Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 90/2021-T
Data da decisão: 2021-10-20  IRS  
Valor do pedido: € 1.503.360,79
Tema: IRS; Fundamentação da Decisão da Reclamação Graciosa; e Exclusão de Tributação das Mais-Valias (IRS) por aplicação do regime transitório previsto no artigo 30.º n.º 9 da Lei n.º 109-B/2001 de 27 de Dezembro.
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DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

Os Signatários, o Dr. José Poças Falcão (árbitro presidente), a Dra. Elisabete Louro Martins Cardoso e o Prof. Dr. Jorge Bacelar Gouveia (árbitros vogais), foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, o qual foi constituído em 21 de maio de 2021.

 

I.             RELATÓRIO

 

1. A..., titular do número de identificação fiscal..., e B..., titular do número de identificação fiscal..., casados em regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua ..., ..., ..., ...-..., em ... (doravante, Requerentes), apresentaram no dia 10 de fevereiro de 2021 pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida).

 

No pedido de pronúncia arbitral (PPA), os Requerentes pedem a anulação dos seguintes atos tributários (doravante, ato impugnado):

(a) Despacho proferido, em 14 de dezembro de 2020, pelo Diretor da Direção de Finanças de Évora, ao abrigo de competência própria, através do qual foi indeferida a Reclamação Graciosa deduzida pelos aqui Requerentes;

(b) a liquidação de imposto n.º 2020..., mediante a qual foi apurado um valor de imposto a pagar no montante de € 2.367.704,34, bem como a Declaração de Rendimentos Modelo 3, identificada com o número ..., datada de 9 de junho de 2019, referente ao IRS do período de 2019.

 

2. O pedido de pronúncia arbitral (PPA) foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 12 de fevereiro de 2021, e foi automaticamente notificado à Requerida.

 

3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, em 3 de maio de 2021, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os Signatários como Árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo os Signatários comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 3 de maio de 2021, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 21 de maio de 2021.

 

6. Em 4 de junho de 2021, o Tribunal Arbitral proferiu despacho arbitral ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo, e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. Deste despacho foi a Requerida notificada no dia 7 de junho de 2021.

 

7. A Requerida veio aos autos apresentar Resposta e juntar o processo administrativo em 12 de julho de 2021 (tempestivamente).

8. Em 20 de julho de 2021, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:

  

“I - A reunião do Tribunal com as partes (artigo 18º, do RJAT)

À luz do disposto nos artigos 16º, al. c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, fica dispensada a reunião do Tribunal com as partes, considerando que (i) se trata, no caso, de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e (ii) que não há outros meios de prova a produzir.

II – Alegações finais

Encerrada que está a fase instrutória do processo e considerando que os autos contêm os elementos de prova essenciais para a decisão, ambas as partes apresentarão, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias [(artigos 29º, do RJAT, 91º-5 e 91º-A, do CPTA, versão republicada em anexo ao Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2-10)], alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito.

III – Data para prolação e notificação da decisão final

Fixa-se o dia 20-10-2021, como data-limite previsível para a prolação e notificação da decisão arbitral final.

IV – Taxa de arbitragem remanescente

A Requerente deverá dar oportuno cumprimento ao disposto no artigo 4º, nº 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [pagamento, antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa arbitral].

V – Apresentação dos articulados em formato “word”

À luz do princípio da cooperação [cfr artigo 7º, do CPC], convidam-se ambas as partes a remeter ao CAAD cópias dos respetivos articulados, em formato editável (de preferência, em “Word”) com vista a facilitar e abreviar a tarefa de elaboração do acórdão final no que respeita sobretudo à fixação da matéria de facto.

Notifiquem-se as partes”.

 

9. Em 17 de agosto de 2021, os Requerentes apresentaram alegações escritas e juntaram aos autos documento comprovativo de pagamento da taxa subsequente e, em 16 de setembro de 2021, a Requerida também apresentou as suas alegações escritas.

 

10. No pedido de pronúncia arbitral, sumariamente, os Requerentes fundamentaram o seu pedido com base nos seguintes argumentos:

(i) Da Insuficiência de Fundamentação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa

 

Os Requerentes alegam que a Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa (doravante, Decisão RG) viola frontalmente quer o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), quer o artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT), porque a AT:

a)            limitou-se a determinar o indeferimento do peticionado na Reclamação Graciosa, sem, contudo, oferecer qualquer motivo ou esclarecer o raciocínio e as razões que informaram a Decisão RG, e

b)           não logrou refutar a argumentação exposta pelos Requerentes no que respeita à questão de fundo (“que o regime transitório introduzido pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, se encontra em vigor sendo-lhes aplicável, não tendo sido efetivamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 228/2002”). Afirmam os Requerentes: “Com efeito, pese embora a Administração tributária identifique a questão da aplicação da lei no tempo como sendo essencial para determinar da aplicabilidade do regime jurídico da tributação das mais-valias ao caso vertente, não procede à exposição desse regime, nem concretiza em que medida é que da sua aplicação resulta o indeferimento do peticionado na Reclamação Graciosa, não fazendo sequer referência a essa questão na conclusão onde determina o indeferimento do peticionado”.

 

Entendem os Requerentes que a inscrição do montante pelo qual foram alienadas as participações sociais detidas na sociedade C..., S.A. — adquiridas, originariamente em 1995 — no Anexo G da declaração de rendimentos Modelo 3, identificada pelo n.º..., configura “erro na declaração de rendimentos” para efeitos da aplicação do disposto no artigo 140.º, n.º 2, do Código do IRS.

 

Neste contexto, os Requerentes entendem que procederam à submissão da referida Reclamação Graciosa enquanto meio adequado para contestar a legalidade da liquidação de IRS referente ao período tributário de 2019 por a mesma ter tido origem numa Declaração de Rendimentos que, em virtude do Modelo oficial que é disponibilizado aos sujeitos passivos, não permite a correta declaração dos rendimentos, da qual resultou o pagamento de imposto em excesso.

 

Por outro lado, conforme referido, nos termos do artigo 140.º, n.º 2, do Código do IRS, a submissão de Reclamação Graciosa constitui requisito necessário para a posterior impugnação judicial (neste caso, apresentação de Pedido de Pronúncia Arbitral) da liquidação de imposto, constituindo o indeferimento (tácito ou expresso) da Reclamação um ato suscetível de impugnação autónoma.

 

(ii) Da Exclusão de Tributação das Mais-Valias, com referência às Participações Sociais cuja aquisição remonta a 1995, por aplicação do regime transitório previsto no artigo 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro

 

No caso concreto, os Requerentes adquiriram parte das participações sociais constitutivas da sociedade C... (alienada em 2019 e na origem das mais-valias declaradas pelos Requerentes) em 1995, tendo detido essas participações, de forma contínua e ininterrupta, até à data da sua alienação, em 2019.

