Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 672/2020-T
Data da decisão: 2021-10-26  IRC  
Valor do pedido: € 441.713,63
Tema: IRC – Justo valor em ativos financeiros e perdas por imparidade em ativos financeiros disponíveis para venda – Aplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC.
Versão em PDF

 

 

Acordam os Árbitros Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente), Dr. Óscar Barros e Prof. Doutor Gustavo Gramaxo Rozeira (Árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O A..., S.A., Sucursal em Portugal, titular do número de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na ..., n.º..., ...-..., Lisboa, entidade que sucedeu, para todos os efeitos legais, ao B..., S.A., titular do número de identificação fiscal..., doravante o Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2014 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2014 ..., referentes ao ano de 2011, na qual foi apurado o montante a pagar de €441.713,63 (imposto no montante de €415.529,58 e juros compensatórios de €26.184,05), assim como da decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2014... que teve por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apreciou os referidos atos de liquidação, requerendo ainda a condenação no pagamentos de juros indemnizatório até ao integral reembolso do imposto indevidamente pago.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que a restrição à dedutibilidade das variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital que decorre do disposto no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, não é aplicável:
    1. Aos ajustamentos decorrentes da aplicação do método do justo valor em instrumentos financeiros de capital próprio (ações), com um preço formado em mercado regulamentado (isto é, ações cotadas em bolsa de valores mobiliários), e que não representavam mais do que 5% do respetivo capital social das entidades a que respeitavam; e,
    2. Às perdas por imparidade, constituídas por imposição da regulamentação do Banco de Portugal, para títulos e participações financeiras em virtude de, por um lado, não ser esse o objetivo daquele preceito e, por outro lado, pelo facto do n.º 2 do artigo 35.º e do artigo 37.º do Código do IRC instituírem um regime especial de dedutibilidade de gastos para as entidades do setor bancário.

 

  1. No dia 26-11-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT (Autoridade Tributária e Aduaneira).

 

  1. Nem o Requerente nem a AT procederam à nomeação de árbitros, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 03-05-2021.

 

  1. No dia 07-06-2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua reposta defendendo-se por impugnação.

 

  1. No dia 09-09-2021, teve lugar, na sede do CAAD, em Lisboa, uma reunião do tribunal arbitral constituída nos termos do RJAT, para inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente, C... e D... .

 

  1. Iniciados os trabalhos, o representante do Requerente declarou prescindir da testemunha C... por si arrolada, tendo sido inquirida a testemunha D... .

 

  1.  Após inquirição da testemunha arrolada pelo Requerente, o Tribunal notificou o Requerente e a Requerida para apresentarem as suas alegações escritas no prazo de 10 dias, sendo que o prazo da Requerida contar-se-ia a partir da notificação da junção das alegações do Requerente ou do termo do prazo a este concedido.

 

  1. Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.

 

  1. O tribunal arbitral, em cumprimento do disposto no artigo 18.º n.º 2 do RJAT, designou até ao dia 03-11-2021 para efeito da prolação da decisão arbitral.

 

  1. O tribunal arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º n.º 1 e alínea a), 5.º e 6.º n.º 2 alínea a), do RJAT.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir.

 

II – DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. O Requerente encontra-se, e encontrava-se no ano de 2011, registado para o exercício da atividade bancária, estando sujeito ao regime geral de tributação em sede de IRC.
  2. O B... dedica-se ao exercício da atividade bancária e está sujeito à supervisão do Banco de Portugal (cfr. informação legal disponível em
  3.  https://www...
  4. Conforme decorre dos artigos 2.º, alínea w), e 3.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, o qual aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), com a redação à data em vigor, o B... é uma instituição de crédito.
  5. Em 31-12-2011 o Requerente detinha participações sociais em entidades cotadas em bolsa, que se encontravam classificadas como “Ativos financeiros destinados à negociação” (AFDN), cujo valor de reavaliação é ajustado diariamente em função da respetiva cotação.
  6. Os referidos instrumentos de capital próprio, detidos pelo Requerente, não se traduziam, direta ou indiretamente, numa participação superior a 5% do respetivo capital social e tinha, à data dos factos, o preço formado em mercado regulamentado.
  7. Em 31-12-2011, e tendo por referência o respetivo valor de aquisição, a cotação bolsista de 5 dessas empresas apresentou uma variação positiva, enquanto 16 empresas apresentaram uma variação negativa, a saber:

 

 

 

 

 

Título

Cotação

G...

∆ negativa

H...

∆ negativa

I...

∆ negativa

J...

∆ negativa

K...

∆ negativa

L...

∆ negativa

M...

∆ positiva

N...

∆ positiva

O...

∆ positiva

P... SGPS

∆ negativa

Q...

∆ negativa

R...

∆ negativa

S...

∆ positiva

T...

∆ negativa

U...

∆ negativa

V...

∆ negativa

W...

∆ negativa

X...

∆ negativa

Y...SGPS

∆ negativa

Z...

∆ negativa

AA...

