Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 66/2020-T
Data da decisão: 2021-09-27  IVA  
Valor do pedido: € 68.039,81
Tema: IVA – Bens imóveis; Despesas de investimento; Ocupação.
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SUMÁRIO:

Na formulação da norma do artigo 24.º, n.º 2 do Código do IVA, o legislador utilizou o conceito amplo e genérico de “ocupação”, e não de posse, ou titularidade por benefício de qualquer direito real, tendo em atenção a consabida relevância que o direito fiscal dá às realidades económicas de facto, pretendendo, de um ponto de vista de razoabilidade, reportar-se à utilização na actividade económica do bem em questão, geradora de despesas de investimento no imóvel, sujeitas a IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 04 de Fevereiro de 2020, A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua..., n.º..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IVA n.º 2019..., no valor de €58.663,37, e da liquidação de juros compensatórios no montante de €9.376,44. 

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por entender que o prazo de 19 anos previsto no n.º 4 do artigo 24.º do Código do IVA, se conta a partir do termo inicial do contrato de locação financeira, já que é nesse momento que se concretiza a ocupação do imóvel;

ii.            vício de falta de fundamentação, por entender que o vertido no relatório de inspecção não é susceptível de, à luz do disposto nos artigos 268.º, n.º 3 da CRP e 77.º da LGT, fundamentar de forma suficiente e cabal a correcção efectuada.

 

3.            No dia 05-02-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 29-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com a prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma sociedade por quotas que iniciou a sua actividade em 12-03-1996 e desenvolve, a título principal, a actividade de comércio por grosso de máquinas para a indústria extractiva, construção e engenharia civil a que corresponde o CAE 46630 e, a título secundário, o aluguer de máquinas e equipamentos para a construção e engenharia civil, a que corresponde o CAE 77320.

2-            Em sede de IVA, em 2018, a Requerente estava enquadrada no regime normal de IVA, periodicidade trimestral.

3-            Em 11-04-2018, a Requerente alienou, por €1.700.000,00, o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ..., da União de Freguesias de ... (..., ..., ... e...), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número ... da freguesia de ... e ... .

4-            Esta venda foi realizada por escritura pública, sem liquidação de IVA, por aplicação do disposto na alínea 30), do art.º 9.º do CIVA.

5-            O terreno foi adquirido pela Requerente através de contrato autenticado de compra e venda realizado em 26-11-2014, pelo valor residual de €23.306,39.

6-            Esta aquisição ocorreu no termo da vigência de contrato de locação financeira, celebrado entre o Banco B... e a Requerente, estabelecido originalmente com a sociedade C..., S.A., que teve a duração de 15 anos, com início em 23-06-1998.

7-            Nos termos do n.º 4 da cláusula segunda do Contrato de Locação Financeira Imobiliária com Financiamento para Construção, celebrado entre a Requerente e o C... S.A., o locador teria o direito de fiscalizar os trabalhos de construção, visitando-os sempre que entender e solicitando, também sempre que julgar conveniente, todos e quaisquer esclarecimentos e informações, quer do locatário, quer dos empreiteiros e subempreiteiros, quer do coordenador da obra.

8-            Nos termos da cláusula nona do referido contrato, durante a vigência do contrato e durante todo o período de tempo em que o locatário mantiver a detenção do prédio, o risco de perda ou deterioração do bem corria por conta deste, o qual será sempre responsável pelos danos sofridos no prédio e por este causados, seja qual for a respectiva causa.

9-            Refere a cláusula trigésima quarta do contrato que extinguindo-se o contrato, sem que o locatário tenha exercido o direito de opção de compra, este ficava obrigado a restituir o prédio locado no prazo de 15 dias, em bom estado de conservação, salvas as deteriorações inerentes a uma utilização normal, em condições de pronta utilização e devoluto de pessoas e bens.

10-         O contrato de locação financeira foi celebrado com expressa renúncia à isenção de IVA, nos termos do n.º 4, do art.º 12.º do CIVA, na redacção então em vigor, tendo o locador do prédio liquidado IVA sobre as rendas da locação financeira associada ao imóvel.

11-         A Requerente deduziu IVA num montante total de €363.595,21, desde Junho de 1998 até Junho de 2013.