 

Ora, tendo presente o exposto, na parte das participações sociais adquiridas em 1995, cuja alienação gerou a mais-valia controvertida, na esfera dos Requerentes – contrariamente ao que resulta do processamento da declaração Modelo 3 –, deverá ser aplicável a exclusão de tributação, decorrente do (terceiro) regime transitório implementado pela Lei do Orçamento do Estado para 2002 – a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro –, ainda em vigor, na medida em que as referidas participações foram adquiridas antes de 31 de dezembro de 2002, tendo sido detidas por um período superior a 12 meses.

 

Na verdade, não obstante os Requerentes considerarem, desde logo, que as referidas mais-valias não deviam, nos termos da lei, ser sujeitas a tributação em sede de IRS, no momento do preenchimento e submissão da declaração de rendimentos Modelo 3 confrontaram-se com constrangimentos de ordem prática que os impediram de declarar esses rendimentos ao abrigo do regime, efetivamente, aplicável. Com efeito, a declaração de rendimentos Modelo 3 dispõe de um anexo correspondente à declaração dos rendimentos da Categoria G, no âmbito do qual se enquadram as mais-valias, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, o Anexo G.

 

No âmbito da declaração de rendimentos Modelo 3, na versão atualmente em vigor e disponibilizada, não é possível declarar no Anexo G1 os rendimentos auferidos pela alienação de partes sociais não sujeitos a tributação ao abrigo do regime transitório previsto pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (o regime transitório vigente aprovado pela Lei do Orçamento do Estado para 2002 – Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (que prevê a exclusão de tributação das mais-valias resultantes da alienação de participações sociais adquiridas entre 1989 e 2002 e detidas, pelos seus titulares, por um período superior a 12 meses) –, não é incluído no âmbito das operações reportáveis no Anexo G1 (mais-valias não tributadas) da declaração de rendimentos Modelo 3).

 

Em concreto quanto à vigência do regime transitório aprovado pela Lei do Orçamento do Estado para 2002 – Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro –, aplicável ao caso ora em apreço, no cômputo da mais-valia referente às participações sociais cuja aquisição remonta a 1995, os Requerentes não aceitam o entendimento de acordo com o qual o referido regime foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 228/2002, elaborado no âmbito da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio.

 

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 228/2002, que revê o regime de tributação das mais-valias estabelecido no Código do IRS, (i) aprovou a redação do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS (que reintroduziu a delimitação negativa da incidência de IRS sobre as mais-valias mobiliárias resultantes da alienação de ações detidas pelo respetivo titular durante mais de 12 meses); e (ii) não estabeleceu normas transitórias, sendo aplicável a partir de 1 de janeiro de 2003. Entendem os Requerentes que este regime surge em acréscimo, e enquanto extensão do regime de exclusão da tributação previsto no artigo 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001, uma vez que este último apenas previa tal exclusão de tributação para as ações adquiridas até 31 de dezembro de 2002.

 

Os Requerentes citam a seguinte Doutrina: “A segunda parte da norma (“…, beneficiando ainda…”) contempla as mais-valias resultantes da alienação de acções […] detidas durante mais de 12 meses e adquiridas até 31 de dezembro de 2002, para as quais se estabelece expressamente uma exclusão de tributação. Desta feita, o facto materialmente relevante para efeitos de preenchimento da fattispecie é a aquisição do título até final de 2002.” (NETO, Serena Cabrita, “A tributação das mais-valias de partes sociais no IRS”, in Fiscalidade, n.º 17, janeiro de 2004, pág. 50)”.

 

Nestes termos, os Requerentes alegam que não aderem ao entendimento segundo o qual o Decreto-Lei n.º 228/2002 revoga o regime previsto pela Lei n.º 109-B/2001 na medida em que aquele não pretende substituir este último, apenas estender temporalmente os seus efeitos, considerando, por isso, que o regime transitório relativo à tributação das mais-valias mobiliárias, instituído pela Lei n.º 109-B/2001, continua em vigor.

 

A este respeito, os Requerentes alegam que: “a Doutrina esclarece, ainda, que a segunda parte do artigo 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001 – que determina a exclusão de tributação das mais-valias mobiliárias quando as ações sejam detidas por um período superior a 12 meses – cria, efetivamente, “[…] uma norma de eficácia diferida, pela qual todos os títulos que viessem a ser adquiridos até 31 de Dezembro de 2002 beneficiassem duma exclusão tributária, os mesmos termos em que a esta se encontrava prevista no n.º 2 do artigo 10.º do CIRS antes da Reforma de 2000 […]”, mais referindo que “[…] o que irá permanecer são dois regimes, ditos “transitórios”, mas cuja duração irá certamente exceder qualquer regime regra alguma vez vigente ou a vigorar em IRS. Estes regimes são os constantes dos citados artigos 3.º, n.º 5 da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, e 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro […]” (cfr. NETO, Serena Cabrita, “A tributação das mais-valias de partes sociais no IRS”, in Fiscalidade, n.º 17, Janeiro de 2004, pág. 51 e 52)”.

 

Em face do exposto, os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa solicitando a restituição do valor de imposto pago em excesso, com referência às mais-valias computadas no âmbito da alienação das participações sociais adquiridas pelos Requerentes em 1995 e alienadas em 2019, reportadas no Anexo G, o qual deverá ascender a um valor total aproximado de € 1.503.300.

 

(iii) Do Reembolso do Valor de Imposto Pago em Excesso e do Direito a Juros Indemnizatórios

 

Entendem os Requerentes que a anulação do ato impugnado, e a consequente substituição do ato de liquidação de IRS por outro que contemple a isenção de IRS prevista para os rendimentos da Categoria G obtidos pelos Requerentes, determinará o apuramento e a restituição do valor de IRS pago em excesso, com referência aos rendimentos de categoria G obtidos pelos Requerentes em virtude da alienação das participações sociais detidas e alienadas da sociedade C..., S. A., no período tributário de 2019. Uma vez que os Requerentes pagaram o IRS liquidado, pretendem os mesmos que a Requerida seja condenada ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

11. Na sua Resposta, sumariamente, a Requerida alega:

a) Que o ato impugnado está fundamentado: Que o ato contém as disposições legais aplicáveis, a quantificação e qualificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo. Alega que “Esta sim, é a fundamentação a que a Requerida se mostra obrigada”, e que o que sucede, porém é que com ela os Requerentes não se conformam, tentando evidenciar na PI que os factos apurados não são passíveis de tributação na sua esfera jurídica, o que releva outrossim para a alegada ilegalidade das liquidações e nessa sede será sindicada. Alega ainda a Requerida que os Requerentes poderiam ter recorrido à faculdade a que alude o art. 37º do CPPT, o que não fizeram;

b) Que o ato impugnado foi emitido conforme a lei: Que a tese defendida pelos Requerentes — segundo a qual as mais-valias por eles realizadas no ano de 2019, referentes às participações sociais adquiridas em 1995, beneficiam do regime transitório consagrado no nº. 9 do artigo 30º, da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro — não tem o menor sentido porque a norma do nº 9 do artigo 30º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro, que os Requerentes pretendem ressuscitar, no âmbito dos presentes autos, não pode ser ressuscitada, porquanto ela caducou, com a revogação do regime de tributação que lhe estava associado.

