DECISÃO ARBITRAL
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 186/2014– T
Tema: IUC – incidência subjectiva
I RELATÓRIO
“A”, S.A., Sociedade Aberta, com sede na Rua …, n.º …, no Porto (…-…), matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o número único de matricula e pessoa colectiva …, com o capital social de € …(… de euros), inserida na área da competência geográfica do Serviço de Finanças do Porto – …, doravante designado por “Requerente”, nos termos do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 2.º, na alínea a) do número 3 do artigo 5.º e na alínea a) do número 1 do artigo 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, veio apresentar pedido de pronúncia arbitral visando a declaração de ilegalidade de liquidações de IUC (Imposto Único de Circulação) e de juros compensatórios “(…)sobre as viaturas registadas em nome da Requerente, compreendendo os anos fiscais de 2009 a 2012 consubstanciados nos documentos de cobrança melhor detalhados nos quadros I e II que constituem o Documento n.º 1, no valor total de € 133.763,26 (€ 115.952,73 + 17.810,53) (…)”.
Fundamenta o seu pedido alegando, no essencial e em síntese:
a) A Requerente é a instituição de crédito, sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que encabeça o Grupo “A”, grupo financeiro, multi-especializado, centrado na actividade bancária, dotado de uma oferta completa de serviços e produtos financeiros para clientes empresariais, institucionais e particulares.
b) O objecto social do Requerente consiste na realização das operações descritas no número 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro[1], de entre as quais se destaca, no que ao caso concerne, as operações de crédito e de locação financeira;
b) No âmbito de soluções para aquisição de viaturas automóveis o Requerente tem à disposição dos seus clientes as modalidades de contrato de crédito com reserva de propriedade, contrato de locação financeira e contrato de leasing.
c) No exercício da sua actividade, o Requerente celebrou contratos de locação financeira tendo por objecto as viaturas identificadas no Documento n.º 1 em anexo.
d) Conforme é típico dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente assume a posição de locador e, nos termos e condições dos respectivos contratos, adquire as viaturas a terceiros fornecedores, entregando-os de imediato para uso e fruição dos locatários, os quais ficam obrigados ao pagamento da respectiva renda.
e) Assim, ao longo da vigência dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente é o proprietário das viaturas adquiridas, figurando como tal no registo automóvel, cobrando rendas aos locatários pela cedência (locação) dos bens.
f) No termo dos contratos de Leasing é concedida ao locatário a possibilidade de, mediante o pagamento de um montante adicional (valor residual) adquirir o bem ao locador.
g) Tratando-se de contrato de ALD, o locatário obriga-se a adquirir a propriedade dos veículos no termo do contrato.
h) Em Agosto de 2013 o Requerente foi notificado para audição prévia sobre as liquidações oficiosas de IUC sobre as viaturas sub judice, as quais se fundavam no facto de a Requerente se encontrar registada como proprietária das viaturas em apreço (conforme notificações que se anexam como Documento n.º 2).
i) Em sede de Direito de Audição, o Requerente manifestou a sua discordância com as projectadas liquidações de IUC em virtude de, à luz do disposto no artigo 3.º do Código do IUC, não ser o sujeito passivo do imposto.
j) Efectivamente, no que concerne às viaturas discriminadas no Quadro I do Documento n.º 1, as mesmas haviam sido alienadas em momento anterior ao da data de verificação do facto tributário, pelo que não era já o seu proprietário, não lhe sendo exigível o imposto único de circulação respeitante àquelas viaturas.
k) Relativamente às viaturas identificadas no Quadro II do Documento n.º 1, as mesmas, sendo propriedade do Requerente à data de verificação do facto tributário, encontravam-se cedidas aos respectivos locatários no âmbito dos contratos de locação financeira celebrados, tendo sido feita a comunicação dos dados dos locatários à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), nos termos prevista no artigo 19.º do Código do IUC, através do procedimento próprio previsto no Portal das Finanças.
l) Ainda relativamente às 24 viaturas destacadas a cinza no Quadro II, as mesmas, tendo sofrido liquidações referentes a anos distintos, encontravam-se, relativamente a determinadas liquidações, em situação de locação financeira, tendo o respectivo locatário sido comunicado no âmbito do procedimento mencionado no artigo anterior, e relativamente às restantes liquidações, não eram já propriedade do Requerente, em virtude de terem sido alienadas ao locatário antes da ocorrência do facto tributário.
m)Tais factos não foram, contudo, tidos em consideração pela AT, a qual manteve a decisão de liquidação oficiosa de IUC sobre as viaturas em apreço, notificadas ao Requerente através dos documentos de cobrança que se juntam como Documento n.º 3).
n) O Requerente procedeu ao pagamento das verbas de imposto liquidadas, conforme comprovativos que se juntam como Documento n.º 4.
o)Porém, o Requerente não se conforma com as referidas liquidações de IUC, porquanto, à luz do disposto nos artigos 3.º e 19.º do Código do IUC, não é o sujeito passivo da relação jurídica de imposto vertida em cada uma das liquidações de IUC acima discriminadas.
