Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 527/2020-T
Data da decisão: 2021-09-03  ISV  
Valor do pedido: € 2.913,43
Tema: ISV – Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110.º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
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SUMÁRIO:

 

 1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação anterior à conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever  de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, pelo que  se  encontra ferido de ilegalidade um ato tributário praticado ao abrigo da citada norma do CISV, na medida da sua incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – Relatório

 

1. No dia 12.10.2020, o Requerente, A..., contribuinte fiscal n.º..., com domicílio na Rua de ..., Porto, tendo sido notificado, através dos Ofícios n.º 2020... e 2020..., de 10.07.2020, dos despachos proferidos pelo Senhor Diretor da Alfândega de Leixões, no sentido do indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação imposto  de ISV  referente à  DAV  nº 2016/..., de 28.12.2016, e do indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação de Imposto de ISV referente à  DAV nº2017/..., de 13.10.2017, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro do RJAT , em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação das referidas decisões e anulação  parcial das liquidações de ISV na parte do imposto que incide sobre a componente ambiental, no valor total de  €2.913,43, sendo €2.562,60 respeitante  ao ato de liquidação ISV referente à  DAV nº 2016/...  e €350,83 respeitante ao ato de liquidação ISV referente à DAV nº2017/..., de 13.10.2017.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 5.01.2020.

 

3. O fundamento apresentado pela Requerente para sustentar a ilegalidade das liquidações e peticionar a  anulação parcial das mesmas, diz respeito ao cálculo para efeitos de tributação da  componente ambiental ou CO2, porquanto entende que  a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – artigo 11º do CISV – , ao não estabelecer, quanto aos veículos usados uma percentagem de redução pelo tempo de uso, à semelhança do estabelecido para a componente cilindrada,  viola o artigo 110º do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por exceção e por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:

 

Por exceção,

 

O Requerente apresentou em 12.10.2020 o presente pedido de pronúncia arbitral, na sequência das decisões de indeferimento de 09.07.2020, notificadas em 15.07.2020, dos pedidos de revisão das liquidações de ISV n.ºs 2016/..., de 28.12.2016, e 2017/..., de 13.10.2017, apresentados em 23.04.2020 junto da Alfândega de Leixões, relativas ao veículo da marca ..., modelo..., declarado através da DAV nº 2016/..., de 28.12.2016, cujo termo final do pagamento ocorreu em 11.01.2017 e ao veículo da marca ..., modelo..., declarado através da DAV nº 2017/..., de 13.10.2017, cujo termo do prazo de pagamento do imposto ocorreu em 27.10.2017.

 

Tais pedidos de revisão foram indeferidos, com fundamento na sua intempestividade, pelo que se   encontra igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral, que só veio a ser efetuado em 12.10.2020.

 

Em face da manifesta extemporaneidade do pedido, verifica-se a exceção de caducidade do direito de ação, o que se invoca, devendo, em consequência, a Requerida ser absolvida do pedido.

 

Por impugnação,

 

A Requerente não põe em causa a liquidação, a qual foi efetuada de acordo com a lei em vigor, o artigo 11.º do CISV na redação, que lhe foi dada pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016, diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2017, mas a conformidade daquele preceito com o artigo 110.º do TFUE.

 

Da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, claramente se conclui que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, isto é, mais “amigos do ambiente” tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE.

 

A interpretação da Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, se reputa de inconstitucional, não podendo, por isso, ser aplicado no caso concreto.

 

 

5. Em 30.07.2021, foi decidida a questão da exceção de caducidade do direito de ação, nos seguintes termos:

“Em 09.07.2020 foi o pedido de revisão oficiosa, referente à DAV nº 2016/... de 28.12.2016, indeferido com base em informação do Núcleo jurídico de 3.06.2020 e de 8.07.2020, com o seguinte teor:

 

Informação de 3.06.2020

 

 

 

 

 

 

 

Informação de 8.07.2020

 

 

Em 09.07.2020 foi o pedido de revisão oficiosa, referente à DAV nº 2016/... de 28.12.2016, indeferido com base em informação do Núcleo jurídico de 3.06.2020 e de 8.07.2020.

 

Foi o seguinte o teor da notificação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa:

 

 

 

Idênticas informações, decisão e notificação foram, nas mesmas datas, efetuadas  relativamente ao pedido de revisão oficiosa referente à liquidação respeitante à DAV nº 2017/... de 13.07.2017, também objeto desta ação arbitral.

 

Considera a Requerida que, no caso dos autos, procede a exceção da intempestividade do pedido arbitral, com base em alegada “extemporaneidade dos pedidos de revisão da liquidação efetuados”.

 

Vejamos.

 

Como ponto prévio, é de referir que, não resulta dos autos que o indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa tenham tido por fundamento a “extemporaneidade dos pedidos de revisão da liquidação efetuados”.

