Sumário: I. Mostra-se viciado por ilegalidade o ato de liquidação de Imposto Sobre Veículos sobre a introdução no consumo de veículo usado proveniente de outro Estado-membro da União Europeia, aplicando o artigo 13.º do Código respetivo na redação vigente à data da prática do ato (3 de abril de 2020), por desconformidade deste preceito com o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, decorrente de não aplicar redução de imposto sobre a componente ambiental, II. São devidos juros indemnizatórios quando a decisão julga haver desconformidade da norma legislativa aplicada no ato de liquidação com o direito comunitário e se determina a devolução do imposto indevidamente pago, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A..., S.A. – doravante, ‘a Requerente’ –, com o NIPC..., com sede na ..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa, veio, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, ou ‘RJAT’), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, apresentando Pedido que visa o despacho proferido em 16 de novembro de 2020 pelo Diretor da Alfândega de Aveiro, que indeferiu a reclamação graciosa da liquidação de Imposto Sobre Veículos n.º 2020/..., por si deduzida.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tribuária e Aduaneira – doravante designada por ‘Requerida’ ou ‘AT’.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular Luís M. S. Oliveira, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 24 de maio de 2021.
2. Síntese da pretensão da Requerente e seus fundamentos:
Por despacho proferido pela Diretora da Alfândega de Aveiro com data de 16 de novembro de 2020, foi indeferida a reclamação graciosa que apresentou contra a liquidação n.º 2020/..., de Imposto sobre Veículos (’ISV’), emitida pela Chefe da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, sobre a Declaração Aduaneira de Veículo (‘DAV’) com o n.º 2019/..., de 27 de novembro de 2019;
O ato de liquidação, efetuado ao abrigo do disposto nos artigos 7.º e 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (‘CISV’), na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, em vigor à data da liquidação (entretanto alterada), enferma de ilegalidade na parte relativa ao cálculo do imposto incidente sobre a componente ambiental, por não considerar qualquer percentagem de redução face ao tempo de uso do veículo, em violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (‘TFUE’);
Notificada daquela liquidação, procedeu ao pagamento integral do ISV, sem o que não poderia legalizar o veículo e proceder à sua comercialização, após o que a Delegação Distrital de Viação de Leiria atribuiu ao mesmo a matrícula ..., em 6 de abril de 2020;
Considera ferida de ilegalidade a liquidação na parte relativa ao cálculo do imposto sobre a componente ambiental;
Peticiona que a mesma seja declarada ilegal e seja ordenada a restituição de EUR 9.994,32, acrescido de juros indemnizatórios.
3. Notificada, a Requerida argumenta na sua Resposta, em síntese, que:
A Requerente “não alega, nem prova, a propriedade do veículo em questão, à data do pedido de pronúncia arbitral” […] “o veículo em causa já terá, provavelmente, sido alienado e, nessa medida, no respetivo preço de venda deverão ter sido incluídos os montantes pagos pelo vendedor, designadamente para regularização fiscal e atribuição de matrícula, tendo repercutido naquele todas as despesas por si assumidas” […] “não alegando nem provando a Requerente que a restituição da importância do imposto lhe é devida por ainda deter a propriedade dos veículos ou por não ter repercutido o imposto pago no preço do veículo que tenha sido objeto de venda” […] “caso o veículo já tenha sido vendido, não se vislumbra que na esfera jurídica da Requerente exista um interesse juridicamente protegido, consubstanciando, nessa medida, a restituição do imposto à Requerente, conforme o pretendido na presente instância arbitral, uma situação de enriquecimento sem causa”;
Estando em causa a admissão de veículo usado, proveniente de outro Estado-membro, se deve atender, especificamente, ao disposto no artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data da introdução do veículo no consumo, através da DAV 2019/..., portanto à data de 27 de novembro de 2019;
Não obstante o referido artigo tenha sido objeto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva a redação introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016;
Tratando-se de veículo ligeiro de passageiros, usado, com emissão de gases CO2 conforme indicado na DAV, os serviços aduaneiros efetuaram o cálculo do imposto por aplicação da tabela A prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), recorrendo igualmente à aplicação da redução por anos de uso prevista na tabela D no n.º 1 do artigo 11.º para a componente cilindrada;
Não foi aplicada redução à componente ambiental porque tal redução não se encontrava prevista no artigo 11.º, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que consagrava reduções em função dos “anos de uso”, de acordo com a tabela D;
De tudo resulta estarem comprovados, face à lei aplicável, os pressupostos, em concreto, da liquidação de ISV, tendo, consequentemente, o veículo sido tributado de acordo com o regime plasmado no CISV em vigor à data da liquidação;
A interpretação da Requerente do artigo 11.º do CISV viola vários princípios constitucionais, que enuncia;
A questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação impugnada, deve ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20;
A eventual procedência da ilegalidade da liquidação, por desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, conformaria ainda violação, por via da desaplicação do artigo 11.º, dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva;
Ainda que venha a considerar-se que o pedido arbitral deva proceder, não procede o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
4. Por despacho de 29 de junho de 2021, este Tribunal Arbitral apreciou preliminarmente a questão suscitada pela Requerida de “não se vislumbrar na esfera jurídica da Requerente um interesse juridicamente protegido, porquanto não alega nem prova a propriedade do veículo em questão, à data do pedido de pronúncia arbitral, pelo que, caso o veículo já tenha sido vendido, a restituição do imposto à Requerente” consubstanciaria “situação de enriquecimento sem causa”.
Não tendo a Requerida (por lapso manifesto, no despacho escreveu-se “a Requerente”) invocado, a partir de tal argumentação, a existência de eventual exceção, que, em tese, obstasse à apreciação do mérito da ação, v.g., por ilegitimidade da Requerente, ou que, servindo de causa extintiva do direito invocado pela Requerente, determinasse a improcedência total ou parcial do pedido, entendeu este Tribunal Arbitral inexistir razão para convidar a Requerente a pronunciar-se sobre a referida questão em articulado específico, porquanto o poderia fazer nas alegações, remetendo para a decisão arbitral o respetivo conhecimento.
