Sumário:
É inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroactividade dos impostos consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, no segmento em que, atribuindo carácter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo, determina a aplicação aos anos fiscais anteriores a 2016, da isenção prevista na alínea e) do n.º 1 desse artigo, entendida como respeitando apenas a operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A…. S.A. - EM LIQUIDAÇÃO, com sede na ……….., em Lisboa, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva ………, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo, referentes ao ano de 2015, no montante de € 314.837,35, e, bem assim, do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
No âmbito de um procedimento inspectivo , Relatório de Inspeção Tributária apurou imposto em falta, no montante de € 314.837,35, resultante da aplicação da taxa de 4%, prevista na verba 17.3.4 da TGIS, sobre o valor cobrado com as comissões Taxa Multilateral de Intercâmbio e com as comissões cobradas nas "operações efectuadas com cartões bancários em caixas automáticos", sustentando o entendimento de que, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, só estarão isentos de imposto do selo aqueles juros e comissões que estejam directamente ligadas a operações de concessão de crédito, no âmbito de actividade exercida pelas instituições e entidades referidas naquele normativo.
No entanto, pela análise da sua evolução histórica não pode deixar de concluir-se que a norma em causa não se restringia, anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, às operações directamente destinadas à concessão de crédito, havendo de entender-se que a atribuição de carácter interpretativo ao artigo 154.º dessa Lei, para efeito de ser aplicada retroactivamente, é inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que o artigo 153.º da Lei nº 7-A/2016, de 30 de março, ao conferir nova redacção à verba 17.3.4 da TGIS, passando a incluir as “taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões” não introduziu qualquer novidade no texto da norma, tendo pretendido esclarecer o sentido interpretativo já existente quanto ao conceito de comissões e outras contraprestações, sendo de afastar um qualquer juízo de inconstitucionalidade com fundamento na retroactividade do imposto.
Acresce que a taxa multilateral de intercâmbio e as comissões por operações com cartões em caixas automáticas enquadram-se no âmbito de incidência objectiva de imposto, nos termos do artigo 1.º do CIS e da verba 17.3.4 da TGIS, não podendo afirmar-se que as comissões cobradas por utilização de terminais de pagamento automático ou por caixas automáticas disponibilizadas pelas instituições bancárias não são contraprestações de serviços financeiros.
Nesse sentido, é de considerar que o funcionamento da operação de pagamento envolve uma relação económica entre as instituições de crédito, os comerciantes e os clientes que implica o pagamento de comissões que são retidas pelas entidades bancárias que disponibilizam o serviço, o que justifica a sujeição das referidas comissões ao imposto de selo.
Por outro lado, a isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, ao referir-se aos juros e comissões cobrados, as garantias prestadas e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras pretende correlacionar as comissões cobradas e as garantias prestadas com a utilização do crédito, excluindo que a isenção abranja outras comissões que não tenham directa relação com esse tipo de operações.
Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.
2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 14 de Abril de 2021, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e de alegações escritas por se entender que a matéria de facto relevante para a decisão da causa pode ser fixada com base na prova documental produzida e não haver quaisquer novos elementos sobe que as partes se devam pronunciar.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13 de Janeiro de 2021.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
B) O Requerente foi objecto de uma acção inspectiva de âmbito geral, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2017……., de 12 de Abril de 2015, referente ao exercício de 2015;
C) No âmbito referido procedimento inspectivo, apurou-se imposto do selo em falta, relativamente a comissões (taxa multilateral de intercâmbio e comissões sobre operações efectuadas com cartões bancários em Caixas Automáticos), no montante de € 665.209,67, em resultado da aplicação da taxa de 4%, prevista na verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS);
C) Em síntese conclusiva, no Relatório de Inspecção Tributária, considerou-se o seguinte:
1. A taxa multilateral de intercâmbio (TMI) e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários, são comissões cobradas entre Bancos [detentores de ATM ou emissores de cartões bancários];
2. O A… não procedeu a qualquer liquidação de Imposto do Selo sobre a TMI, nem sobre as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações (como as acima descritas) efectuadas com cartões bancários;
