Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 677/2020-T
Data da decisão: 2021-10-25  IRS  
Valor do pedido: € 20.868,10
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias obtidas por não residentes; aplicação da redução de 50% prevista no art.º 43º, nº 2 b) CIRS.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

A..., contribuinte n.º..., residente na ..., ..., ..., ..., ..., ..., Madrid, Espanha (doravante identificado como Demandante), apresentou, no dia 26-11-2020, ao abrigo do disposto na al. a), do n.º 1 do art.º 2.º, nos números 1 e 2 do art.º 5, no n.º 1 do art.º 6.º e na al. a), do n.º 1 do art.º 10.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária) , bem como no disposto nos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, conjugado com o disposto na al. a), do art.º 99.º e na al. e), do n.º 1 do art.º 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicáveis ex vi al. a) do n.º 1 do artigo 10.º do aludido RJAT, pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de IRS n.º 2020... .

É demandada no pedido de pronúncia arbitral a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

Em síntese, o Demandante fundamenta o seu pedido nos seguintes argumentos:

             Tendo alienado no ano de 2019 as suas quotas-partes num conjunto de imóveis, e realizado através dessa alienação mais-valias tributáveis em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), no cálculo do imposto a pagar sobre as mesmas, a AT considerou como matéria tributável a totalidade do saldo das mais-valia, não aplicando a redução de 50% prevista no art.º 43.º n.º 2, al. b) do Código do IRS (CIRS);

             A tributação da totalidade das mais-valias imobiliárias no caso de um não-residente é incompatível com o Direito da União Europeia, em particular com a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no art.º 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);

             Por força do princípio da liberdade de circulação estabelecido no art.º 63.º do TFUE, o Demandante tinha direito a que lhe fosse aplicada a redução de 50% no saldo das mais-valias imobiliárias, mesmo não sendo residente no território português, mas sim residente em Espanha.

O Demandante termina pedindo ao tribunal que condene a Demandada à restituição do montante de imposto indevidamente pago, no montante de €20.868,10 (vinte mil, oitocentos e sessenta e oito euros e dez cêntimos), acrescido do pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 26-11-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 18-01-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, apresentando para tal os argumentos que a seguir se sintetizam:

             Não obstante o facto de o TJUE, no seu acórdão de 11-10-2007, no processo C-443/06 (Hollman) ter considerado incompatível com a livre circulação de capitais garantida no art.º 63º do TFUE o regime previsto no art. 72º, nº 1 do CIRS na redação anterior à Lei nº 67-A/2007 de 31/12, o quadro legal atual já não é o que existia à data desse acórdão;

             Isto porque, no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão do Tribunal de Justiça, foi aditado ao art.º 72º do CIRS o nº 7, que veio permitir aos não residentes optarem, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 e no nº 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português;

             Igualmente o nº 8 do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei nº 67-A/2007, prescrevia, à data dos factos, que “para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

             Assim, para beneficiar da redução de 50% na mais-valia, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2 do CIRS, o Demandante podia ter optado pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes, opção que o Demandante não fez;

             Tendo em conta a alteração legislativa ocorrida na legislação em causa, em consequência das decisões do TJUE, deverá julgar-se não verificada a hipótese de ato claro ou de ato aclarado, pelo que tem de forçosamente se considerar que se levantam dúvidas suficientes que obstam à aceitação do entendimento do Demandante sem prévia consulta ao TJUE, para que este possa exercer as suas competências próprias, nos termos dos Tratados.

Por despacho do Tribunal de 01-09-2021, foi decidido não se realizar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, por desnecessária, e ao abrigo dos princípios da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e conceder às Partes prazos sucessivos para apresentação de alegações finais.

O Demandante apresentou alegações finais, em que argumentou, em síntese,

             Com o aditamento dos números 7 e 8 (atuais números 14 e 15) ao artigo 72.º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, foi dada a possibilidade de opção aos não residentes pela tributação de acordo com as taxas previstas no artigo 68.º do Código do IRS, sendo nesse caso considerados todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora do território nacional.

             Esta solução não garante a eliminação da discriminação resultante do disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, pois não assegura que o saldo apurado entre as mais valias e menos valias realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões efetuadas por não residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10º do Código do IRS, seja apenas considerado em 50% do seu valor, tal como acontece com os residentes por força dos números 1 e 2 do artigo 43.º do Código do IRS.

