Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 679/2020-T
Data da decisão: 2021-10-01  IRS  
Valor do pedido: € 18.752,99
Tema: IRS – Mais Valias mobiliárias - Sujeito passivo residente em país da EU; artigo 43º do CIRS; artigo 63º TJUE.
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Sumário:

I - O art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS aplicável não pressupõe a aplicação do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, mas apenas remete para a definição efetuada por aquele diploma, do que sejam micro e pequenas empresas.

II – Se o Decreto-Lei n.º 372/2007 em questão apenas se aplica às sociedades cuja sede ou direção efetiva se situem em Portugal tal não ocorrerá pela definição de micro e pequenas empresas ali formulada, mas por força das normas gerais de aplicação das leis, relacionadas com a territorialidade destas, para as quais o art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS não remete.

III – Tendo em conta que a letra dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS: (i) não resulta que tal regime seja aplicável unicamente às mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território nacional; (ii) e que uma interpretação dos mesmos normativos nesse sentido seria contrária aos elementos racional e teleológico da interpretação, por conduzirem a uma solução contrária ao imperativo de assegurar o princípio comunitário de liberdade de circulação de capitais, o referido regime não permite distinguir entre mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território nacional e mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva noutro Estado Membro.

 

O Árbitro Guilherme W. d´Oliveira Martins, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            Os Requerentes A... e B..., contribuintes fiscais n.º ... e ..., residentes na RUA ..., ... ..., ...-... LAGOS, Faro, Portugal, notificados via CTT da Liquidação n.º 2020..., de 01-07-2020, no valor de € 35.089,94, com data limite de pagamento de 31 de Agosto de 2020 vem, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 102.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º, na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), de 20 de Janeiro apresentar PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação no valor de € 35.089,94, relativa ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao exercício de 2019, com o número 2020..., o que fazem nos termos e com os fundamentos seguintes:

a.            Os Requerentes são de nacionalidade britânica e residentes fiscais em Portugal desde o ano de 2015.

b.            Os Requerentes apresentaram a sua Declaração de IRS Modelo 3 referente ao ano de 2019 como residentes em Portugal, Declaração de IRS melhor identificada como ..., a qual se junta como Documento n.º 2 e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

c.            Os Requerentes declararam todos os rendimentos auferidos no ano de 2019 em conformidade com o disposto do artigo 16.º do CIRS, princípio da universalidade e princípio da territorialidade, nomeadamente rendimentos auferidos no estrangeiro, tendo sido determinada uma coleta líquida de € 38.214,94 e um valor de imposto a pagar de € 35.089,94.

d.            A Requerente B... obteve no estrangeiro, mais concretamente no Chipre, e no ano de 2019 rendimentos resultantes da venda de partes sociais da sociedade C..., com sede em ..., ..., ..., ..., ..., ..., Cyprus, cf. certificado de sede que se junta como Documento n.º 3 e que se dá por integralmente reproduzido, (rendimentos da Categoria G, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS), à sociedade D... Limited, pelo valor de 187.997,00 €, os quais foram inscritos no anexo J, Neste enquadramento, foi declarado pelos Requerentes o rendimento referente a mais-valias pela alienação de participações sociais numa sociedade sedeada no Chipre denominada C... Limited.

e.            Trata-se assim de um rendimento de mais-valias decorrentes da alienação onerosa de partes sociais de empresa sedeada no estrangeiro, tributável nos termos do n.º 4 do artigo 10.º do CIRS.

f.             Sendo estes ganhos (saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias) resultantes da alienação das partes sociais serão tributados à taxa autónoma de 28%, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, caso não se opte pelo englobamento, nos termos do n.º 13 do mesmo artigo, opção essa que os Requerentes não fizeram.

g.            O valor de aquisição deverá ser corrigido por aplicação do coeficiente de correção monetária, nos termos do artigo 50.º do CIRS e da Portaria n.º 362/2019, de 9 de outubro, que procede à atualização dos coeficientes de desvalorização da moeda a aplicar aos bens e direitos alienados durante o ano de 2019, para € 54.047,19 (aplicação do coeficiente de 1,03).

h.            Nessa medida, as mais-valias apuradas correspondem a € 133.949,97.

i.             Relativamente a estes dados nada há a contestar.

j.             O que os Requerentes aqui vêem reclamar é a aplicação do regime previsto no artigo 43.º, n.º 3 do Código do IRS, ou seja, a consideração em 50% do seu valor do saldo das mais-valias e menos-valias, respeitantes a operações de venda de partes sociais, relativas a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentados ou não regulamentados da bolsa de valores, traduzindo-se a tributação aplicada aos Requerentes em tributação excessiva.

