Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 332/2021-T
Data da decisão: 2021-11-12  ISV  
Valor do pedido: € 15.091,03
Tema: Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. No dia 1-6-2021, o sujeito passivo A..., contribuinte nº..., residente na Rua ..., nº..., ..., Amarante, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2021/..., emitida pela Alfândega do Freixieiro, no valor de € 15.091,03 referente ao veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca..., modelo..., movido a gasóleo, n.º de motor..., com o código de homologação ..., cilindrada 1896 cc, com a matrícula definitiva... .

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:

4.1. O Requerente introduziu em Portugal, com origem em França, veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasóleo, n.º de motor..., com o código de homologação 2021..., cilindrada 1896 cc, a que foi atribuída a matrícula... .

4.2. O referido veículo tinha sido matriculado pela primeira vez no seu país de origem, a França, em 29 de Abril de 1998, tendo na altura 187317 kms percorridos.

4.3. O Requerente procedeu à respectiva Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2021/..., emitida pela Alfândega do Freixieiro.

4.4. Na DAV, apresentada pelo próprio Requerente, o mesmo declarou nos Quadro F e G que o mesmo era uma viatura usada, proveniente de França.

4.5. No Quadro E da DAV, relativo às características do veículo, no item 51 consta o valor de 99,9999g/km, e no item 50 consta o valor de 176g/km.

4.6. Nessa sequência, o Requerente procedeu à liquidação do ISV pelo valor global de € 15.091,03 (quinze mil e noventa e um euros e três cêntimos), imposto que foi integralmente pago, acrescido de juros compensatórios, o que fez por três vezes distintas.

4.6. Resulta da DAV que do imposto pago pelo Requerente € 3.993,76 correspondem à componente cilindrada e € 12.470,44 à componente ambiental.

4.7. Em relação à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido da quantia correspondente a 80% do seu montante, ou seja, em € 3.195,01, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo, mais de 10 anos.

4.8. Ao não aplicar a mesma redução à componente ambiental, entende o Requerentes que a AT, ao aplicar tout court o art.º 11º do CISV está a violar o artigo 110º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE), onerando os veículos usados importados com uma tributação fiscal superior à aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, como o foi no caso do Requerente.

4.9. O artigo 110º do TFUE está a ser violado, uma vez que a imposição que incide sobre o bem importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes, o que conduz a uma imposição superior do produto importado calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa, relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional.

4.10. Pois, na jurisprudência europeia, é unânime, que a desconsideração da redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontra-se ferido de ilegalidade, como o foi nos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 466/2019-T, 498/2019-T e 776/2019-T, onde foram proferidas decisões anulatórias com fundamento na incompatibilidade do disposto no artigo 11.º do CISV com a disposição do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), segundo o qual nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares (cf. Jornal Oficial da União Europeia de 22 de junho de 2020).

4.11. É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma ação por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20, com vista a que se declare que, «ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados introduzidos no território da República Portuguesa e adquiridos noutros Estados-Membros no âmbito do cálculo do imposto de registo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia».

4.12. O Requerente solicita em consequência a declaração de ilegalidade da liquidação do Imposto sobre Veículos e, consequentemente, a anulação da liquidação no que concerne ao valor indevidamente pago.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. O presente pedido de constituição de tribunal arbitral visa impugnar a liquidação de Imposto Sobre Veículos (ISV), praticada pelo Diretor da Alfândega do Freixieiro, resultante da apresentação, em 20.01.2021, pelo Requerente, de uma Declaração Aduaneira de Veículo (DAV).

5.2. A liquidação impugnada foi efetuada por aplicação das taxas previstas no artigo 7.º e no artigo 11.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre os Veículos (CISV), aplicável à introdução no consumo de veículos usados, admitidos no território nacional, provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia, na redacção atualmente em vigor.

5.3. No presente pedido de pronúncia arbitral o Requerente vem suscitar uma questão que se prende com a natureza e conformidade jurídico-constitucional da Lei do Orçamento para 2021, que alterou o artigo 11.º do CISV.

5.4. Pelo que, pretendendo o Requerente, em rigor, a não aplicação de uma norma aprovada por Lei da Assembleia da República, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de acto legislativo.