Na verdade, nas decisões de indeferimento, refere-se que:

 

E de seguida sustenta-se nas mesmas:

 

 

Face ao conteúdo decisório pode afirmar-se que o pedido de revisão foi indeferido tendo por base a inexistência de erro imputável aos serviços, (fundamento que a lei exige, quando a petição é apresentada para além do prazo de reclamação administrativa), mas não que os pedidos de revisão tenham sido indeferidos com fundamento na sua extemporaneidade. Tal é reforçado pela circunstância do sujeito passivo ter sido notificado pela Requerida para apresentar impugnação judicial ou pedido de pronuncia arbitral e não para apresentar ação administrativa especial, que seria, inequivocamente, o meio processual adequado caso se estivesse perante um indeferimento por extemporaneidade.

 

Na verdade, escreve Jorge Lopes de Sousa que:

“Há actos em matéria tributária que são impugnados através de acção administrativa especial, como resulta da alínea p) e do nº 2 do art. 97º deste Código.

Destas normas resulta que a acção administrativa especial é o meio processual adequado quando o acto a impugnar seja de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, e outros actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.

Deste artigo resulta claramente que, nos casos em que o acto a impugnar é um acto de liquidação ou um acto que comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação (acto de indeferimento de reclamação graciosa ou de recurso hierárquico interposto da decisão que a aprecie ou acto de apreciação de pedido de revisão oficiosa, nos termos do art. 78º da LGT) o meio adequado é o processo de impugnação.

(…)

Porém, no que concerne aos actos proferidos em processo de revisão oficiosa ou  de recurso hierárquico interposto de decisão de reclamação graciosa, a impugnação só será o meio processual adequado  quando o acto a impugnar contiver efetivamente a apreciação da legalidade de um acto de liquidação.Se no acto praticado  em processos desses tipos não se chegou a apreciar a legalidade do acto de liquidação, por haver qualquer obstáculo a tal conhecimento (como a intempestividade ou a ilegitimidade do requerente ou do recorrente) o meio de impugnação adequado será a acção administrativa especial, como decorre do preceituado no nº 2 do art. 97º,  pois se tratará de um acto que não aprecia a legalidade de um acto de liquidação” (Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 2006, Áreas Editora, Vol. I, pags. 675-677)

 

A questão está, pois, em saber se nas decisões dos pedidos de revisão oficiosa a Requerida apreciou, ou não, a legalidade dos atos de liquidação.

 

A Requerida nas notificações dos indeferimentos dos pedidos de revisão terá considerado que sim, ao notificar o Requerente no sentido de que dos indeferimentos em causa cabia impugnação judicial ou pedido de pronuncia arbitral.

Ao invés, no presente processo, sustenta posição contrária.

 

Analisemos o teor das decisões de indeferimentos dos pedidos de revisão pois, como refere o autor citado “(…) é claro que a alínea d) do nº 1 e o nº 2 deste art. 97º fazem depender a opção pela impugnação ou pela acção administrativa especial (recurso contencioso) do conteúdo do acto e não de qualquer outro factor.” (Ob. cit. P. 677).

 

Nas decisões em causa, por um lado, a Requerida sustenta não poder desaplicar as normas aplicáveis aos factos “com base num “julgamento” ” de pretensa desconformidade com o direito comunitário”. Por outro, sustentou que se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos sublinhando que decidiu de acordo com o princípio da legalidade.

Ora, a Requerida ao sustentar, nas decisões de indeferimento, que na prática dos atos tributários objeto do pedido de revisão observou o princípio da legalidade, equivale a dizer que observou o direito aplicável. É certo que o faz com base no entendimento de que a Administração Pública não deve obediência ao direito europeu e que, pelo contrário,  não pode desaplicar norma internas violadoras do mesmo. Mas não deixou de formular um juízo de conformidade às normas que considera aplicáveis e vinculativas para a sua atuação relativamente aos atos de liquidação que praticou. Nesta medida, bem ou mal,  apreciou a legalidade dos atos de liquidação.   

Concluindo-se que a AT apreciou a legalidade dos atos de liquidação, face ao que supra se referiu, não pode deixar de se entender que, tal como a Requerida indicou nas notificações feitas ao Requerente, os meios de reação admissíveis contra tais decisões eram, além do recurso hierárquico, a impugnação judicial ou o pedido de constituição do tribunal arbitral.

Ora, não tendo sido alegado, nem resultando dos autos, que o presente pedido de pronúncia arbitral tenha sido apresentado para além do prazo de 90 dias a contar das notificações ao Requerente das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, julga-se improcedente a exceção suscitada pela Requerida.”

 

 

 

6.Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.

Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.

 

7. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

 

8. Cumpre solucionar a questão da ilegalidade das liquidações de ISV objeto do processo e a peticionada anulação parcial das mesmas.