Entende a Requerida que a liquidação de IRS, em causa nos presentes autos, não está ferida de ilegalidade por violação do nº 9 do artigo 30º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro, norma de direito transitório que os Requerentes pretendem ver aplicada e na qual sustentam o pedido principal, porquanto o regime a que ela se reporta nunca produziu efeitos. O Decreto-Lei nº 228/2002, de 28 de outubro, diploma publicado muito antes da plena vigência do regime instituído pela Lei nº 30-G/2000, nesta matéria, revogou esse regime, repondo no essencial as regras estabelecidas pelo legislador da Reforma de 1989. Assim, ao ter ocorrido tal revogação a norma de direito transitório invocada pelos Requerentes deixou de ter objeto – já que estamos perante uma regra sobre regras – verificando-se assim a sua caducidade por falta de objeto.

Entende a Requerida que a norma constante do nº 9 do artigo 30º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro, não precisava nem precisa de nenhuma norma que expressamente a revogasse ou revogue, já que ela nunca iniciou a sua vigência. Sendo que, posteriormente, veio, efetivamente o regime da tributação das mais-valias mobiliárias, instituído pela Reforma de 1989, a ser revogado pela Lei nº 15/2010, de 26 de julho, mas sem consagrar qualquer norma de direito transitório. Para reforçar o seu entendimento, a Requerida cita a Decisão do CAAD nº 25/2011-T, concluindo pela improcedência do PPA, quer quanto ao pedido principal, quer quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios (dada a inexistência de erro).

 

II.            SANEAMENTO

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

 

III.1        FACTOS PROVADOS

 

1.            Os Requerentes foram, entre 1995 e 2019, detentores de participações sociais de uma sociedade familiar constituída em 1995 – designada por C..., S. A., e identificada pelo número de pessoa coletiva ... – que tem como atividade principal a impressão em tipografia e litografia de trabalhos gráficos e posterior acabamento;

 

2.            À data da sua constituição, em 1995, o capital social da Sociedade ascendia a € 324.218,62, sendo os Requerentes os únicos acionistas, em partes iguais;

 

3.            Posteriormente, foi realizado um aumento de capital, em 2007, por parte dos Requerentes, na proporção das suas participações, por entradas em dinheiro, no valor total de € 182.781,38;

 

4.            Tendo presente que cada ação tinha o valor nominal de € 1, à data da alienação das participações sociais que ocorreu em 2019, os Requerentes eram titulares de 507 mil ações com valor nominal de € 1 cada, conforme detalhado de seguida:

 

 

5.            Com efeito, em 18/janeiro/2019, os Requerentes e os restantes quatro acionistas – que integraram a composição do capital social em 2008 – decidiram proceder à alienação da totalidade das partes sociais, tendo a correspondente operação de venda ocorrido pelo montante total de € 9.250.000,00, tal como evidenciam as declarações de rendimentos Modelo 4 entregues por ocasião da referida alienação;

 

6.            Neste âmbito, a totalidade das ações alienadas, pelos seis acionistas, foram as seguintes:

 

 

 

7.            Em conformidade, e tendo por referência as ações por si detidas, no passado dia 9 de junho de 2020, os Requerentes procederam à apresentação da sua declaração de rendimentos Modelo 3, por referência ao período tributário de 2019 (Identificação da Declaração: ...);

 

8.            Neste âmbito, no Anexo G, quadro 9, da declaração Modelo 3, entregue conjuntamente pelos Requerentes, foi declarado – com referência à globalidade das ações alienadas pelos Requerentes – um valor global de realização no montante de € 9.195.588,24, e um valor global de aquisição no montante € 507.000, conforme detalhado de seguida:

 

 

9.            No seguimento da referida entrega, os Requerentes foram notificados do correspondente ato de liquidação de IRS (liquidação n.º 2020..., de 2020-06-26), do qual resultou um valor de imposto a pagar no montante de € 2.367.704,34;

 

10.          Em 16 de julho de 2020 (dentro do prazo de pagamento voluntário, 2020-08-31), os Requerentes procederam ao pagamento do imposto liquidado, no montante total de € 2.367.704,34;

 

11.          Porém, os Requerentes não se conformam com o montante de imposto liquidado, na parte referente à mais-valia decorrente da alienação ora em apreço, porquanto, tal como será detalhado de seguida, no cômputo do correspondente valor de imposto a pagar, não foi tido em consideração o regime transitório, aplicável na parte da mais-valia referente às ações alienadas, cuja aquisição remonta a 1995;

 

12.          Neste contexto, os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa junto do Serviço de Finanças de ..., Direção de Finanças de Évora, no dia 4 de agosto de 2020;

 

13.          Neste seguimento, mediante Ofício datado de 14 de dezembro de 2020, da Direção de Finanças de Évora, foram os Requerentes notificados do Despacho emitido pelo Diretor da Direção de Finanças, ao abrigo de competência própria, através do qual foi indeferida a Reclamação Graciosa deduzida pelos aqui Requerentes;

 

14.          O teor da parte relativa à apreciação do pedido dos Requerentes na Decisão RG, é o seguinte:

 

 

 

 

 

 

 

 

III.2        FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.

III.3        FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo.

 

IV.          DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

Seguindo a mesma ordem do PPA, são duas as questões que são colocadas nos presentes autos e que iremos analisar individualmente:

 

1ª Questão:

A insuficiência de Fundamentação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa; e

  

2ª Questão:

A Exclusão de Tributação das Mais-Valias, com referência às Participações Sociais cuja aquisição remonta a 1995, por aplicação do regime transitório previsto no artigo 30.º n.º 9 da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro.

 

Relativamente à 1ª Questão (a insuficiência de Fundamentação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa), os Requerentes alegam no PPA que a Requerida violou o dever de fundamentação do ato tributário previsto no artigo 268.º, n.º 3, da CRP, e no artigo 77.º da LGT, uma vez que na Decisão RG a Requerida:

 

(i) limitou-se a determinar o indeferimento do peticionado na Reclamação Graciosa sem, contudo, oferecer qualquer motivo ou esclarecer o raciocínio e as razões que informaram essa Decisão RG, e

(ii) não logrou refutar a argumentação exposta pelos Requerentes no que respeita à questão de fundo — a aplicação aos Requerentes do regime transitório introduzido pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, que os Requerentes entendem que se encontra em vigor, sendo-lhes aplicável, não tendo sido efetivamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 228/2002. “Com efeito, pese embora a Administração tributária identifique a questão da aplicação da lei no tempo como sendo essencial para determinar da aplicabilidade do regime jurídico da tributação das mais-valias ao caso vertente, não procede à exposição desse regime, nem concretiza em que medida é que da sua aplicação resulta o indeferimento do peticionado na Reclamação Graciosa, não fazendo sequer referência a essa questão na conclusão onde determina o indeferimento do peticionado”.