∆ positiva

 

 

  1. Na determinação do lucro tributável, relativo ao exercício fiscal de 2011, por força da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, o Requerente reconheceu fiscalmente os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor a estes AFDN.
  2. Para além do exposto, o Requerente detinha uma participação financeira de 100% no capital social da entidade E..., S.A. (E...).
  3. O Requerente procedeu, no exercício de 2011, ao registo de uma perda por imparidade para esta participação, no montante de € 1.462.542,80.
  4. Na determinação do lucro tributável, o Requerente considerou dedutível a totalidade da imparidade constituída, por força da aplicação conjugada do disposto no Aviso n.º 3/95 do Banco de Portugal e do disposto no n.º 2 do artigo 35.º e 37.º do Código do IRC.
  5. Nas (duas) situações acima referidas, o Requerente não aplicou a limitação prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC por considerar, além do mais, que a mesma não teria aplicação em “ambientes regulatórios” (caraterizados pelas obrigações contabilísticas especificamente aplicáveis às instituições de crédito), que não são condicionáveis por qualquer ato de vontade dos contribuintes (cfr. depoimento da testemunha e p.i.).
  6. Com referência ao exercício de 2011, o Requerente procedeu à entrega, dentro do prazo legal, da declaração de rendimentos Modelo 22, na qual apurou um lucro tributável no montante de € 3.884.386,96.
  7. O Requerente foi objeto de uma ação inspetiva externa, de âmbito geral, ao ano de 2011, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2013... .
  8. Através do ofício n.º..., de 02-12-2013, o Requerente foi notificado do projeto de relatório de inspeção tributária e para, querendo, exercer direito de audição.
  9. No projeto de relatório de inspeção, propunham-se as seguintes correções:
    1. Correção à matéria coletável de IRC, no montante total de € 1.570.406,65, conforme seguidamente de detalha:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

  1. Proposta de correção ao resultado da liquidação, em sede de IRC, em face das correções anteriormente mencionadas:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

  1. O Requerente exerceu direito de audição, e no que respeita às propostas de correção antes resumidamente descritas, o Requerente  apenas se pronunciou sobre as correções efetuadas pela AT respeitantes a perdas relativas a partes de capital, a saber:
    1. Variações de justo valor em ativos financeiros ao justo valor através de resultados, no montante de € 782.825,07 (ponto III.1.1.1.1. do projeto de relatório de inspeção tributária);
    2. Perdas por imparidade em ativos financeiros disponíveis para venda, no montante de € 731.271,40 (ponto III.1.1.1.2. do projeto de relatório de inspeção tributária).
  2. Em 31-12-2013, o Requerente foi notificado do relatório de inspeção tributária, tendo a AT mantido, na íntegra, as correções propostas aquando do projeto de relatório de inspeção tributária.
  3. Do relatório de inspeção tributária consta, além do mais, o seguinte:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

 

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

 

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

 

  1. Na sequência das correções efetuadas em sede de inspeção tributária o Requerente foi notificado da demonstração de liquidação adicional de IRC de 2011 e juros compensatórios, com o n.º 2014... e da demonstração de liquidação de acerto de contas n.º 2014..., das quais resultou imposto a pagar no montante global de €441.713,63 (imposto no montante de €415.529,58 e juros compensatórios de €26.184,05).
  2. Em 02-07-2014, o Requerente apresentou reclamação graciosa tendo por objeto os referidos atos de liquidação, à qual foi atribuído o n.º ...2014... .
  3. Através do ofício n.º ..., de 13-08-2014, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa.
  4. O Requerente não exerceu o seu direito de audição de participação.
  5. Através do ofício n.º..., de 04-09-2014, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, no âmbito da qual a AT manteve as correções relativas às variações de justo valor em ativos financeiros ao justo valor através de resultados e relativas às perdas por imparidade em ativos financeiros detidos para venda.
  6. Em 08-10-2014, o Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao qual foi atribuído o n.º ...2014... .
  7. Este recurso hierárquico veio a ser indeferido em 11-08-2020, por despacho da Diretora de Serviços, ao abrigo de subdelegação de competências.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior n.º 1 do artigo 511.º do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos Autos, consideram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

B. DO DIREITO

 

B.1. A primeira questão a dirimir nos presentes autos é a de saber se as perdas resultantes da mensuração ao justo valor dos instrumentos de capital previstos na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, concorrem para a determinação do lucro tributável em 50%, nos termos do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, como defende a Autoridade Tributária, ou se concorrem em 100%, tal como sustenta o Requerente.

 

Como resulta dos factos dados como provados, o Requerente é uma instituição de crédito que exerce a sua atividade em Portugal, encontrando-se, portanto, sujeita à supervisão do Banco de Portugal.

No exercício de 2011, o Requerente detinha uma carteira de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado, correspondentes a uma participação no capital dessas entidades inferior a 5% do respetivo capital social, as quais se encontravam classificadas, para efeitos contabilísticos, como “AFDN”.

O Requerente considera que, por efeito da exceção contida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, os ajustamentos decorrentes do justo valor concorrem na íntegra para a determinação do lucro tributável desde que se encontrem cumpridos os requisitos previstos nessa norma, portanto, quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados e, tratando-se de instrumentos de capital próprio, tenham o  preço formado em mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social. Encontrando-se esses ajustamentos excluídos, assim, da limitação constante do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

Por sua vez, constitui entendimento da AT, de que as variações de justo valor, verificadas nas situações cobertas pela alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, apenas relevam em metade do seu valor por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, que, sendo uma norma de caráter geral, se aplica a todas as variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

Em abono desse entendimento, refere a AT na sua Resposta que “o alargamento do âmbito do referido normativo do Código do IRC com a inclusão de “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” teve em vista abarcar todas as perdas que não apenas as resultantes de transmissão onerosa e, ainda, travar a erosão da base tributável com a utilização de instrumentos de capital próprio associados às partes sociais, como sejam as prestações suplementares.”

Em particular, a questão dos presentes autos prende-se em aferir qual o tratamento fiscal a dar aos ajustamentos (gastos) decorrentes da aplicação do modelo de justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados. Parece não haver divergência entre as partes quanto à sujeição das perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio ora em causa nos autos, ao sistema do justo valor previsto na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC (redação à data).