3. A TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações (como as acima descritas) efectuadas com cartões bancários encontrando-se sujeitas a IVA, encontram-se deste isentas, nos termos da alínea c) do n.º 27 do art.º do CIVA;
4. Estando isentas de IVA, a TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações (como as acima descritas) encontram-se sujeitas a Imposto do Selo, nos termos do n.º 1 e do n.º 2 do art.º 1.º do CIS;
5. Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 2.º do CIS, são sujeitos passivos de imposto as "Entidades concedentes de crédito e de garantias ou credoras de juros, prémios comissões e outras contraprestações... competindo-lhes, pelo n.º 1 do art.º 23.º, art.º 41.º e n.º 1 do art.º 44.º todos do CIS, a sua liquidação e entrega nos cofres do Estado;
6. De acordo com o disposto na alínea g) do n.º 3 do art.º 3 do CIS, “nas restantes operações financeiras realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras”, quem suporta o encargo do imposto é o cliente;
7. Por sua vez, ao abrigo da alínea h) do n.º 1 do art.º 5.º do CIS, o nascimento da obrigação tributária ocorre nas “… operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas, no momento da cobrança dos juros, prémios, comissões e outras contraprestações;
8. Nos termos do n.º 1 do art.º 9.º do CIS, o valor tributável de Imposto do Selo é o que resulta da TGIS;
9. O n.º 1 do art.º 22.º do CIS, remete as taxas de imposto para a TGIS;
10. As comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões (como as acima referidas) têm pleno cabimento na verba 17.3.4 da TGIS;
11. As comissões acima referidas não se encontram abrangidas pela isenção contemplada na alínea e) do n.º 1 do art.º 7 do CIS;
12. Deste modo, tendo o A…. (i) informado que em 2015 não liquidou Imposto do Selo sobre as comissões aqui em apreço e, (ii) convidado a apurar o Imposto de Selo em falta, não o tendo efetuado, outra solução não resta aos Serviços de Inspeção Tributária que não seja, com base na discriminação mensal das comissões acima referidas cobradas em 2015 – informação esta que facultada pelo A…. aos Serviços de Inspecção Tributária - proceder ao apuramento do imposto de selo em falta.
13. Face ao que antecede apurou-se igualmente Imposto do Selo em falta, no montante de € 314.837,35 , em resultado da aplicação da taxa de 4%, prevista na verba 17.3.4. da TGIS, a base tributável (no montante total de € 7.870.933,74) da TMI e das comissões sobre operações efectuadas com cartões bancários em Caixas Automáticos (também designadas por caixas multibanco ou ATM), conforme se sintetiza, por mês de cobrança, no quadro infra:
D) Na sequência do procedimento inspectivo, a Requerente foi notificada da liquidação de imposto do selo, relativa ao ano de 2015, n.º 2019 ………., no valor de € 381.809,47 e de juros compensatórios no valor de € 59.621,82.
E) Na liquidação notificada ao A…. estava incluído, para além do acima referido, (i) o imposto de selo devido sobre comissões de avaliação e o imposto de selo por vistorias cobradas em operações de crédito (verba 17.3.4. da TGIS), no montante de € 7.868,32 e (ii) imposto de selo sobre a taxa de serviço do comerciante (verba 17.3.4 da TGIS), no montante de € 59.103,80.
F) Em 6 de Janeiro de 2020, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação do imposto do selo que lhe fora liquidado, mas apenas na parte respeitante à TMI e às comissões interbancárias cobradas pela utilização de ATM, a qual veio a ser indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça T, de 11 de Setembro de 2020 , praticado com delegação de competências;
G) A decisão de indeferimento manifesta concordância com a informação dos serviços que consta do documento de pp. 112 do PA junto ao pedido arbitral e que aqui se dá como reproduzido;
H) Não obstante a reclamação graciosa ter como objeto apenas a liquidação de imposto de selo correspondente à TIM e às comissões bancárias cobradas pela utilização de ATM's, a administração Fiscal fez uma apreciação global e decidiu, indeferindo aquela, sobre todas as componentes da liquidação de imposto do selo que constam do Relatório da Inspeção Tributária.
I) A Requerente não procedeu ao pagamento da liquidação de imposto e juros compensatórios
J) O pedido de constituição arbitral deu entrada em 16 de Outubro de 2020.
Factos não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e em factos não questionados pelas partes.
Matéria de direito
5. Na sequência de um procedimento inspectivo, a Autoridade Tributária apurou imposto de selo em falta relativamente à taxa multilateral de intercâmbio e às comissões referentes a operações realizadas com cartões bancários em caixas automáticos, que foram cobradas pela Requerente aos seus clientes no período de tributação de 2015 e que determinaram correcções nos montantes de € 314.837,35 resultantes da aplicação da taxa de 4% prevista na verba 17.3.4 da TGIS sobre o valor cobrado, a que acresce um montante indeterminado de juros compensatórios.