 

Vejamos se assiste razão aos Requerentes.

 

O citado artigo 268.º, n.º 3, da CRP prevê o seguinte:

“Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.

 

No âmbito do processo e procedimento tributário, esta norma é concretizada pelo disposto no artigo 77.º da LGT, que — no que importa para os presentes autos — tem a seguinte redação:

 

“1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

Tem sido entendimento assumido pela jurisprudência, designadamente pela jurisprudência do STA que:

 

“II - As características exigidas quanto à fundamentação formal do ato tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a atuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico).

III - Se o critério legal que foi adotado pela AT para apurar o lucro tributável está enunciado em termos claros e inteligíveis e foi inequivocamente compreendido pelo sujeito passivo, não ocorre falta de fundamentação.” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de março de 2018, proferido no processo nº 0512/17).

 

No mesmo sentido:

 

“I - A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os atos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT.

II - O ato estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º, nº 2, do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do ato ou o acionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efetivo controle da legalidade do ato, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.

III - Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspetos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato”. (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de abril de 2014, proferido no processo nº 01690/13).

 

Na Decisão RG, depois de sintetizar a posição dos Requerentes, a Requerida enuncia os motivos que a determinaram ao proferimento da Decisão RG com um concreto conteúdo, os quais são:

  

(i)                           o Decreto-Lei n.º 228/2002 revogou o regime previsto pela Lei 109-B/2001, e

(ii)                          o facto tributário que origina as mais-valias nasce e esgota-se no preciso momento da alienação e realização das mais-valias (18/janeiro/2019), sendo este o momento relevante para efeitos de aplicação no tempo da lei em vigor à data da alienação das ações;

o que refuta a posição defendida pelos Requerentes.

 

No fundo, o que estava em causa no procedimento de Reclamação Graciosa era a apreciação da questão jurídica: a aplicação, às mais-valias obtidas pelos Requerentes, do regime transitório previsto pela Lei nº 109-B/2001 (que os Requerentes entendem estar em vigor, mas que a Requerida entende que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 228/2002).

 

Conforme resulta da jurisprudência citada, a fundamentação da Decisão RG não tinha de ser exaustiva. Apenas tinha de ser clara, congruente, e encerrar os aspetos de facto e de direito que permitissem aos Requerentes e ao Tribunal conhecer e compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Requerida para concluir pela decisão de indeferimento da pretensão dos Requerentes — requisitos que estão preenchidos na Decisão RG, estando assim respeitadas quer as regras quanto à fundamentação formal, quer as regras quanto à fundamentação substancial.

 

Na verdade, do teor do PPA resulta de forma inequívoca que os Requerentes ficaram a conhecer o enquadramento factual e jurídico que está na génese da Decisão RG, de modo a conseguir optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do ato ou o acionamento dos meios legais de impugnação. Tanto assim é que os Requerentes não se conformaram com os argumentos expostos pela Requerida, e optaram por apresentar o presente PPA (no qual demonstraram ter pleno conhecimento dos argumentos da Decisão RG).

 

Termos em que, com os fundamentos melhor expostos supra, a primeira questão (a insuficiência de Fundamentação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa) é julgada improcedente.

 

Relativamente à 2ª Questão (a Exclusão de Tributação das Mais-Valias, com referência às Participações Sociais cuja aquisição remonta a 1995, por aplicação do regime transitório previsto no artigo 30.º n.º 9 da Lei n.º 109-B/2001 de 27 de Dezembro), os Requerentes alegam no PPA que na parte das participações sociais adquiridas pelos Requerentes em 1995, cuja alienação gerou a mais-valia controvertida, — contrariamente ao que resulta do processamento da declaração Modelo 3 —, deverá ser aplicável a exclusão de tributação, decorrente do (terceiro) regime transitório implementado pela Lei do Orçamento do Estado para 2002 — a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro —, ainda em vigor, na medida em que as referidas participações foram adquiridas antes de 31 de dezembro de 2002, tendo sido detidas por um período superior a 12 meses.

 

Ora, o artigo 12.º da LGT com a epígrafe “Aplicação da lei tributária no tempo”, no que respeita ao caso concreto, tem no seu número 1 a seguinte redação:

 

“1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer tributos retroativos”.

 

Nos termos desta norma (o artigo 12.º, n.º 1, da LGT), importa determinar qual é o momento em que se constitui o facto tributário, ou seja, in casu, em que momento os Requerentes obtiveram na sua esfera jurídica a mais-valia sujeita a IRS. A resposta a esta questão está no artigo 10.º, n.º 1, e n.º 3 do CIRS.

 

O artigo 10.º, n.º 1, do CIRS diz-nos que “1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis; b) Alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários”.

 

O artigo 10.º, n.º 3, do CIRS diz-nos que “Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:”,

 

Ou seja, in casu, o facto tributário (os “ganhos obtidos”) é constituído momento da prática do ato (venda de ações em 18/janeiro/2019) — momento relevante para efeitos de aplicação do disposto no artigo 12.º n.º 1 da LGT — sendo a lei em vigor em 18/janeiro/2019 (na ausência de disposição expressa do legislador em sentido diverso), a lei aplicável à tributação das mais-valias obtidas pelos Requerentes.

 

Vide neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de dezembro de 2019, proferido no processo nº 0514/12.0BESNT 0909/16:

 

“I - O Código do IRS estabelece, de forma clara e expressa, que constituem mais-valias os ganhos obtidos com a alienação onerosa de partes sociais, e que tais ganhos se consideram obtidos no momento da alienação - artigo 10º, nº 1, al. b), e nºs 3 e 4. E sendo o ganho apurado nesse preciso momento – pela diferença entre o valor de realização e o de aquisição do bem transmitido – as mais-valias não podem deixar de reportar-se a cada ganho de per si.

II - Razão por que o facto tributário nasce e esgota-se no momento autónomo e completo da alienação e da realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, pese embora o valor a considerar para a determinação da base tributável para efeitos de IRS seja o correspondente ao saldo anual apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.

III - A Lei nº 15/2010, de 26 de julho, é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”. Razão por que se impõe aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12º da LGT.

IV - As mais-valias produzidas antes de 27/07/2010 com a alienação de ações detidas há mais de 12 meses continuam a seguir o regime de não sujeição que vinha determinado no nº 2 do CIRS anteriormente às alterações introduzidas pela Lei nº 15/2010 de 26 de Julho, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43º do CIRS”.

 

O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de maio de 2016, proferido no processo nº 0784/15:

 

“II - Nas mais-valias resultantes da alienação onerosa de valores mobiliários sujeitas a IRS como incrementos patrimoniais o facto tributário ocorre no momento da alienação (artigo 10.º n.º 3 do Código do IRS), sendo esse o momento relevante para efeitos de aplicação no tempo da lei nova, na ausência de disposição expressa do legislador em sentido diverso (artigos 12.º n.º 1 da LGT e do CC).”

