Sumário:
I - A Contribuição Especial criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de março não é uma contribuição financeira, mas, na esteira das "contribuições de melhoria", integra-se na tipologia das contribuições especiais que, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, são consideradas impostos.
II - Tendo em vista o disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento da Contribuição Indústria, as obras de restauração e de ampliação, designadamente se não ocasionarem demolição do edificado de que resulte uma realidade suscetível de ser tido como "terreno para construção", não preenchem a previsão normativa daquela norma, dando-se assim por inverificado o aspeto material do elemento objetivo da incidência da contribuição especial.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
1. A….. e B…….., doravante designados por "Requerentes", contribuintes com domicílio fiscal na Rua …….., Porto e titulares dos números de identificação fiscal de pessoa singular, respetivamente, ……… e ………, vieram, ao abrigo dos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Geral Tributária (LGT) 99.º, alíneas a) a d) do artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 2.º, n.º 1 alínea a) e 10.º, n.º 1 alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT” , submeter ao CAAD pedido de apreciação da sua pretensão de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributo contribuição especial e, assim, pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à AT a 29.09.2020.
4. Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular o ora signatário, que atempadamente aceitou o encargo.
5. A 16.11.2020 as Partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.
6. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 18.11.2020.
7. Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta em 15-03-2021, invocando a exceção de incompetência do tribunal e, sem conceder, pugnando pela total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante “PPA”), e pela consequente manutenção da Liquidação em crise na Ordem Jurídica.
8. Notificados para o efeito, os requerentes responderam à matéria de exceção em 14-04-2021.
9. Tendo o tribunal verificado que o Processo Administrativo (PA) não tinha sido junto aos autos, notificou em 28-04-2021 a Requerida para o juntar, o que sucedeu no dia 29-04-2021.
I.1 - Fundamentação dos Requerentes
10. Os Requerentes:
i- Invocam a incompetência relativa do adjunto do chefe do serviço de finanças do Porto ….. para praticar os atos, designadamente o de liquidação, que praticou, uma vez que o Regulamento (artigo 11.º) atribui a competência ao chefe do serviço de finanças da área da situação dos prédios e o adjunto, em violação do disposto no artigo 36.º do CPPT, não invocou qualquer delegação de competências nos atos que praticou no procedimento. Sem prescindir,
ii- Pretendem os Requerentes ver declarada a ilegalidade do atos de liquidação da Contribuição Especial (CE) criada pelo abrigo do DL n.º 43/98, de 3 de Março (doravante “DL n.º 43/98”, “DL” ou “o Diploma”) - com justificação na valorização provocada pelos investimentos públicos em infraestruturas rodoviárias, designadamente, CRIL, CREL, CRIP, CREP e respetivos acessos - diploma que também aprovou o respetivo Regulamento (“Regulamento da Contribuição Especial”, “Regulamento” ou “RCE”, bem como a declaração de ilegalidade da liquidação de juros compensatórios.
iii- Alegam vícios de forma por preterição de formalidades legais e incompetência relativa do autor do ato de liquidação, e vício de violação de lei pelo não preenchimento dos pressupostos da incidência objetiva do imposto.
iv- À liquidação impugnada corresponde a guia de pagamento junta pelos Requerentes ao PPA, identificada com o n.º 2020 ……., com um valor total a pagar (contribuição especial mais juros compensatórios) de € 2.607,09 (cfr. doc. n.º 10 junto pelos Requerentes).
v- A liquidação foi efetuada no serviço de finanças de Porto ….. na sequência da emissão pela Câmara Municipal do ………. em 17.12.2014, do Alvará de Licenciamento de Obras de Ampliação/Alteração n.º ALV …../…/DMU, em nome dos Requerentes.
vi- O Requerente não se conforma com a Liquidação efetuada pela AT, e que aqui coloca em crise, por entender, entre o mais, que a situação em causa nos autos se não enquadra no âmbito de incidência do tributo conforme delimitado pelo DL n.º 43/98, designadamente por não ter havido quaisquer obras de demolição suscetíveis de darem origem a um prédio urbano do tipo "terreno para construção".
vii- Mais refere, em abono da sua posição nos autos, que a AT não procedeu à vistoria que no DL n.º 43/98 se prevê dever preceder a avaliação para efeitos de determinação da matéria coletável, o que igualmente constitui vício de forma por preterição de formalidades legais.
viii- Incompetência relativa do autor do ato, vício de forma por preterição de formalidades legais e vício de violação de lei são os vícios que, segundo os Requerentes, inquinam de ilegalidade o ato impugnado.