Deve começar por dizer-se que a questão não tem sido objeto de entendimento uniforme quer na jurisprudência dos tribunais tributários de instância, quer na jurisprudência do CAAD, tendo inclusive sido objeto de apreciação em inúmeros processos arbitrais, o que conduziu à consolidação de uma corrente maioritária no sentido da inaplicabilidade do regime do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC aos gastos provenientes de variações de ativos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor. No sentido da inaplicabilidade do n.º 3 do artigo 45.º do Código de IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor pronunciaram-se, entre outras, as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 108/2013-T, 30/2015-T, 393/2016-T, 155/2017-T e 536/2019-T.

A questão surge também amplamente tratada pelos acórdãos do STA de 17 de fevereiro de 2016 (Processo n.º 01401/14), de 6 de junho de 2018 (Processo n.º 0582/17), cuja doutrina foi mais recentemente reafirmada pelo acórdão do STA de 16 de dezembro de 2020 (Processo n.º 0819/17), segundo o qual:

 “I – A não aplicação da norma do artigo 45º/3 do CIRC aos gastos, e concretamente aos "Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros", com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro.

II – Segundo esse modo de ver, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda.

III – Tal visão é conforme ao disposto na al. a) do nº9 do artigo 18º do CIRC segundo o qual “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social.”

IV – Perante a literalidade e os elementos sistemático e teleológico desse preceito, estão verificados os pressupostos legais nele elencados, porquanto a variação patrimonial negativa decorrente da aplicação do método de mensuração do justo valor aos instrumentos financeiros detidos pela impugnante concorre para a formação do lucro tributável.”, posição que não se vê agora motivo para dissentir, nos moldes infra explicitados.

 

 Assim:

 

1.1. Da incorreta interpretação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC

 

Na interpretação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC deverá atender-se, desde logo, conforme impõe o artigo 9.º do Código Civil, ex vi n.º 1 do artigo 11.º da LGT, à letra da lei, assim como às circunstâncias em que a mesma foi elaborada, isto é, aos elementos literal e histórico. Vejamos:

 

OS ELEMENTOS LITERAL E HISTÓRICO

 

Em 2002, com a entrada em vigor da Lei n.º 109-B/2001, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2002), passou a excluir-se da tributação metade das mais-valias realizadas com a alienação onerosa de partes de capital, sendo que, a essa data, o legislador não consagrou uma norma simétrica que evitasse o uso da realização de menos-valias com a alienação onerosa de partes de capital, como forma de diminuir o lucro tributável e o imposto a pagar, uma vez que a diferença negativa das mais-valias e das menos-valias era dedutível para efeitos fiscais pela totalidade do seu valor. Assim, o saldo das mais-valias e das menos-valias obtidas com a alienação onerosa de partes de capital, quando positivo, era sujeito a tributação em metade do seu valor e, quando negativo, era dedutível na sua totalidade.

Entretanto, o legislador através da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003) introduziu o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, correspondendo então ao n.º 3 do artigo 42.º, que continha a seguinte redação: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital,

concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor” para, no que respeita à tributação das mais-valias e das menos-valias, a tornar simétrica e, por isso, mais justa e equitativa.

Assim, com a alteração introduzida, os sujeitos passivos de IRC que procedessem à transmissão onerosa de partes de capital, em determinadas condições, e que fizessem o reinvestimento dos valores de realização, seriam tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias geradas em cada ano. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado seria considerado dedutível em apenas metade, para efeitos de cálculo do lucro tributável.

O Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (pág. 53), o que está em concordância  com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável” (pág. 34)

Entretanto, nova alteração ao artigo 42.º (que foi depois renumerado como artigo 45.º) é introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2006), passando o seu n.º 3 a dispor do seguinte modo: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

Com aquela alteração legislativa visou-se explicitar que se encontram abrangidas as transmissões de “outras componentes de capital próprio” – as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso da remição e amortização com redução de capital, já previstas anteriormente para o capital e agora alargadas a outras componentes do capital próprio.

Assim, continuou a aplicar-se à diferença negativa entre as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que houvesse "realização".

Em bom rigor, uma análise atenta e rigorosa do elemento literal permite apreciar o sentido próprio e distinto dos conceitos ali em causa.

A análise do texto normativo evidencia que o legislador pretendeu, nele incluir, três situações distintas, a saber:

  1. “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;
  2. “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;
  3. “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

Para melhor compreender o alcance desta norma, impõe-se analisar os artigos 23.º e 24.º do Código do IRC, atentando na evolução terminológica introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009.

Com efeito, antes da entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 159/2009, dispunha o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC que “Consideram-se custos e perdas os que comprovadamente forem dispensáveis para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes (…)”.

Em consonância com essa terminologia, o artigo 24.º do Código do IRC, referia que “Nas mesmas condições referidas para os custos e perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício, excepto (…)”.

Verifica-se, deste modo, que, aquando da consagração da redação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC vigente em 2011, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

 

 

  1. Custos;
  2. Perdas;
  3. Variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício.

A previsão do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC (entretanto renumerado para n.º 3 do artigo 45.º com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009), dever-se-á considerar, assim, reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redações anteriores a este Decreto-Lei.