 

O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 5/2017, de 18 de setembro (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência):

 

“Uniformiza/confirma a jurisprudência do STA, nos seguintes termos: I - As alterações introduzidas ao regime tributário das mais-valias mobiliárias pela Lei n.º 15/2010, de 26 de julho apenas podem aplicar-se aos factos tributários ocorridos em data posterior à da sua entrada em vigor (27 de julho de 2010 - art. 5.º da Lei n.º 15/2010).

II - Nas mais-valias resultantes da alienação onerosa de valores mobiliários sujeitas a IRS como incrementos patrimoniais o facto tributário ocorre no momento da alienação (artigo 10.º n.º 3 do Código do IRS), sendo esse o momento relevante para efeitos de aplicação no tempo da lei nova, na ausência de disposição expressa do legislador em sentido diverso (artigos 12.º n.º 1 da LGT e do CC)”.

 

E vide ainda, entre muitos outros, o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nº 5/2015, de 26 de outubro:

 

“As mais-valias decorrentes de atos de alienação de ações detidas há mais de 12 meses que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da Lei nº 15/2010, de 26 de julho, particularmente no período compreendido entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010, continuam a seguir o regime legal de não sujeição a tributação previsto no n.º 2, alínea a), do artigo 10.º do Código do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43.º do CIRS”.

 

Esclarecido o regime geral de aplicação da lei no tempo, resta-nos determinar se, conforme defendem os Requerentes, o terceiro regime transitório previsto na Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, Lei do Orçamento do Estado para 2002 (doravante, LOE 2002) ainda está em vigor, determinando a exclusão de tributação das mais-valias mobiliárias obtidas pelos Requerentes.

Vejamos então.

 

Na sua versão original, o artigo 10.º do CIRS (versão do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de novembro de 1988) previa no n.º 1 e no n.º 2:

 

“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos comerciais, industriais ou agrícolas, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;

b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua amortização, e de outros valores mobiliários;

c) Alienação onerosa da propriedade intelectual ou industrial ou de experiência adquirida no sector comercial, industrial ou científico, quando o transmitente não seja o seu titular originário;

d) Cessão onerosa de arrendamento e de outros direitos e bens afetos, de modo duradouro, ao exercício de atividades profissionais independentes, incluindo a afetação permanente daqueles bens a fins alheios à atividade exercida.

2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de:

a) Obrigações e outros títulos de dívida;

b) Unidades de participação em fundos de investimento;

c) Ações detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses”.

 

Conforme alegam os Requerentes, a Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro de 2000 — que reformou a tributação do rendimento e adotou medidas destinadas a combater a evasão e fraude fiscais — entre muitas outras, alterou no CIRS:

 

(i) o artigo 10.º, n.º 2, passando a redação da norma a ser a seguinte: “Quando o saldo apurado relativamente aos valores mobiliários referidos na alínea b) do n.º 1 for inferior a 200000$00, não há lugar a tributação, fazendo-se o englobamento apenas para o efeito de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos”; e

(ii) o artigo 41.º n.º 2, passando a redação da norma a ser a seguinte: “O saldo referido no n.º 1, respeitante às transmissões previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado: a) Em 75% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários forem detidos durante menos de 12 meses; b) Em 60% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários forem detidos por período entre 12 e 24 meses; c) Em 40% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários forem detidos por período entre 24 e 60 meses; d) Em 30% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários forem detidos durante 60 ou mais meses”.

 

O artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, prevê expressamente um regime transitório aplicável à tributação das mais-valias mobiliárias: “A nova redação dos artigos 10.º, 41.º e 75.º do Código do IRS é apenas aplicável às partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos após a data de entrada em vigor da presente lei [1 de janeiro de 2001, nos termos do artigo 21.º do mesmo diploma], mantendo-se o regime anterior de tributação para as mais-valias e menos-valias de partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos antes dessa data”.

 

Em 2001, é aprovada a LOE 2002, que alterou o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, passando a norma a prever que: “Está isento, quando englobado, o saldo positivo apurado nas operações referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 na parte correspondente a (euro) 2500, fazendo-se aquele apenas para efeito de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos”. A LOE 2002 alterou também o disposto no artigo 41.º n.º 2 do CIRS, passando a redação da norma a ser a seguinte: “O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações efetuadas por residentes previstas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor, líquido da parte isenta nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, não relevando para o cômputo do referido saldo as perdas apuradas quando a contraparte da operação estiver sujeita no país, território ou região de domicílio a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças”.

 

Efetivamente, conforme defendem os Requerentes, o artigo 30.º n.º 9 da LOE 2002 prevê ainda o seguinte regime transitório:

  

“Às mais-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, e de partes sociais e de outros valores mobiliários, incluindo warrants autónomos, durante os anos de 2001 e 2002, aplica-se o regime de tributação constante dos artigos 41.º e 75.º do Código do IRS, e do artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na versão anterior à nova redação introduzida pelos artigos 1.º e 10.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e à republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, beneficiando ainda de uma exclusão de tributação as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, bem como de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, quando estes títulos sejam adquiridos até 31 de Dezembro de 2002, e sendo o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias apuradas na transmissão onerosa de partes sociais que não se encontrem nestas condições, desde que adquiridas até 31 de dezembro de 2002, sujeito a uma taxa especial de 10%”.

 

Com este regime transitório, a LOE 2002 está a ressalvar:

  

(i) As mais-valias decorrentes da alienação de ações (detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses) ocorridas durante os anos de 2001 e 2002 — ou seja, ressalva a alienação de ações realizada antes da entrada em vigor da LOE 2002; e

(ii) as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação de ações (detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses), quando estes títulos sejam adquiridos até 31 de dezembro de 2002 — ou seja, quando os títulos sejam adquiridos antes da entrada em vigor da LOE 2002.

 

Em 2002 (na vigência da LOE 2002) o legislador voltou a introduzir alterações ao regime da tributação das mais-valias mobiliárias em sede de IRS, através do Decreto Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro (doravante, DL 228/2002), cujo preâmbulo nos diz o seguinte:

  

“O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias derivados da alienação onerosa de valores mobiliários, aquando da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi significativamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.

Os traços mais salientes do quadro então instituído consistiram na abolição da exclusão tributária de que beneficiavam as mais-valias provenientes da alienação de obrigações e de outros títulos de dívida e da alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, passando a incidir uma tributação generalizada sobre estes rendimentos, atenuada por uma isenção de base para os saldos positivos inferiores a determinado montante e pela consideração dos saldos positivos ou negativos em percentagem variável em função do período de detenção dos títulos pelo alienante.

Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, não chegou a ser aplicado.

O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos e, no Estatuto dos Benefícios Fiscais, do regime aplicável aos rendimentos dos fundos de investimento, que vigoraram até à publicação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.”

