DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A. AS PARTES. CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL. TRAMITAÇÃO DO PROCESSO.
1. No dia 26 de Novembro de 2020, A..., contribuinte fiscal nº..., e sua mulher B..., residentes em ...– ..., ..., Reino Unido, correspondendo este domicílio ao Serviço de Finanças de Lisboa - ... (doravante, abreviadamente, designados por Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente, designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos tributários das seguintes liquidações de IRS: nº 2020..., respeitante aos rendimentos do ano de 2019, no valor de 25.207,60 euros, em nome do Requerente marido e nº 2020..., respeitante aos rendimentos do ano de 2019, no valor de 29.066,20 euros, em nome da Requerente mulher, efectuadas pela Autoridade Tributária (doravante, designada, abreviadamente, por Requerida)
2. Para justificarem o seu pedido alegaram os Requerentes:
- Os Requerentes foram notificados para pagarem as indicadas quantias, respeitantes às liquidações acima referidas, sendo a data limite de pagamento 31/08/2020.
- No dia 24/08/2020, os Requerentes procederam ao pagamento dos montantes correspondentes a estas liquidações
- Os Requerentes por não concordarem com as liquidações apresentaram em 26/11/2020 o presente pedido de pronúncia arbitral.
3 - No dia 27/11/2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea a) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 18/01/2021, as Partes foram notificadas dessa designação não tendo manifestado vontade de recusar.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 03/05/2021.
7. No dia 07/06/2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação e juntou o processo administrativo (PA).
8. No dia 13/09/2021, foi proferido despacho arbitral dispensando a reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, concedendo um prazo de quinze dias para a apresentação de alegações escritas, sucessivas e facultativas indicando a data do termo do prazo para a prolação da decisão arbitral.
9. No dia 01/10/2021 foram apresentadas alegações escritas pelos Requerentes reiterando e desenvolvendo a sua posição jurídica.
10. A Requerida não apresentou alegações escritas.
11. Em 21/10/2021 foi proferida a decisão arbitral.
B. PRETENSÃO DO REQUERENTE E SEUS FUNDAMENTOS
- O Requerente A... foi notificado para pagar a quantia de € 25.207,60 relativa aos rendimentos do ano de 2019, tendo o prazo de pagamento terminado em 31.08.2020.
- A Requerente B... foi notificada para pagar a quantia de € 29.066,20 relativa aos rendimentos do ano de 2019, tendo o prazo de pagamento terminado em 31.08.2020.
- Os Requerentes efetuaram o pagamento do imposto constante de cada uma das referidas liquidações em 24.08.2020.
- As liquidações objeto do pedido resultaram das declarações de rendimentos apresentadas por cada um dos Requerentes em 26.05.2020, relativa aos rendimentos obtidos em Portugal em 2019.
- Os Requerentes (casados no regime da separação de bens) obtiveram apenas os rendimentos resultantes da alienação onerosa de um imóvel sito em Portugal, de que são comproprietários, que incluíram no Anexo G das suas declarações de rendimentos.
- No rosto das declarações modelo 3/IRS apresentadas pelos Requerentes constam os seguintes dados quanto à sua residência fiscal:
· Não residente;
· País de residência: 826 (Reino Unido);
· Pretende a tributação pelo regime geral (opção aplicável a quem reside na União Europeia ou no Espaço Económico Europeu);
- No referido Anexo G, os Requerentes declararam a alienação onerosa do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ... (código correspondente à União das Freguesias de ... e ... do concelho de Cascais).
- Tendo aí declarado que a quota-parte de cada um dos Requerentes no imóvel é de 50%.
- Quanto à realização/alienação do imóvel, os Requerentes declararam o seguinte:
· Ano: 2019
· Mês: 7;
· Valor: 277.500,00
- Com efeito, por escritura outorgada no dia 26.7.2019, os Requerentes alienaram o imóvel inscrito na matriz sob o artigo ... pelo preço de € 555.000,00 (277.500 x 2).