12-         Em virtude da venda do imóvel, em 11-04-2018 ter sido realizada sem liquidação de IVA, a Requerente apurou um montante de IVA a regularizar a favor do Estado, nos termos do n.º 5, do art.º 24.º do CIVA, num total de 284.694,79 euros, tendo declarado este valor no campo 41 da declaração de IVA do período 1806T.

13-         Para a venda do imóvel referido pelo valor de €1.700.000,00, a Requerente recorreu aos serviços de mediação imobiliária prestados pela empresa D..., LDA, que liquidou IVA no montante de €11.730,00.

14-         A Requerente solicitou no período 1806T, em 14-08-2018, um reembolso de IVA, no montante de €150.221,46.

15-         Para análise do referido reembolso foram realizados procedimentos inspetivos, pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, em cumprimento das Ordens de Serviço n.ºs OI2018..., OI2018..., OI2018..., OI2018..., OI2018... e OI2019..., para os exercícios de 2015, 2016, 2017, 1803T, 1806T e 1809T/1812T, respetivamente, de natureza externa e âmbito parcial (IVA).

16-         Do relatório de inspecção, consta, além do mais, o seguinte:

17-         Na sequência das correcções efectuadas em sede inspectiva, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IVA n.º 2019... no valor de €331.628,16, da liquidação de juros compensatórios no valor de €9.376,44, e da liquidação adicional de IVA n.º 2019..., no valor de €58.663,37, e da liquidação de juros compensatórios no valor de €1.658,64.

18-         A Requerente procedeu ao pagamento da quantia de €58.663,37, com referência ao período de 201812T, e do valor de €9.376,44 a título de juros compensatórios.

19-         A Requerente apresentou junto do CAAD, em 04 de fevereiro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

Imputa a Requerente às liquidações impugnadas vários vícios, designadamente, vício de falta de fundamentação e vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:

“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

2 – Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

 b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”

 Deste modo, e não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

*

A questão que se coloca nos presentes autos prende-se com a regularização das deduções relativas a bens do activo imobilizado, concretamente no que respeita ao terreno de implantação das construções, identificado na matriz predial sob o número ... da União de Freguesias de ... (..., ..., ... e ...).

Conforme resulta dos factos provados, a Requerente adquiriu o referido imóvel em 26-11-2014, pelo valor residual de €23.306,39, no âmbito do contrato de locação financeira celebrado originalmente com a sociedade C..., S.A., com início em 23-06-1998. O contrato de locação financeira foi celebrado com renúncia à isenção de IVA, tendo a Requerente deduzido o IVA das rendas desde junho de 1998 até junho de 2013, no valor de €363.595,21.

A Requerente procedeu, em 11-04-2018, à venda do imóvel pelo valor de €1.700.000,00, sem que tenha havido lugar à liquidação de IVA.

Sustenta a Requerente que, para efeitos de regularização das deduções relativas a bens do activo imobilizado, deverá relevar para efeito da contagem do prazo, o ano a partir do qual se iniciou a utilização ou ocupação do imóvel, defendendo, portanto, que é em 1998, ano em que foi celebrado o contrato de locação financeira que se inicia a contagem do prazo de 19 anos, previsto no n.º 2 do artigo 24.º do Código do IVA, uma vez que é com o início do contrato de locação financeira que se concretizou a ocupação do imóvel.

Por sua vez, entende a Requerida que o momento relevante para a contagem do prazo de 19 anos é o ano 2014, ano em que a Requerente adquiriu a propriedade do imóvel, no termo do contrato de locação financeira. Mais sustenta que, a não ser assim, “qualquer sujeito passivo possuidor de um imóvel há mais de vinte anos, poderia investir o que lhe aprouvesse e deduzir o imposto, para logo de seguida o vender sem ter de regularizar imposto”.

O dissídio entre as partes radica, portanto, na aplicação do disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 24.º do Código do IVA, concretamente no que respeita àquilo que se entende por “ocupação” para efeitos de contagem do prazo 19 anos previsto nos referidos normativos.