 

Conforme resulta expressamente do disposto no artigo 11.º da LGT, “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. O artigo 11.º, n.º 1, da LGT remete para as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis, designadamente para o disposto no artigo 9.º do Código Civil, que nos diz:

 

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O Decreto-Lei nº 228/2002 altera o disposto no artigo 10.º n.º 2 do CIRS, passando a norma a prever que “2 - Excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de: a) Ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses; b) Obrigações e outros títulos de dívida”. Este diploma regula o regime das mais-valias mobiliárias, e conforme resulta do preâmbulo repõe no ordenamento jurídico as linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos e, no Estatuto dos Benefícios Fiscais, do regime aplicável aos rendimentos dos fundos de investimento, que vigoraram até à publicação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro — ou seja, o regime de exclusão de tributação das mais-valias mobiliárias adquiridas há mais de 12 meses — o que demonstra que ao contrário do que pretendem os Requerentes, o DL 228/2002 pretende substituir o regime anterior de tributação das mais-valias mobiliárias.

 

O DL 228/2002 produz efeitos a partir de 1 de janeiro de 2003 (artigo 3.º), ou seja, a partir do momento em que deixa de estar em vigor o regime transitório previsto no artigo 30.º n.º 9 da LOE 2002. O DL 228/2002 não prevê a fixação de qualquer regime transitório, nem poderia prever, uma vez que a norma habilitante (a lei de autorização legislativa, Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio) na fixação do sentido e extensão da legislação a aprovar pelo Governo (artigo 2.º) não prevê a fixação de um regime transitório (nem a manutenção em vigor do regime transitório do artigo 30.º n.º 9 da LOE 2002). A lei de autorização legislativa é clara ao estabelecer que o sentido e extensão da legislação a aprovar pelo Governo é a seguinte:

  

“a) Excluir de tributação as mais-valias provenientes da alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, bem como obrigações e outros títulos de dívida;

b) Obrigar a declarar a alienação onerosa das ações, ainda que detidas durante mais de 12 meses, bem como as datas das respetivas aquisições;

c) Aplicar uma taxa especial de 10% ao saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias resultante das operações previstas nas alíneas b), e) e f) do artigo 10.º do Código do IRS;

d) Prever a possibilidade de opção pelo englobamento nos casos previstos na alínea anterior, bem como do reporte do resultado negativo apurado num determinado ano, para os dois anos seguintes, aos rendimentos com a mesma natureza previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRS;

e) Sujeitar a tributação autónoma o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias resultante dos fundos de investimento, apurado em determinado ano, à taxa de 10%, quer aquelas sejam ou não obtidas em território português, nas mesmas condições em que se verificaria se desses rendimentos fossem titulares pessoas singulares residentes em território português”.

 

O preâmbulo do DL 228/2002 é também claro ao prever que “Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, não chegou a ser aplicado”.

 

Assim, na reconstituição do pensamento legislativo que levou à aprovação do DL 228/2002 — tendo em conta (i) as circunstâncias em que o DL 228/2002 foi elaborado (no uso de Lei de autorização legislativa, a Lei n.º 16-B/2002), e (ii) as condições específicas do tempo em que o mesmo foi aplicado — concluímos que a solução consagrada pelo legislador no DL 228/2002 foi a de substituir o regime anterior, repondo a exclusão de tributação em sede de IRS das mais-valias mobiliárias em vigor até à entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro (cujos efeitos apenas foram estendidos para 2001 e 2002 pela aplicação do regime transitório da LOE 2002).

 

Ao demonstrar a intenção de: (i) substituir o regime anterior, repondo o regime legal anterior à entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro (de uma forma ainda mais favorável ao contribuinte, uma vez que o período mínimo de detenção das ações passou para 12 meses), e (ii) criar uma linha de continuidade entre o regime legal anterior à Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, e o regime transitório do artigo 30.º n.º 9 da LOE 2002; o legislador demonstra a intenção de através do DL 228/2002 criar um regime de tributação das mais-valias mobiliárias de continuidade com o regime originário do CIRS, revogando (i) o regime da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e diplomas subsequentes (que inclusivamente declara no preâmbulo que não chegou a ser aplicado dado o regime transitório do artigo 30.º, n.º 9, da LOE 2002), e (ii) o regime transitório do artigo 30.º, n.º 9, da LOE 2002, que com o novo DL 228/2002 se tornou inútil.

 

Se a intenção do legislador fosse manter o regime transitório do artigo 30.º, n.º 9, da LOE 2002, nos termos do artigo 165.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, tal intenção estaria expressa no objeto, sentido, e na extensão da lei de autorização legislativa (a Lei n.º 16-B/2002) — dado a matéria regulada no DL 228/2002 ser matéria da Reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, al. i), da Constituição da República Portuguesa) — o que não está.

 

Ademais, conforme resulta da Decisão do CAAD proferida no processo nº 25/2011 T, nos termos do artigo 7.º n.º 2 do Código Civil, “A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior”. Resulta do teor do DL 228/2002 que a intenção do legislador foi “regular toda a matéria da lei anterior” no que respeita à tributação das mais-valias mobiliárias — o que significa que o DL 228/2002 revogou o regime transitório do artigo 30.º, n.º 9, da LOE 2002.

 

Uma vez que a Constituição da República Portuguesa pressupõe um sistema judicial seguro e uniforme, citamos a Decisão do CAAD de 10 de agosto de 2012 proferida no processo nº 25/2011 T — com a qual concordamos e para a qual expressamente remetemos — no que respeita ao ponto que a seguir transcrevemos, que julga uma questão similar à 2.ª Questão em causa nos autos:

“Antes de mais considera-se pertinente tomar nota da evolução do regime legal de tributação das mais-valias de acções e as sucessivas alterações que a mesma sofreu desde a entrada em vigor do CIRS. Assim, tal como referem os Requerentes nos artigos 32º a 56º do requerimento de constituição do Tribunal arbitral:

“O artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, na sua redação originária, resultante do Decreto-Lei n.º 482-A/88, de 30 de novembro, introduziu no sistema fiscal português, como regra geral, a tributação dos ganhos realizados com a alienação de valores mobiliários e outras participações sociais: «constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos comerciais, industriais ou agrícolas, resultem de: […] b) alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua amortização e de outros valores mobiliários».

Os ganhos resultantes da alienação de participações e outros valores mobiliários passaram então a integrar o rendimento tributável dos respectivos alienantes, em sede de tributação do rendimento, enquanto rendimentos da Categoria G do IRS.

A referida norma de incidência de IRS foi, no entanto, delimitada negativamente através do regime consagrado no então artigo 10.º, n.º 2, alínea c), do Código do IRS, o qual estabeleceu delimitação negativa de incidência das mais-valias tributáveis em sede de IRS: «excluem-se do disposto no número anterior [artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS] as mais-valias provenientes da alienação de: […] c) acções detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses».

Paralelamente ao regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da reforma fiscal de 1988, o legislador fiscal consagrou ainda um regime transitório para os rendimentos da Categoria G do IRS, no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 482-A/88, de 30 de novembro: «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código [Código do IRS]».

