Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 188/2020-T
Data da decisão: 2021-09-24  IRS  
Valor do pedido: € 88.122,06
Tema: IRS – Residente não habitual; Registo
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SUMÁRIO:

A inscrição no registo de residentes não habituais, tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 19 de Março de 2020, A..., NIF ..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação n.º 2018... e n.º 2018..., referentes aos anos de 2014 e 2015, respectivamente, no valor global de €88.122,06, assim como das decisões de indeferimento das reclamações graciosas n.º ...2018... e n.º ...2018... e dos recursos hierárquicos n.º ...2018... e n.º ...2018... que tiveram as referidas liquidações como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que o regime do residente não habitual se trata de um benefício fiscal automático, tendo o pedido de inscrição como residente não habitual natureza meramente declarativa, motivo pelo qual o facto de ter entregue o pedido de inscrição para além do prazo previsto no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, não obsta a que beneficie daquele regime.

 

3.            No dia 20-03-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 28-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, as mesmas abstiveram-se de as apresentar.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O percurso académico e profissional do Requerente passou por diversos países, como seja, a Suíça, Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Tailândia, Maldivas, Filipinas, Marrocos.

2-            O Requerente foi director do Hotel «B... », nas Filipinas, considerado, em 2007, o Melhor Resort do Sudeste Asiático e Melhor Hotel do Mundo até 100 quartos pelo guia ... .

3-            Em 2006, o Requerente solicitou o registo de residência junto da secção consular da Embaixada de Portugal em Manila, nas Filipinas, indicando a residência no Hotel B... e a profissão «Hoteleiro».

4-            O Requerente foi director do «C... », em Marrocos, que ganhou o prémio de melhor Resort da África e Médio Oriente da ... e o Melhor Hotel do Mundo do guia ... .

5-            Em 27-02-2008, o Requerente celebrou com a D... Limited «employment agreement» e, em 26-05-2008, «contrat de travail d’etranger».

6-            Em 2008, o Requerente solicitou o registo de residência junto da secção consular da Embaixada de Portugal em Rabat, Marrocos, tendo sido emitido o certificado de residência, datado de 12-04-2011 e que indica a residência no Hotel C... e a inscrição consular sob o n.º..., tendo solicitado igualmente um «certificat d’immatriculation» que o Reino de Marrocos emitiu sob o n.º E...T.

7-            Em meados de 2012, o Requerente recebeu uma proposta de trabalho para desempenhar funções de Diretor de Área de Negócio de Turismo do Fundo G..., «enquanto responsável máximo de gestão hoteleira dos estabelecimentos e empreendimentos turísticos que integram ou venham a integrar o património do Fundo, sem prejuízo do exercício de funções afins ou funcionalmente ligadas».

8-            Em 06-06-2012, o Requerente celebrou com a E..., Sociedade de Capital de Risco, S.A. um contrato de trabalho.

9-            Em 2012, o Requerente regressou a Portugal, tendo, pouco depois, casado com uma nacional e residente em Portugal.

10-         Em 2012 e 2013, o Requerente não apresentou qualquer declaração fiscal em Portugal, seja como residente ou como não residente.

11-         Em 2012, a E..., na qualidade de nova entidade empregadora, declarou o Requerente como residente para efeitos fiscais e efectuou as retenções na fonte de IRS, como trabalhador dependente e como residente para fins fiscais em Portugal, tendo sido alterado oficiosa e automaticamente o domicílio constante do cadastro fiscal do Requerente.

12-         No início de 2013, o Requerente submeteu a Declaração Modelo 3 de IRS de 2012, conjuntamente com a esposa, não tendo entregue o anexo L.

13-         Apenas no início de 2014, o Requerente se apercebeu que tendo em conta o extenso período em que residiu e trabalhou no exterior e as funções executivas que desempenhava, podia beneficiar do regime dos residentes não habituais.

14-         O Requerente submeteu a Declaração Modelo 3 de IRS, com o respectivo anexo L, destinado aos residentes não habituais.

15-         A declaração modelo 3 de IRS foi recusada pelo sistema informático de gestão de divergências da AT, por motivo de ausência de registo no cadastro enquanto residente não habitual.