Deste modo, da previsão daquela norma [artigo 45.º, n.º 3] dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos a partes sociais, pois a mesma não os contempla, como se pode constatar da letra da norma : "3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

A alteração normativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009 não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como "gastos", à luz do Código do IRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

E nesta mesma linha pronunciou-se o acórdão proferido no processo arbitral nº 94/2019-T do CAAD, referindo que “A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no "Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22" (1), a propósito do campo 737, refere que "Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao "mecanismo" das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)". Não surge a invocação da expressão "gastos". E atenda-se que o artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC não se refere às importâncias em causa como "perdas", mas como "gastos", pelo que será incorreta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, pretendesse incluir, no âmbito do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, as situações referidas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, teria tido o cuidado de incluir expressamente a terminologia "gastos", i.e., teria introduzido uma alínea específica, contendo "Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros", não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC.(sublinhado e destacado nosso).

 

O ELEMENTO SISTEMÁTICO

 

Importa ainda interpretar o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC tendo em conta a unidade do sistema jurídico. Neste contexto, a limitação aí prevista não se aplica aos gastos por justo valor contemplados na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, na medida em que esta constitui uma norma excecional–particular, que não é nem pode considerar-se ab initio derrogada pelo artigo 45.º, n.º 3, norma excecional-comum pré-existente àquela.

Com efeito, o artigo 23.º do Código do IRC prevê a dedutibilidade, para efeitos fiscais, da generalidade dos gastos contabilísticos, desde que observados determinados critérios formais e substanciais, i.e., que sejam comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, determinando a alínea i) do n.º 1 deste preceito a dedutibilidade fiscal dos gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros.

Assim, o artigo 23.º do Código do IRC afigura-se uma norma geral, porquanto aplicável à generalidade das situações em que se apurem gastos.

Pelo contrário, o corpo do n.º 9 do artigo 18.º consagra uma exceção comum à dedutibilidade dos referidos gastos e a alínea a) do mesmo número estabelece, por sua vez, uma exceção particular à exceção comum, voltando a repor a regra de dedutibilidade quanto aos instrumentos de capital próprio mensurados ao justo valor através de resultados (observados os requisitos ali considerados, não estando em causa na referida alínea todos e quaisquer instrumentos financeiros).

Por último, o n.º 3 do artigo 45.º, do Código do IRC limita, em contradição com a regra geral prevista no artigo 23.º do mesmo diploma legal, a dedutibilidade de certos gastos fiscais, quais sejam, as perdas geradas com a transmissão de todas e quaisquer partes de capital.

A aludida norma consubstancia, pois, uma norma excecional-comum e por isso, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que não derroga a norma excecional-particular introduzida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC. Com efeito, caso o legislador pretendesse que os ajustamentos pelo justo valor, se negativos, fossem apenas considerados em metade do seu valor, tal pretensão teria de constar de forma expressa na letra da lei. 

Em suma, interpretando o n.º 3 do artigo 45.º, do Código do IRC no quadro do sistema jurídico em que este se insere, conclui-se que o mesmo não pode aplicar-se às reduções de justo valor em apreço.

 

O ELEMENTO TELEOLÓGICO

 

Importa, ainda, tomar em consideração a razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao introduzi-la no normativo (cf. n.º 1 do artigo 11.º da LGT e artigo 9.º do Código Civil).

O legislador através da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003) introduziu o artigo 45º , n.º 3 do Código do IRC (anterior artigo 42.º, n.º 3) com a seguinte redação: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor” passando, a partir da entrada em vigor desta  norma, a tributação em sede IRC das mais-valias e das menos-valias a ter um regime mais simétrico.

Com efeito, os sujeitos passivos de IRC que apurassem um saldo positivo das mais-valias e menos-valias decorrentes da transmissão onerosa de partes de capital, e que fizessem o reinvestimento dos valores de realização, seriam tributados sobre metade do valor desse saldo positivo. Já no caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado seria considerado dedutível em metade, para efeitos de cálculo do lucro tributável.

O Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar  o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (pág. 53), o que se mostra em consonância com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável” (pág. 34).

Posteriormente, a Lei do Orçamento do Estado para 2006, alterou a redação desse artigo 42.º (que foi depois renumerado como artigo 45.º como já se disse), passando o seu n.º 3 a dispor do seguinte modo: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

Deste modo, o legislador alargou quer a limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias realizadas mediante transmissões onerosas – passando a considerar, para esse efeito, não apenas as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, como também as que resultem da transmissão onerosa de “outras componentes do capital próprio” –, quer as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remição e amortização com redução de capital, já previstas anteriormente para o capital e agora alargadas a outras componentes do capital próprio.

O Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do 2006 continuou a justificar a alteração legislativa no quadro das medidas tendentes ao “combate à fraude e evasão fiscais e outras medidas direccionadas à consolidação orçamental” (pág. 31).

Sobre a razão de ser do disposto no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, em conjugação com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, vejam-se ainda os Acórdãos do STA, de 17 de fevereiro de 2016, no recurso n.º 01401/14, e de 6 de junho de 2018, no recurso n.º 582/17.

Como se refere neste último, a norma terá visado “de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.

Posto isto, resta agora verificar em que medida a mensuração dos instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados ao justo valor pode ser compatibilizada com a limitação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

Também aqui acompanhamos, por concordância com os respetivos fundamentos, o acórdão do STA de 6 de junho de 2018, no recurso n.º 582/17, que menciona que “O conceito de Justo Valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística – SNC, Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho), quer internacionais (NIC), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na "quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes".

 [...]

 Portanto, a consideração do Justo Valor, no que aqui nos interessa (a introdução do modelo do Justo Valor no âmbito do IRC quando estejam em causa instrumentos financeiros, operou-se pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do CIRC se encontra diretamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos -realização das mais ou menos valias- passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de ações de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.