5.5. Ora, na verdade, sendo a competência taxativa, não se admite a apreciação de atos de natureza legislativa, emanados da função legislativa como é o caso da Lei do Orçamento (reserva exclusiva da Assembleia da República, artigo 161.º, alínea g) da CRP), e da Lei n.º 22-A/2007, de 20.09 (artigo 161.º, alínea c) da CRP) não podendo ser sindicáveis através de impugnação arbitral, por força do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.

5.6. Isto é, a fiscalização da legalidade de normas em abstracto, sem enquadramento processual impugnatório de acto concreto de liquidação, não é da competência do tribunal arbitral.

5.7. Afigurando-se inconstitucional uma interpretação que determine que o artigo 2.º do RJAT inclui a apreciação dos pedidos aqui formulados pelo Requerente, quando a letra e o espírito da norma não o permitem.

5.8. Ora, a incompetência material do tribunal arbitral consubstancia uma exceção dilatória, nos termos da alínea a) do artigo 577.º do Código de Processo Civil (CPC), impeditiva do conhecimento do mérito da causa, implicando a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 99.º e n.º 2 do artigo 576.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

5.9. Decorre do estabelecido no n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, alínea e), que “O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar (…) a indicação do valor da utilidade económica do pedido”.

5.10. Porém, ao arrepio do estabelecido na alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o Requerente não indica o valor da utilidade económica do pedido.

5.11. Pese embora o CAAD aparentemente tenha sanado tal irregularidade, com a constituição de um Tribunal Arbitral singular, a verdade é que o valor considerado não corresponde à verdadeira utilidade económica que o Requerente pretende alcançar com os pedidos formulados.

5.12. Assim, e sob pena de extinção da instância, conforme determina o n.º 3 do artigo 305.º do CPC, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, deve o Requerente ser convidado a declarar o valor a atribuir ao P.P.A.

5.13. O Requerente, enquanto seu proprietário, procedeu à introdução no consumo no território nacional de um veículo ligeiro de passageiros da marca ..., modelo..., usado, proveniente de outro Estado-membro (França), através da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2021/..., tendo-lhe sido atribuída a matrícula nacional ..., indicada no Quadro M do formulário da DAV.

5.14. A liquidação e cálculo do montante de imposto foram efetuados de acordo com os artigos 7.º e 11.º, n.º 1, do CISV, tendo sido aplicadas, conforme resulta do  Quadro R da DAV, as reduções previstas nas tabelas A e D para os veículos ligeiros de passageiros, com referência à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos dos referidos artigos do CISV.

5.20. Não se pode ignorar que o modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas directrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.

5.21. E que o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (anterior 110.º do TFUE), afirma, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pelo Requerente.

5.22. Devendo, pois, a interpretação do artigo 110.º do TFUE ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha a defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental, o que não aconteceu.

5.23. Acresce, também, referir, que o ISV é um imposto não harmonizado e que os Estados Membros são, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto,  de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, pelo que a liquidação em crise foi efetuada nos termos da lei em vigor à data da introdução no consumo do veículo, de acordo com a redação do n.º 1 do artigo 11.º, atualmente em vigor, que prevê diferentes percentagens de redução para as duas componentes.

5.24. Por outro lado, a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentivava os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação que não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.

5.25. E, estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objetivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, entende-se que, no caso concreto, não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto, que deve ser efetuado nos termos dos artigos 7.º e 11.º do CISV.

5.26. Até porque não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66.º, relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (n.º 1), e, especificamente, o disposto na alínea h), do n.º 2 do mesmo artigo, quando se refere a um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente.

5.27. Configurando a aplicação da interpretação, pugnada pelo Requerente, uma desaplicação do direito da União e do direito internacional - artigo 191.º do TFUE, Protocolo de Quioto e Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

5.28. Concluindo-se, assim, que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

5.29. No caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.

5.30 Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, esta foi efetuada de acordo com as normas aplicáveis em vigor, designadamente as constantes do artigo 7.º e do artigo 11.º do CISV.

5.31. Nesta medida, a interpretação do Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, o artigo 9.º, alínea e) e o artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.