Ainda pelo referido despacho, este Tribunal Arbitral:
1) Dispensou a realização da reunião prevista no n.º 1 do artigo 18.º do RJAT, por inexistir matéria enquadrável nas respetivas alíneas b) ou c) e ser objetivamente desnecessário definir por essa via a tramitação processual subsequente;
(2) Fixou, nos termos constantes do disposto no n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processamento e de Processo Tributário (‘CPPT’) e da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, prazos sucessivos e consecutivos de 12 dias para apresentação de alegações escritas, prazo contado, para o Requerente, do dia seguinte ao da notificação do despacho, para a Requerida, do dia seguinte ao da notificação da junção das alegações do Requerente, salvaguardando-se o período de férias judiciais, nos termos do disposto no artigo 17.º-A do RJAT;
(3) Fixou o dia 30 de setembro de 2021 como data limite para prolação da decisão arbitral.
Por despacho de 27 de setembro de 2021, no uso dos poderes conferidos a este Tribunal Arbitral pela alínea c) do artigo 16.º do RJAT, foi modificado o despacho com data de 29 de junho de 2021, na parte em que fixou a data limite para prolação da decisão arbitral, fixando como nova data limite o dia 15 de novembro de 2021.
5. A Requerente produziu alegações.
Relativamente à matéria da hipotética inexistência de “interesse juridicamente protegido” à restituição do imposto – por, “provavelmente” (formulação da Requerida), o veículo ter sido por ela alienado e no respetivo preço de venda ter incluído a totalidade do ISV pago, não alegando nem provando que a restituição lhe é devida por ainda deter a propriedade do veículo ou por não ter repercutido o imposto pago no preço de venda, sem o que a restituição consubstanciaria enriquecimento sem causa – a Requerente veio confirmar que o veiculo foi alienado, mas alegando que não foram incluídos no preço de venda os montantes pagos pela Requerente a título de ISV, juntando cópia da fatura de venda. Portanto, alegou que, “não só suportou o encargo do imposto indevidamente liquidado, como não repercutiu no adquirente os encargos assumidos nesta sede”.
Notificada, no dia 6 de setembro de 2021, da junção das alegações da Requerente, a Requerida não produziu alegações.
II. Saneador
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente [alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT] e as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se legalmente representadas (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).
Como consta do Relatório, vem suscitada pela Requerida, na sua Resposta, a questão da hipotética ilegitimidade da Requerente, caso esta tivesse, entretanto, vendido o veículo de cuja liquidação de ISV se trata e houvesse repercutido sobre o comprador a totalidade do ISV pago. Não teria, em tal hipotética situação, “um interesse juridicamente protegido” à restituição do imposto.
A Requerida não invoca expressamente existir exceção dilatória de ilegitimidade, nem leva às conclusões pedido de absolvição da instância com esse fundamento. Ressalvado todo o respeito devido à Requerida, não é fácil ler as considerações que na Resposta expende sobre o tópico, à luz de pressupostos de seriedade e de prossecução da legalidade.
Antes parece a este Tribunal Arbitral, neste ponto, oposição cuja falta de fundamento a Requerida não devia – nem razoavelmente podia – ignorar. De facto, este Tribunal Arbitral tem em conta, como legalmente é suposto ter, o conteúdo do Processo Administrativo, do qual consta, escrito pela AT na decisão sobre a reclamação graciosa, em 2 de outubro de 2020, e tornado definitivo, por remissão, em 19 de novembro de 2020, o seguinte: “A Reclamante tem legitimidade e capacidade para a apresentação do pedido, nos termos conjugados do art.º 65.° da LGT e art. 9.° do CPPT.”
Esteja ou não a Requerida a fazer uso indevido da oposição, nela avançando arguição diametralmente oposta ao que anteriormente apreciou e decidiu, e cuja falta de fundamento não devia ignorar, de iure uma eventual exceção dilatória é de conhecimento oficioso, sendo que a Requerente, nas suas alegações, confirma a venda da viatura e não faz prova que possa ser julgada bastante de que não repercutiu sobre o comprador a totalidade do ISV, embora o alegue.
A cópia da fatura que juntou apresenta o preço de venda final com inclusão do IVA, sem discriminação do valor do ISV nem de quaisquer encargos, e é do conhecimento comum e geral que no preço final para os compradores de veículos usados são repercutidos todos os encargos, fiscais ou outros, suportados pelos vendedores, não os internalizando estes como custo próprio, mas também não os discriminando nas faturas.
Importa, pois, decidir se a repercussão da totalidade do ISV liquidado e pago, incluindo a parte cuja legalidade se discute, sobre o comprador do veículo, importa inexistência, na esfera jurídica da Requerente, de “interesse juridicamente protegido”.
Ora, nos termos que decorrem do disposto no n.º 1 do artigo 9.º do CPPT, a legitimidade advém de ser a Requerente, enquanto operador reconhecido e relativamente ao ato de introdução no consumo – por importação ou por transação intracomunitária – de veículos usados, o sujeito passivo do ISV, e de ter como tal, por inerência a essa condição de sujeito passivo, “interesse juridicamente protegido” – na verdade, tem direito constitucional e legalmente consagrado – a ver escrutinada a legalidade do concreto ato de liquidação do imposto, seja mediante reclamação graciosa, como fez, e aí foi expressamente considerada como tendo legitimidade, quer mediante impugnação judicial, quer ainda, como está em juízo, mediante pedido de prolação de decisão arbitral.
Mostra-se irrelevante para a questão da legitimidade que a Requerente haja repercutido a totalidade do ISV no preço de venda do veículo e venha, hipoteticamente, a não restituir ao comprador a parte do imposto que, a proceder a invocada legalidade, lhe seja restituída, assim obtendo um enriquecimento sem causa.
Inexiste, em consequência, situação qualificável como geradora da exceção dilatória de ilegitimidade.
O processo não enferma de nulidades.