I.2 Fundamentação da Requerida
11. A Requerida:
i- Invoca a exceção de incompetência material deste tribunal por se estar perante uma contribuição e não um imposto.
ii- Considera, pois, a sua vinculação ao CAAD se rege estritamente nos termos do RJAT em articulação com a Portaria de Vinculação
iii- Fundamenta extensamente a sua posição com base na distinção entre "tributos", tal como estão enunciados no artigo 3.º da LGT e "impostos", considerando que estes são uma espécie do género tributo, referindo-se o artigo 2.º da Portaria de Vinculação exclusivamente a impostos.
iv- Não adota qualquer posição expressa sobre a liquidação que vem impugnada, sem prejuízo de ter junto o PA, onde o ato praticado se encontra documentado.
12. Notificados por este Tribunal para o exercício do direito ao contraditório relativamente à exceção invocada pela Requerida, vieram os requerentes pronunciar-se pela improcedência da exceção de incompetência do Tribunal, invocando que o Tribunal é competente em razão da matéria, havendo já Decisões Arbitrais Tributárias nesse sentido em processos em “matéria análoga”[2], sendo a contribuição nestes autos, como naqueles, administrada, liquidada e cobrada pela AT e, ainda, considerando o art.º 4.º, n.º 3 da LGT.
II - Saneamento
13. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
14. O Processo não enferma de nulidades.
15. A fim de aferir se nada obsta ao conhecimento do mérito da causa, começar-se-á por conhecer da matéria de exceção, desde logo da competência do Tribunal em razão da matéria, cfr. art.º 13.º do CPTA e art.ºs 96.º, al. a) e 97.º, n.º 1 do CPC[3].
16. O que se fará logo após o tratamento da matéria de facto.
III - Matéria de facto
III.1 Factos provados
17. Consideram-se provados os factos que seguem:
1) Os Requerentes são proprietário, por aquisição derivada onerosa, ocorrida em 20/08/2013, do imóvel situado na Rua ………., na União de Freguesias de Lordelo do Ouro e Massarelos, Concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana de referida União de Freguesias sob o artigo …...
2) Eram anteriores proprietários do imóvel C……, com o NIF ……, e D……. com o NIF ………., conforme consta da Certidão Permanente do Prédio, junta com o PPA sob o doc. n.º 1.
3) O artigo matricial atual do imóvel corresponde ao (e tem origem no) anterior artigo matricial urbano n.º ….. da extinta Freguesia de Ramalde, Concelho do Porto.
4) O imóvel foi inscrito na matriz predial urbana em 2014, com os seguintes elementos constitutivos: Área total do terreno: 219,0500 m2; Área de implantação do edifício: 120,6000 m2; Área bruta de construção 361,8000 m2; área bruta dependente, 120,6000m2; área bruta privativa: 241,2000 m2 (cfr. Caderneta Predial, de 28.9.2020, doc. 2 junto com o PPA).
5) E na mesma caderneta predial o prédio vem descrito nos seguintes termos: Tipo de Prédio: Prédio em Propriedade Total, sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente. Afetação: Habitação; N.º de Pisos: 3; Tipologia/divisões: 8.
6) O prédio urbano em causa está inscrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, Freguesia de Lordelo do Ouro com o n.º …./2017…., com as seguintes descrições: Urbano; Situado em Lordelo do Ouro, Rua …………; Área Total: 219,05 M2; Área coberta: 120,6 M2; Área descoberta: 98,45 M2; Matriz n.º …..; Freguesia Lordelo do Ouro e Massarelos; Composição e confrontações: casa de cave, rés-do-chão e 1.º andar e quintal; Transcrição da descrição n.º …./2006….. - Ramalde - cfr. Doc 1, Certidão Permanente junta ao PPA.
7) Em 02-05-2016 foi emitido pela Câmara Municipal do Porto, em nome do Requerente A……. o Alvará de licença de obras de ampliação/Alteração n.º ALV/…/…./DMU, no Processo n.º ……./…/CMP, respeitante ao prédio (em a) a c) supra).