16-         Em 11-07-2014, o Requerente apresentou um requerimento a solicitar à AT a sua inscrição como residente não habitual e a substituição das liquidações adicionais emitidas.

17-         Tal requerimento veio a ser rejeitado liminarmente pela AT, por Despacho do Diretor de Serviços de Registo de Contribuintes, que o considerou intempestivo, com base em apresentação extemporânea, por referência ao termo do prazo estabelecido no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS.

18-         Do acto de indeferimento, o Requerente apresentou recurso hierárquico, o qual veio a ser indeferido com o mesmo fundamento de intempestividade.

19-         O Requerente apresentou a acção administrativa especial, tendo como objecto o referido acto de indeferimento, e actos anteriores do mesmo procedimento, que deu origem ao processo que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º .../15...BELRS.

20-         Na pendência da acção administrativa, o Requerente apresentou as Declarações Modelo 3 de IRS de 2014 e 2015, com os respectivos anexos L.

21-         Uma vez que a AT não reconhecia o estatuto de residente não habitual, notificou o Requerente da demonstração de liquidação n.º 2018 ... e da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2018 ..., relativas ao ano de 2014, no valor de €40.733,84, e da demonstração de liquidação n.º 2018 ... e da demonstração de juros compensatórios n.º 2018 ..., relativas ao ano de 2015, no valor global de €47.388,22.

22-         O Requerente apresentou reclamação graciosa tendo por objeto a liquidação de IRS n.º 2018 ..., relativa ao ano de 2014, à qual foi atribuído o n.º ...2018... .

23-         A referida reclamação graciosa foi indeferida, constando da decisão da mesma, além do mais, o seguinte:

24-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o Requerente apresentou recurso hierárquico, ao qual foi atribuído o n.º ...2018... .

25-         Em 20-12-2019, foi proferido despacho de indeferimento do recurso hierárquico onde consta, além do mais, o seguinte:

26-         O Requerente apresentou, ainda, reclamação graciosa tendo por objecto a liquidação de IRS n.º 2018..., referente ao ano de 2016, à qual foi atribuído o n.º ...2018... .

27-         Em 18-07-2018, foi proferido despacho de indeferimento da referida reclamação graciosa, onde consta, além do mais o seguinte:

28-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., o Requerente apresentou recurso hierárquico ao qual foi atribuído o n.º ...2018... .

29-         O recurso hierárquico foi indeferido por despacho do Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de subdelegação de competências, datado de 20-12-2019, onde consta, além do mais, o seguinte:

30-         Em 27-03-2018, o Requerente foi citado para o processo de execução fiscal n.º ...2018..., tendo apresentado garantia bancária emitida pelo F... sob o n.º..., no valor de €51.830,06, tendo pago ainda imposto de selo pela concessão da garantia bancária, no valor de €310,98.

31-         Em 04-07-2018, o Requerente foi citado para o processo de execução fiscal n.º ...2018..., tendo apresentado garantia bancária emitida pelo F... sob o n.º ... no valor de €60.142,24.

32-         Em 19-03-2020, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

a. Da incompetência material

A Requerida apresentou Resposta defendendo-se por excepção, tendo invocado a incompetência material do Tribunal Arbitral, uma vez que, no seu entender, o que está em causa é um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual para o ano de 2012, tendo como fundamento a ilegalidade da decisão administrativa.

Afirma a Requerida que “o Requerente pretende que o Tribunal Arbitral, como questão prévia a decidir, ordene a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da AT como residente não habitual com efeitos ao ano de 2012, anulando o ato administrativo de indeferimento do pedido formulado nesse sentido e consequentemente, no decurso da anulação daquele ato administrativo em matéria tributária, anule os atos tributários de liquidação de IRS para os anos em causa” e que “o ato de indeferimento do pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual apresentado pelo Requerente é um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação”, pelo que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido.

Por seu turno, alega o Requerente que “o contribuinte não pretende que este colectivo ordene a revogação do acto de indeferimento do pedido de inscrição como RNH, substituindo aquele por outro acto de deferimento, com impacto nas liquidações adicionais entretanto emitidas nos anos de 2012 e 2013. (…) o que se pretende é que o tribunal arbitral declare que a ausência do pedido que desencadeia esse acto de inscrição no ano posterior à aquisição da residência em nada bule com a apreciação da legalidade das liquidações impugnadas, dado que, para além de esse simples registo cadastral como RNH ser um acto vinculado, de mero controlo, mas sem qualquer efeito confirmativo de direitos”.