III. Da fundamentação
III-1 – Sobre a matéria de facto
Factos provados
Julgam-se provados os seguintes factos, sendo a convicção deste Tribunal Arbitral fundada nas posições assumidas por cada uma das Partes nos articulados, as quais, de resto, não se apresentam divergentes, e bem assim no conteúdo do Processo Administrativo:
A Requerente dedica-se à compra, venda, revenda e aluguer de veículos novos e usados, tendo o estatuto de ‘operador reconhecido’;
Em 27 de novembro de 2019, apresentou junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, através de representante indireto, uma Declaração Aduaneira de Veículo (‘DAV’) à qual foi atribuído o n.º 2019/..., para introdução no consumo;
Fez constar da referida DAV (junta ao Processo) um veículo ligeiro de passageiros movido a gasolina, com n.º de motor ... e n.º de quadro..., com cilindrada de 5.204 cc, emissão de gases CO2 de 287 g/Km e emissão de partículas de 0,0009 g/Km, usado, com 29.990 quilómetros percorridos, proveniente da Alemanha, aí matriculado pela primeira vez em 13 de novembro de 2015, com dado entrada no território nacional em 31 de outubro de 2019;
Da DAV consta que a Delegação Distrital de Viação de Leiria atribuiu ao veículo a matrícula ..., em 6 de abril de 2020;
Da mesma DAV consta a liquidação n.º 2020/..., no valor de EUR 35.109,73, com data de 3 de abril de 2020, com cobrança na mesma data. O cálculo do ISV, subjacente à referida liquidação, igualmente constante da DAV, é o seguinte:
Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo foi inserido no escalão da tabela de “Mais de 4 a 5 anos” de uso, sendo-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 43%, na ‘componente cilindrada’. Não foi aplicada redução em função do número de anos de uso na ‘componente ambiental’;
A Requerente apresentou, em 17 de agosto de 2020, junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, reclamação graciosa da liquidação de ISV, à qual foi dado o n.º ...2020..., pedindo a anulação parcial da liquidação, no valor de EUR 9.994,32, resultante de considerar ilegal o cálculo do imposto na componente ambiental, por não ter sido sobre esta aplicada a redução em função dos anos de uso do veículo;
Pelo Ofício n.º ..., de 2 de outubro de 2020, a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz notificou a Requerente do projeto de decisão sobre a reclamação graciosa, no sentido do indeferimento da mesma, para o efeito do exercício do direito de audição prévia;
A Requerente apresentou pronúncia, reiterando a sua interpretação;
Pelo Ofício n.º..., de 19 de novembro de 2020, a Delegação Aduaneira da Figueira da Foz notificou a Requerente da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, por despacho de 16 do mesmo mês, da Diretora da Alfândega de Aveiro.
Factos não provados
Não se julga provado que a Requerida não repercutiu sobre o comprador a totalidade do ISV, porquanto a cópia da fatura que juntou com as alegações apresenta apenas o preço de venda final com inclusão do IVA, não discriminando – como, de resto, se tem como do conhecimento comum e geral que não é usualmente feito nas faturas – o valor do ISV e outros encargos.
Inexistem outros factos, com relevância para a decisão arbitral, a julgar como não provados.
III-2 – Do Direito
A. São as seguintes as questões a dilucidar no presente processo:
Se – tendo este Tribunal Arbitral considerado inexistir exceção dilatória de ilegitimidade da Requerente – deve ter-se por verificada a procedência de hipotética exceção que seria perentória extintiva do direito à restituição do ISV, por aplicação do regime legal relativo ao “enriquecimento sem causa”, nesse caso com efeito de “absolvição do pedido”: n.º 3 do artigo 576.º do Código de Processo Civil, ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT;
Se está viciado por ilegalidade o ato de liquidação de ISV, na parte relativa ao cálculo do imposto incidente sobre a componente ambiental, por aplicar preceitos – os artigos 7.º e 11.º do CISV, na redação em vigor à data – que se devam julgar incompatíveis com o artigo 110.º do TFUE, em razão de não considerarem qualquer percentagem de redução face ao tempo de uso de veículos importados, na componente ambiental, com o efeito de discriminação tributária entre veículos com igual número de anos de uso, consoante sejam transacionados no mercado interno ou importados de outro Estado-membro da UE;
Se é de considerar verificada alguma das inconstitucionalidades arguidas pela Requerida, naturalmente no pressuposto de este Tribunal Arbitral aderir à tese interpretativa da Requerente, de que se verifica desconformidade com o direito da UE por incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE: – especificamente, se tal interpretação, uma vez coonestada com os princípios da legalidade, ou da justiça tributária, ou da igualdade, ou da certeza e segurança jurídica, ou do “Estado de direito ambiental”, deve, a final, ser afastada, por inconstitucional;
Se, caso venha a considerar-se procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação por desconformidade do direito nacional com o artigo 110.º do TFUE, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, na redação em vigor à data, que foi a aplicada à liquidação impugnada, deve este Tribunal Arbitral suscitar tal questão junto do TJUE, conforme foi decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20;
Se, em razão de se encontrar a Administração “coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia”, a eventual procedência da tese da ilegalidade da liquidação, por se entender que existe a equacionada desconformidade com o artigo 110.º do TFUE, conformaria violação, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV, dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva;
Se, julgando este Tribunal Arbitral procedente o pedido arbitral, há lugar à condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
B. Posição da Requerente, em síntese da autoria deste Tribunal Arbitral
A redação do artigo 11.º do CISV que vigorava à data da liquidação (entretanto alterada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano 2021), não considerava quaisquer percentagens de redução de imposto atinentes à depreciação das viaturas na componente ambiental, à revelia do que dispõe o artigo 110.º do TFUE, aplicável por força do artigo 8.º da Constituição (‘CRP’).
A norma vertida no artigo 11.º do CISV em vigor à data da liquidação, ao não atender, em sede de componente ambiental, à depreciação dos veículos usados admitidos de outros Estados-Membros da UE, gerava efeitos discriminatórios na concorrência entre tais veículos e veículos usados idênticos adquiridos em território nacional, estando, por conseguinte, em desconformidade com os ditames comunitários.
O Estado Português ignorou, até recentemente, o Parecer Fundamentado da Comissão Europeia, de 27 de novembro de 2019, que esteve na origem da instauração de ação junto do TJUE contra Portugal em 12 de fevereiro de 2020.
Nos termos da nova redação do artigo 11.º do CISV e da tabela D nele ínsita, ao ISV sobre usados provenientes de outros Estados-Membros passaram a ser aplicadas percentagens de redução tendo em conta não só a componente cilindrada, como também a componente ambiental.