k.            Em suma, o artigo 43.º, n.º 3 do CIRS não limita a sua aplicação ao saldo das mais-valias e menos-valias obtidas com a venda de partes sociais de empresas localizadas em Portugal, pelo que não se compreende porque é que a Autoridade Tributária, assume que essa possibilidade apenas existe para empresas em Portugal e a declaração de Modelo 3 de IRS não contemple um campo próprio para declarar as mais-valias obtidas pela transmissão de partes sociais de empresas que cumprem os requisitos para serem consideradas pequenas e micro empresas, não sedeadas em Portugal.

l.             Assim sendo e sem recurso a mais considerações, à exceção das relativas à classificação da empresa como pequena ou microempresa, deveria considerar-se ilegal a liquidação de IRS ora posta em causa, por violação do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS.

m.          De qualquer formas, caso se entenda que a lei interna limita a aplicação do regime previsto no n.º 3, do artigo 43.º do CIRS ao saldo das mais-valias e menos-valias obtidas resultantes da transmissão de partes sociais de pequenas e micro empresas com sede em Portugal, o que se equaciona por dever de patrocínio, sempre se dirá que esse entendimento viola o ordenamento jurídico comunitário.

n.            O ordenamento jurídico comunitário propugna no Tratado de Funcionamento da U.E (doravante TFUE) princípios basilares que vinculam os Estados-Membros, assim como visam harmonizar as legislações nacionais em inúmeras matérias, nomeadamente as de índole fiscal.

o.            No que respeita à harmonização das legislações fiscais dos Estados Membros rege um Princípio de Não Discriminação em função da nacionalidade, consagrado no artigo 18.º do TFUE, que encontra expressão no Princípio da Livre circulação de capitais, plasmado no artigo 63.º do mesmo Tratado, o qual impreterivelmente proíbe qualquer restrição à movimentação de capitais entre Estado-Membros.

p.            A tributação de uma mais-valia decorrente da alienação de uma participação social de uma empresa sedeada na União Europeia por residentes noutro Estado Membro (Portugal) constitui um facto protegido pelos Princípios acima descritos, pelo que da correta aplicação dos mesmos ao caso só será de inferir pela aplicação de uma mesma tributação, face ao mesmo facto tributário (mais-valia), relativo a sociedades residentes e a não residentes, sob pena de se incorrer num desvio arbitrário ao disposto no artigo 63.º do TFUE.

q.            A diferenciação de regimes de tributação de mais-valia dependendo da localização das operações que originam as mais valias, se decorrentes de pequenas e micro empresas residentes (e aí, regra geral, apenas se tributando 50% do valor das mais-valias nos termos do consagrado do n.º 3, do artigo 43.º do CIRS) ou se forem decorrentes de pequenas e micro empresas não residentes (aplicando-se uma taxa de 28% a 100% do valor das mais-valias) constitui uma violação flagrante aos Princípios já mencionados

r.             Para se poder concluir pela discriminação em função da sede da sociedade da qual é gerada a mais-valia e pela violação do Princípio da livre circulação de capitais carece de se aferir se aquelas realizadas constituem, essencialmente, situações similares ou díspares, pois que a diferenciação de regimes tributários só poderá constituir um afastamento legítimo ao Princípio da livre circulação de capitais se os contribuintes não se encontrarem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (parte final da alínea a), do n.º1, do artigo do 65.º do TFUE).

s.            Para aplicação do disposto legal que permite a exclusão de tributação em 50%, é necessária a verificação dos requisitos para a qualificação como PME (43.º, n.º 4 do CIRS).

t.             O que, conforme esclarecido pela Jurisprudência, significa o preenchimento material dos requisitos, independentemente da emissão de certificado, os quais a Sociedade sedeada no Chipre preenche cabalmente.

u.            Por pequena ou microempresa entende-se aquela que satisfaça os critérios definidos na legislação europeia, Recomendação da Comissão 2003/361.

v.            Em 1996, a Comissão adotou uma recomendação que estabelecia uma primeira definição comum de PME. Esta definição tem sido objeto de uma ampla utilização em toda a União Europeia. Em 6 de Maio de 2003, a Comissão adotou uma nova recomendação, no intuito de levar em linha de conta a evolução económica desde que este diploma entrou em vigor em 1 de janeiro de 2005 e é aplicável a todos os programas, políticas e medidas relativos às PME geridos pela Comissão. Para os Estados-Membros, o recurso à definição é facultativo, mas a Comissão convida-os, tal como ao Banco Europeu de Investimento (BEI) e ao Fundo Europeu de Investimento (FEI), a aplicá-la tão amplamente quanto possível.