5.32. Acrescendo que, a interpretação defendida pelo Requerente, posto que pugna pela aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.

5.33. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não pode deixar de se considerar como uma alteração à taxa do imposto  que, não se encontrando prevista na lei, é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, colocando, igualmente, a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.

5.34. Ademais, a pretensão do Requerente, além de não se estribar na lei e violar os acima indicados princípios constitucionais também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.

5.35. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

5.36. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204.º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

5.37. Por outro lado, ao defender, o Requerente, a ilegalidade da liquidação, por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, além da violação, por via de tal interpretação, dos já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, verifica-se, ainda, a violação, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV, do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.

5.38. De facto, tendo o Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar a liquidação, a administração encontra-se coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

5.39. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

5.40. Ora, defendendo o Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

5.41. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

5.42. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

5.43. Devendo a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação ora impugnada, ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20.

5.44. Resulta assim do exposto, que a liquidação do ISV foi corretamente efetuada, face à legislação em vigor, motivo pelo qual deve ser julgada improcedente a presente impugnação.

6. Em 24/9/2021 foi proferido despacho arbitral convidando o Requerente a pronunciar-se sobre as excepções de incompetência absoluta do Tribunal e de falta de indicação do valor da causa, invocadas pela Requerida.

7. Em 6/10/2021, o Requerente respondeu, sustentando ser o Tribunal Arbitral competente, uma vez que está em causa a declaração de ilegalidade de uma liquidação de ISV, e que a falta de indicação do valor já foi suprida pelo CAAD, ao indicar o valor de € 15.091,03, com o que o Requerente concorda.

8. Em 6/10/2021 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

9. Com base na prova documental constante da documentação junta aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

9.1. O Requerente apresentou em 20.1.2021 a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2021/..., emitida pela Alfândega do Freixieiro, no valor de € 15.091,03 referente ao veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo..., movido referente ao veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasóleo, n.º de motor ..., com o código de homologação 2021..., cilindrada 1896 cc, com a matrícula definitiva... .

9.2. O referido veículo tinha entrado em território nacional em 30 de Julho de 2018.

9.3. O valor da liquidação de ISV correspondente à referida DAV foi integralmente pago pelo Requerente em três prestações, tendo € 875,43 sido pagos em 1/2/2021, € 3.789,54 em 1/3/2021 e € 10.426,06, em 29/4/2021.

9.4. Dessa importância de ISV, € 3.993,76 corresponde ao valor global da componente cilindrada, antes de qualquer redução, e € 12.470,44 ao valor global da componente ambiental, inclui-se ainda um agravamento de partículas no montante de € 500 e juros compensatórios no valor de € 1.321,84.

9.5. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo em causa inseria-se no escalão “mais de 10” anos de uso, tendo sido aplicada no cálculo do imposto a percentagem de redução correspondente de 80%.

9.6. A percentagem de 80% determinou que a componente cilindrada fosse reduzida em € 3.195,01, não se tendo aplicado idêntica percentagem de redução em relação à componente ambiental, que a reduziria em € 9.976,35.

9.7. Em 1.06.2021 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral peticionando "a declaração de ilegalidade da liquidação do Imposto sobre Veículos e, consequentemente, a anulação da liquidação no que concerne ao valor indevidamente pago".

 

 

III - Factos não provados

10. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

IV - Do Direito

11. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- A questão do valor indicado para o processo.

- Da ilegalidade da liquidação de ISV.

- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.

- Do direito a juros indemnizatórios.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

— DA EXCEPÇÃO DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

12. Sustenta a Requerida que o Requerente vem suscitar uma questão que se prende com a natureza e conformidade jurídico-constitucional da Lei do Orçamento para 2021, que alterou o artigo 11.º do CISV, pretendendo com esta impugnação a não aplicação de uma norma aprovada por Lei da Assembleia da República e consequentemente suspender a eficácia de acto legislativo. Isto porque a fiscalização da legalidade de normas em abstracto, sem enquadramento processual impugnatório de acto concreto de liquidação, não é da competência do tribunal arbitral.