8) Do teor do Alvará antes mencionado consta, designadamente (cfr. Doc. 3 junto com o PPA, e também incluído no PA):
a) “(...) Nos termos do art.º 74.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9 de setembro, retificado pela Declaração de Retificação n.º 46.º-A/2014, de 10 de novembro, que estabelece o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), é emitido o presente alvará de licença de obras de ampliação / alteração, em nome de A……, portador do BI n.º………… e contribuinte n.º ……….., que titula o licenciamento das obras que incidem sobre o prédio sito na Rua …………, orientados de sul para norte, da freguesia de Ramalde descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ……/2006…… e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ….. da respetiva freguesia. (…)
b) Características da obra: Área total do prédio: 236 m2; Área total de construção: 350 m2, sendo 36 m2 relativos a ampliação e 69 m2 relativos a alteração, com área de 244 m2 a manter; Área bruta de construção: 349 m2; N.º de pisos abaixo da cota de soleira: 0; N.º de pisos acima da cota de soleira: 3; Cércea: 9,70 m; Número total de fogos: 1;
c) Destinos do edifício: os pisos rés-do-chão, 1.º e 2.º andar destinam-se a habitação, com área correspondente de 280 m2. sendo constituído por um fogo; Anexo com área correspondente de 69 m2; Varanda correspondente de 1 m2;
d) Os condicionamentos da construção, cujo cumprimento determinará a posterior decisão de autorização da utilização do edifício, são os mencionados na folha anexa a este alvará, bem como os indicados nos pareceres e nas informações das entidades e serviços a seguir apresentados. (...)"
e) As obras realizadas foram exclusivamente obras de reabilitação, aproveitando-se a moradia existente, com toda a sua traça e elementos e mantendo-se os elementos construtivos;
f) Não houve qualquer demolição, construção ou reconstrução da mesma ou de partes da mesma, nem aumento da área de implantação.
9) Por Aviso de 09-07-2018, do SF…..do Porto, os Requerentes foram informados de que deviam proceder à apresentação de "declaração de modelo aprovado - n.º 1 do artigo 7.º do DL 43/98, de 3 de março" - cfr. Doc. n.º 4 junto com o PPA e que não consta do PA.
10) Por requerimento de 29 de agosto de 2018, o Requerente, marido, comunicou ao Chefe do SF…… do Porto que, não sendo o prédio adquirido e no qual as obras licenciadas tinham sido realizadas um terreno para construção, entendia que lhe não era aplicável a contribuição criada pelo DL 43/98 e que, consequentemente, não tinha que apresentar qualquer declaração - cfr. Doc. 5 junto com a PPA e que também consta do PA.
11) Pelo ofício n.º 2018…………, de 18-10-2018, o SF….. do Porto "respondeu" ao requerimento do Requerente com a transcrição do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento da Contribuição Especial (RCE), interpretando o que nele se dispõe como obrigando aquele a quem tivesse sido emitido um "alvará de obras" a apresentar a declaração para efeitos de liquidação da contribuição especial - cfr. Doc. 6 junto com o PPA e que integra o PA.
12) Mesmo não tendo apresentado a declaração que o SF…. do Porto pretendia fosse apresentada, foi o Requente notificado, pelo Ofício n.º 2020S………-5, de 03.02.2020, para comparecer naquele Serviço no dia 27-02-2020, efeitos da reunião da comissão de avaliação - cfr. Doc. 7 junto com o PPA e que integra o PA
13) Deste ofício constava que o Requerente deveria ser portador do projeto de arquitetura aprovado pela Câmara Municipal do Porto e planta que permita a medição da área.
14) Compareceu à referida reunião a Recorrente, mulher, tendo-se feito acompanhar pela arquiteta E……., que elaborar o projeto das obras e as acompanhara, instruindo igualmente o processo de licenciamento que deu origem ao Alvará antes referido.
15) Na reunião, a arquiteta explicou aos peritos que não tinha havido, de facto, quaisquer obras de demolição nem construção, não havendo qualquer alteração da área de implantação do imóvel.
16) Não integra o PA qualquer projeto de arquitetura.
17) No final da reunião, a Requerente lavrou uma declaração, no “Termo da Avaliação”, nos seguintes termos - cfr. "Termo de avaliação" que integra o PA): Não concordo e reservo-me o direito de proceder nos termos legais.
18) Pelo Ofício n.º 2020S…………, de 15.05.2020, do SF…. do Porto, os Requerentes foram notificados da liquidação da CE, que incluía o cálculo de juros compensatórios, tudo no montante de 2.607,09 que deveria ser paga até 30-06-2020 - cfr. doc. 9 junto com o PPA e que integra o PA, tendo procedido ao seu pagamento em 29-06-2020.