Traz à colação o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção), de 16 de junho de 2016, no Processo C-200/15, interpretando o artigo 110.º do TFUE, e invoca ainda a decisão arbitral no Processo n.º 572/2018-T.
Conclui que acrescem, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e 61.º, n.º 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente, desde a data do pagamento até efetiva restituição.
C. Posição da Requerida, em síntese da autoria deste Tribunal Arbitral
Sobre a matéria de exceções:
Relativamente à questão de saber se a restituição do ISV, na parte que, eventualmente, seja afetada por se declarar a ilegalidade parcial do ato de liquidação, consubstanciaria enriquecimento sem causa, a posição da Requerida ficou sintetizada no Relatório.
Sobre as questões de legalidade da liquidação:
A liquidação de ISV, aplicando o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da CRP, não existindo a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE;
Os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional. Aplicam-se igualmente a veículos matriculados no território nacional, designadamente nos casos previstos nas alíneas a), b) e d) do n.º 2 do artigo 5.º, decorrendo daqueles dispositivos que as taxas de imposto previstas nos artigos 7.º e 11.º são aplicadas de igual forma, na componente cilindrada e ambiental, a um veículo com matrícula nacional e a um veículo usado admitido no território nacional;
A interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE não pode deixar de ter em consideração objetivos ambientais, sob pena de se gerarem incoerências insustentáveis entre a política fiscal e a política ambiental. Deve a interpretação do artigo 110.º ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental;
O estabelecido no artigo 191.º do TFUE, tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (anterior 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação atualista, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto naquele dispositivo afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da UE, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, proteção e melhoria da qualidade do ambiente;
O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris. Tal alteração ao artigo 11.º do CISV encontrava-se, assim, também, em consonância com o disposto no artigo 1.º do CISV, que consagra que o ISV obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária;
A AT agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica;
O acórdão proferido no Processo n.º C-200/15 do TJUE não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (cilindrada), limitando-se a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.
Sobre as questões de constitucionalidade:
Violação do princípio do Estado de direito ambiental:
- A interpretação da Requerente ofende o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, importando violação do artigo 9.º, alínea e), e artigo 66.º, n.ºs 1 e n.º 2, da CRP; estabelecendo o artigo 66.º a adoção de medidas de âmbito setorial e a política fiscal enquanto instrumento de proteção do ambiente e qualidade de vida, que podem consistir no agravamento fiscal de veículos particularmente poluentes, a CRP consagra expressamente, neste âmbito, um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente, por estarem em causa bens constitucionalmente protegidos de natureza coletiva, merecedores de tutela jurisdicional; configura a aplicação da interpretação pugnada pela Requerente uma desaplicação do direito da União e do direito internacional - artigo 191.º do TFUE, Protocolo de Quioto e Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP;
Violação do princípio da legalidade tributária:
- A aplicação da mesma percentagem de redução de ISV às duas componentes – cilindrada e ambiental –, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. A interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pela Requerente resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP, o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à CRP e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2);
Violação dos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica:
- A aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstanciando uma situação de desigualdade fiscal;
Violação do n.º 4 do artigo 104.º da CRP:
- O ISV é um imposto sobre o consumo não harmonizado e a tributação do consumo visa adaptar a estrutura deste à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo;
Violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, da CRP):
- A declaração de ilegalidade da liquidação, por desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, conduz à violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva; a Administração encontra-se coartada no direito de reação, face aos limitados meios de recurso perante a prolação de decisão arbitral desfavorável, concretamente quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia; prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, a declaração de ilegalidade da liquidação, por desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, conduz à violação do princípio do livre acesso aos tribunais.
Pedido de reenvio prejudicial:
Deve a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação impugnada, ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20.
Quanto aos juros indemnizatórios
O direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços, de que resulte pagamento em montante superior ao legalmente devido. No caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à AT. A liquidação decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo sido efetuada nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto. Estando a AT e os seus órgãos vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida agiu em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT, posição que já foi sufragada em sede arbitral, conforme resulta das decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T, n.º 34/2020-T e n.º 52/2020-T.
D. Indagação, interpretação e aplicação do Direito
Sobre a matéria de exceção:
Impõe-se analisar da pertinência para a matéria a decidir – se está viciado por ilegalidade o ato de liquidação de ISV, na parte relativa ao cálculo do imposto incidente sobre a componente ambiental, em razão de desconformidade do artigo 11.º do CISV, na redação que foi aplicada pela AT, com o artigo 110.º do TFUE – da questão do eventual enriquecimento sem causa da Requerente, por ter esta – aparentemente, em função dos dados do processo – repercutido no preço de venda a totalidade do ISV que pagou e, hipoteticamente, não vir a refletir sobre esse preço, a posteriori, mediante redução e reembolso, ou fórmula de efeito financeiro equivalente, a poupança fiscal inerente à restituição de parte do imposto.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil:
“Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Resulta patente da letra da lei que o enriquecimento de que trata é “à custa de outrem”, a benefício do qual, como seria natural, se estatui a obrigação de “restituir”. Ora, na hipotética situação de vir a existir enriquecimento sem causa da Requerente, nos pressupostos acima, esse ‘outrem’ é o comprador do veículo, o qual terá, por força da lei, direito a ver-lhe restituída a parte do preço que (supostamente) incorpora a repercussão do ISV, na parte cuja liquidação seja anulada.
Ou seja, a haver lugar ao referido enriquecimento sem causa, é matéria ultra vires relativamente à relação jurídico-tributária.
Pode o legislador – especialmente, na fixação do regime aplicável a impostos sobre o consumo, portanto, estruturalmente, para serem repercutidos sobre o comprador / consumidor – acautelar, através da própria lei tributária, a questão do enriquecimento sem causa, designadamente condicionando a anulação da liquidação à prova de que não houve repercussão integral do imposto sobre o comprador. Na falta de tal prova, fica na Fazenda Pública o valor já julgado indevidamente cobrado, como via para evitar que o sujeito passivo, que o recebeu do comprador, o receba uma segunda vez, agora pela via da restituição, tendo um “enriquecimento sem causa”.