             Resumindo, o regime estipulado nos números 14 e 15 do artigo 72.º do Código do IRS não dispõe sobre a base de incidência, mas sim sobre a taxa aplicável aos rendimentos referidos nos números 1 e 2 do artigo 72.º do Código do IRS, pelo que aquele regime não implica a tributação de todos os rendimentos auferidos pelos não residentes, apenas da mais valia.

A AT não apresentou alegações finais.

 

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 2º, e do nº 1 do artigo 10º, ambos do RJAT, e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4º, nº 2 do art.º 10º do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

A questão a apreciar no presente processo é a de saber se o atual regime do Código do IRS, de tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes, ao prever a aplicação de uma redução de 50% à mais-valia tributável, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2, al. b) CIRS,  apenas quando o sujeito passivo não residente opte pelo englobamento de todos os rendimentos e pela tributação às taxas do regime aos residentes, é compatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o art.º 63º do TFUE onde se consagra a liberdade de circulação de capitais.

 

IV. Fundamentação

1.            Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A.           No ano 2019, o Demandante era residente fiscal em Espanha, sendo considerado não residente fiscal em território nacional;

B.            No ano de 2019, o Demandante alienou a sua quota-parte nos seguintes imóveis:

             Prédio urbano inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo ...;

             Prédio urbano inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo ...;

             Prédio rústico inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo ..., secção G;

             Prédio rústico inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo..., secção G;

             Prédio urbano inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo...;

             Prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo ..., secção F;

             Prédio rústico inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e ... (Ourique) sob o artigo ..., secção F;

             Prédio urbano inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e C... (Ourique) sob o artigo ...;

             Prédio urbano inscrito na matriz da União das Freguesias de ... e ... (Cascais), o artigo ... .

 

C.            Com a alienação dessas quotas-partes dos referidos imóveis, o Demandante realizou uma mais-valia de €149.057,86 (cento e quarenta e nove mil, cinquenta e sete euros e oitenta e seis cêntimos);

D.           Tendo apresentado declaração de rendimentos referente ao ano de 2019, e tendo mencionando na declaração as referidas alienações, o Demandante assinalou no quadro 8B da declaração de rendimentos os campos 4 (“Não residente”) e 7 (“Pretende a tributação pelo regime aplicável aos não residentes”);

E.            A AT procedeu à liquidação do imposto com base no art.º 72.º, n.º 1, al. a), sem aplicar ao saldo positivo das mais-valias imobiliárias a redução de 50% prevista no art.º 43º, n.º 2, al. b) do CIRS, e apurando um imposto a pagar no montante de €41.736,20 (quarenta e um mil, setecentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos);

F.            O Demandante procedeu ao pagamento integral do imposto liquidado.

Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se no alegado e não contestado pelas Partes, nos documentos juntos pelo Demandante e no processo administrativo junto pela Demandada.

 

2.            Discussão de direito

Atualmente, o art. 43º, nº 2 do CIRS estipula:

2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c), d) e i) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é:

(...)

b) Apenas considerado em 50 % do seu valor, nos restantes casos.

Segundo a letra da disposição, apenas os residentes podem beneficiar da redução de 50% prevista na al. b), sendo este o aspeto que opõe o Demandante, residente em França, e a Autoridade Tributária.

A questão da compatibilidade da norma do art. 43º, nº 2, al. b) do CIRS com o direito europeu, nomeadamente com o art.º 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (e anteriormente o art. 56º do TCE) não é recente.

Em 2006, ela foi submetida, pelo Supremo Tribunal Administrativo, à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-443/06, tendo este tribunal emitido pronúncia no sentido da incompatibilidade da norma com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado, então, no art.º 53º do Tratado CE.

Na sequência de tal acórdão, o legislador português aprovou uma alteração ao regime de tributação das mais-valias imobiliárias, passando a prever um regime especial para a tributação de mais-valias imobiliárias quando realizadas por não residentes.

Tal regime, assente estruturalmente numa tributação autónoma, consta do artigo 72, n.º 1º do CIRS, que dispõe:

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:

a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;

Esta norma é completada por uma possibilidade de opção de englobamento, hoje estabelecida no nº 14 do mesmo preceito, facultada apenas aos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, que diz:

14 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 6, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

Entende a Administração Tributária que os não residentes que façam esta última opção não ficam apenas sujeitos às taxas do art.º 68º, nº 1, mas também beneficiam da redução de 50% prevista no art. 43º, nº 2, al. b) (dizemos que se trata de um entendimento da Administração Tributária, pois não encontramos esta norma expressa na lei).