w.           O conceito de empresa para fins de PME significa «qualquer entidade que, independentemente da sua forma jurídica, exerce uma atividade económica».

x.            Esta formulação não é nova — recorre à terminologia utilizada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias nos seus acórdãos. A inclusão formal da nova definição de PME na recomendação demarca claramente o seu âmbito de aplicação. Assim, os trabalhadores independentes, as sociedades familiares, as parcerias e as associações que exercem regularmente uma atividade económica podem ser considerados empresas. O fator determinante é a atividade económica, não a forma jurídica.

y.            Ora a sociedade sedeada no Chipre da qual foram gerados os rendimentos de Categoria G, C... Limited, é uma sociedade legalmente constituída num país da União Europeia que desenvolve uma atividade económica.

z.            Note-se que a Empresa em crise não tem trabalhadores, logo o requisito referente ao número de trabalhadores efetivos encontra-se verificado em todas as categorias de empresa.

aa.          De resto a empresa também cumpre os restantes requisitos nos termos da Decreto-Lei n.º 81/2017 de 30 de junho, pelo que, de acordo com as demonstrações financeiras de 2018 e 2019, a Empresa cumpre 2 de 3 dos requisitos para micro e pequenas empresas ao abrigo legislação portuguesa.

bb.         Na verdade, invoca a requerente que em 2018 e 2019 a empresa cumpre dois dos três requisitos das PME's, especificamente de uma micro ou pequena empresa nos termos do n.º 3 do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 81/2017 de 30 de junho. 56.º Estão assim verificados os requisitos materiais para a qualificação da empresa em crise como micro e pequena empresa, o que se demonstrou supra e por junção de documentos legalmente emitidos pelas entidades competentes

cc.          Ora, estabelece o artigo 43.º (Mais-Valias) do CIRS

“3 – O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.

4 – Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.”

dd.         Posto isto, tendo sido verificados os pressupostos de qualificação como micro e pequena empresa e tendo em conta o exposto no capítulo anterior, é inegável que a mais-valia apurada pelos Requerentes no ano de 2019, deve apenas ser considerada em 50%.

ee.         Pelo que deve, também assim, considerar-se ilegal a liquidação sob reclamação, determinando-se de imediato a sua anulação.

 

2.            A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende a legalidade dos atos tributários praticados e alega, em síntese o seguinte:

a.            A questão controvertida reside em saber se o regime previsto no artigo 43.º, n.ºs 3 e 4 do CIRS é, ou não, aplicável às situações em que as mais-valias decorram da alienação de partes de capital social de sociedades que não tenha a sua sede e/ou direção efetiva em Portugal.

b.            Entende a AT que, ao caso concreto, não é aplicável o regime previsto no aludido nº 3 do art.º 43º do CIRS.

c.            Ora, da análise das disposições conjugadas dos art.ºs 10º e 43º do CIRS resulta que apenas são tributadas em 50% as mais valias resultantes da alienação onerosa de partes sociais relativas a pequenas e microempresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo.

d.            Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro aplica-se às sociedades cuja sede ou direção efetiva se situem em Portugal, atento o princípio da soberania territorial do Estado Português, e conforme o escopo do próprio diploma legal descrito no seu preâmbulo: "(...) promover a inovação e executar políticas de estímulo ao desenvolvimento empresarial (…) o reforço da competitividade das micro, pequenas e médias empresas (PME) que exerçam a sua atividade nas áreas sob tutela do Ministério da Economia e da Inovação".

e.            A previsão do nº 3 do art. 43º do CIRS comporta, portanto, um regime mais favorável reconhecido a um conjunto de contribuintes (PME) que não se encontrem em idêntica situação no que se refere às demais empresas com sede e direção em território português, em ordem a reforçar a sua competitividade e promovendo a captação e concretização de investimento do seu capital.

f.             O benefício, concretizado na tributação de apenas 50% do saldo positivo entre as mais e menos valias obtidas com a alienação de partes sociais, previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do CIRS, introduzido pela Lei nº 15/2010, de 26 de julho, teve como objetivo beneficiar, incrementar e desenvolver as micro e pequenas empresas portuguesas. E não as empresas estrangeiras, não sediadas em Portugal.

g.            A redação dos nºs 3 e 4 do art.º 43º, introduzida pela Lei nº 15/2010, resultou da Proposta de Lei n.º 16/XI, que, contudo, na sua versão inicial, não previa o regime de exclusão tributária agora constante do n.º 3 do artigo 43.º do CIRS.