Desde a sua génese, o regime de tributação das mais-valias mobiliárias em sede de IRS foi, portanto, evoluindo com base na referida matriz, consubstanciada na existência simultânea de uma regra geral de incidência, constante do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, cujo âmbito e eficácia seriam no entanto condicionados pela existência de normas de delimitação negativa de incidência e de isenção, bem como pelo regime transitório da Categoria G consagrado no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º442-A/88, de 30 de novembro.

O referido modelo de tributação de mais-valias mobiliárias assentava ainda no englobamento facultativo dos referidos rendimentos, bem como na respectiva sujeição a tributação mediante uma taxa especial única e proporcional.

Destacam-se as seguintes alterações a que, no quadro da referida matriz, o regime de tributação das mais-valias mobiliárias em sede de IRS foi sujeito, entre 1989 e 2010, os quais se analisarão seguidamente:

1.            Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro;

2.            Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro;

3.            Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro; e

4.            Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei n.º 15/2010, de 2 de julho.

Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei

n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro

A Lei n.º 30G/2000, de 29 de dezembro, introduziu profundas alterações ao regime de tributação das mais-valias mobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes em Portugal, que resultara da aprovação do Código do IRS em 1988.

Na sequência das alterações introduzidas pela Lei acima referida,

mantendo-se a norma geral de incidência constante do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, a norma de delimitação negativa de incidência resultante do artigo 10.º, n.º 2, do Código do IRS, foi profundamente alterada, passando a dispor o seguinte: «quando o saldo apurado relativamente aos valores mobiliários referidos na alínea b) do n.º 1 for inferior a 200 000$00, não há lugar a tributação, fazendo-se o englobamento apenas para o feito de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos».

Adicionalmente, de acordo com as alterações introduzidas pela Lei n.º

30-G/2000, de 29 de Dezembro, o saldo anual das mais-valias mobiliárias passou a ser de englobamento obrigatório e, consequentemente, sujeito a tributação de acordo com as taxas progressivas do artigo 68.º do Código do IRS, em consequência da revogação do artigo 75.º, n.º 2, do Código do IRS, o qual previa uma taxa de tributação especial para o saldo anual das mais-valias mobiliárias tributáveis.

De acordo com o regime do artigo 41.º do Código do IRS, resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, o referido saldo anual seria considerado i) em 75% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários alienados fossem detidos durante menos de 12 meses, ii) em 60% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários alienados fossem detidos por um período entre 12 e 24 meses, iii) em 40% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários forem detidos por período entre 24 e 60 meses e iv) em 30% do seu valor, quando as partes sociais ou outros valores mobiliários fossem detidos durante 60 meses ou mais.

Nos termos do artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, as referidas alterações ficaram, no entanto, sujeitas a um regime transitório: «a nova redacção dos artigos 10.o, 41.o e 75.o do Código do IRS é apenas aplicável às partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos após a data de entrada em vigor da presente lei, mantendo-se o regime anterior de tributação para as mais-valias e menos-valias de partes sociais e outros valores mobiliários adquiridos antes dessa data».

Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei

n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro

A Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, introduziu igualmente alterações ao regime de tributação das mais-valias mobiliárias em sede de IRS, para os sujeitos passivos residentes em Portugal.

Com efeito, embora mantendo o regime de englobamento obrigatório das mais-valias mobiliárias, a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, alterou o método de determinação do rendimento colectável, passando o saldo anual das mais-valias e menos-valias, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS, a ser considerado apenas em 50% do seu valor, líquido da parte isenta, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do Código do IRS.

Além dessa alteração, o artigo 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, instituiu um regime transitório de tributação das mais-valias mobiliárias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida e de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, e de partes sociais e de outros valores mobiliários, incluindo warrants autónomos, realizadas durante os anos de 2001 e 2002, nos termos do qual estas mais-valias estariam sujeitas ao regime de tributação constante dos artigos 41.º e 75.º do Código do IRS, e do artigo 19.º do EBF, na versão anterior à redação introduzida pelos artigos 1.º e 10.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, acima referida.

Por outro lado, o artigo 30.º, n.º 9, 2.ª parte, do Código do IRS, introduziu ainda um regime de exclusão de tributação das mais-valias mobiliárias resultantes de acções detidas por período superior a 12 meses, que tenham sido adquiridas até 31 de dezembro de 2002.

Com efeito, nos termos da norma em referência, beneficiam de uma exclusão de tributação «as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, bem como de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, quando estes títulos sejam adquiridos até 31 de dezembro de 2002, e sendo o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias apuradas na transmissão onerosa de partes sociais que não se encontrem nestas condições, desde que adquiridas até 31 de dezembro de 2002, sujeito a uma taxa especial de 10%».

Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultante da Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro

Ao abrigo da autorização legislativa resultante da Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio, o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro veio repor as linhas essenciais do regime de tributação de mais-valias mobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes em sede de IRS, que se encontravam em vigor em momento anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 30-G/20000, de 29 de dezembro.

Neste contexto, foi reintroduzida, no artigo 10.º, n.º 2, alínea a), do Código do IRS, a delimitação negativa da incidência de IRS sobre as mais-valias mobiliárias resultantes da alienação de acções detidas pelo respectivo titular durante mais de 12 meses.

Por outro lado, de acordo com as alterações introduzidas pela Lei em referência aos artigos 72.º, n.º 4, e 22.º, n.º 3, do Código do IRS, foi reintroduzida a tributação das mais-valias mobiliárias mediante taxa especial única e proporcional, sendo o respectivo englobamento meramente facultativo.

Regime de tributação das mais-valias mobiliárias resultantes da Lei

n.º 15/2010, de 26 de julho

A Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, introduziu um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20%, com regime de isenção para os pequenos investidores, consagrado no artigo 72.º do EBF, nos termos do qual «fica isento de IRS, até ao valor anual de € 500, o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias resultantes da alienação de acções, de obrigações e de outros títulos de dívida, obtido por residentes em território português».”

13.          Cumpre decidir se o artigo 30º, nº 9, da Lei 109-B/2001, de 27 de dezembro, está ou não em vigor e se, em caso de resposta afirmativa, o mesmo é aplicável às quotas em questão, posteriormente transformadas em ações (11 de julho de 2007). Este preceito foi aprovado com a seguinte redação:

“Às mais-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, e de partes sociais e de outros valores mobiliários, incluindo warrants autónomos, durante os anos de 2001 e 2002, aplica-se o regime de tributação constante dos artigos 41.º e 75.º do Código do IRS, e do artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na versão anterior à nova redacção introduzida pelos artigos 1.º e 10.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, e à republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de julho, beneficiando ainda de uma exclusão de tributação as mais-valias e as menos-valias resultantes da alienação de obrigações e outros títulos de dívida, bem como de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, quando estes títulos sejam adquiridos até 31 de Dezembro de 2002, e sendo o saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias apuradas na transmissão onerosa de partes sociais que não se encontrem nestas condições, desde que adquiridas até 31 de Dezembro de 2002, sujeito a uma taxa especial de 10%.”