A autora não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
Em 11-4-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal ficou constituído em 5-5-2014 [artigo 11º-1/c), do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31-12]
Em 12-5-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou os processos administrativos, defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os atos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica.
Por despacho de 9-6-2014, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18º, do RJAT.
Ambas as partes prescindiram de apresentação de alegações finais, orais ou escritas.
Saneador/Pressupostos processuais
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
Tratando-se do mesmo tributo (IUC) e ponderada a identidade dos fundamentos de facto e de direito em todas as impugnações das liquidações, verificam-se os pressupostos previstos nos arts 104º, do CPPT e 3º, do RJAT, para a cumulação dos pedidos.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
II FUNDAMENTAÇÃO
Os factos provados[2]
É o seguinte o quadro factual essencial assente para enquadrar jurídica e legalmente as questões suscitadas:
a) A Requerente é uma instituição de crédito, sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que encabeça o Grupo “A”, grupo financeiro, multi-especializado, centrado na atividade bancária, dotado de uma oferta completa de serviços e produtos financeiros para clientes empresariais, institucionais e particulares.
b) O objeto social do Requerente consiste na realização das operações descritas no número 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro[3], de entre as quais se destaca, no que ao caso concerne, as operações de crédito e de locação financeira;
c) No âmbito de soluções para aquisição de viaturas automóveis o Requerente tem à disposição dos seus clientes as modalidades de contrato de crédito com reserva de propriedade, contrato de locação financeira e contrato de leasing.
d) No exercício da sua actividade, o Requerente celebrou contratos de locação financeira tendo por objecto as viaturas identificadas no Documento n.º 1 anexo à petição inicial;
e) Conforme é típico dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente assume a posição de locador e, nos termos e condições dos respectivos contratos, adquire as viaturas a terceiros fornecedores, entregando-os de imediato para uso e fruição dos locatários, os quais ficam obrigados ao pagamento da respectiva renda.
f) Assim, ao longo da vigência dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente é o proprietário das viaturas adquiridas, figurando como tal no registo automóvel, cobrando rendas aos locatários pela cedência (locação) dos bens.
g) No termo dos contratos de Leasing é concedida ao locatário a possibilidade de, mediante o pagamento de um montante adicional (valor residual) adquirir o bem ao locador.
h) Tratando-se de contrato de ALD, o locatário obriga-se a adquirir a propriedade dos veículos no termo do contrato.
i) Em Agosto de 2013 o Requerente foi notificado para audição prévia sobre as liquidações oficiosas de IUC sobre as viaturas sub judice, as quais se fundavam no facto de a Requerente se encontrar registada como proprietária das viaturas em apreço (conforme notificações que se anexam como Documento n.º 2 anexo à petição inicial).
j) Em sede de Direito de Audição, o Requerente manifestou a sua discordância com as projectadas liquidações de IUC em virtude de, à luz do disposto no artigo 3.º do Código do IUC, não ser o sujeito passivo do imposto.
k) As viaturas discriminadas no Quadro I do Documento n.º 1 anexo à petição inicial haviam sido alienadas não sendo já o Banco requerente seu proprietário.
l) Relativamente às viaturas identificadas no Quadro II do Documento n.º 1 junto com a petição inicial, as mesmas, sendo propriedade do Requerente à data de verificação do facto tributário, encontravam-se cedidas aos respetivos locatários no âmbito dos contratos de locação financeira celebrados, tendo sido feita a comunicação dos dados dos locatários à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), nos termos prevista no artigo 19.º do Código do IUC, através do procedimento próprio previsto no Portal das Finanças.
l) Ainda relativamente às 24 viaturas destacadas a cinza no Quadro II, as mesmas, tendo sofrido liquidações referentes a anos distintos, encontravam-se, relativamente a determinadas liquidações, em situação de locação financeira, tendo o respectivo locatário sido comunicado no âmbito do procedimento mencionado no artigo anterior, e relativamente às restantes liquidações, não eram já propriedade do Requerente, em virtude de terem sido alienadas ao locatário antes da ocorrência do facto tributário.
m)Tais factos não foram, contudo, tidos em consideração pela AT, a qual manteve a decisão de liquidação oficiosa de IUC sobre as viaturas em apreço, notificadas ao Requerente através dos documentos de cobrança que se juntam como Documento n.º 3 junto com a petição inicial.
n) O Requerente procedeu ao pagamento das verbas de imposto liquidadas, conforme comprovativos que se juntam como Documento n.º 4.