h.            A sua inclusão na versão final resulta da aprovação de uma proposta de alteração que tem origem no Projeto de Lei n.º 257/XI, cujo preâmbulo justificava nos seguintes termos: "Finalmente, porque importa nesta ocasião significar a urgência da recuperação financeira das empresas, em particular das pequenas e médias empresas nacionais, muitas delas de matriz familiar, preconiza-se um regime fiscal mais favorável às mais-valias geradas na alienação onerosa de partes sociais, nos termos definidos no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS".

i.             Encontra-se, pois, expressamente plasmado no preâmbulo do Projeto de Lei n.º 257/XI que o pretendido pelo legislador no n.º 3 do art.º 43. ° do CIRS foi beneficiar, incrementar e desenvolver as micro e pequenas empresas nacionais.

j.             Não assiste, pois, razão aos Rs. quando invocam, para efeitos da alienação das participações sociais que detinham numa sociedade sediada em Chipre, o regime de tributação de mais-valias que decorre do nº 3 do art. 43º do CIRS, porquanto tal quadro legal tem como alvo as PME’s nacionais.

k.            Desde logo, o Estado Português não tem jurisdição sobre o Chipre pelo que os atos legislativos que emite estão circunscritos ao território nacional.

l.             Depois, o conceito e critérios de qualificação das pequenas e microempresas previstos no Decreto-Lei n.º 372/2007, aplica-se apenas no âmbito do território nacional sujeito à soberania do Estado Português, não sabendo a AT, nem tendo de saber, quais os critérios legais para a classificação de uma PME na ordem jurídica cipriota.

m.          Não está em causa a violação de qualquer norma comunitária porque inexiste qualquer normativo a regulamentar a matéria em questão, e ainda que assim não fosse, é necessário ter em conta que relativamente à liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), dispõe o n.º 1 do artigo 65.º daquele diploma o seguinte:

"1 - O disposto no artigo 63. º não prejudica o direito de os Estados-Membros: Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido."

n.            O que está em causa é a interpretação de uma norma à luz do seu elemento histórico e da sua racionalidade lógica e sistemática, daqui discorrendo que a mesma apenas tem aplicação no caso de se tratar de PME’s sediadas em território nacional.

o.            Termos em que a liquidação objeto dos presentes autos não está ferida de qualquer vício que ponha em causa a sua legalidade e validade. 30º E, consequentemente, não há lugar ao pagamento pela AT de juros indemnizatórios.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 26-11-2020, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27-11-2020. Em 18-01-2021, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou com árbitro do Tribunal Arbitral Singular o aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 18-01-2020, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Por força da legislação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que procedeu à nona alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, alterada pelas Leis n.os 4-A/2020, de 6 de abril, 4-B/2020, de 6 de abril, 14/2020, de 9 de maio, 16/2020, de 29 de maio, 28/2020, de 28 de julho, 58-A/2020, de 30 de setembro, 75-A/2020, de 30 de dezembro, e 1-A/2021, de 13 de janeiro, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19. (legislação COVID 19), ocorreu uma suspensão de todos os prazos judiciais em curso nos tribunais judiciais e arbitrais entre 2 de fevereiro de 2021 e 5 de abril de 2021.

 

A Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril veio revogar o regime de suspensão generalizada dos prazos processuais e procedimentais, bem como reforçar o regime processual excecional e transitório aplicável às diligências processuais e determinar quais os prazos, atos e processos que continuam suspensos. Como resultado do regime previsto no artigo 6.º-B da supra referida Lei 1-A/2020, de 19.03, alterada pela Lei º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, os prazos estiveram suspensos, o que justifica o decurso de tempo entre a notificação nos termos do artigo 17.º do RJAT e a resposta da AT teve de aguardar o prazo para a elaboração da referida resposta.

 

O Tribunal Arbitral Singular ficou, assim, constituído em 03-05-2021, tendo sido proferido despacho arbitral em 03-05-2021 em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

Em 18-05-2021, a AT apresentou o seguinte requerimento:

«1. Os Rs. alicerçam o seu pedido de pronúncia arbitral em prova documental redigida em língua inglesa – cfr- Docs. nºs 4, 5, 6 e 7 juntos ao pedido.

2. Assim, e para a que a AT possa exercer o seu direito de defesa, vem requerer-se, nos termos do nº 1 do art. 134º do CPC, aplicável ex vi art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que os Rs. sejam instados para apresentar tais documentos traduzidos em língua portuguesa.