É precisamente o que se encontra consagrado no n.º 3 do artigo 97.º do Código do IVA, ao exigir-se prova de que o IVA cuja liquidação (ou autoliquidação) seja viciada por erro ou ilegalidade foi efetivamente suportado pelo impugnante, para se anular aquela liquidação.
O legislador adotou esta solução para o IVA, mas, significativamente – seja por opção esclarecida, seja por imprevisão – não o fez para o ISV, pelo que ao intérprete resta, em boa hermenêutica, ter em devida conta a patente divergência dos textos legais.
Assim, não pode este Tribunal Arbitral dar por procedente a arguição de que deve ser considerado, para o juízo sobre a legalidade da liquidação, a potencial e hipotética situação de enriquecimento sem causa da Requerente. O Código do ISV não permite tal decisão, ao inverso do que sucederia se de liquidação de IVA se tratasse.
Inexiste, pois, esta potencial exceção perentória, extintiva do direito da Requerente à restituição do ISV.
Sobre as questões de legalidade da liquidação:
Existe extensa jurisprudência, em particular no CAAD, que versa a questão da legalidade de liquidações de ISV que aplicaram o artigo 11.º do CISV, na redação anterior à alteração que veio fixar percentagens de redução – previstas na Tabela D – tendo em conta também a componente ambiental. Isto é, que aplicaram o artigo 11.º na redação em que se fundamentou a AT para a liquidação objeto do presente processo.
Tal jurisprudência é consistente na declaração de ilegalidade de tais liquidações. Este Tribunal Arbitral adere a essa corrente jurisprudencial. Para que a adesão seja explícita na identificação de um concreto processo a cuja fundamentação se adere, referencia-se o Processo n.º 572/2018-T, publicado em:
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=572%2F2018&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=4011
Este Tribunal Arbitral entende dever aduzir as seguintes linhas de análise e tratamento jurídicos, que fundamentam a decisão.
É incontroverso o que afirma a Requerida – que a liquidação de ISV, aplicando o artigo 11.º, foi efetuada em conformidade com a lei nacional. Já o não é, e daí o extenso recurso às vias impugnatórias e a jurisprudência que tem vindo a ser gerada, que a lei aplicada para fazer a dita liquidação esteja conforme com o direito comunitário.
Está, concretamente, em escrutínio a conformidade do artigo 11.º do CISV, na redação que apenas aplicava redução de imposto em função dos anos de ‘usado’ do veículo introduzido no consumo, proveniente de outro Estado-membro, à componente cilindrada, com a disposição do artigo 110.º do TFUE.
Julga-se de importância crítica para se construir dogmática em que se alicerce, sustentadamente, a decisão, trazer à colação a redação atual da parte final do n.º 1 do referido artigo 11.º:
“1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na Tabela D ao imposto resultante da Tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos” (sublinhado nosso).
Fica unívoca, nesta nova redação, a ratio subjacente à aplicação das percentagens de redução a todas as componentes relevantes para o cálculo do imposto sobre veículos usados introduzidos no consumo, provenientes de outros Estados-membros.
Foi a fórmula necessária para descontinuar uma política tributária que vinha sendo utilizada como via de desincentivo a essa introdução (e à importação), através do preço, concretamente, tornando o preço de tais veículos mais elevado – com a repercussão do ISV calculado sem redução sobre a componente ambiental, portanto, como se os veículos fossem novos – do que o preço de mercado de veículos comparáveis, em anos de usado e nas características ambientais, transacionados no mercado interno.
A nova redação, ao explicitar o termo de referência da desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e da vida útil média remanescente, evidencia, ipso facto, a discriminação inerente à não aplicação da redução sobre a componente ambiental.
Ora, sobre o artigo 110.º do TFUE, importa reter o que está vertido no acórdão extraído no Processo n.º C-200/15 pelo TJUE: - “o artigo 110.º tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados-Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados-Membros” […] este artigo é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam […] a uma imposição superior do produto importado”, concluindo que “um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional”.
Leem-se conjugadamente o n.º 1 do artigo 11.º do CISV, acima transcrito, o artigo 110.º do TFUE e o Acórdão no Processo n.º C-200/15 e de tudo se deriva, com clareza, a identidade de entendimento – entre o TJUE, o Estado português, ao alterar o preceito para fazer aplicar a redução também sobre a componente ambiental, e a jurisprudência consolidada – quanto às consequências a retirar, no escrutínio da conformidade de normas como a do artigo 11.º na redação anterior e, consequentemente, da legalidade de atos de liquidação que as aplicam, da natureza precetiva do referido artigo 110.º do TFUE e do comando normativo dele constante.
E não se julga pertinente verificar se o dito Acórdão se pronuncia, em concreto, quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação cilindrada. Basta, para entender a doutrina ali vertida – como bem a entendeu o legislador interno quando da referida alteração ao CISV – atentar que aí se afirma que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos, para efeitos tributários, que não tem em conta a desvalorização de veículos comparáveis no mercado interno não cumpre as obrigações derivadas do artigo 110.º do TFUE. Nada mais se mostra necessário dizer.
Vejamos se se mostra pertinente a invocação feita pela Requerida, de que a conclusão pela existência da referida descriminação negativa seria posta em crise por as tabelas de redução – sem componente ambiental – se aplicarem igualmente a veículos matriculados no território nacional, designadamente nos casos previstos nas alíneas a), b) e d) do n.º 2 do artigo 5.º.
Trata-se, salvo o devido respeito, de uma pseudo-comparação: - para se aferir se há ou não discriminação inerente ao regime legal, apenas se podem comparar veículos comparáveis, não veículos introduzidos no consumo provenientes de outros Estados-membros, qua tale, sem transformações, com veículos no mercado interno que tenham sido objeto de transformações. A comparação legalmente relevante mostra que a tributação de um usado proveniente de outro Estado-membro, sem desagravamento na componente ambiental, conduz a que, para tal componente, a carga tributária seja igual à de veículo similar novo vendido no mercado nacional, o que não deixa margem para se duvidar fundamentadamente da discriminação tributária negativa do primeiro.