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não contemplando designadamente uma competência alternativa à da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art.º 2.º” fazendo depender a vinculação da administração tributária de “portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

O âmbito da jurisdição arbitral tributária está, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos.

Nos termos do referido artigo, compete a estes tribunais a apreciação das seguintes pretensões:

“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”

Dado o carácter voluntário da sujeição à jurisdição arbitral, numa segunda linha “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que a Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º, n.º 1 do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça”.

A competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial. Como se decidiu na Decisão Arbitral proferido no processo n.º 262/2018-T , “é à face do pedido ou conjunto de pedidos que formulou o autor que se afere a adequação das formas de processo especiais, designadamente o processo arbitral.”

O Requerente formula um pedido muito concreto, no qual pede a anulação dos actos de indeferimento dos recursos hierárquicos e a anulação dos actos de liquidação adicional de IRS dos anos de 2014 e 2015.

Na esteira da lição do Juiz-Conselheiro Jorge Lopes, “Embora na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT apenas se faça a referência explícita a competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações” . 

O Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de IRS de 2014 e 2015 e, na sequência do indeferimento dessas reclamações, apresentou os respectivos recursos hierárquicos que vieram a ser indeferidos, conforme resulta dos pontos 26 e 30 dos factos provados.

Nas decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos, a AT pronunciou-se sobre a legalidade dos actos de liquidação.

Com efeito, o presente pedido arbitral tem como objecto as liquidações de IRS dos anos de 2014 e 2015 e como objecto imediato as decisões de indeferimento dos recursos hierárquicos que apreciaram as referidas liquidações. Não está, pois, em causa nos presentes autos conhecer de qualquer outra decisão, nomeadamente, de caráter administrativo, como alega a AT.

Na verdade, o Requerente não apresentou o pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade do acto de indeferimento da sua inscrição como residente não habitual, nem a reclamação graciosa e posterior recurso hierárquico teve esse fundamento.

No caso em apreço, o Requerente impugnou os actos de liquidação, os quais tiveram por base, entre outros pressupostos, o não enquadramento do Requerente no regime do residente não habitual.

Considerando a formulação do presente pedido arbitral, tal qual vem exposta no pedido arbitral, o qual versa sobre a impugnação de atos de liquidação de imposto, expressamente prevista no artigo 2º, nº1, alínea a) do RJAT como matéria de competência dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, conclui-se pela improcedência da exceção de incompetência material suscitada pela AT.

 

b. Da questão de fundo

A questão fundamental em causa no presente processo arbitral prende-se com a aferição da legalidade dos actos tributários que constituem o seu objecto, à luz dos fundamentos que lhe servem de suporte.

Concretizando, em causa está apurar se aos rendimentos obtidos pelo Requerente nos anos de 2014 e 2015, seria aplicável o regime de tributação dos residentes não habituais. 

O regime fiscal do residente não habitual, em sede de IRS, foi introduzido no ordenamento jurídico português pelos artigos 23º a 25º do Decreto-Lei n.º 249/2009 de 23 de setembro, que aprovou o Código Fiscal do Investimento. Posteriormente, através da Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º e 81.º do Código do IRS.

Dispunha o artigo 16.º do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”

                E previa, o artigo 72.º, n.º 6 do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte: 

“6 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %”.

Sustenta o Requerente que o regime do residente não habitual se trata de um benefício automático que opera quando as meras condições objectivas de residência e de tempo de permanência no exterior, imediatamente reconhecíveis pela AT, estão preenchidas, pelo que não se pode denegar esse estatuto com base no incumprimento do prazo para requerer a inscrição como residente não habitual.

Mais sustenta a Requerente que aquando da emissão dos actos de liquidação, a AT já tinha conhecimento de que o Requerente queria exercer a faculdade de tributação como residente não habitual, para os anos de 2014 e 2015 e, portanto, não pode invocar o seu desconhecimento como fundamento para se opor à aplicação do estatuto nesses anos.