Estas "mais valias ou menos valias" assim determinadas pelo Justo Valor são meramente potenciais ou provisórias (...) porque não há uma efetiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do CSC.

 Não há, assim, qualquer dúvida que o Justo Valor negativo, (...) não lhe ...subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos ativos transacionados em mercado organizado, onde a cotação do ativo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte... A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo...cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 11445. [...]

 Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação – ao Justo Valor – do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos ativos –a posição financeira- acaba por ser "estranho" e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo." – sublinhado e destacado nosso.

Nas situações abrangidas pela alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, como, por exemplo, as ações com as características do caso em apreço, passamos a ter uma relevância tributária continuada – verificou-se uma aproximação da regra fiscal à regra contabilística. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar diretamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do Código do IRC) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º do Código do IRC).

 Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um ato de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objetivamente fixada. Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais "desejáveis" e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

 

Atendendo a todas estas razões que presidiram à edificação das normas fiscais em presença, entende-se, em conformidade, e na linha do julgado no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, que a diferença negativa releva na totalidade para a formação do lucro tributável, e não apenas em metade do seu valor, pelo que se mostra ser ilegal a correção efetuada em sede de IRC pela AT. 

 

A RELEVÂNCIA DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 85/2010

 

Por último, resta considerar que não tem qualquer relevo para o caso o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, que vem invocado pela Requerida. O Acórdão em apreço limitou-se a julgar não inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 45.º do Código de IRC no confronto com os princípios da proibição da retroatividade da lei fiscal, da proteção da confiança e da tributação segundo o rendimento real. No caso vertente, não vem suscitada, porém, qualquer questão de constitucionalidade e tudo se reconduz à interpretação da norma no plano do direito infraconstitucional.

De facto, o acórdão n.º 85/2010, de 16 de abril, é habitualmente mencionado neste contexto, tendo sido reiterado posteriormente pelo acórdão n.º 753/2014, de 12 de novembro. Porém, interessa notar que estes acórdãos apreciam apenas a primeira parte do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, e não a segunda parte, onde constam as perdas aqui em causa. Sendo que a motivação subjacente à admissão, por parte do Tribunal Constitucional, da redução a 50% das menos-valias realizadas se estriba no controlo da evasão fiscal, fator que não releva no caso concreto dos ajustamentos de justo valor em instrumentos financeiros cotados com percentagem de participação abaixo de 5%, em consonância com o que acima já concluímos.

Acresce referir que aquele Tribunal não se pronuncia sobre a melhor interpretação das normas no plano infraconstitucional, nem para a mesma aduz critérios hermenêuticos preferenciais. Limita-se a um estrito controlo negativo que visa aferir a desconformidade ou não desconformidade ao parâmetro constitucional de uma determinada interpretação de uma norma que lhe é dada.

 

Deste modo, e face a todo o exposto, deverá proceder nesta parte o pedido arbitral.

 

B.2. A segunda questão que vem colocada prende-se com a aplicação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC às perdas por imparidade relativas a AFDN, constituídas ao abrigo de normas obrigatórias emanadas pelo Banco de Portugal.

 

Conforme consta da matéria de facto, no âmbito da entidade por si desenvolvida, o  Requerente registou, no ano de 2010, na sua contabilidade, uma imparidade em participações financeiras, classificadas como ativos financeiros disponíveis para venda, relativas à participação no E... . Confirmou a Requerida AT que o Requerente procedeu ao reconhecimento da referida imparidade de acordo com as normas prudenciais para o seu setor de atividade, constantes do Aviso 3/95 e da Instrução do7/2005 do Banco de Portugal, que registou na conta NCA 768100 (conta PCSB 7940) e considerou para efeitos de apuramento do resultado tributável, atendendo ao regime próprio para o setor bancário, previsto no n.º 2 do artigo 35.º e artigo 37.º, ambos do Código do IRC, no montante de € 1.462.542,80.

Não obstante, a AT procedeu à correção positiva ao lucro tributável, por integrar as perdas por imparidade ora em causa na expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital” contida no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

Considera o Requerente que a perda por imparidade relativa a ativos financeiros detidos para venda é dedutível na sua totalidade, uma vez que, em seu entender, a limitação prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC não é aplicável à imparidade em apreço em virtude de, por um lado, não ser esse o objetivo daquele preceito e, por outro lado, pelo facto de as normas constantes do n.º 2 do artigo 35.º e do artigo 37.º do Código do IRC instituírem um regime especial de dedutibilidade de gastos para as instituições financeiras, que prevalece sobre o regime geral previsto no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

Por conseguinte, a segunda questão a dirimir nos presentes autos é a de saber se as perdas por imparidade relativas a ativos financeiros disponíveis para venda, deduzidos para efeitos fiscais nos termos do n.º 2 do artigo 35.º e 37.º do Código do IRC, concorrem para a determinação do lucro tributável em 50%, nos termos do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, como defende a Autoridade Tributária, ou se concorrem em 100%, tal como sustenta o Requerente. Assim:

 

DEPENDÊNCIA PARCIAL ENTRE A FISCALIDADE/CONTABILIDADE

 

A jurisprudência do STA tem afirmado, reiteradamente, o reconhecimento de que o Código do IRC acolheu o modelo de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade para efeitos do apuramento do lucro tributável, como se infere do Preâmbulo do Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho: “Considerando que a estrutura actual do Código do IRC se mostra, em geral, adequada ao acolhimento do novo referencial contabilístico, manteve -se a estreita ligação entre contabilidade e fiscalidade, que se afigura como um elemento essencial para a minimização dos custos de contexto que impendem sobre os agentes económicos, procedendo -se apenas às alterações necessárias à adaptação do Código do IRC às regras emergentes do novo enquadramento contabilístico, bem como à terminologia que dele decorre.