Vejamos se outra afirmação da Requerida, a de que a interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE deve ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, merece acolhimento. Para tanto, importa, neste passo, reavivar a leitura dos dois preceitos:
Artigo 110.º
“Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.”
Artigo 191.º
1. A política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos seguintes objetivos:
– a preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente,
– a proteção da saúde das pessoas,
– a utilização prudente e racional dos recursos naturais,
– a promoção, no plano internacional, de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente, e designadamente a combater as alterações climáticas.
2. A política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear¬ se¬ á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor¬ pagador.
Neste contexto, as medidas de harmonização destinadas a satisfazer exigências em matéria de proteção do ambiente incluirão, nos casos adequados, uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estados¬ Membros a tomar, por razões ambientais não económicas, medidas provisórias sujeitas a um processo de controlo da União.
3. Na elaboração da sua política no domínio do ambiente, a União terá em conta:
– os dados científicos e técnicos disponíveis,
– as condições do ambiente nas diversas regiões da União,
– as vantagens e os encargos que podem resultar da atuação ou da ausência de atuação,
– o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das suas regiões.
4. A União e os Estados¬ Membros cooperarão, no âmbito das respetivas atribuições, com os países terceiros e as organizações internacionais competentes. As formas de cooperação da União podem ser objeto de acordos entre esta e as partes terceiras interessadas.
O disposto no parágrafo anterior não prejudica a capacidade dos Estados¬ Membros para negociar nas instâncias internacionais e celebrar acordos internacionais.
A leitura comparada evidencia, de imediato e – julga-se – com meridiana clareza, diferenças fundamentais, cujo impacto deve ser tido em conta, Assim:
O artigo 110.º:
(a) tem por destinatários diretos os Estados-membros;
/b) é de natureza precetiva, aplicando-se nos precisos termos em que está redigido, imediatamente, isto é, sem carecer da aprovação de normativos de direito derivado;
(c) é de efeito direto na ordem jurídica interna, tornando automaticamente desconformes tributação superior à que incida, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.
O artigo 191.º:
(a) tem por destinatários diretos os órgãos da UE (também os Estados-membros, numa ótica, irrelevante para o contexto, de ‘cooperação’ virada ao exterior, no n.º 4);
/b) é de natureza programática, pelo que de nenhum efeito se reveste além do de ser paramétrico das políticas ambientais da União;
(c) é destituído de qualquer efeito direto na ordem jurídica interna.
Não se tem por procedente, portanto, a tese de que a interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE deve ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, num sentido – que seria o único pertinente para dar por inverificada a desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º – concluísse que o efeito precetivo e direto do artigo 110.º, cujos destinatários diretos são os Estados-membros, fosse afastado ou mitigado por um preceito meramente programático, de que os Estados-membros não são destinatários, que se configura como paramétrico das políticas ambientais da EU.
Sobre as questões de constitucionalidade:
As ponderações e a avaliação acima feitas têm como corolário lógico e hermenêutico clarificar a questão da conformidade constitucional da interpretação segundo a qual uma liquidação de ISV feita por aplicação do artigo 11.º do CISV na redação anterior à que introduziu a redução também na componente ambiental – é o caso da liquidação objeto do presente processo – está viciada por ilegalidade, decorrente da desconformidade do referido preceito com o artigo 110.º do TFUE, naturalmente considerando o primado do direito da UE, como foi inscrito no n.º 4 do artigo 8.º da CRP.
Vejamos se é procedente a arguição da violação do princípio do Estado de direito ambiental, na dimensão do princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV.
Não se concorda com a tese da Requerida. É certo que sobre o princípio da equivalência assenta o modelo de tributação automóvel, internalizando, por via tributária, certas externalidades negativas, em particular a dos impactos ambientais de veículos poluentes.
Porém, a métrica da internalização e as reduções de imposto para os veículos usados enquadráveis no artigo 11.º estão condicionadas pelo princípio da não discriminação, com o efeito de vigência direta que decorre da norma precetiva do artigo 110,º do TFUE, como atrás se deixou referido. Não existe ‘carta branca’ para a política tributária nas imposições sobre o consumo, como se o artigo 110.º não existisse.
Aliás, o argumento provaria demais, a ser pertinente, pois conduziria à conclusão, insustentável, de que a atual redação do artigo 11.º passou a ser incompatível com o princípio da equivalência, ao ter desagravado também a componente ambiental para os veículos usados aí subsumíveis. Ora, se não existe tal incompatibilidade, demonstrado fica, ex post, que também não existia na interpretação que se tem por correta, que é a que desaplica aquele preceito na parte em que se mostra desconforme com o artigo 110.º do TFUE.
Não se identifica, portanto, violação do artigo 9.º, alínea e), ou do artigo 66.º, n.ºs 1 e n.º 2, da CRP.
Quanto à arguida violação do princípio da legalidade tributária, porquanto a aplicação da mesma percentagem de redução de ISV às duas componentes – cilindrada e ambiental –, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
Julga-se, salvo o devido respeito, que existe aqui alguma síncrese de raciocínio, a qual é necessário resolver previamente, para se individualizar(em) a questão, ou as questões, que se deva(m) ter por formulada(s):
(a) Uma é a de saber se a interpretação que aplica o artigo 11.º do CISV incorporando o efeito da eliminação ou correção da desconformidade com o artigo 110.º do TFUE conduz à alteração de um elemento fundamental do imposto, sujeito ao princípio da legalidade ínsito no n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
Nesta dimensão, julga-se– salvo o devido respeito – que a questão não tem cabimento: o comando do n.º 2 do artigo 103.º da CRP vincula o legislador; em concreto, impõe que seja através de lei do parlamento, ou mediando autorização deste, que sejam definidos os elementos essenciais do imposto.
Ora, quando o intérprete conclui que a solução do direito interno é desconforme com o direito da UE e faz interpretação e aplicação da lei que elimina a desconformidade, não está a atuar dentro de campo de efeitos do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
(b) Outra, identificável na formulação da Requerida, alude a que a aplicação da mesma percentagem de redução de ISV às duas componentes – cilindrada e ambiental – dá origem a desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes.
Não se entende esta questão, como vem formulada, como questão de constitucionalidade, pelo que não se toma conhecimento da mesma neste contexto.