Por sua vez, entende a Requerida que o regime do residente não habitual é um benefício fiscal sujeito a reconhecimento, tratando-se, portanto, de um direito subjectivo, porquanto o seu gozo se encontra na exclusiva disposição e impulso do sujeito passivo.

Para a Requerida, o prazo fixado no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a inscrição como residente não habitual é um prazo peremptório para o exercício do direito, o qual, não sendo exercido atempadamente determina a caducidade do mesmo.

Conclui, assim, a Requerida que “não tendo [o Requerente] requerido a sua inscrição como residente não habitual, tempestivamente, no prazo legalmente fixado para tal, essa opção tardia nunca pode produzir efeitos quanto ao período de tributação de 2012, nem sequer quanto aos períodos de tributação de 2013 a 2021”. 

Vejamos:

Nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do CIRS que acima transcrevemos, “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”.

Mais referido o n.º 8 do referido normativo que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Considerando o quadro legal à data dos factos, a tributação de acordo com o regime do residente não habitual, depende do preenchimento de dois pressupostos cumulativos:

a)            Que se torne fiscalmente residente em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do Código do IRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual;

b)           Que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos 5 anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual.

Resulta, portanto, que o benefício do regime dos residentes não habituais depende apenas do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, e da inscrição como residente em território português, e não da inscrição como residente não habitual.

A inscrição como residente não habitual prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS trata-se de uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito.

Como resulta do ponto 17 dos factos provados, o Requerente apenas em 11-07-2014, entregou o pedido de inscrição como residente não habitual, entrega essa que não ocorreu, no prazo estipulado no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, pelo que, como sustenta a Requerida, lhe estaria vedada a possibilidade de beneficiar daquele regime.

Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.

Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.

*

Resulta da matéria de facto provada que, no período compreendido entre 2003 e 2012, o Requerente residiu e exerceu a actividade profissional de gestão operacional e direcção hoteleira em diversos países do mundo, designadamente, nas Maldivas, em Marrocos e nas Filipinas. 

O Requerente juntou documentos emitidos por entidades públicas estrangeiras - Certificado de inscrição consular n.º .../2006, emitido pela Embaixada de Portugal em Manila, nas Filipinas, datado de 7 de Março de 2006, Certificado de residência (para fins bancários), emitido pela Embaixada de Portugal em Rabat, Marrocos e «Certificat d’immatriculation», emitido pelo Reino de Marrocos – que atestam a residência do Requerente no estrangeiro nos anos em questão. Informação que é corroborada pelos recibos de vencimento e comprovativos de retenção na fonte juntos pelo Requerente. 

Com efeito, dos documentos juntos aos autos resulta demonstrado que o Requerente não foi residente fiscal em Portugal nos cinco anos anteriores àquele em que se tornou residente em Portugal.

Resulta também dos factos provados que o Requerente se tornou residente fiscal em Portugal no ano de 2012, tendo nesse ano efectuado retenções na fonte como residente.

Com efeito, encontram-se preenchidos os dois pressupostos previstos no artigo 16.º, n.º 8 do CIRS de que depende o enquadramento no regime do residente não habitual.

Não tendo, como acima se referiu, o pedido de inscrição como residente não habitual, natureza constitutiva do direito a ser tributado enquanto tal e, cumprindo o Requerente os requisitos materiais de que depende a aplicação daquele regime, sempre deveria o Requerente ser tributado de acordo com aquele regime.

Face ao exposto, deverão ser anuladas as liquidações de IRS objecto da presente acção arbitral, bem como as decisões dos recursos hierárquicos que tiveram aquelas por objecto, procedendo o pedido formulado pela Requerente, e ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões formuladas pela Requerente.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)            Declarar a ilegalidade dos actos de liquidação de IRS n.º 2018... e n.º 2018..., referentes aos anos de 2014 e 2015, assim como da decisão de indeferimento das reclamações graciosas e recursos hierárquicos que tiveram as referidas liquidações como objecto, anulando-os;

b)           Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €88.122,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de Setembro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(André Festas da Silva)

 

O Árbitro Vogal

(Luís Menezes Leitão)