Motivação
Os factos mencionados estão documentalmente comprovados ou não foram especificamente impugnados.
Designadamente as datas de matrícula dos veículos mencionados estão documentadas nos processos administrativos juntos pela AT.
A requerida não impugnou os documentos, invocando, designadamente, a sua falsidade.
II FUNDAMENTAÇÃO (continuação)
O Direito
Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem questões centrais dirimentes saber:
A - Se, na data da ocorrência dos factos geradores do imposto [artigo 3º-1, do CIUC[4]] os proprietários dos veículos não forem os que constam do registo, serão apesar disso estes (os que constam do registo) que serão sempre considerados os sujeitos passivos do IUC, não sendo por consequência ilidível a presunção de titularidade revelada pelo registo OU, dito doutro modo, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção e
B – Se o proprietário do veículo à data do facto tributário (matrícula ou aniversário do veículo[5]) o tiver cedido no âmbito de um contrato de locação financeira será mesmo assim sujeito passivo de IUC.
Estas questões foram já, no essencial, abordadas em diversas decisões do CAAD, algumas delas já publicadas em www.caad.org.pt e outras em vias de publicação [Cfr., v. g., decisões proferidas nos processos nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 294/2013 e 154/2014].
Não se antolham razões para inverter o alterar o sentido essencial desta Jurisprudência.
Vejamos então:
Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):
“Artigo 3º
Incidência subjetiva
1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.
Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.
Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[6] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.
A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.
A nosso ver e ao contrário do que defende doutamente a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.
Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:
~ No âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;
~ Também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;
~ E, por último, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.
Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.
Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.
Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei ”(Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).
Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.
O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “(Cfr.Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).
“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. FRANCESCO FERRARA,Ensaio, pp. 134/135).
Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis” (loc. cit., p.128).
Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J.OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).
Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.
O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.
Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer ”(loc. cit., p. 188).
No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16).
E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo ”(loc. cit. p. 189/190).
Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).
Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).
Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.
No que respeita à “unidade do sistema jurídico” BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).
É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).
Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).
É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).
Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).
Descendo ao caso dos autos:
Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção [grifado nosso] dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.
Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário (ou locatário, em caso de locação financeira e ALD) e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.
O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.
Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.
Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[7].
Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.
Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.
Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.
Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.
Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente e os factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era a proprietária dos veículos (ou que, sendo-o, os tinha dado em locação financeira) a que respeitam as liquidações em apreço à data dos respetivos factos tributários, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil (ou ter celebrado e comunicado a existência e subsistência de contratos de locação financeira ou ALD).
As operações de transmissão de propriedade não foram impugnada e são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Nestas circunstâncias, as mencionadas e ora impugnadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituídas à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as respetivas importâncias assim indevidamente cobradas e retratadas nos mencionados e documentados atos de liquidação, conforme pedido.
III – DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral, julgar, totalmente procedentes os pedidos de anulação das liquidações de IUC sob impugnação e, em consequência, anula esses atos tributários e condena a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição à requerente dos respetivos valores pagos conforme pedido.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 133.763,26.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060 (três mil e sessenta euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de outubro de 2014
Os Árbitros,
José Poças Falcão
Alberto Amorim Pereira
Vogal
António Alberto Franco
Vogal
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.
[1] Com as alterações introduzidas por diplomas ulteriores.
[2] E não há factos essenciais não provados.
[3] Com as alterações introduzidas por diplomas ulteriores.
[4] Acrónimo de Código do Imposto Único de Circulação.
[5] CIUC - Artigo 4.º
Incidência temporal
1 - O imposto único de circulação é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita.
2 - O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, e ao ano civil, relativamente aos veículos das categorias F e G.
3 - O imposto é devido até ao cancelamento da matrícula ou registo em virtude de abate efetuado nos termos da lei. (Aditado pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro)
[6] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).
[7] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade”(Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).
E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.