Independentemente da questão de saber quem é o titular do interesse económico sobre que incumbe o encargo do imposto, à luz do disposto no artigo 3.º do Código do Imposto do Selo, o certo é que as correcções recaíram na esfera jurídica do Requerente, enquanto instituição de crédito, que, para esse efeito, foi tida como sujeito passivo.
Por outro lado, em qualquer dos casos, a Autoridade Tributária considerou inaplicável a isenção de imposto a que se refere o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do Código do Imposto do Selo, argumentando que a contrapartida cobrada pelas entidades financeiras pela prestação de serviços de pagamento se enquadram na verba 17.3.4. da TGIS e as dúvidas que pudessem subsistir quanto a essa questão foram ultrapassadas pelo aditamento de um n.º 7 ao artigo 7.º do Código do Imposto do Selo pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, a que o artigo 154.º dessa Lei conferiu carácter interpretativo.
Importa ainda ter presente que a taxa multilateral de intercâmbio e as comissões referentes a operações realizadas com cartões bancários são qualificadas como comissões bancárias, correspondendo a prestações pecuniárias exigíveis aos clientes pelas instituições de crédito como retribuição por serviços por elas prestados no âmbito da sua actividade.
A questão central em debate consiste, pois, em saber se as comissões cobradas pela Requerente se encontram abrangidas pelo regime de isenção fiscal a que se refere o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do CIS, que isenta de imposto “os juros e comissões cobrados, as garantias prestadas e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras”. E a questão coloca-se nos mesmos termos para qualquer das comissões que determinaram a correcção tributária.
Sendo essa a questão a dirimir, justifica-se preliminarmente um breve relance pela evolução legislativa do preceito.
Na sua redação originária, o Código de Imposto de Selo, no seu artigo 6.º, previa a isenção de imposto para a concessão de crédito e a cobrança de comissões por instituições de crédito, nos seguintes termos:
1 - Ficam também isentos do imposto:
(...)
e) Os juros cobrados e a utilização de crédito concedido por instituições de crédito e sociedades financeiras a instituições, sociedades ou entidades cuja forma e objecto preencham os tipos de instituições de crédito e sociedades financeiras previstas na legislação comunitária, umas e outras domiciliadas nos Estados membros da União Europeia, ou em qualquer Estado cumpridor dos princípios decorrentes do Código de Conduta aprovado pela Resolução do Conselho da União Europeia, de 1 de Dezembro de 1997;
f) As comissões cobradas por instituições de crédito a outras instituições da mesma natureza ou entidades cuja forma e objecto preencham os tipos de instituições de crédito previstos na legislação comunitária, domiciliadas nos Estados membros da União Europeia, ou em qualquer Estado cumpridor dos princípios decorrentes do Código de Conduta aprovado pela Resolução do Conselho da União Europeia, de 1 de Dezembro de 1997;
(…)
A Lei n.º 30-C/2000, de 29 de Dezembro, tendo mantido no essencial o regime de isenção previsto nessas disposições, introduziu um n.º 2 em que estipulava que “[o] disposto nas alíneas e) e f) apenas se aplica às operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito, no âmbito da actividade exercida pelas instituições e entidades referidas naquelas alíneas”, assim restringindo o âmbito objectivo da isenção referida na alínea f), que passou a aplicar-se apenas às operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito.
Esse n.º 2 veio, entretanto, a ser eliminado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, que reformulou ainda a alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º de modo a incluir nesse único dispositivo as isenções anteriormente previstas nas alíneas e) e f), e passou a ter a seguinte redacção:
e) Os juros e comissões cobrados e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito e sociedades financeiras a sociedades de capital de risco, bem como a sociedades ou entidades cuja forma e objecto preencham os tipos de instituições de crédito e sociedades financeiras previstos na legislação comunitária, umas e outras domiciliadas nos Estados membros da União Europeia, ou em qualquer Estado, com excepção das domiciliadas em territórios com regime fiscal privilegiado a definir por portaria do Ministro das Finanças.
Com o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o regime daquela alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º, passou a constar da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º e a Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro, alterou a redacção dessa alínea, estendendo o âmbito aplicativo da isenção às “garantias prestadas”.
O preceito manteve-se inalterado desde então, ostentando actualmente a seguinte redacção:
e) Os juros e comissões cobrados, as garantias prestadas e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras a sociedades de capital de risco, bem como a sociedades ou entidades cuja forma e objecto preencham os tipos de instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras previstos na legislação comunitária, umas e outras domiciliadas nos Estados membros da União Europeia ou em qualquer Estado, com excepção das domiciliadas em territórios com regime fiscal privilegiado, a definir por portaria do Ministro das Finanças.