- Quanto à aquisição do imóvel os Requerentes declararam o seguinte nas respetivas declarações de rendimentos:
· Ano: 2016
· Mês: 9;
· Valor: 152.500,00
- O imóvel foi adquirido pelos Requerentes por escritura outorgada em 18.9.2016, pelo preço de € 305.000,00 (152.500 x 2).
- O valor de aquisição do imóvel beneficia da atualização prevista no artº 50º do CIRS, pela aplicação do coeficiente 1,02 previsto na Portaria 362/2019 para imóvel adquirido em 2016.
- Sendo o valor da aquisição corrigido para € 311.100,00 para efeitos de determinação da matéria coletável do IRS, que corresponde ao valor de € 155.550 para cada um dos Requerentes.
- No Anexo G da declaração de rendimentos do Requerente A..., este declarou “Despesas e Encargos” no valor de € 31.922,85.
- No Anexo G da declaração de rendimentos da Requerente B... esta declarou “Despesas e Encargos” no valor de € 18.142,13.
- As Despesas e Encargos acrescem ao valor de aquisição para efeitos da determinação das mais valias sujeitas a imposto.
- Na liquidação do Requerente A..., o imposto apurado de € 25.207,60 foi calculado pela aplicação da taxa de tributação autónoma de 28% (prevista no artº 72 nº 1 al. a) do CIRS) sobre a matéria coletável de € 90.027,15 [277.500,00 – (155.550,00 + 31.922,85)].
- Na liquidação da Requerente B..., o imposto apurado de € 29.066,20 foi calculado pela aplicação da taxa de tributação autónoma de 28% (prevista no artº 72 nº 1 al. a) do CIRS) sobre a matéria coletável de € 103.807,87 [277.500,00 – (155.550,00 + 18.142,13)].
- A AT considerou a totalidade do saldo da mais valia apurada por cada um dos Requerentes para efeitos de aplicação da taxa de tributação autónoma das mais-valias auferidas por não residentes (taxa de 28% prevista no artº 72 nº 1 al. a) do CIRS).
- Não tendo a AT aplicado à liquidação do imposto devido pelos Requerentes a regra prevista no artº 43 nº 2 al. a) do CIRS, que determina que, nas transmissões onerosas de bens imóveis efetuadas por residentes, se considere apenas 50% do saldo das mais valias apuradas.
- Os Requerentes são naturais do Reino Unido, têm nacionalidade britânica e residem no Reino Unido, conforme resulta das escrituras de compra e venda.
- À data do facto tributário, os Requerentes tinham o seu domicílio fiscal no Reino Unido, em ... ..., Reino Unido, conforme resulta da escritura de compra venda de 26.07.2019 e dos prints do Portal das Finanças.
- À data do facto tributário (2019) o Reino Unido fazia parte da União Europeia.
- No entender dos Requerentes, tendo em conta os referidos pressupostos de facto, tem de se concluir que os atos tributários objeto do pedido de pronúncia são ilegais.
- Com efeito, a AT considerou como base de incidência do imposto a totalidade do ganho obtido pelos Requerentes, constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, acrescido das despesas e encargos– cfr artº 10 nº 4 al. a) e artº 51º do CIRS.
- Contudo, a AT deveria ter excluído da tributação 50% do ganho obtido pelos Requerentes.
- Sujeitando a tributação (à taxa de 28% prevista no artº 72 nº 1 al. a) do CIRS à data do facto tributário) apenas 50% do ganho obtido pelos Requerentes.
- Ou seja, € 45.013,58 [277.500,00 – (155.550,00 + 31.922,85) x 50%] em relação ao Requerente A... e € 51.903,94 [277.500,00 – (155.550,00 + 18.142,13) x 50%] em Relação à Requerente B... .
- Na verdade, deveria a AT ter aplicado aos Requerentes o disposto no artº 43º nº 2 alínea b) do CIRS.
- Com efeito, a não aplicação da regra prevista no artº 43º nº 2 al. b) do CIRS aos não residentes (ou pelo menos aos que residam noutro Estado membro da União Europeia) viola o Tratado de Funcionamento da União Europeia.