Relativamente à arguição de que a interpretação do artigo 11.º do CISV que afaste a sua aplicação, na medida em que reconheça existir desconformidade com o artigo 110.º do TFUE, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da CRP, o qual impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à CRP e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé:
(a) A Requerida tem razão, numa das vertentes em que a questão se decompõe, a da submissão da AT à lei, que lhe cabe aplicar, não lhe sendo lícito afastar a aplicação com base em avaliações de conformidade constitucional (exceto se anteriormente declarada com força obrigatória geral) ou de conformidade com o direito da UE.
(b) Porém, a questão que, no presente processo, está em juízo não é essa, mas a de saber se o ato de liquidação de ISV praticado está viciado de ilegalidade por aplicar o artigo 11.º, com a redação que tinha à data do facto tributário da introdução no consumo, a qual era desconforme com o artigo 110.º do TFUE; e isto sem que haja lugar a analisar se a AT agiu como lho impõe o n.º 2 do artigo 266.º da CRP. Ou seja, não está em equação, quando se trata da interpretação e aplicação do direito que não seja feita pela própria Administração – mas por um órgão judicial, ou um tribunal arbitral em matéria tributária – a conformidade ou desconformidade constitucional de tais interpretação e aplicação com o disposto no 2 do artigo 266.º da CRP.
Quanto à violação dos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, porque a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de redução não prevista na tabela D do artigo 11.º - vigente à data – acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstanciando uma situação de desigualdade fiscal:
Focando a única dimensão de constitucionalidade que a Requerida em substância formula, que é a do princípio da igualdade, mostra-se pertinente notar que este princípio tem que ter campo de aplicação a situações que sejam comparáveis.
Ora, a única dimensão de igualdade tributária que se identifica é a atrás amplamente dissecada, que decorre da discriminação negativa dos veículos usados introduzidos no consumo provenientes de outro Estado-membro da UE por comparação com veículos usados comparáveis transacionados no mercado interno, cujo valor de mercado incorpora a desvalorização do uso, globalmente, naturalmente não deixando de refletir, como se fosse sempre um ‘veículo novo’, uma parte do valor teoricamente equivalente à componente ambiental. Assim, a aplicação da redução à componente ambiental, não só não é fator de desigualdade, como é mesmo necessária para se alcançar a não discriminação através da fiscalidade de veículos em situações comparáveis, para os parâmetros relevantes.
Sobre a violação do n.º 4 do artigo 104.º da CRP, porquanto o ISV é um imposto sobre o consumo não harmonizado e a tributação do consumo visa adaptar a estrutura deste à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo:
Não se entende em que medida possa estar em equação, na aplicação ou desaplicação da redução do ISV por anos de uso na componente ambiental, a norma programática constitucional da maior oneração tributária dos consumos de luxo. A Requerida não fundamenta em que possa consistir tal violação, mas sempre se dirá que, se pretende referir-se à hipotética maior externalidade ambiental de veículos mais caros, então o argumento não colhe, porquanto a questão é a de se aplicar ou não a redução na componente ambiental, sem mais, isto é, sem atender a que sejam veículos de luxo ou utilitários baratos, uma vez que a componente ambiental está presente em todos, naturalmente em medidas diversas.
Finalmente, quanto à alegada violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, da CRP), porquanto a declaração de ilegalidade da liquidação, por desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE – se vir a ser essa a decisão deste Tribunal Arbitral – conduz à violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que a Administração se encontra coartada no direito de reação, concretamente contra decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da EU.
Esta linha de argumentação não pode ser tida por pertinente no contexto e para quaisquer efeitos do presente processo. Trata-se de argumentação que:
(a) por um lado, tem como objeto a justeza ou o acerto de soluções na definição do regime de reações contra as decisões da arbitragem tributária, como plasmado no RJAT, o que constitui temática que não pode influir, de que modo seja, na apreciação da legalidade do concreto ato de liquidação de ISV que foi submetido a este Tribunal Arbitral; o juízo sobre a “violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva” incide, não sobre uma específica interpretação e aplicação da lei tributária, mas sobre um regime legal e as suas concretas soluções;
(b) por outro, suscita questões, igualmente extravasantes da competência deste Tribunal Arbitral, como a relativa à conjugação do n.º 1 do artigo 25.º do RJAT com a Lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, em particular a alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º, que admite recurso para o referido Tribunal de decisões – naturalmente, incluindo as dos tribunais arbitrais em matéria tributária – em tipologias de situações que se entende acrescerem às constantes do referido n.º 1 do artigo 25.º do RJAT. Como, de resto, ocorreu no Proc. n.º 173/2020, interposto pela AT, no qual foi extraído o Acórdão n.º 711/2020.
Sobre o pedido de reenvio prejudicial:
A Requerida entende que deve a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação impugnada, ser suscitada junto do TJUE, adiantando que assim foi decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20.
Com todo o respeito que merece a decisão de reenvio prejudicial adotada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 711/2020, não acompanhamos o entendimento de que esteja em causa questão de interpretação do TFUE que careça de clarificação pelo TJUE.
Trata-se de questão de interpretação do TFUE, como é bem de ver, e por isso este Tribunal Arbitral formulou e apresentou acima a sua própria interpretação, considerando os artigos 110.º e 191.º, para aferir da conformidade ou desconformidade do concreto regime tributário interno que foi aplicado no ato de liquidação em juízo com o direito da UE. Seria petição de princípio entender, no contexto da apreciação do pedido de reenvio prejudicial, que inexiste questão de interpretação do TFUE, após as considerações que sobre essa interpretação este mesmo Tribunal Arbitral entendeu fazer.
A ponderação é outra. Entende este Tribunal Arbitral – salvo melhor juízo – que não se mostra que haja indeterminação do sentido do TFUE, na concreta matéria em causa, que é a da conformidade ou desconformidade do artigo 11.º do CISV, na redação sem aplicação de redução pelos anos de uso na parte da componente ambiental, após e à luz da prolação do Acórdão do TJUE no Proc. C-200/15.