A manutenção do modelo de dependência parcial determina, desde logo, que, sempre que não estejam estabelecidas regras fiscais próprias, se verifica o acolhimento do tratamento contabilístico decorrente das novas normas.”, (neste sentido vide acórdão de 9 de outubro de 2019, no processo n.º 0574/18).

Este modelo tem consagração normativa no artigo 17.º do Código do IRC, o qual, em 2011 (data relevante para a presente decisão), dispunha que:

“Artigo 17.º

1 – O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

2 – (…)

3 – De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:

  1. Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
  2. Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.”

Decorre, inequivocamente, do regime supramencionado que o legislador aceita as classificações feitas de acordo com as normas da contabilidade a não ser nos casos em que o Código do IRC derrogue a aplicação do normativo contabilístico.

 

AUTONOMIA REGULAMENTAR DO BANCO DE PORTUGAL

 

O Decreto-Lei n.º 35/2005, de 17 de fevereiro, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2003/51/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Junho, que altera as Diretivas n.ºs 78/660/CEE, 83/349/CEE, 86/635/CEE e 91/674/CEE, do Conselho, relativas às contas anuais e às contas consolidadas de certas formas de sociedades, bancos e outras instituições financeiras e empresas de seguros, e visa assegurar a coerência entre a legislação contabilística comunitária e as Normas Internacionais de Contabilidade (NIC), em vigor desde 1 de Maio de 2002, veio legitimar, no seu artigo 13.º a regulação pelas entidade supervisoras das contas individuais das empresas sob supervisão, abrindo, por essa via, caminho a tomadas de posição por via regulamentar desses organismos.

Como se lê no seu preâmbulo “No que concerne às empresas sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e do Instituto de Seguros de Portugal, entende-se que, dada a sua especificidade, deve ser conferida às respectivas autoridades de supervisão a competência para estabelecerem o âmbito de aplicação das NIC, em consonância, aliás, com a filosofia que tem vindo a ser seguida em matéria de emissão das normas contabilísticas aplicáveis a estas empresas.”

E no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 35/2005:

“Artigo 13.º

1 – (…) é da competência:

  1. Do Banco de Portugal e do Instituto de Seguros de Portugal a definição do âmbito subjectivo de aplicação das Normas Internacionais de Contabilidade, bem como a definição das normas contabilísticas aplicáveis às contas consolidadas, relativamente às entidades sujeitas à respectiva supervisão;
  2. (…)

2 - O disposto no presente diploma não prejudica a competência do Banco de Portugal e do Instituto de Seguros de Portugal para definir:

  1. As normas contabilísticas aplicáveis às contas individuais das entidades sujeitas à respectiva supervisão;
  2. Os requisitos prudenciais aplicáveis às entidades sujeitas à respectiva supervisão.”

Posteriormente, a autonomia regulamentar do Banco de Portugal não foi posta em causa com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”), o qual previu no seu n.º 1 do artigo 5.º, o seguinte:

 “Artigo 5.º

1 – (…) é da competência:

a) Do Banco de Portugal e do Instituto de Seguros de Portugal a definição do âmbito subjectivo de aplicação das normas internacionais de contabilidade, bem como a definição das normas contabilísticas aplicáveis às contas consolidadas, relativamente às entidades sujeitas à respectiva supervisão;

b) (…)

2 — O disposto no presente decreto-lei não prejudica a competência do Banco de Portugal e do Instituto de Seguros de Portugal para definir:

a) As normas contabilísticas aplicáveis às contas individuais das entidades sujeitas à respectiva supervisão;

b) Os requisitos prudenciais aplicáveis às entidades sujeitas à respectiva supervisão.”

No uso dessa competência legal, o Banco de Portugal criou um normativo contabilístico autónomo, as designadas NCA (Normas de Contabilidade Ajustadas), que tomando embora por referência as NIC (Normas Internacionais de Contabilidade), lhe introduzem derrogações, as quais estão vertidas nos n.ºs 2 e 3 do Aviso n.º1/2005 e no Aviso n.º3/95 na versão consolidada do Aviso n.º3/2005, sendo que estes Avisos da entidade reguladora dispõem sobre matéria relativa ao regime das provisões e imparidades, ora em causa.

Ou seja, no âmbito do seu poder de autorregulação o Banco de Portugal emitiu o Aviso n.º 3/95, em vigor até dezembro de 2015, o qual estabelecia as condições para a constituição de provisões por parte das instituições de crédito e as sociedades financeiras. O n.º 2 do artigo 1.º do aludido Aviso (na redação introduzida pelo Aviso n.º 3/2005, publicado no Diário da República, I Série-B, n.º 4, de 28 de fevereiro de 2005), estabelecia que “[as] instituições de crédito e as sociedades financeiras, incluindo as sucursais de instituições com sede em países não pertencentes à União Europeia, umas e outras adiante designadas por instituições, são obrigadas a constituir provisões, nas condições indicadas no presente aviso, com as seguintes finalidades:

  1.  Para risco específico de crédito;
  2. Para riscos gerais de crédito;
  3. Para encargos com pensões de reforma e de sobrevivência;
  4. Para menos-valias de títulos e imobilizações financeiras;
  5. Para menos-valias de outras aplicações;
  6. Para risco-país;
  7. Para imparidade em aplicações sobre instituições de crédito;
  8. Para imparidade em títulos e em participações financeiras;
  9. Para imparidade em activos não financeiros.”