- Desde logo porque se traduz num regime fiscal menos favorável para os não residentes.
- Efetivamente, a base de incidência de imposto dos residentes é 50% do ganho, enquanto a base de incidência do imposto dos não residentes é de 100%.
- Constituindo assim uma discriminação entre os residentes em Portugal e os não residentes, proibida genericamente pelo artº 18º do Tratado de Funcionamento da EU.
- Como é sabido, o princípio da não discriminação é um princípio fundamental na construção da União Europeia.
- Devendo ser interpretado como imposição de tratamento igual entre cidadãos, conforme tem sido reafirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
- Por sua vez, a tributação da totalidade do ganho obtido por não residentes em virtude da não aplicação do artigo 43º nº 2 al. b) do CIRS traduz-se numa restrição à liberdade de circulação de capitais.
- Na verdade, é inequívoco que este regime torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes.
- Ou seja, o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes que realizem mais-valias imobiliárias em Portugal condiciona e restringe a livre circulação de capitais entre os Estados.
- Violando por isso o artº 63º do Tratado de Funcionamento da EU.
- Assim, tem de se concluir que o nº 2 al. b) do artigo 43º do CIRS, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas aos residentes em Portugal, constitui uma discriminação entre residentes e não residentes.
- Violando assim os mencionados artºs 18º e 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
- Sendo que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio do primado do direito europeu e da prevalência da interpretação do TJUE sobre o direito de fonte comunitária (cfr artº 8º nº 4 da Constituição da República Portuguesa).
- Tendo já sido decidido no “Acórdão Hollmann” do TJUE que a norma do artº 43º nº 2 do CIRS viola o artº 63º do TJUE (antigo artº 56º do TUE).
- É certo que, na sequência do “Acórdão Hollmann”, foram aditados na Lei do Orçamento de Estado para 2008 os nºs 7 e 8 ao artº 72º do CIRS (nºs 13 e 14 à data do facto tributário).
- Aí se estabelecendo um regime opcional entre a tributação de 100% do ganho à taxa de 28% (regime geral dos não residentes) e o regime equiparado ao que vigora para os residentes, tomando-se em consideração neste regime todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal.
- Porém, essa alteração legislativa não eliminou a discriminação entre residentes e não residentes, pois mantém em vigor o regime discriminatório resultante do artigo 43º nº 2 do CIRS.
- Conforme já foi decidido pelo “Acórdão Gielen” proferido em 18.3.2010 pelo TJUE (Processo C-440/08), em que estava em causa a violação do artº 49º do TFUE.
- Verificando-se desse modo uma incompatibilidade entre o artº 43 nº 2 do CIRS com e o Direito Comunitário mesmo quando está em causa um residente em país terceiro (cfr nesse sentido “Acórdão Jahin” do TJUE de 18.1.2018 no Processo C-45/17 e Decisão Arbitral do CAAD de 6.6.2020 no Processo 846/2019-T).
- A orientação do “Acórdão Hollmann” e do Acórdão “Gielen” tem sido acolhida pela Jurisprudência do CAAD e dos Tribunais Tributários, citando-se, a título de exemplo, o Acórdão do STA de 20.02.2019 proferido no Processo 0901/11 (em que está em causa liquidação posterior à alteração do artº 72º do CIRS), e várias decisões arbitrais do CAAD.
- Por tudo, pois, tem de se concluir que a não aplicação da norma do artigo 43º n º 2 al. b) do CIRS aos residentes noutros Estados membros da EU (ou mesmo residentes em país terceiro) é incompatível com os artigos 18º e 63º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia.
- Sendo assim ilegais as liquidações objeto do pedido, por terem desconsiderado a aplicação dessa norma no cálculo do imposto devido por cada um dos Requerentes.
- Aplicando-se a norma do artº 43º nº 2 al. b), o ganho do Requerente A... sujeito a imposto é apenas de € 45.013,58 (90027,15 x 50%) e não de € 90.027,15 conforme foi considerado na liquidação relativa ao Requerente A... .