3. Requer-se ainda que o prazo de resposta da AT apenas se inicie com a notificação da apresentação de tais documentos traduzidos.»

 

Sobre o referido requerimento, este Tribunal proferiu o seguinte despacho em 25-05-2021:

«Tendo a Requerida invocado que os Requerentes alicerçam o seu pedido de pronúncia arbitral em prova documental redigida em língua inglesa e que para que possa exercer o seu direito de defesa, vem requerer que os Requerentes sejam instados para apresentar tais documentos traduzidos em língua portuguesa.

Notifique-se o Requerente para juntar tradução idónea no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 134.º do CPC, aplicável ex vi 29.º do RJAT, sendo que o prazo da resposta da Requerida inicia nova contagem a partir da entrega dos referidos documentos.»

 

Em 08-06-2021 a Requerente pediu uma extensão de prazo, sobre o qual incidiu na mesma data despacho deste Tribunal:

«Tendo sido requerida pela Requerente a extensão do prazo em mais 10 dias para apresentação dos documentos traduzidos, defere-se a referida pretensão.»

 

Em 21-06-2021 a Requerente juntou os documentos e em 22-06-2021, este Tribunal apresentou o seguinte despacho:

«Na sequência dos documentos traduzidos solicitados, notifique-se o representante da Fazenda Pública para, nos termos do n.º 1 do art. 17.º do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso queira, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando que, deve ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.»

 

A AT apresentou a sua Resposta, em tempo, em 01-09-2021.

Em 03-09-2021 foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:

«1. Tendo sido requerida prova testemunhal pelo Requerente, pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito, nem foi invocada ou identificada matéria de exceção.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Fixa-se o prazo de 5 (cinco) dias para as partes, querendo, se pronunciarem. Notifiquem-se as partes do presente despacho.»

 

Não houve pronúncia de qualquer das partes.

 

POSTO ISTO:

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

Tudo visto, cumpre decidir.

 

II. DECISÃO

A.           MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

São dados como assentes todos os factos invocados pelo Requerente e admitidos pela Requerida, a saber:

a.            Os Requerentes são de nacionalidade britânica e residentes fiscais em Portugal desde o ano de 2015.

b.            Os Requerentes apresentaram a sua Declaração de IRS Modelo 3 referente ao ano de 2019 como residentes em Portugal, Declaração de IRS melhor identificada como ..., a qual se junta como Documento n.º 2 e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

c.            Os Requerentes declararam todos os rendimentos auferidos no ano de 2019 em conformidade com o disposto do artigo 16.º do CIRS, princípio da universalidade e princípio da territorialidade, nomeadamente rendimentos auferidos no estrangeiro, tendo sido determinada uma coleta líquida de € 38.214,94 e um valor de imposto a pagar de € 35.089,94.

d.            A Requerente B... obteve no estrangeiro, mais concretamente no Chipre, e no ano de 2019 rendimentos resultantes da venda de partes sociais da sociedade  C... Limited, com sede em  ... ..., ..., ..., ..., Cyprus, cf. certificado de sede que se junta como Documento n.º 3 e que se dá por integralmente reproduzido, (rendimentos da Categoria G, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS), à sociedade D... Limited, pelo valor de 187.997,00 €, os quais foram inscritos no anexo J, Neste enquadramento, foi declarado pelos Requerentes o rendimento referente a mais-valias pela alienação de participações sociais numa sociedade sedeada no Chipre denominada C... Limited.

e.            Trata-se assim de um rendimento de mais-valias decorrentes da alienação onerosa de partes sociais de empresa sedeada no estrangeiro, tributável nos termos do n.º 4 do artigo 10.º do CIRS.

f.             Sendo estes ganhos (saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias) resultantes da alienação das partes sociais serão tributados à taxa autónoma de 28%, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, caso não se opte pelo englobamento, nos termos do n.º 13 do mesmo artigo, opção essa que os Requerentes não fizeram.

g.            O valor de aquisição foi corrigido por aplicação do coeficiente de correção monetária, nos termos do artigo 50.º do CIRS e da Portaria n.º 362/2019, de 9 de outubro, que procede à atualização dos coeficientes de desvalorização da moeda a aplicar aos bens e direitos alienados durante o ano de 2019, para € 54.047,19 (aplicação do coeficiente de 1,03).

h.            Nessa medida, as mais-valias apuradas correspondem a € 133.949,97.

i.             De acordo com as demonstrações financeiras de 2018 e 2019 a empresa apresenta os seguintes valores:

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

B. DO DIREITO

 

B.1. QUANTO AO MÉRITO

 

B.1.A. DA INTEGRAÇÃO DO ARTIGO 43.º, N.º 3 E 4, do CIRS NO DIREITO FISCAL NACIONAL

Conforme é consensual entre as partes, a questão que se coloca  é a de saber A questão controvertida reside em saber se o regime previsto no artigo 43.º, n.ºs 1, 3 e 4 do CIRS é, ou não, aplicável às situações em que as mais-valias decorram da alienação de partes de capital social de sociedades que não tenha a sua sede e/ou direção efetiva em Portugal.