Neste contexto, e como sustenta o Requerente, estando uma entidade sujeita à supervisão do Banco de Portugal, estava obrigada a constituir provisões para imparidades em participações financeiras, pressuposto que não é questionado.

O dissídio entre as partes radica, portanto, na aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC às perdas por imparidade para participações financeiras constituídas ao abrigo das normas do Banco de Portugal.

 

Na sua resposta, a AT conclui pela legalidade da correção por si promovida no âmbito da ação inspetiva, referindo: “Ora, como resulta da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico, a qual explicita cabalmente o enquadramento contabilístico e fiscal atinente à situação sub judice, a correção promovida pela AT sustenta-se numa interpretação do n.º 3 do artigo 45.° do Código do IRC que cumpre os critérios hermenêuticos que atendem ao elemento literal, ao elemento histórico que apela para a contextualização das alterações introduzidas à luz das circunstâncias vigentes ao tempo das mesmas e, por fim, ao elemento finalístico que presidiu tanto à criação da norma, como às alterações subsequentes, introduzidas pela Lei n.º 60-A/2005.”

 

Vejamos:

 

ELEMENTOS LITERAL E SISTEMÁTICO

 

O n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC integra a Subsecção V, da Secção II, do Capítulo III do Código do IRC, sobre a epígrafe “Regime de outros encargos”, o qual previa o seguinte:

“Artigo 45.º

Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais

3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

Na verdade, o Código do IRC inclui na Subsecção I da Secção II do Capítulo III as “Regras Gerais” de determinação da matéria coletável de IRC, em que inclui a alínea h), do n.º 2 do artigo 23.º, o qual prevê que se consideram gastos “Ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões”.

Por sua vez, na Subsecção precedente (Subsecção IV, da Secção II, do Capítulo III do Código do IRC), estabelece-se o regime específico das “Imparidades e Provisões”, em que se inclui o artigo 35.º que se refere a perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis, o qual dispunha que:

“Artigo 35.º

Perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis

1 – (…)

2 – Podem também ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade e outras correcções de valor contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, quando constituídas obrigatoriamente, por força de normas emanadas pelo Banco de Portugal, de carácter genérico e abstracto, pelas entidades sujeitas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de instituições de crédito e outras instituições financeiras com sede em outro Estado membro da União Europeia, destinadas à cobertura de risco específico de crédito e de risco-país e para menos-valias de títulos e de outras aplicações.”

Ou seja, o artigo 35.º do Código do IRC, que regula a disciplina da dedutibilidade fiscal das perdas por imparidade, estabelece no seu n.º 1, um regime comum aplicável à generalidade dos sujeitos passivos, sendo que no seu n.º 2, reconhecendo as particularidades do setor bancário, consagra um regime especial admitindo a dedutibilidade fiscal das perdas por imparidade “quando constituídas obrigatoriamente, por força de normas emanadas pelo Banco de Portugal”, para menos-valias de títulos e de outras aplicações.

Por sua vez, na mesma Subsecção (Subsecção IV, da Secção II, do Capítulo III do Código do IRC), o artigo 37.º do Código do IRC, que se reporta, especificamente, a empresas do setor bancário, dispunha que:

“Artigo 37.º

Empresas do sector bancário

 

1 – O montante anual acumulado das perdas por imparidade e outras correcções de valor para risco específico de crédito e para risco -país a que se refere o n.º 2 do artigo 35.º não pode ultrapassar o que corresponder à aplicação dos limites mínimos obrigatórios por força dos avisos e instruções emanados da entidade de supervisão.

2 – As perdas por imparidade e outras correcções de valor referidas no número anterior só são aceites quando relativas a créditos resultantes da actividade normal, não abrangendo os créditos excluídos pelas normas emanadas da entidade de supervisão (…)

(…)

4 – Os montantes anuais acumulados das perdas por imparidade e outras correcções de valor, referidas no n.º 2 do artigo 35.º, não devem ultrapassar os valores mínimos que resultem da aplicação das normas emanadas da entidade de supervisão.”

Neste contexto, e como sustenta o Requerente, conduzidos pelo elemento sistemático, dever-se-á concluir que o regime previsto no n.º 2 do artigo 35.º e no n.º 4 do artigo 37.º, ambos do Código do IRC, aplicável, é especial em relação ao regime do n.º 3 do artigo 45.º do mesmo Código, sendo normas específicas para a relevância fiscal das perdas por imparidade relativas a entidades sujeitas a supervisão do Banco de Portugal.

Ou seja, do exposto resulta claramente, que o artigo 45.º do Código do IRC não foi inserido entre as “Regras Gerais” (Subsecção I), nem na Subsecção IV (“Imparidades e Provisões”), mas na Subsecção V referente a “Regime de outros encargos”, o que, desde logo, aponta no sentido de o regime da Subsecção V, da Secção II, do Capítulo III do Código do IRC aplicável ser residual em relação aos encargos abrangidos pelas Subsecções precedentes.

 

ELEMENTOS HISTÓRICO E TELEOLÓGICO

 

Conforme oportunamente referido, o n.º 3 do art.º 45.º foi introduzido no Código do IRC com a Lei do Orçamento do Estado para 2003, aplicando-se às menos-valias efetivas resultantes da transmissão onerosa de partes de capital fazendo parte, segundo o Relatório da Proposta do Orçamento que o introduziu, de um conjunto de medidas com o objetivo de facto de combate à evasão fiscal, face à quebra de receita de IRC, das grandes empresas, com intenção de alargamento da base tributável e de introdução de medidas de moralização e de neutralidade do imposto.