Considera este Tribunal Arbitral que não deve ter-se por premissa razoável a de que o TJUE, ao proferir o referido acórdão, se tenha limitado a uma interpretação do artigo 110.º, como preceito sem enquadramento sistemático no restante normativo; que tenha, dizendo de outro modo, descurado o elemento sistemático. Na premissa que se tem por razoável – a de que o TJUE indagou, considerou e avaliou os demais preceitos que pudessem ser pertinentes – então o artigo 191.º não poderia ter deixado de ser referido e analisado, caso o TJUE o tivesse considerado relevante para a apreciação da questão que lhe foi submetida. O silêncio quanto ao artigo 191.º vale por implícita tomada de posição, no sentido de ser este não aplicável para se interpretar e aplicar o artigo 110.º.
Assim, a interpretação do TJUE é para este Tribunal Arbitral unívoca, também quanto à não relevância para a temática em causa, do artigo 191.º: o artigo 110.º tem os efeitos que ficaram explanados no Acórdão, não havendo que fazer aplicação do disposto no artigo 191.º, nem se mostrando necessário que o TJUE seja, uma vez mais, solicitado a pronunciar-se sobre a questão.
N alínea b) do n.º 3 do artigo 19.º e no artigo 267.º do TFUE prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, obrigatório quando questão sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada em processo pendente perante órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
Quando a lei comunitária seja clara, ou haja precedente na jurisprudência da UE, não há necessidade da consulta, através do reenvio: Acórdão do TJUE no caso CILFIT (Proc. C-283/81).
E isto ainda que a questão em apreço não seja estritamente idêntica, mas a correta aplicação do direito da UE resulte tão óbvia que não deixe campo para dúvida razoável no que toca à forma de a resolver (doutrina do ato claro): “Compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça» (acórdãos do TJUE de 10 de julho de 2018, no Proc. C-25/17, e de 2 de outubro de 2018, no Proc. C-207/16).
Entende este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de direito comunitário necessária para apreciação da legalidade das liquidações impugnadas é clara o bastante – nos termos expressos no referido Acórdão no Proc. C-200/15 – para haver desnecessidade de efetuar o reenvio sugerido.
Em sentido convergente na conclusão, ao qual complementarmente se adere, assente em diversa linha de argumentação, a decisão arbitral no Processo n.º 314/2020-T:
“Ora, no caso dos autos, está em causa a aplicação de uma disposição do TFUE – o art. 110.º - que já foi interpretada pelo Tribunal de Justiça por diversas vezes […]. E, em todas as vezes que foi chamado a interpretar essa disposição, o Tribunal afirmou que “um sistema de tributação de um Estado Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios”.
Perante isto, há que concluir que a disposição cuja aplicação está em causa – o art. 110.º do TFUE – já foi interpretado diversas e bastantes vezes pelo Tribunal de Justiça, de modo que não subsiste qualquer dúvida acerca do seu alcance e significado.
O que cabe ao Tribunal Arbitral fazer é apenas averiguar a compatibilidade da medida nacional com essa disposição, com o sentido que o TJUE já por inúmeras vezes lhe fixou, pelo que se conclui que o Tribunal não está obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça”.
Quanto aos juros indemnizatórios
Como atrás se deixou mais desenvolvidamente vertido, a Requerente entende que acrescem, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e 61.º, n.º 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, juros indemnizatórios, desde a data do pagamento até efetiva restituição.
A este pedido a Requerida opõe, em síntese, que o direito a juros indemnizatórios pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços, e que, no caso concreto, não se verifica a existência de erro que possa ser imputável à AT, pois que a liquidação decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, e que, estando a AT vinculada, na sua atuação, ao princípio da legalidade, agiu em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso. Aduz, em favor deste entendimento, as decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T, n.º 34/2020-T e n.º 52/2020-T.
Este Tribunal Arbitral discorda das Partes quanto ao direito aplicável à questão de decidir se são ou não são devidos juros indemnizatórios. Não é o n.º 1 do artigo 43.º da LGT a disposição que há que aplicar, mas, após a inovadora modificação introduzida na LGT pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro, a alínea d) do n.º 3 daquele preceito.
Como se verá de imediato, ficou superada, para as situações em que a AT faz liquidações de imposto que vêm a ser anuladas por inconstitucionalidade (ou por desconformidade com o direito da UE), da lei que aplicou, a longa e viva discussão sobre o conceito e extensão do “erro imputável aos serviços”.
Atente-se no artigo 1.º da referida Lei n.º 9/2019: “A presente lei altera a Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, clarificando, com natureza retroativa, o dever das entidades públicas de pagar juros indemnizatórios pelo pagamento de prestações tributárias que sejam indevidos por a sua cobrança se ter fundado em normas declaradas judicialmente como inconstitucionais ou ilegais”.
E concretiza essa “clarificação” através do aditamento ao n.º 3 do artigo 43.º da LGT de nova alínea. Assim, o direito aplicável ao concreto pedido de juros indemnizatórios é o que tem fonte no seguinte preceito:
3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
[…]
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
Trata-se de matéria de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, pelo que este Tribunal Arbitral não está sujeito às alegações das Partes [n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT].
IV. Decisão
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
(a) julgar procedente o alegado vício de ilegalidade do ato de liquidação de ISV objeto do processo;
(b) julgar procedente o pedido de pedido de contagem e pagamento de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento do ISV até à data do processamento da restituição;
(c) condenar a Requerida nas custas.
V. Valor do Processo
O Requerente referiu como valor do processo EUR 9.994,32 (nove mil novecentos e noventa e quatro euros e trinta e dois cêntimos).
Este valor não foi questionado pela Requerida e mostra-se determinado de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário e no n.º 3 do artigo 297.º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Assim, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se o valor do processo em EUR 9.994,32 (nove mil novecentos e noventa e quatro euros e trinta e dois cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do previsto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e no artigo 2.º, conjugados com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, aplicando-se a Tabela I a este anexa, fixa-se o valor global das custas em EUR 918 (novecentos e dezoito euros).
VII. Notificação e comunicação ao Ministério Público
Notifiquem-se as Partes.
Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 17.º do RJAT.
Lisboa, 11 de novembro de 2021.
O Árbitro
(Luís M. S. Oliveira)