Determinava o artigo 24.º do CIVA, com a redacção em vigor à data dos factos, para o que aqui releva, o seguinte:

“Artigo 24.º

Regularizações das deduções relativas a bens do activo imobilizado

2 - São também regularizadas anualmente as deduções efectuadas quanto às despesas de investimento em bens imóveis se entre a percentagem definitiva a que se refere o artigo anterior aplicável no ano de ocupação do bem e em cada um dos 19 anos civis posteriores e a que tiver sido apurada no ano da aquisição ou da conclusão das obras houver uma diferença, para mais ou para menos, igual ou superior a cinco pontos percentuais. (…)

4 - No caso de sujeitos passivos que determinem o direito à dedução nos termos do n.º 2 do artigo 23.º, a regularização das deduções relativas aos bens referidos nos n.ºs 1 e 2 tem lugar quando a diferença entre a afectação real do bem no ano do início da sua utilização e em cada um dos 4 ou 19 anos civis posteriores, respectivamente, representar uma alteração do IVA dedutível, para mais ou para menos, igual ou superior a (euro) 250, sendo aplicável o método de cálculo previsto no número anterior, com as devidas adaptações.

                Vejamos:

                Em sede de IVA, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA, o sujeito passivo pode deduzir todo o imposto suportado na aquisição de bens e serviços desde que esses bens e serviços sejam utilizados pelo sujeito passivo para a realização de operações sujeitas a imposto e dele não isentas.   

                Entende a Requerida que para efeitos da regularização das deduções nos termos dos n.ºs 2 e 4 do artigo 24.º do Código do IVA, o período de 19 anos tem início em 2014, ano em que a Requerente adquiriu o imóvel, pelo que o valor a regularizar seria de €272.696,41, por à data da alienação, faltarem ainda 15 anos para se completar o prazo de 19 anos previsto nos referidos normativos.

Ressalvado o respeito devido, julga-se não ser correcta a interpretação formulada pela Requerida.

O artigo 24.º, n.º 2 do Código do IVA estabelece como referência para a regularização das deduções efectuadas quanto às despesas de investimento em bens imóveis, “o ano de ocupação do bem”. Na formulação da norma, o legislador utilizou o conceito amplo e genérico de “ocupação”, e não de posse, ou titularidade por benefício de qualquer direito real, tendo em atenção a consabida relevância que o direito fiscal dá às realidades económicas de facto, pretendendo, de um ponto de vista de razoabilidade, reportar-se à utilização na actividade económica do bem em questão, geradora de despesas de investimento no imóvel, sujeitas a IVA.

A escolha, por parte do legislador, do termo “ocupação” em lugar de um conceito que remetesse para a aquisição ou transmissão da propriedade, ou outro direito real, evidencia assim que o legislador não quis, designadamente quando estão em causa contratos de locação financeira, em que o contribuinte “ocupa” o bem ainda antes da transmissão jurídica do direito de propriedade, reportar a contagem do prazo de 19 anos, previsto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 24.º do Código do IVA, para o momento em que ocorre a efectiva transmissão do direito de propriedade. 

Resulta dos referidos preceitos legais como princípio basilar no que respeita à detenção de bens de investimento imobiliário, que o imposto suportado com a sua construção, reabilitação ou manutenção, deve manter-se afecto a actividades que conferem total ou parcialmente o direito à dedução durante um período de 20 anos, em linha com os períodos de vida útil aplicáveis em sede de IRC de acordo com as taxas genéricas previstas no Decreto- Regulamentar n.º 25/2009, de 14-09-2009.

Estabelece-se, por conseguinte, um período de ajustamento de 20 anos, que tem como pressuposto que os gastos incorridos sobre a aquisição, locação ou exploração de um bem imóvel beneficiam das características de durabilidade e susceptibilidade de extracção de benefícios económicos futuros.

Com efeito, a interpretação segundo a qual a “ocupação” para efeitos do disposto no n.º 2 e 4 do Código do IVA ocorre no momento em que tem início o contrato de locação financeira, é consentânea com o regime das depreciações e amortizações, para efeitos de IRC.

Acresce que, o tratamento contabilístico das locações financeiras está definido na NCRF 9 – Locações, na qual se define que “no início do prazo da locação, os locatários devem reconhecer as locações financeiras como activos e passivos nos seus balanços por quantias iguais ao justo valor da propriedade locada ou, se inferior, ao valor presente dos pagamentos mínimos da locação, cada um determinado no início da locação”.

Conforme reconhece a própria AT, o imóvel faz parte do activo imobilizado da empresa desde o início do contrato de locação financeira, cumprindo, assim, o disposto nas normas contabilísticas.