 

É a seguinte a redação da norma referida:

«1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes. (...)

3 - O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.

4 - Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.»

 

Por seu lado o art.º 2.º, n.º 2, do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, para o qual a norma do CIRS transcrita remete, dispõe que:

«Na categoria das PME, uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros.»

 

Face a esta norma, e aos factos dados como provados, verifica-se que a empresa cujas participações sociais geraram as mais valias tributadas na liquidação objeto da presente ação arbitral se qualifica como pequena empresa, uma vez que preenche:

a)            Para o ano de 2018, todos os requisitos exigidos: número de trabalhadores, volume de negócios e balanço total;

b)           Para o ano de 2019, 2 dos 3 requisitos exigidos: número de trabalhadores e balanço total.

 

Desta forma, apenas cumpre apreciar se a norma a circunstância de a empresa em questão ser uma entidade não residente (sem sede ou direção efetiva em território nacional), mais concretamente no Chipre, contende, ou não, com a aplicação da suprarreferida norma do art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS aplicável.

 

A este propósito, argumenta a Requerida que:

             «O Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro aplica-se às sociedades cuja sede ou direção efetiva se situem em Portugal, atento o princípio da soberania territorial do Estado Português, e conforme o escopo do próprio diploma legal descrito no seu preâmbulo: "( ... ) promover a inovação e executar políticas de estímulo ao desenvolvimento empresarial (. . .) o reforço da competitividade das micro, pequenas e médias empresas (PME) que exerçam a sua atividade nas áreas sob tutela do Ministério da Economia e da Inovação".

             A previsão do nº 3 do art. 43º do CIRS comporta, portanto, um regime mais favorável reconhecido a um conjunto de contribuintes (PME) que não se encontrem em idêntica situação no que se refere às demais empresas com sede e direção em território português, em ordem a reforçar a sua competitividade e promovendo a captação e concretização de investimento do seu capital.

             O benefício, concretizado na tributação de apenas 50% do saldo positivo entre as mais e menos valias obtidas com a alienação de partes sociais, previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do CIRS, introduzido pela Lei nº 15/2010, de 26 de julho, teve como objetivo beneficiar, incrementar e desenvolver as micro e pequenas empresas portuguesas. E não as empresas estrangeiras, não sediadas em Portugal.»

 

Relativamente a esta questão, diga-se, desde logo, que o art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS aplicável não pressupõe a aplicação do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, mas apenas remete para a definição efetuada por aquele diploma, do que sejam micro e pequenas empresas.

Assim, se o DL em questão apenas se aplica às sociedades cuja sede ou direção efetiva se situem em Portugal tal não ocorrerá pela definição de micro e pequenas empresas ali formulada, mas por força das normas gerais de aplicação das leis, relacionadas com a territorialidade destas, para as quais o art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS não remete.

Não está, assim, em causa, o Estado português, achar-se competente para definir o conceito de micro e de pequenas empresas localizadas fora dos limites da sua jurisdição, e como tal, sujeitos à soberania de outro Estado. Com efeito, o Estado português define o que é micro e pequena empresa para si (e deve fazê-lo, como adiante se verá, respeitando as imposições comunitárias a que se vinculou, relativas à liberdade de circulação de capitais), e não o que é micro e pequena empresa para outros Estados.

 

Também não está em causa, ao contrário do parece sugerir a Requerida, que “o conceito e critérios de qualificação das pequenas e microempresas previstos no Decreto-Lei n.º 372/2007, aplica-se apenas no âmbito do território nacional sujeito à soberania do Estado Português, não sabendo a AT, nem tendo de saber, quais os critérios legais para a classificação de uma PME na ordem jurídica cipriota”.

Ora, nos termos do Decreto-Lei n.º 372/2007, já que, como tem sido reconhecido jurisprudencialmente, a remissão feita pelo CIRS para aquele DL é uma remissão material, não pressupondo que as empresas em questão gozem, formalmente, da qualificação de micro ou pequena empresa, reconhecida nos termos desse mesmo DL, o que torna a argumentação completamente irrelevante.

