
No que concerne às OAR, a Administração Tributária entendeu que a exclusão decorre do seu ponto 10 em que se estabelece o seguinte:
10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10 ), da agricultura (11) e dos transportes (12 ), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais.
Na nota de rodapé (11), relativa à agricultura, refere-se o seguinte:
« Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola».
Considerando estas disposições, a Administração Tributária concluiu que, «o setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas por constarem no Anexo I ao Tratado estão excluídos da aplicação da OAR conforme ponto 10 da OAR e nota de rodapé (11) articulado com as definições do art.º 2º, pontos 10) e 11) do RGIC, por remissão do art.º 2º, n.º 1 da Portaria 297/2015, sem esquecer o artigo 38º do Tratado. Por conseguinte, nos termos do nº 1 do artigo 22º do CFI não é aplicável o RFAI (sublinhado nosso], pois se trata de uma atividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR».
No entanto, aquele ponto 10, ao excluir «agricultura» do âmbito dos sectores de actividade a que se referem estas orientações sobre os auxílios com finalidade regional a económica, faz essa exclusão, porque «estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações».
A referida nota de rodapé (11), esclarece que «os auxílios estatais à (..), transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola».
Nestas «Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020», publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204/1, de 01-07-2014, refere-se no ponto 33:
(33)
Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.
Como resulta do teor expresso desta segunda parte do ponto (33), as OAR não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários, mas aplicam-se à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações relativas aos setores agrícola e florestal.
E, na secção 1.1.1.4., ponto (168), das mesmas «Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020» estabelece-se que
(168)
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Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:
(a)
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Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tratado;
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(b)
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Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;
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(c)
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As condições estabelecidas na presente secção.
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Conclui-se, assim, à luz do §10 (e da respectiva nota de rodapé 11) das OAR 2014-2020 e dos §33 e § 168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Sector Agrícola, que a actividade da Requerente, de transformação e comercialização de produtos agrícolas, designadamente a actividade de preparação/confeção/transformação dos produtos à base de carne, não é uma das «actividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR's» a que se refere a parte final, do artigo 22.º do CFI, e, pelo contrário, desde que satisfaçam as condições previstas no RGIC [o Regulamento (UE) n.º 651/2014, referido na alínea (a)], ou nas OAR, ou na secção em que se insere este ponto (168), são permitidos os auxílios estatais.
Por isso, não pode, com o fundamento que foi invocado no RIT, (de a actividade da Requerente, por ser de "transformação e comercialização de produtos agrícolas", pretensamente estar excluída do âmbito das OAR’s), considerar-se que está excluída do benefício fiscal do RFAI.
Conclui-se, assim, que as liquidações impugnadas enfermam de vício, por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem pressuposto o entendimento de que a actividade principal da Requerente de produção de transformação e comercialização de produtos a base de carne não era elegível para usufruição do RFAI.
Na verdade, a indústria transformadora enquadra-se no artigo 2.º, n.º 2 do CFI e não se está perante «atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC», para efeitos do artigo 22.º, n.º 1, do CFI.
Pelo exposto, tem de se concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas, por vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
3.3. Desnecessidade de reenvio prejudicial
A Requerente sugere o reenvio prejudicial para o TJUE, ao que se opôs a Autoridade Tributária e Aduaneira.
No artigo 19.º, n.º 3, alínea b) e no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, que é obrigatório quando uma questão sobre a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
No entanto, quando a lei comunitária seja clara ou quando já haja um precedente na jurisprudência europeia não é necessário proceder a essa consulta, como o TJUE concluiu no Acórdão de 06-10-1982, Caso Cilfit, Proc. 283/81.
Até mesmo quando as questões em apreço não sejam estritamente idênticas (doutrina do acto aclarado) e quando a correcta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do acto claro) (idem, n.º 14).
«Compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça» (acórdãos do TJUE Acórdão de 10 de julho de 2018, processo C-25/17, e de 02-10-2018 processo C-207/16).
Afigura-se a este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de Direito Europeu que é necessária para apreciação da legalidade das liquidações impugnadas, designadamente a interpretação do §10, nota de rodapé 11, das OAR 2014-2020, dos §§ 33 e 168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Sector Agrícola, é clara, pelo que não há necessidade de efectuar o reenvio sugerido.
Pelo exposto, entende-se desnecessário efectuar o reenvio prejudicial.
3.3. Juros compensatórios e demonstrações de acerto de contas
As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto as respectivas liquidações de IRC (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afectam estas, justificando-se também a sua anulação.
4. Restituição das quantias pagas e juros indemnizatórios
Em 15-03-2021, a Requerente pagou a quantia de € 16.016,78 e em 20-04-2021 pagou a quantia de € 59.222,48, referentes às liquidações impugnadas e pede a «reconstituição da situação que presumivelmente existiria se a ilegalidade de que enfermam os atos anulados não tivesse sido cometida», com juros indemnizatórios.
A reconstituição que é corolário da anulação dos actos de liquidação é a devolução das quantias indevidamente pagas.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária». O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Como os juros indemnizatórios dependem da existência de um montante a reembolsar, insere-se também na competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD determinar a restituição de quantias indevidamente pagas, como consequência da anulação de actos de liquidação.
Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição das quantias pagas acrescidas de juros indemnizatórios.
4.1. Restituição de quantias pagas
Procedendo o pedido de pronúncia arbitral, as liquidações devem ser anuladas pelo que restituição das quantias indevidamente pagas é uma consequência da sua eliminação jurídica.
Tendo a Requerente pago indevidamente as quantias € 16.016,78 e € 59.222,48, deve ser-lhe restituída a quantia global de € 75.239,26.
4.2. Juros indemnizatórios
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Os erros que afectam as liquidações são imputáveis à Administração Tributária, que as efectuou por sua iniciativa.
Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
Os juros indemnizatórios são calculados à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou outra ou outras que alterem a taxa legal), desde 15-03-2021 quanto ao montante de € 16.016,78 e desde 20-04-2021 quanto ao montante de € 59.222,48, até ao integral reembolso.
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
Anular a liquidação adicional de IRC n.º 2021... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., bem como as respectivas compensação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... (2017);
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a liquidação adicional de IRC n.º 2021... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., bem como as respectivas compensação n.º 2021 ... e demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... (2018), acrescidos os juros compensatórios
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Julgar procedente os pedidos de reconstituição da situação quanto à devolução das quantias pagas e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar o pagamento à Requerente da quantia de € 75.239,26;
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Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente esses juros, calculados à taxa legal supletiva, nos termos indicados no ponto 4 deste acórdão.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 75.239,26.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 21-10-2021
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Luís Janeiro)
(João Marques Pinto)
[1] Essencialmente neste sentido, podem ver–se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:
– de 10–11–98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em AP–DR de 12–4–2001, página 1207.
– de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em AP–DR de 10–2–2004, página 4289.
– de 09/10/2002, processo n.º 600/02.
– de 12/03/2003, processo n.º 1661/02;
– de 22–03–2018, processo nº 0208/17.
Em sentido idêntico, podem ver–se:
– MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é "irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto", e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que "não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa".
– MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que "as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade".
[2] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, volume II, página 69, que esclarecem: «a deslegalização está sempre excluída nas matérias sujeitas ao princípio da reserva de lei, sendo inconstitucionais quaisquer fenómenos de deslegalização incidentes sobre matérias que constitucionalmente não podem ser reguladas senão por via de lei. A deslegalização – ou seja a retracção da disciplina legislativa a favor da disciplina por via regulamentar – só é possível fora do domínio necessário da lei» (página 70).