Não seria coerente exigir-se o registo do imóvel no activo imobilizado da empresa desde o momento inicial do contrato de locação financeira, em 1998, e postergar a contagem do prazo de 19 anos para efeitos de regularização das deduções, para o momento da transmissão da propriedade, em 2014.

Por conseguinte, e atendendo à letra da lei, tendo o legislador usado o conceito de “ocupação” sem qualquer outra densificação que permitisse postergar a contagem do prazo previsto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 24.º do Código do IVA, para o momento da transmissão da propriedade e, presumindo-se que o legislador se soube exprimir da forma mais adequada (cf. artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil), não será razoável concluir, como pretende a Requerida, que se relegue a contagem do prazo de 19 anos, para a data da transmissão da propriedade do imóvel, quando a Requerente, em virtude do contrato de locação financeira já ocupava o imóvel, retirando os benefícios económicos do mesmo, desde 1998, data em que o mesmo teve início.

De resto, a não ser assim, como avança a Requerente, esta “seria penalizada por ter celebrado um contrato de locação financeira, quando se tivesse contratualizado um financiamento de médio e longo prazo, em alternativa ao contrato de locação financeira imobiliária, e de acordo com o qual a propriedade jurídica fica desde logo na esfera da sociedade, o prazo iniciar-se-ia sempre desde o momento inicial do contrato de financiamento”.

Resultado que não só não se compatibiliza com a ratio legis daquele normativo, como seria frontalmente oposto à presunção do legislador razoável, consagrada no art.º 9.º, n.º 3, do Código Civil, o entendimento de se considerar a contagem do prazo apenas a partir do momento da transmissão da propriedade jurídica.

Assim, será de considerar como “ano da ocupação do bem”, o momento em que a Requerente entra na posse do imóvel, nomeadamente, com o início do contrato de locação financeira no ano de 1998. A tal entendimento não só não obstará a letra do artigo 24.º, n.º 2 do Código do IVA, ao contrário do que sustenta a Requerida, como é aquele confirmado por esta.

Julga-se, portanto, pelo exposto, não ser de acolher o entendimento da Requerida, segundo o qual o período de regularização se inicia após a ocupação do imóvel, considerando que esse momento ocorre na data de aquisição do imóvel pelo valor residual.

Deste modo, dever-se-á concluir que a data de referência para efeitos da regularização das deduções é o momento da ocupação do imóvel, entendido este como o momento inicial do contrato de locação financeira.

Em face do exposto, o apontado vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, imputado às liquidações impugnadas, terá de proceder.

Verificado o vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, e constatando-se que esse vício, de entre os restantes que foram imputados às liquidações, pela Requerente, e sobre os quais o Tribunal ainda não se pronunciou, é o que garante uma tutela mais estável e eficaz dos seus interesses, determinando a anulação dos actos tributários, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios.

 

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Formula a Requerida, a final, um pedido de suspensão da instância até à decisão a proferir no processo de reenvio do processo Fenetikexito.

O processo Fenetikexito que correu termos no Tribunal de Justiça da União Europeia, sob o n.º C-581/19, diz respeito às notificações de pagamento do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) respeitantes a serviços de acompanhamento e aconselhamento nutricional e de serviços relativos a actividades desportivas, de manutenção e bemestar físico, tendo já sido proferida decisão através do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 04 de março de 2021.

A questão que se decidiu no âmbito daquele processo, nada tem a ver com a questão que se discute nos presentes autos, pelo que o pedido de suspensão da instância efectuado pela Requerida, apenas pode ser entendido como um mero lapso, improcedendo, por esse motivo, o peticionado.

 

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A Requerente formula, ainda, o pedido acessório de condenação da Requerida na restituição dos montantes de imposto e de juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No presente caso, o erro é imputável à AT, que praticou os actos de liquidação controvertidos, sem o necessário suporte legal.

Tem, portanto, a Requerente direito a ser reembolsada das quantias de que indevidamente foi privada (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT), por força dos actos anulados e, ainda, a ser indemnizada através da atribuição de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido, até ao reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Anular os actos de liquidação de IVA e de juros compensatórios impugnados; 

b)           Condenar a AT na restituição dos montantes de imposto e de juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 68.039,81, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de Setembro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Cristina Aragão Seia)

 

O Árbitro Vogal

(Ricardo Rodrigues Pereira)