Entretanto, a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, no seu artigo 152.º, veio aditar um n.º 7 ao artigo 7.º do CIS, em que se prescreve: “[o] disposto na alínea e) do n.º 1 apenas se aplica às garantias e operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito, no âmbito da actividade exercida pelas instituições e entidades referidas naquela alínea”. Por outro lado, o artigo 154.º dessa Lei atribuiu a este n.º 7 natureza de norma interpretativa.
6. A evolução histórica do artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do CIS evidencia que só na sua versão originária, que reportava a isenção à concessão de crédito e à cobrança de comissões pelas instituições de crédito e, posteriormente, com o aditamento de um n.º 2 a esse artigo pela Lei n.º 30-C/2000, que restringia o âmbito da isenção às operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito, é que o âmbito aplicativo da isenção ficou circunscrito às operações de crédito (incidência objectiva) e às instituições de crédito (incidência subjectiva).
Com a consolidação da fórmula verbal “juros e comissões cobrados e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito e sociedades financeiras”, resultante da nova redacção dada pela Lei n.º 32-B/2002, e a concomitante eliminação do n.º 2, ficou claro que a norma visa duas distintas finalidades: de um lado, a cobrança de juros e comissões, e de outro, a concessão de crédito.
E é nesse sentido que aponta também o elemento histórico de interpretação. Não pode deixar de fazer-se notar que até à reformulação operada pela Lei n.º 32-B/2002, a lei contemplava distintamente os juros cobrados e a utilização de crédito (alínea e) e as comissões cobradas por instituições de crédito (alínea f). A assimilação desses dois tipos de operações financeiras num único dispositivo legal não pode ter o efeito de descaracterizar o âmbito de incidência da isenção, passando a associar os juros e as comissões à própria concessão de crédito.
Neste contexto, a norma do n.º 7 do artigo 7.º do CIS, aditada pela Lei n.º 7-A/2016, na medida em que restringe o âmbito da isenção às operações directamente destinadas à concessão no âmbito da actividade desenvolvida pelas instituições e sociedades financeiras e outras instituições financeiras, reveste-se natureza inovadora, passando a delimitar o âmbito material da isenção prevista na falada norma do artigo 7.º, n.º 1, alínea e), em termos que não correspondiam ao sentido literal e às circunstâncias históricas em que a norma foi elaborada.
Norma interpretativa e o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal
7. Na revisão de 1997, a Constituição passou a estatuir, no seu artigo 103.º, n.º 3, que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa, consagrando um princípio da proibição da retroactividade dos impostos que constituía já uma decorrência do princípio da protecção da confiança inscrito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º).
Consequentemente, como tem sido sublinhado pela jurisprudência constitucional, o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroactivos, agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação dos factos relevantes à luz do direito anteriormente aplicável (Acórdão n.º 644/2017).
A mencionada proibição constitucional tem implicações relativamente às leis interpretativas no domínio fiscal.
Como resulta do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, a lei interpretativa considera-se integrada na lei interpretada, o que significa que retroage os seus efeitos à data da entrada em vigor da lei antiga, tudo se passando como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada.
A lei interpretativa passa a ter, nesses termos, um efeito de retroactividade formal: há retroactividade porque a lei se torna aplicável a factos e situações anteriores, e a retroactividade é meramente formal na medida em que a lei se limita a consagrar uma das interpretações possíveis da lei anterior com que os interessados podiam e deviam contar, e que não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior, será substancial ou materialmente retroactiva (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, págs. 246-247).
Como se explanou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017, “na óptica da tutela da confiança dos destinatários do direito, releva que a lei interpretativa formalmente retroactiva apenas declara o direito preexistente; ao passo que a lei interpretativa substancialmente retroativa, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo. É o que sucede quando o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa” violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroactivas válida para o seu âmbito de aplicação material”.
É a situação do caso.
Os serviços da administração tributária interpretaram a alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS no sentido de que a isenção aí prevista apenas se aplica em relação a operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito e consideraram que a disposição do n.º 7 do artigo 7.º do CIS, na redacção dada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que fixou esse critério legal, limitou-se a consignar uma interpretação que era já admissível à luz do artigo 7.º, n.º 1, alínea e), desse diploma.