 

B.1.B. DA INTEGRAÇÃO DO ARTIGO 43.º, N.º 3 E 4, do CIRS NO DIREITO EUROPEU

 

Na sequência, refere ainda a Requerida que «o benefício, concretizado na tributação de apenas 50% do saldo positivo entre as mais e menos valias obtidas com a alienação de partes sociais, previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do CIRS, introduzido pela Lei nº 15/2010, de 26 de julho, teve como objetivo beneficiar, incrementar e desenvolver as micro e pequenas empresas portuguesas. E não as empresas estrangeiras, não sediadas em Portugal».

Embora tal possa ser verdade, a questão que se coloca, e se abordará já de seguida, é a de saber se tal discriminação das empresas portuguesas, é, ou não, conforme ao direito comunitário, designadamente no que diz respeito à liberdade de circulação de capitais e qual a repercussão do juízo daí emergente, na interpretação das normas do art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS.

Aqui chegados, a questão fundamental que se coloca é verificar, em primeira linha, se o regime do art.º 43.º, n.ºs 3 e 4, do CIRS discrimina, ou não, entre as mais valias emergentes da alienação de participações sociais em micro e pequenas empresas com sede e direção efetiva em território nacional, e em micro e pequenas empresas com sede e direção efetiva fora de território nacional, como pretende a AT.

Verificado o elemento literal, será inelutável concluir que nenhuma discriminação é consagrada.

Conforme refere a decisão proferida no Processo nº 703/2018-T, deste Centro :

 

«Com efeito, ao contrário, por exemplo, do que acontece com a situação análoga das mais-valias imobiliárias, em que o legislador, no art.º 10.º/5/a) do CIRS, que, à data já referia expressamente a possibilidade de os imóveis aí referidos serem situados “em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu”, e que, até à entrada em vigor do Decreto-Lei 361/2007, de 2 de Novembro, se restringia a imóveis situados “em Território português”, as normas que regulam as mais valias decorrentes da alienação de participações sociais não fazem qualquer menção à localização da entidade cujas participações são geradoras das mais-valias.»

Deste modo, não é possível extrair do texto legislativo qualquer limitação geográfica à localização da sede ou direção efetiva das entidades cujas participações são geradoras das mais-valias.

Posto isto, resta aferir se os restantes elementos da interpretação se pode retirar alguma limitação nesse sentido.

a)            Quanto ao elemento histórico – Como aponta a Requerida, o elemento histórico poderá, efetivamente, apontar no sentido de que a aplicação dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS em questão, se restrinja às mais-valias emergentes da alienação de participações em micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território português, tendo em conta que a proposta de lei que originou a norma em causa tem origem no Projeto de Lei n.º 257/XI, cujo preâmbulo o justificava nos seguintes termos: “Finalmente, porque importa nesta ocasião significar a urgência da recuperação financeira das empresas, em particular das pequenas e médias empresas nacionais, muitas delas de matriz familiar, preconiza-se um regime fiscal mais favorável às mais-valias geradas na alienação onerosa de partes sócias, nos termos definidos no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS” .

Não obstante, o elemento histórico não é essencial, nem sequer um dos principais elementos da interpretação jurídica, tendo, consabidamente, primazia o elemento racional ou teleológico.

 

b)           Quanto aos cânones interpretativos gerais – Assim, no âmbito de tais cânones interpretativos haverá que ponderar a intencionalidade do regime normativo a interpretar, à luz da efetividade do mesmo, no quadro do ordenamento jurídico em geral, onde se insere.

Ora, sob este ponto de vista, será incontornável que na consagração das soluções jurídicas positivadas, o legislador não poderá deixar de ter tido, no que para o caso interessa, as suas vinculações internacionais, e, em particular, comunitárias, designadamente ao nível da sua obrigação de respeitar e assegurar a liberdade de circulação de capitais.

A este propósito, o TJUE já definiu de forma sustentada que não é lícito aos Estados Membros, por violadora da liberdade de circulação de capitais, conceder condições mais vantajosas de tributação a rendimentos de capitais emergentes de sociedades com sede ou direção efetiva nesses mesmos Estados Membros, em relação a rendimentos de capitais emergentes de sociedades com sede ou direção efetiva noutros Estados Membros.