 

II – A matéria de facto relevante

 

9. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

9.1. Com referência às Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV) n.º 2016/..., de 28.12.2016, e n.º 2017/..., de 13.10.2017, apresentadas pelo ora Requerente, foram declarados o veículo da marca ..., ..., a que foi atribuída a matrícula..., e o veículo da marca ..., modelo..., a que foi atribuída a matrícula ... .

9.2. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo da marca ... insere-se no escalão da tabela correspondente à redução de 28 %, e o veículo da marca ... insere-se no escalão correspondente à percentagem de redução de 35%.

9.3. No Quadro A das DAV (características do veículo), constam, na casa 25, quanto à Emissão de Gases CO2, respetivamente, os valores de 164 g/Km e 105 g/Km.

9.4. Para o cálculo do ISV relativamente à componente cilindrada, a base tributável foi objeto de redução nos termos do artigo 11º, nº 1, do CISV, em função do tempo de uso dos veículos.

9.5.A componente ambiental não foi objeto de redução em função do tempo de uso dos veículos.

9.6. Pela aplicação das percentagens de redução em função do tempo de uso dos veículos, respeitante à componente ambiental, em conformidade com o critério de desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional estabelecidos no artigo 11º, nº 1, do CISV, a liquidação referente à DAV n.º 2016/..., de 28.12.2016, seria inferior o montante de  €2.562,60 e  a liquidação referente à DAV n.º 2017/..., de 13.10.2017, seria inferior no montante de €350,83.

9.7. Em 23.04.2020, o Requerente apresentou junto da Alfândega de Leixões, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de imposto, dando origem a processos de revisão oficiosa, que foram objeto de decisões de indeferimento.

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados

 

10. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, bem como da posição da Requerida relativamente aos factos alegados pela Requerente que, nem em sede de procedimento de revisão, nem em sede de resposta no presente processo, foram contestados, antes emergindo concordância das partes relativamente à matéria de facto alegada pela Requerente, restringindo-se o desacordo, em exclusivo, a matéria de direito.

 

-III- O Direito aplicável

 

 

11. Da ilegalidade das liquidações de ISV.

 

Escreveu-se na decisão arbitral proferida no processo 572/2018-T, designadamente, o seguinte:

 

“6.47. Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.

6.48. Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.

(…).

6.66. Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.

6.67. Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.

 

6.68. Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.

6.69. E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:

“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental:

6.70. Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional,

 

consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).

6.71. E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

6.72. Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, nº 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

6.73. A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este EM não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional.

6.74. Com efeito, a Comissão volta a entender que a legislação nacional não é compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, na medida em que os veículos usados “importados” de outros EM são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado nacional. “

(…)

 

6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05.

6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.

 

(…)

6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”

 

 

Esta posição, tem vindo a ser perfilhada em sucessivas decisões arbitrais proferidas, designadamente, nos processos n.º 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 498/2019-T e 660/2019-T, 13/2020-T, 293/2020-T, 474/2020-T, entre outras. Também este Tribunal Arbitral acompanha este entendimento pelas razões nela expostas na douta decisão arbitral citada.

 

12. Da alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV efetuada pelo Requerente.

 

Quanto a esta questão, acompanha-se, também, o decidido da decisão arbitral proferida no processo 293/2020-T, onde se pode ler:

 

“12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.”

 

13. Por último, a controvérsia em questão foi objeto de apreciação do TJUE no recente   acórdão de 2.09.2021, proferido no processo C 169/20 (Comissão Europeia contra República Portuguesa), e decidido no sentido perfilhado pela jurisprudência nacional acima referida, podendo ler-se no mesmo, além do mais, o seguinte:

“39      No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C 200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.

40      Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

41      Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

42      A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.

43      Ora, importa recordar que, embora os Estados Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C 213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).

44      A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C 290/05 e C 333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).

45      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C 402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).”

(…)

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) decide:

1)      Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.

                (…)”

 

14. Tendo em consideração o exposto,  mostrando-se  o artigo 11.º do CISV, na redação anterior à conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE, face ao princípio do primado do Direito da União Europeia os atos de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontram-se feridos de ilegalidade, não podendo deixar de ser  parcialmente anulados, no que respeita  ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.

 

-IV- Decisão

 

 

Assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos decide o Tribunal arbitral:

julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se, nos termos expostos, a ilegalidade e  anulação parcial  dos atos tributários impugnados, sendo esta anulação parcial  no valor de €2.562,60 no que respeita  ao ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) referente à DAV nº 2016/...  e de €350,83 relativamente ao ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) referente à DAV nº2017/..., de 13.10.2017.

 

Valor da ação:  €2.913,43 (Dois mil novecentos e treze euros e quarenta e três cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida, no valor de 612.00 €, nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 03.09.2021

 

O Árbitro

Marcolino Pisão Pedreiro