Por sua vez, o art. 1º do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de outubro, sob a epígrafe “Alteração ao Código do IRS”, tinha a seguinte redação:

“Os artigos 10.º, 22.º, 43.º, 55.º, 72.º e 101.º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de julho, e pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:

(…)”

Segundo o art. 3º do indicado diploma, o mesmo entrou em vigor em 1.01.2003.

Daqui resulta, por um lado, uma nova regulação global da matéria em questão (que no essencial veio repor o regime anterior à lei 10.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro) ficando as mais-valias de ações adquiridas até 21.12.2002, detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, submetidas a idêntica regulamentação material à do art. 30º, nº 9 da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro.

Sobre esta questão escreve Paula Rosado Pereira que “O regime estabelecido acima descrito, estabelecido pela Lei nº 30-G/2000, não chegou, todavia, a ser aplicado. Num primeiro momento, a Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro – Orçamento de Estado para 2002- estabeleceu um regime transitório de tributação aplicável às mais-valias mobiliárias apuradas nos anos de 2001 e 2002. Nos termos do aludido regime transitório, suspendia-se, para os referidos anos de 2001 e 2002, a aplicação do regime fiscal estabelecido pela Lei nº 30-G/2000 para as mais-valias resultantes da alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários.

Subsequentemente, o Decreto-Lei nº 228/2002, de 31 de outubro, em execução da autorização legislativa concedida pela Lei nº 16-B/2002, de 31 de maio, veio repor, no Código do IRS, as linhas essenciais do regime de tributação das mais-valias mobiliárias que tinham vigorado até à publicação da Lei nº 30-G/2000” (Estudos Sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Cadernos IDEFF, nº 2, Almedina, 2007, reimpressão, pags. 139-140, negrito nosso).

Na mesma linha se pronuncia Luís Máximo dos Santos: “Com a Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, procurou pôr-se fim a esta situação de exclusão tributária, criando-se um regime de tributação sobre o qual não se justifica entrar aqui em detalhes, por desnecessários. O regime criado por esse diploma legal foi, no entanto, suspenso pela Lei de Orçamento de Estado para 2002 (a Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro), que estabeleceu um regime transitório aplicável às mais-valias mobiliárias apuradas nos anos de 2001 e 2002. Mais tarde, na sequência de eleições legislativas que determinaram a eleição de um governo com nova composição partidária, surgiu a Lei nº 16-B/2002, de 31 de maio, que autorizava o governo a legislar na matéria. A autorização legislativa foi executada pelo Decreto-Lei nº 228/2002, de 31 de maio, que repôs em vigor o regime de tributação das mais-valias mobiliárias anterior à Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, e que actualmente se mantêm nas condições supra descritas” (in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Almedina, Ano II, nº 4, 12 09, Inverno, pags. 177-178, negrito nosso).

Por sua vez, escrevem Serena Cabrita Neto/Victor Amaro/Tiago Sousa “:(…) o irá permanecer são dois regimes, ditos “transitórios, mas cuja duração irá certamente exceder qualquer regime regra alguma vez vigente ou a vigorar no IRS. Estes regimes são os constantes dos citados artigos 3º, nº 5, da Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, e 30º, nº 9, da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro, a que poderemos acrescentar ainda um outro “regime transitório” previsto no art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de novembro (…)” (Fiscalidade, nº 17, 2004, pags 52-53).

De referir, todavia, que a três normas em questão não parecem ter a mesma natureza. Enquanto os artigos 3º, nº 5, da Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, e 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de novembro, constituem direito transitório (nas Palavras de A. Santos Justo o direito transitório consiste na “disciplina que a própria LN oferece para resolução do seu conflito com a lei antiga”. Cfr. Introdução ao Estudo do Direito, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2006, pag. 367) no caso do 30º, nº 9, da Lei nº 109-B/2001, de 27 de dezembro, a sua finalidade não é a resolução do conflito entre a lei nova (nova redacção do art. 10º, nº 2) e a lei antiga (art. 10º, nº 2, na redação da lei nº 30-G/2000), mas sim estabelecer um regime temporário, que corresponde materialmente ao regime que existia antes da aprovação da lei antiga.

Dispõe o art. 7º, nº 2, do Código Civil que “a revogação pode resultar (…) da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior”. Como nos diz Inocêncio Galvão Telles “A revogação tácita, além do caso mais característico da incompatibilidade descrita, também se dá quando uma lei nova regula globalmente matéria já regulada por lei anterior, sem contudo fazer desta uma revogação expressa” (Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, Coimbra Editora, 11ª Edição, 2001 (Reimpressão), pag. 111).

Entende-se, assim, que a norma em questão foi revogada pelo Decreto-Lei nº 228/2002, de 31 de outubro, diploma que veio estabelecer uma “nova” regulação global da tributação das mais-valias mobiliárias (que consistiu na reposição das linhas essenciais do regime original do Código do IRS). Esta conclusão mostra-se coerente com as razões que levaram às diversas alterações legislativas (pese embora a inconstância das mesmas), bem como com o preâmbulo do diploma confirma ter sido este o pensamento legislativo pois aí se pode ler:

“Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, não chegou a ser aplicado.

O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos”

Entende-se, pois, que a norma invocada pelos Requerentes cessou a sua vigência em 31.12.2002, tendo, a partir daí, tal matéria sido regulada, pelo regime emergente do Decreto-Lei nº 228/2002, de 31 de outubro. Consequentemente, a pretensão da Requerente de alicerçar a anulação do acto tributário no art. 30º, nº 9, da Lei 109-B/2001, de 27 de dezembro, improcede”.

 

Termos em que, com os fundamentos melhor expostos supra, a 2ª Questão (a Exclusão de Tributação das Mais-Valias, com referência às Participações Sociais cuja aquisição remonta a 1995, por aplicação do regime transitório previsto no artigo 30.º, n.º 9, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro) é também julgada improcedente.

 

Uma vez julgadas improcedentes ambas as questões alegadas pelos Requerentes no PPA, é julgado totalmente improcedente o PPA, ficando assim prejudicado o conhecimento de outras questões, designadamente a apreciação do direito dos Requerentes ao reembolso parcial do IRS pago e ao recebimento de juros indemnizatórios.

 

V.           DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  

a) JULGAR TOTALMENTE IMPROCEDENTE o presente pedido de pronúncia arbitral, e

b) CONDENAR os Requerentes no pagamento das custas do processo.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 1 503 360,79.

 

VII.         CUSTAS

 

O montante das custas, a cargo dos Requerentes é fixado em EUR 20 196,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 2, e no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).

 

             Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de outubro de 2021.

 

O Árbitro Presidente,

(Dr. José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal,

(Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso)

 

O Árbitro Vogal,

(Prof. Dr. Jorge Bacelar Gouveia)