E sendo assim, entende ainda a Autoridade Tributária, os não residentes teriam passado a ter, com a alteração legislativa ocorrida em 2007, a opção de receberem o mesmo tratamento ou um tratamento diferente do que é dado aos residentes, em matéria de mais-valias imobiliárias, com o que o regime atual das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes já não poderia, no entendimento da AT, considerar-se incompatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o seu princípio de livre circulação de capitais, contido, hoje, no art.º 63.º do Tratado FUE.

Após esta alteração legislativa, os tribunais dividiram-se quanto à questão da compatibilidade do novo regime do Direito nacional com o Direito europeu (vg. decisão arbitral CAAD 22.04.2019, proc. nº 539/2018-T; decisão arbitral CAAD 09.06.2020, proc. n.º 846/2019-T).

Recentemente, porém, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se sobre a matéria num recurso de uniformização de jurisprudência (STA, acórdão de 09.12.2020, processo nº 075/20.6BALSB), tendo confirmado o entendimento de que a norma da al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS continua a ser incompatível com os Tratados Europeus.

Diz nesse aresto o Supremo Tribunal Administrativo:

“Os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede de IRS, no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.

Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos [art. 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS], pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por titulares não residentes (cf. arts.13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, do CIRS).

O valor desses rendimentos que seja qualificado como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes é sujeito a englobamento e a tributação é efectuada às taxas gerais progressivas estabelecidas no art. 68.º do CIRS, mas apenas é considerado em 50%, como resulta do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável.

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, a tributação desse valor faz-se à taxa fixa especial de 28%, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, ou, se forem residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), neste caso por opção, às taxas gerais progressivas do art. 68.º o CIRS, considerando-se então todos os seus rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, mas sobre 100% da mais-valia imobiliária realizada (cf. arts. 72.º, n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável).

A questão que se coloca é a de saber se, como alega a Recorrente, este regime opcional, que foi introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), então sob os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14 e n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável), aditados ao art. 72.º do CIRS, veio pôr termo à discriminação negativa dos não residentes, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tinha já considerado verificar-se relativamente ao n.º 2 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o TJCE – em acórdão (Hollmann) proferido em 11 de Outubro 2007, no processo n.º C-443/06 (...) em resposta ao reenvio prejudicial efectuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 493/06 (Vide os acórdãos proferidos nesse processo n.º 439/06, o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, já referido na nota 3 supra, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJCE de 28 de Setembro de 2006 (...) julgou «incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE».

É certo que o legislador nacional, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), procurou obviar a esse tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do EEE, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao art. 72.º do CIRS os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14). Ou seja, após a referida alteração legislativa ficaram a vigorar, na área da tributação das mais-valias imobiliárias, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do EEE, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

Mas esse regime específico de opção, não só constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, como não afastou a referida discriminação negativa. Como bem concluiu a decisão recorrida, «o regime de equiparação actualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal».

Como também salientou a decisão recorrida, o acórdão (Gielen) do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 18 de Março de 2010, proferido no processo n.º C-440/08 (...) após salientar que «a opção de equiparação [que] permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório» não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, concluiu que «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório» e que o Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes». Ou seja, o regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, não veio sanar a discriminação negativa resultante da norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS para os não residentes e a violação do art. 63.º do TFUE que dela resulta.

Assim, bem andou a decisão recorrida quando julgou incompatível com o Direito da União Europeia a norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE e, em consequência, quando anulou os actos de liquidação em causa (de IRS e de juros compensatórios) na parte em que desconsideraram aquela limitação.”

Depois de expor assim o seu entendimento, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo concluiu:

“2.2.3 Em face de tudo quanto deixámos dito, uniformizamos jurisprudência no seguinte sentido: o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o art. 63.º do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da UE ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.”

É assim manifesto que, para o Supremo Tribunal Administrativo, o regime instituído pelo legislador fiscal português, através da Lei n. 67-A/2007, de 31/1, em resposta ao acórdão Hollmann, não sanou a incompatibilidade que o TJUE declarou existir entre o art.º 43.º, n.º 2, al. b) do CIRS e o Direito da União.