No entanto, essa solução normativa apenas se tornou viável com base na interpretação conjugada dos n.ºs 1, alínea e), e 7 do artigo 7.º do CIS, em consequência do aditamento desse n.º 7 pelo artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, e tem por isso um carácter inovador, agravando a posição jurídica do sujeito passivo que fica assim impedido de beneficiar do regime de isenção de imposto. E, tendo sido aplicada ao exercício de 2015, e, portanto, a um ano fiscal anterior à entrada em vigor da Lei, essa solução torna-se substancialmente retroactiva e, nessa medida, incompatível com a proibição da imposição de impostos retroactivos.
Entende-se, nestes termos, que é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroactividade dos impostos consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, no segmento em que, atribuindo carácter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo, determina a aplicação aos anos fiscais anteriores a 2016, da isenção prevista na alínea e) do n.º 1 desse artigo, entendida como respeitando a operações financeiras directamente destinadas à concessão de crédito.
Esse mesmo juízo de inconstitucionalidade foi confirmado pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 644/2017, em reclamação de decisão sumária, e, mais recentemente pelo acórdão n.º 92/2018, e foi adoptado, em situação similar, entre outras, pelas decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 348/2016, 303/2017, 352/2017 e 441/2017.
Em necessária decorrência da recusa de aplicação da interpretação normativa tida como inconstitucional, são ilegais os actos tributários de liquidação de imposto de selo, bem como de liquidações de juros compensatórios a que se refere o presente pedido de pronúncia arbitral.
A questão dos juros compensatórios
O Requerente não pediu expressamente a anulação dos juros compensatórios correspondente ao imposto do selo cuja liquidação impugnou.
A Requerida, com base no princípio segundo o qual o Tribunal não pode ir além do pedido, defende que, não tendo sido pedida a anulação dos juros compensatórios, e a impossibilidade legal da sua anulação, mesmo se o imposto impugnado for anulado.
Ora, os juros compensatórios são devidos, de acordo com o o n.º 1 do artigo 40.º do Código do Imposto do Selo "1 - Sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação ou a entrega de parte ou da totalidade do imposto devido, acrescerão ao montante do imposto juros compensatórios, de harmonia com o artigo 35.º da LGT.".
E de harmonia com o n.º 8 do artigo 35.º da LGT, "8 - Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados". Julga-se, pois, que, tendo sido impugnada uma parte da dívida de imposto liquidado, a esta acrescem, automaticamente, os juros compensatórios que lhe são imputados. De onde decorre que, impugnado o "imposto devido", se impugnam automaticamente os juros compensatórios que sobre o respetivo montante incidiram. E do que se trata aqui mais não é do que seguir o princípio segundo o qual "acessorium sequitur principale". Os juros compensatórios, tendo como pressuposto "imposto devido", são acessórios da correspondente dívida. Se a dívida for eventualmente anulada, os seus acessórios também serão anulados, porque seria destituído de sentido e de base legal manter juros se o principal for anulado, considerado indevido, ou seja, o acessório terá sempre o mesmo destino do principal.
Assim, entende este Tribunal que os juros compensatórios imputáveis à importância impugnada, já que as duas componentes não impugnadas também se referiam a todos os meses do ano de 2015, podem facilmente determinar-se mediante uma proporção de três simples (314.837,35 x 59.621,82 : 381.809,47 = 49.163,73). Ou seja, se a liquidação de imposto de selo impugnada for anulado, anular-se-ão, igualmente, os juros compensatórios que lhe são imputáveis, isto é, € 49.163,73. Sem prejuízo da correção do valor da causa,
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular a parcialmente a liquidação de imposto do selo n.º 2019 ……….., e da respetiva demonstração de juros compensatórios, nos montantes parcelares de € 314.837,35 e € 49.163,73;
b) Condenar a Autoridade Tributária no reembolso da quantia de € 364.001,08, em resultado dessa anulação;
IV. Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 314.837,35. No entanto, a liquidação impugnada corresponde aos montantes parcelares de € 314.837,35, a título de imposto de selo, e de € 49.163,73, a título de juros compensatórios, no total de € 364.001,08, sendo esse o valor que consta do acto de liquidação, junto ao pedido arbitral como documento n.º 1. Sendo o valor atendível para efeitos de custas, no caso de ser impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende, como determina o artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, fixa-se o valor da causa em € 364.001,08.
V. Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 6.120,00, que fica a cargo da Requerida.
VI. Notificação ao Ministério Público
Atenta a recusa de aplicação de norma constante de acto legislativo, notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.
Notifique.
Lisboa, 13 de Junho de 2021,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Manuel Faustino
A Árbitro vogal
Carla Almeida Cruz