- E o imposto devido é apenas de € 12.603,80 (€ 45.013,58 x 28%) e não de € 25.207,60 (90.027,15 x 28%).
- Por sua vez, aplicando-se a norma do artº 43º nº 2 al. b), o ganho da Requerente B... sujeito a imposto é apenas de € 51.903,94 (103.807,87 x 50%) e não de € 103.807,87 conforme foi considerado na liquidação relativa à Requerente B... .
- E o imposto devido é apenas de € 14.533,10 (€ 51.903,94 x 28%) e não de € 29.066,20 (103.807,87 x 28%).
- Devendo consequentemente as liquidações objeto do pedido ser parcialmente anuladas, porquanto está em causa a redução da base de incidência a 50% e a aplicação de uma taxa fixa (28%) a essa base de incidência.
- A anulação do ato tributário implica a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade que o invalida.
- Em consequência, os Requerentes têm direito a ser reembolsados do valor pago em excesso, que corresponde a ½ do valor pago por cada um deles.
- Ou seja, o Requerente A... tem direito a ser reembolsado da quantia de € 12.603,80 e a Requerente B... tem direito a ser reembolsada da quantia de € 14.533,10.
- Para além da restituição do imposto pago em excesso, os Requerentes têm também direito a juros indemnizatórios calculados com base no valor do excesso de imposto liquidado e pago por cada um até à sua integral devolução aos Requerentes, à taxa legal em vigor, nos termos dos artigos 43º nºs 1 e 4 e 35º nº 10 da LGT, artº 61º do CPPT e artº 559º do C. Civil.
- Porquanto a ilegalidade do ato tributário é imputável à AT, que, por sua iniciativa, o praticou em violação das normas comunitárias.
- Em conclusão, os Requerentes formulam os seguintes pedidos:
a) Deve ser declarada a ilegalidade ato tributário de liquidação de IRS nº 2020 ..., respeitante aos rendimentos do ano de 2019, emitido em nome do Requerente A... e, em consequência, parcialmente anulado na parte liquidada em excesso (€ 12.603,80);
b) Deve ser declarada a ilegalidade ato tributário de liquidação de IRS nº 2020 ..., respeitante aos rendimentos do ano de 2019, emitido em nome do Requerente B... e, em consequência, parcialmente anulado na parte liquidada em excesso (€ 14.533,10);
c) Deve a AT ser condenada na reconstituída a situação jurídica que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo essa reconstituição a restituição ao Requerente A... do imposto pago em excesso no montante de € 12.603,80 e a restituição à Requerente B... do imposto pago em excesso no montante de € 14.533,10, acrescido dos juros indemnizatórios calculados com base no valor do excesso de imposto liquidado e pago até à sua integral devolução a cada um dos Requerentes, à taxa legal em vigor.
C. RESPOSTA DA REQUERIDA E SEUS FUNDAMENTOS
- A matéria relativamente à qual foi suscitada a apreciação do Tribunal Arbital, reporta-se à exclusão da incidência de imposto de mais-valias a 50% (tal como acontece com os residentes), obtidas por um não residente em Portugal violar o Direito Comunitário.
- Em abono da verdade, após a decisão proferida no Acórdão C-443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11 (Hollmann), o legislador nacional procedeu à adaptação da legislação nacional à decisão ali sufragada, aditando ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei nº 67-A/2007, de 31/12, o nº 7 (actual nº 9) e o nº 8 (actual nº 10).
- Ora, tanto a decisão proferida no Acórdão Hollmann como a decisão proferida no Acórdão C-184/18 de 6 de Setembro de 2018 do TJUE, referem-se a situações ocorridas na vigência da redação anterior à Lei nº 67-A/2007, 31/12, do artigo 72º do Código do IRS.
- Quadro normativo esse que passou a prever duas situações/possibilidades/alternativas de tributação do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, resultantes da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição por alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
- Assim, por um lado, consagra-se a opção da tributação desses rendimentos (mais-valias) à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º do Código do IRS, no caso de serem auferidos por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.