É certo que a jurisprudência conhecida do TJUE na matéria se reporta a situações de tributação de dividendos, e não de mais-valias, mas devem ser considerados análogos, sob o ponto de vista da tributação e da liberdade de circulação de capitais, a distribuição de dividendos e a realização de mais-valias, sendo, por isso, integralmente transponíveis para a tributação destas últimas, as considerações do TJUE relativamente à tributação das primeiras, como, por exemplo, que:

«69 Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as restrições aos movimentos de capitais que envolvem um estabelecimento ou investimentos diretos na aceção do artigo 64.º, n.º 1, TFUE abrangem não só as medidas nacionais que, quando aplicadas a movimentos de capitais com destino a países terceiros ou deles provenientes, restringem o estabelecimento ou os investimentos mas também as que restringem os pagamentos de dividendos deles decorrentes» .

Daqui decorre que uma restrição aos movimentos de capitais, como o tratamento fiscal menos vantajoso dos dividendos de origem estrangeira, é abrangida pelo artigo 64.°, n.º 1, TFUE, na medida em que incida sobre participações adquiridas com vista a criar ou manter laços económicos duradouros e diretos entre o acionista e a sociedade em causa, permitindo ao acionista participar efetivamente na gestão dessa sociedade ou no seu controlo (Acórdão de 24 de novembro de 2016, SECIL, C 464/14, EU:C:2016:896, n.º 78 e jurisprudência aí referida).

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de a legislação nacional que restringe os movimentos de capitais que implicam investimentos diretos poder ser aplicada a outras situações não é suscetível de obstar à aplicabilidade do artigo 64.º, n.º 1, TFUE, nas circunstâncias que prevê (Acórdão de 15 de fevereiro de 2017, X, C 317/15, EU:C:2017:119, n.º 21).”.

 

Ora, desmistificadas as questões interpretativas , sendo a solução, ora propugnada pela Requerida, de restringir o regime dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS aplicável às mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território nacional diretamente contrária à liberdade de circulação de capitais, tal como cristalinamente definida pelo TJUE, na medida em que restringiria injustificadamente o investimento em micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva noutros Estados Membros (no caso, na França), não se poderá, à luz dos elementos racionais e teleológico da interpretação, considerar que o legislador pretendeu consagrar uma solução tal flagrantemente violadora dos seus compromissos comunitários.

Deste modo, tendo em conta que a letra dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS:

             não resulta que tal regime seja aplicável unicamente às mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território nacional;

             e que uma interpretação dos mesmos normativos nesse sentido seria contrária aos elementos racional e teleológico da interpretação, por conduzirem a uma solução contrária ao imperativo de assegurar o princípio comunitário de liberdade de circulação de capitais;

julga-se que o referido regime não permite distinguir entre mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva em território nacional e mais valias geradas por micro e pequenas empresas com sede ou direção efetiva noutro Estado Membro.

Ao entender de outra forma, a liquidação objeto da presente ação arbitral incorreu em erro de direito, devendo ser anulada, procedendo nessa medida, o pedido arbitral formulado.

No entanto, conforme resulta do pedido arbitral formulado, a Requerente pretende a anulação total da liquidação em crise, que procede à tributação a 100% das mais valias por si realizadas, e não a 50%, conforme impõem as referidas normas dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS aplicável.

 

Ora, conforme tem entendido reiteradamente o STA:

«I - O ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial.

II - O critério para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.»

 

Ora, no caso e como se disse, o que se verifica é que o ato tributário objeto da presente ação arbitral considerou sujeito a tributação 100% da mais valia realizada pela Requerente, e não 50%, conforme impõem as referidas normas dos n.ºs 3 e 4 do art.º 43.º do CIRS aplicável. Desse modo, a anulação de tal ato deve apenas ser parcial, restringindo-se ao valor de imposto liquidado em excesso.

Em face do exposto, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando as liquidações de IRS impugnadas, com o consequente reembolso do valor pago em excesso nos termos expostos.

 

B.2. QUANTO À RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA EM EXCESSO ACRESCIDA DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

 

O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

Na sequência da anulação parcial do ato impugnado, a Demandante terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação parcial, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art.º 43º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

É o caso nos presentes autos, na medida em que a Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado pela administração tributária deverá ser ressarcida do montante indevidamente pago em sede de IRS, em excesso (€18.752,99) acrescido dos respetivos juros indemnizatórios à luz do preceituado nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, a Demandada terá direito a ser ressarcida nos termos do art. 43º, nº 3, al. d) da LGT, através do pagamento de juros indemnizatórios.

 

C. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Singular:

a)            Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial da liquidação quanto ao valor de € 18.752,99, correspondente ao valor de imposto pago em excesso;

E em consequência:

b)           Ordenar a devolução à requerente dos referidos montantes, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 18.752,99, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

F. Notificação ao Ministério Público

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 1 de outubro de 2021

 

O Árbitro,

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)