A jurisprudência uniformizada, apesar de não ter o valor vinculativo que outrora tinha o “assento” previsto no revogado art. 2º do Cód. Civil, tem um valor reforçado que lhe advém, por um lado, da hierarquia do órgão jurisdicional que a definiu e, por outro lado, da lei processual que prevê (art. 142º, nº 3, al. c) do CPTA) que o não acatamento de jurisprudência uniformizada, por parte de uma decisão proferida em primeiro grau de jurisdição, constitui motivo especial de admissibilidade de recurso (neste sentido, vejam-se os acórdãos TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 03-06-2016, proc. nº 329/12.5BEPDL; e TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 24-02-2017, proc. nº 8/12.3BEMDL).

Consideramos que tal seria, só por si, suficiente para determinar o sentido da decisão do presente processo no sentido propugnado pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Contudo, em 18-03-2021, o TJUE proferiu novo acórdão, desta vez no processo C 388/19, o qual resultou de um reenvio prejudicial de um processo que tinha por objeto a exata questão que aqui nos ocupa, centrando-se em factos que, tal como nos presentes autos, ocorreram na vigência do atual regime do IRS obre tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes.

Vejamos em que termos o Tribunal dirimiu a questão.

Diz o Tribunal (par. 36) que no “caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.” Acrescenta (par. 38) que “não existe nenhuma diferença objetiva de situação entre os contribuintes residentes e os contribuintes não residentes, suscetível de justificar uma desigualdade de tratamento fiscal entre eles, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, e do artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, no que respeita à tributação do saldo positivo das mais valias realizadas na sequência de alienações de bens imóveis situados em Portugal.”

Quanto à opção, dada aos não residentes, como o aqui Demandante, de tributação segundo as mesmas regras a que estão sujeitos os residentes, diz o acórdão (par. 42-46):

“(...) a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.º, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.º, n.º 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, e outro que não o é.

Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.º TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C440/08, EU:C:2010:148, n.º 52).

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C440/08, EU:C:2010:148, n.º 53 e jurisprudência referida).

Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.º 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.”

Em conclusão, o acórdão termina sentenciando:

“Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 63.º TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.º TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um EstadoMembro que, para permitir que as maisvalias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse EstadoMembro, por um sujeito passivo residente noutro EstadoMembro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às maisvalias realizadas por um residente do primeiro EstadoMembro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.

Conclui-se que o entendimento do TJUE é, pois, totalmente coincidente com a jurisprudência do STA, ambos no sentido de que o regime português de tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes continua a ser incompatível com o Direito da União Europeia, não obstante as alterações legislativas introduzidas no art.º 72.º através da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, ao não permitir, tal como é permitido aos residentes, a redução da mais-valia tributável em 50%.

Em vista desta jurisprudência, deve considerar-se, nos termos da doutrina exposta no acórdão  CILFIT ((acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 21) estar-se perante uma situação em que a disposição comunitária cuja compatibilidade com  o Direito nacional se aprecia já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, tornando-se assim dispensável e não cabível o reenvio prejudicial no presente processo.

Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.

3.            Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios

Tendo o Demandante pago a totalidade do imposto liquidado no ato aqui impugnado, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art.º 24º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Embora o art.º 2º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais judiciais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art.º 43º, nº 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, em conjugação com do art.º 61º, nº 4 do CPPT que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ( CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

O nº 5 do art.º 24º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. no 277/2020-T; CAAD, proc. no 220/2020-T).

Na sequência da anulação do ato impugnado, o Demandante terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24º, nº 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art.º 43.º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

É o caso dos presentes autos, em que se julga incompatível com o art.º 63º do Tratado FUE o regime contido no Código do IRS, nos termos do qual, para que as mais valias provenientes da alienação de bens imóveis por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada às mais valias realizadas por um residente, se exige que o sujeito passivo opte pelo regime de tributação aplicável aos residentes.

Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, o Demandante terá direito a ser ressarcido nos termos do art.º 43º, nº 3, al. d) da LGT, através do pagamento de juros indemnizatórios.

 

V. Decisão

Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:

(I)           Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e anular parcialmente o ato de liquidação impugnado, concretamente a liquidação de IRS n.º 2020..., na medida da não aplicação de uma redução em 50% do valor da mais-valia imobiliária realizada pelo Demandante;

(II)          Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, no montante de €20.868,10 (vinte mil, oitocentos e sessenta e oito euros e dez cêntimos);

(III)        Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago, nos termos do art.º 43º da LGT.

 

VI. Valor do processo

Nos termos do art.º 97º -A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 3 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em €20.868,10 (vinte mil, oitocentos e sessenta e oito euros e dez cêntimos).

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.224,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Notifiquem-se as Partes.

 

Porto, 25 de outubro de 2021.

 

O Árbitro

(Nina Aguiar)