- Por outro lado, consagra-se a taxa autónoma de 28%, conforme previsto no artigo 72º, nº 1, alínea a) do Código do IRS.
-. Alteração esta que veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43º, nº 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território, o que não ocorreu no caso concreto.
- E, conclui, entendendo que deve ser mantida a liquidação impugnada, referente ao IRS do ano fiscal de 2019, devendo concluir-se pela improcedência do ppa.
D. QUESTÕES A DECIDIR
Face às posições assumidas pelas Partes conforme os argumentos apresentados é, no fundo, a seguinte questão que, cabe apreciar e decidir:
Se no caso de mais-valias resultante da alienação de bens imóveis, o regime diferenciado de tributação aplicável a residentes no território nacional e a residentes no território da União Europeia, no que concerne à limitação da incidência de IRS para os aqui residentes de 50% do saldo das mais-valias, configura, ou não, uma discriminação no domínio da liberdade da circulação de capitais, violadora do art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando não abrange os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia
E, complementarmente, no caso do Tribunal Arbitral condenar a Requerida, se haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
E. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
- O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º e 6º, nº 1, do RJAT.
- As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.
- O processo não enferma de nulidades.
- Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, o Tribunal dá como provados os seguintes factos:
1. Os Requerentes A..., contribuinte fiscal nº ... e B..., contribuinte fiscal nº ... são casados em regime de separação de bens, têm nacionalidade britânica e residiam, ao tempo dos factos, no Reino Unido, que, na altura, fazia parte da União Europeia.
2. Em 26.05.2020, foram entregues por cada um dos Requerentes as declarações de IRS - Modelo 3, respeitantes aos rendimentos do ano de 2019, apresentando o Anexo G relativamente aos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos com a alienação onerosa, efectuada em 26/07/2019, do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., sito no concelho de Cascais, de que eram comproprietários, em partes iguais.
3. Nas declarações de IRS, foi declarada a condição de residentes no Reino Unido.
4. Nas mencionadas declarações Modelo 3 apenas foi declarado um tipo de rendimentos obtidos, a saber, mais-valias.
5. Também consta do Anexo G da declaração de rendimentos que o imóvel tinha sido adquirido em Setembro de 2016, pelo valor de 305.000 euros (152.500,00 x 2 ) e alienado em Julho de 2019 pelo valor de 555.000,00 euros (277.500,00 x 2) e declarado como “Despesas e Encargos”, pelo Requerente marido – 31.922,85 euros e pela Requerente mulher – 18.142,13 euros.
6. As mais-valias apuradas pela AT, na liquidação nº 2020..., relativamente ao Requerente marido têm o valor de 25.207,60 euros e na liquidação nº 2020..., relativamente à Requerente mulher, têm o valor de 29.066,20 euros
7. A Autoridade Tributária procedeu ao cálculo do imposto devido, nos termos de nº 1 do artigo 43º do CIRS, tendo por base o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.
8. Os Requerentes foram notificados para procederem ao pagamento até 31.08.2020 do imposto apurado, o qual ascendia relativamente ao Requerente marido a 25.207,60 euros e relativamente à Requerente mulher a 29.066,20 euros, tendo efectuado esse pagamento em 24/08/2020.
9. Por não se conformarem com as liquidações em apreço, os Requerentes apresentaram o presente Pedido de Pronúncia Arbitral em 26.11.2020.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Os factos dados como provados estão baseados nos documentos indicados relativamente a cada um deles, no processo administrativo e nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, na medida em que a sua adesão à realidade não tenha sido questionada.
B. DO DIREITO
Fixada a matéria de facto, procede-se, de seguida à sua subsunção jurídica e à determinação do Direito a aplicar, tendo em conta a questão a decidir que foi enunciada.
A questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se a A.T. ao tributar a totalidade das mais-valias resultantes da alienação onerosa de bem imóvel por sujeitos passivos que não residem em Portugal, mas no Reino Unido, país, ao tempo, membro da União Europeia, por considerar que o nº 2, do art. 43º do Código do IRS deve ser aplicado tão-só aos sujeitos passivos residentes em Portugal, terá violado o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, designadamente o seu art. 63º que assegura a liberdade de circulação de capitais, constituindo tal facto um comportamento discriminatório entre residentes em Portugal e residentes noutro Estado - Membro da União Europeia.
Com efeito, entende a Requerida que a disciplina do art. 43º, nº 2 do CIRS é aplicável apenas a residentes em território nacional, tendo em conta o elemento literal da norma e as especificidades do regime de tributação das pessoas singulares em Portugal, assente no princípio do englobamento e da progressividade.
No entanto, e como resulta do que se dirá a seguir, carece totalmente de fundamento legal a tese da Requerida que sustenta a coexistência na ordem jurídica portuguesa de dois regimes, um aplicável às pessoas residentes em território português e outro aplicável às pessoas que não sejam aí residentes, embora residam também no território de Estado Membro da União Europeia.
Ora, conforme, aliás, é alegado pelos Requerentes, esta questão foi já apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no seu Acórdão de 11/10/2007, proferido no processo C-443/06, designado por "Acórdão Hollmann", que se pronunciou no sentido que o referido art. 43º, nº 2 do CIRS por revestir carácter menos favorável para os não residentes, infringindo, assim, o princípio da liberdade de circulação de capitais entre Estados-Membros da União Europeia, viola o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Assim sendo, fica, agora, por determinar se a opção, que o sistema tributário português introduziu, após a publicação do referido "Acórdão Hollmann", e que se encontra vertido nos nºs 8 e 9 do art. 72º do CIRS, terá afastado o juízo de discriminação do TJUE, formulado a respeito do disposto no nº 2 do art. 43º do CIRS, nos termos acima indicados.
Com efeito, para a Requerida o regime constante do art. 72º do CIRS repôs a igualde de tratamento entre residentes e não residentes, eliminando, assim, qualquer discriminação que pudesse existir.
Ora, tal não acontece, como decorre do que a seguir se explana.
Em situação paralela, veio o TJUE pronunciar-se em 18 de Março de 2010, no apelidado "Acórdão Gielen" (processo C-440/08), frisando claramente que a opção de equiparação que venha permitir a um sujeito passivo não residente a possibilidade de escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório não exclui os efeitos discriminatórios do primeiro destes dois regimes, pois se tal fosse reconhecido estar-se-ia a validar um regime fiscal violador do Tratado, em razão do seu carácter discriminatório.
E, peremptoriamente, conclui que o Tratado "se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes... apesar de esses contribuintes poderem optar pelo regime aplicável aos contribuintes residentes".
Ora, o nº 4 do art. 8º da Constituição da República consagra o princípio do primado do direito comunitário e da prevalência da interpretação do TJUE, nos seguintes termos:
“3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos tratados constitutivos.”
Assim sendo, prevalecendo na ordem jurídica portuguesa a jurisprudência do TJUE, em matéria de direito comunitário, vinculando a mesma os tribunais nacionais, conforme é reconhecido pelo STA, e face ao paralelismo das questões que foram decididas com a questão agora em apreciação, a decisão nos presentes autos não se distinguirá, nem se poderia distinguir da orientação fixada na referida jurisprudência, isto é que a solução que o legislador português adoptou não eliminou o carácter discriminatório em que nesta matéria se encontram os sujeitos passivos residentes em Estados-Membros da União Europeia.
Também tem sido esta a Jurisprudência adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo, conforme se verifica no Acórdão de 22 de Março de 2011, proferido no processo nº 1031/10, em que para fundamentar a anulação da liquidação emitida pela Autoridade Tributária, este venerando Tribunal disse o seguinte:
"perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS): à taxa prevista para os não residentes (25%, nos termos do artigo 72º nº 1 do Código do IRS) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43º, nº 2 do Código do IRS), assim ignorando a jurisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cfr. o Acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec. nº 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56º do TJCE (actual artigo 63º do Tratado sobre o Financiamento da União Europeia), sujeitando deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário.".