Entre essas medidas, conforme se constata na página 34 do Relatório do Ministério da Finanças para o Orçamento do Estado de 2003, constava a medida que limita a dedução da diferença negativa entre as mais e as menos valias realizadas relativas à transmissão de partes de capital em 50%.

Posteriormente, com a Lei do Orçamento do Estado para 2006 (Lei n.º 60-A/2005), foi alargado o seu escopo, passando a abranger também componentes negativas relativas a partes de capital e outras rubricas do capital próprio (“outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital…”), sendo que apenas com o Decreto-Lei n.º 159/2009, que promoveu a adaptação do Código do IRC ao SNC, se passou a efetuar a distinção entre perdas por imparidade e provisões na determinação do lucro tributável, quando anteriormente tudo era genericamente conduzido ao conceito de provisão.

A expressão “perdas por imparidade”, apenas surgiu com as alterações terminológicas operadas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, pelo que não será de sustentar a tese de que o legislador, com o aditamento feito em 2005 (Lei n.º 60-A/2005), objetivou enquadrar na lei as perdas por imparidade, dado que nem os normativos contabilísticos nem as leis fiscais lhe faziam referência.

Portanto, o n.º 3 do artigo 42.º do Código do IRC (correspondendo depois ao n.º 3 do artigo 45.º), tinha na sua génese a sua aplicabilidade ao saldo negativo das mais-valias e das menos-valias e de outras perdas geradas mediante a transmissão onerosa de componente do capital próprio, pelo que, resulta claro, que tal norma não é aplicável às perdas por imparidade relativas a participações financeiras, constituídas ao abrigo de normas obrigatórias emanadas pelo Banco de Portugal

O n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, desde a sua criação, e já como referenciado nos presentes autos, tinha como finalidade o combate à fraude  e à evasão fiscais, visando reprimir comportamentos que não estão na disponibilidade do sujeito passivo e, sendo as perdas por imparidade registadas pelo Requerente constituídas ao abrigo de normas obrigatórias emanadas pelo Banco de Portugal, não se poderá considerar aquelas abrangidas por este normativo, uma vez que não se encontra na disponibilidade do Requerente a adoção ou não de tal comportamento, resultando antes de uma imposição do Banco de Portugal (entidade supervisora).

 

Tendo por base todos estes considerandos, torna-se possível concluir que o n.º 3 do artigo.º 45 do Código do IRC, interpretado com atinente relevância ao fim visado pelo legislador e tendo presente a conjuntura que determinou a decisão legislativa, não se coaduna com a posição de que esta norma abrange as perdas por imparidade relativas a partes de capital constituídas por força de normas emanadas do Banco de Portugal, caso em que acaba por ser alheio à vontade do sujeito passivo, não havendo razão para a sua penalização do ponto de vista fiscal (neste sentido vide acórdãos proferidos nos processos n.º 271/2014-T, 392/2016-T, 768/2019-T, todos  do CAAD).

Deste modo, dever-se-á concluir que as perdas por imparidade para títulos e participações financeiras, abrangidas pelos artigos 35.º, n.º 2 e 37.º, n.º 4 do CIRC aplicável, não são abrangidas pela previsão legal do n.º 3 do artigo 45.º do mesmo Código, pelo que, ao entender de outra maneira, enferma a correção ora em apreço de erro nos pressupostos de direito, devendo como tal ser anulada, procedendo, na mesma medida, o pedido arbitral.

 

Juros indemnizatórios

 

No que concerne ao pedido de juros indemnizatórios, temos de atender ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT que estabelece que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.

Esta norma está em plena sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, que é aplicável neste caso por força do disposto no artigo 29º, no n.º 1, a) do RJAT, que dispõe: "A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei."

Temos de atender ainda ao artigo 43.º nº 1 da LGT que estabelece que "são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."

Analisando o caso sub judice, é patente que o Requerente procedeu ao pagamento conexo com o ato de liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2014 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2014..., referentes ao ano de 2011, questionada nos presentes autos, e que a Requerida, indeferindo reclamação graciosa e denegando provimento ao recurso hierárquico, a Requerida incorreu, por razões que lhe são exclusivamente imputáveis, em erro sobre os pressupostos de direito.

Considerando o disposto no artigo 61.º do CPPT e que se encontram preenchidos os pressupostos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do artigo 43º da LGT,  o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre as quantias que, indevidamente, pagou, a contar da data em que o fez, até ao seu integral reembolso.

 

Demais questões suscitadas nos autos

 

As demais questões suscitadas incidentalmente nos autos pelo Requerente, designadamente, quando ao método de cálculo aplicado pela AT para apuramento do montante sobre o qual deveria ser aplicada a limitação de 50% prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, ficam prejudicadas pelo mérito do pedido.

 

 

III - DECISÃO

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular, em consequência, por ilegalidade, o ato de liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2014 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2014 ..., referentes ao ano de 2011, na qual foi apurado o montante a pagar de €441.713,63 (imposto no montante de €415.529,58 e juros compensatórios de €26.184,05), assim como da decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2014... que teve por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apreciou os referidos atos de liquidação; e,
  3. Condenar a Requerida no reembolso ao Requerente das quantias pagas na sequência e em consequência dos atos ora declarados ilegais, acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o pagamento até integral reembolso.

 

 

Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 441.713,63.

 

Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7 038,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira (Requerida).

 

 Lisboa, 26 de Outubro de 2021

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

 

Manuel Luís Macaísta Malheiros

(Presidente)

 

 

 

Óscar Barros

(Árbitro Adjunto)

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

(Árbitro Adjunto)