A verdade, no entanto, é que o pedido do Requerente,  conforme resulta expressamente da sua petição inicial é "a declaração de ilegalidade da liquidação do Imposto sobre Veículos e, consequentemente, a anulação da liquidação no que concerne ao valor indevidamente pago", estando assim em causa a anulação da liquidação de ISV resultante da DAV n.º 2021/....

Nos termos do art. 2º, nº1, a) do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD compreende a apreciação das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, enquadrando-se consequentemente o pedido formulado no âmbito da competência deste Tribunal Arbitral.

Nestes termos, julga-se improcedente a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral.

 

— O VALOR INDICADO PARA O PROCESSO.

13. Conforme salientou a Requerida, o Requerente não indicou na sua petição inicial o valor da causa, o que levou o CAAD a considerar como valor do processo o da liquidação de ISV impugnada, apesar de o Requerente solicitar a anulação da liquidação no que concerne ao valor indevidamente pago, que não chega a indicar. No entanto, a Requerida também não indica na sua resposta qual o valor que entende dever ser fixado para o processo.

Tendo-lhe sido solicitado que se pronunciasse sobre essa questão, o Requerente veio dizer que concordava com o valor fixado pelo CAAD que considerou corresponder à utilidade económica que pretende alcançar com a presente acção.

Nos termos do art. 305º, nº1, do CPC, aplicável por força do art. 29º, nº1, e) do RJAT, o Réu só pode impugnar o valor indicado pelo Autor, desde que ofereça um outro em sua substituição, coisa que a Requerida não fez no seu articulado. Consequentemente, o valor da causa não se pode ter por impugnado, tendo sido assim aceite pela Requerida (art. 305º, nº4, CPC).

Nestes termos, não se procede à alteração do valor indicado de € 15.091,03 que é assim fixado como valor da causa.

 

DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.

14. Sustenta ainda o Requerente existir ilegalidade da liquidação de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Há que salientar que resulta da documentação anexada pela Requerida, que não foi aplicada a esta DAV a actual redacção do art. 11º do CISV, introduzida pela Lei 75-B/2020, de 31 de Dezembro, uma vez que a entrada em território nacional ocorreu em 30/7/2018, pelo que a DAV deveria ter sido apresentada até 28/8/2018. Foi assim aplicada nesta liquidação de imposto a redacção do CISV, introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro, tendo sido inclusivamente liquidados juros compensatórios ao Requerente. Na sua actual redacção, o art. 11º CISV já estabelece uma desvalorização para a componente ambiental, pelo que o enquadramento jurídico deste caso seria naturalmente diferente.

O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".

Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV, na redacção aplicada a liquidação de ISV, o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

 

Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção de incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

Sucede, porém, que a redacção do art. 11º do CISV anterior à Lei 75-B/2020, de 31 de Dezembro, manteve uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas. Efectivamente, o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a redacção do art. 11º CISV introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro, limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a redacção do art. 11º CISV introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).

É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.

Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientais, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

Tal veio mesmo a ser confirmado pelo TJUE no recente Acórdão de 2 de Setembro de 2021 no processo C-169/20 Comissão contra República Portuguesa, onde este Tribunal decidiu julgar procedente uma acção de incumprimento contra a República Portuguesa, declarando expressamente que:

 "Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro EstadoMembro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE".

É manifesta assim a ilegalidade da liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão, não se justificando desencadear qualquer processo de reenvio prejudicial, face à posição já firmada do TJUE.

 

- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.

15. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV, na redacção da Lei 42/2016, de 27 de Dezembro, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.

 

 

V – Decisão

 

Nestes termos, julga-se parcialmente procedente o pedido de anulação da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2021/..., emitida pela Alfândega do Freixieiro, anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de € 9.976,35.

Uma vez que foi fixado ao processo o valor de € 15.091,03, o valor da correspondente taxa de arbitragem é fixado em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

Tendo o Requerente peticionado um valor de € 15.091,03, e tendo apenas obtido provimento em € 9.976,35, as custas do processo serão repartidas em 2/3 para a Requerida e 1/3 para o Requerente.

 

Notifique as partes e o Ministério Público, este último em virtude da pronúncia sobre a questão da constitucionalidade.

 

Lisboa, 12 de Novembro de 2021

 

O Árbitro

(Luís Menezes Leitão)