E, no que ao princípio da não discriminação diz respeito, nas situações de tratamento igual entre cidadãos europeus, independentemente da sua nacionalidade e residência, como princípio estruturante da União Europeia, citam-se os Acórdãos do STA de 16/01/2008 (proc. nº 439/06) de 27/11/2013 (proc. nº 0654/13) e de 14/05/2014 (proc. nº 01319/13).
No mesmo sentido este CAAD se tem pronunciado sobre a questão sub judice, conforme se verifica nas Decisões, que vêm citadas nas peças processuais, e, designadamente, nas tomadas pelo signatário nas decisões arbitrais em 12.07.2021, no processo nº 618 /2020-T, e em 30.05.2018, no processo nº 644/2017-T, que consideraram ilegais as liquidações efectuadas pela AT nestas circunstâncias, e procederam à sua anulação, por estas terem restringido o direito à redução em 50% das mais- valias aos sujeitos passivos residentes em Portugal.
Assim sendo, dúvidas não há de que a solução normativa que foi adoptada pelo legislador nacional não eliminou o carácter discriminatório no tratamento de residentes e de não residentes, em matéria de mais-valias decorrentes da alienação de imóveis.
Deste modo, atento o exposto, procede o vício de violação de lei invocado pelos Requerentes relativamente às liquidações efectuadas pela Requerida nos termos referidos e que vêm impugnadas, por manifesta incompatibilidade do nº 2 do art. 43º do Código do ISS com o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no ponto em que restringe a redução das mais-valias sujeitas a IRS a 50% apenas aos sujeitos passivos que são residentes em Portugal, com a sua consequente anulação.
Relativamente aos juros indemnizatórios, esta matéria está regulada no art. 24º do RJAT, o qual expressamente determina no seu nº 1, alínea b) que a decisão arbitral obriga a administração tributária, nos casos aí consignados, a “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessárias, para o efeito”, e preceitua, ainda, no seu nº 5, que “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, reconhecendo, assim, o direito a juros em processo arbitral.
Também o art. 100º da LGT, cuja aplicação é autorizada pelo art. 29º, nº 1, alínea a), preceitua de modo idêntico, no sentido da imediata reconstituição da legalidade, compreendendo a mesma o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso.
Por seu lado, o art. 43º da LGT condiciona o direito a juros indemnizatórios aos casos em que “houve erro imputável aos serviços de que resulta pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Nesta conformidade, a questão que se coloca é a de se saber se, face ao circunstancialismo demonstrado, se pode considerar ter havido, ou não, erro imputável aos serviços na situação vertente.
Analisada a situação, verifica-se que a Autoridade Tributária ao proceder às liquidações, nos termos em que o fez, tinha consciência de que incorria na prática de uma ilegalidade, uma vez que o entendimento aqui sufragado já se encontra sedimentado na ordem jurídica há largos anos e a Requerida reconhece conhecê-lo.
Assim sendo, há que reconhecer que o acto de liquidação, que é da inteira responsabilidade da Requerida e que conduziu a um pagamento de IRS em montante superior ao legalmente devido e está inquinado por vício de violação da lei, foi praticado por erro imputável aos serviços, pelo que haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
C. DECISÃO
Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Declarar ilegais e anular parcialmente os actos tributários objecto dos presentes autos, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração na totalidade das mais-valias imobiliárias.
b) Condenar a Requerida a restituir aos Requerentes o valor do imposto indevidamente pago, isto é, 12.603,80 euros ao Requerente marido e 14.533,10 euros, à Requerente mulher, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efectuado o pagamento
c) Condenar a Requerida nas custas do processo,
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 27.136,90 euros, nos termos do artigo 97º-A, nº 1, a), do Código de Procedimentos e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1.530,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12º, nº 2, e 22º, nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4º, nº 4, do citado Regulamento.
Notifiquem-se as Partes e o Ministério Público
(Esta decisão foi redigida pela ortografia antiga)
Lisboa, 21 de Outubro de 2021
O Árbitro
(José Nunes Barata)