19) A 29.09.2020 os Requerentes deram entrada no sistema do CAAD ao Pedido que dá origem ao presente processo.
III.2. Factos não provados
18. Não ficou provado que o SF….., no âmbito do procedimento de avaliação, se tenha procedido à vistoria prévia do imóvel que daquela era objeto.
19. Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.
III.3. Fundamentação da matéria de facto
20. Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos, incluindo com o PPA e no Processo Administrativo (“PA”), criticamente apreciados - todos os documentos citados dão-se aqui por integralmente reproduzidos - e, bem assim, nas posições manifestadas pelas Partes nos articulados.
21. O facto dado como não provado foi-o não só com base na apreciação crítica dos documentos juntos e exposição por parte da Requerida nos Articulados, como também com base na prova por declarações de Parte produzida.
22. Ao Tribunal cabe selecionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspetivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[4]), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC[5]).
IV. Questão prévia – Da exceção de incompetência material do Tribunal
23. Aderindo in totto à apreciação e à decisão sobre a mesma exceção proferida no Processo 599/2018-T, o Tribunal, sem outras considerações, por desnecessárias, assume-a integralmente, e, por isso, a transcreve:
Vem a Requerida em sede de alegações invocar a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria. Manifestando-se o Requerente a este respeito no sentido da extemporaneidade da referida invocação e, sem prescindir, pela não verificação da mesma, como exposto sucintamente supra (v. Relatório, pp. 5-6).
Vejamos. Ainda que assim não sucedesse, i. e., ainda que a Requerida não tivesse invocado a excepção, sempre deveria este Tribunal conhecer da mesma. Nos termos, desde logo, do art.º 16.º do CPPT, ao estabelecer, no seu n.º 1, que a violação das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal e, no seu n.º 2, que: “A incompetência absoluta é de conhecimento oficioso (...)”. E, ainda, conforme disposto no art.º 13.º do CPTA que estabelece, por seu turno, que: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.”
Conclusões que sempre também se retirariam, sem surpresa, do CPC, cfr. seus art.ºs 96.º, al. a) e 97.º, n.º 1 , art.º 278.º, n.º 1 al. a), e art.ºs 577.º, al. a) e 578.º: a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, pode ser arguida pelas Partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal; a incompetência absoluta constitui excepção dilatória e, como tal, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, conduz à absolvição da instância e é de conhecimento oficioso.
“Para que possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão requer-se que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente.” E o Tribunal Arbitral, refira-se, tem competência para decidir sobre a sua própria competência: é o “princípio da competência da competência do Tribunal Arbitral” , desde há muito reconhecido como regra em matéria de arbitragem.
A verificar-se incompetência material do Tribunal estaremos, pois, perante uma excepção dilatória insuprível, com as necessárias consequências.
Apreciemos, então, se é o caso.
A Arbitragem Tributária, como arbitragem institucionalizada que é, reveste-se de especificidades próprias. Desde logo a que decorre de, não obstante a sua natureza de arbitragem, tratar de direitos (créditos) indisponíveis. Assim, o respeito pelo Princípio da indisponibilidade, aplicável à AT, conduziu a que o legislador - cfr. art.º 4.º do RJAT - tivesse sido exigente ao ponto de determinar que a comum convenção de arbitragem sofresse aqui adaptações e, assim, que a AT se vinculasse à via da arbitragem, previamente, por Portaria.
De onde decorre que a competência do presente Tribunal se afere pelo disposto a este respeito nas disposições conjugadas do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (doravante “Portaria de Vinculação”). Portaria através da qual uma das partes, a AT, veio previamente vincular-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais a funcionar sob a égide do CAAD. À qual decidiu assim submeter-se, nos termos e condições que aí definiu por conjugação com o disposto no RJAT.
Ora, se por um lado no RJAT a competência dos Tribunais Arbitrais é estabelecida nos termos do seu art.º 2.º, n.º 1, por outro, nos termos do art.º 2.º da referida Portaria, a AT recortou (excluindo) daquela esfera de competência (que, assim, delimitou) a apreciação das pretensões relativas a determinadas situações, a que não aceitou vincular-se.
E aqui somos, numa primeira abordagem, chegados ao cerne da questão ora sob nossa apreciação. A saber: aquela delimitação de competência a que se procedeu por via da Portaria, excluiu ou não, do conjunto das pretensões nas quais a AT aceitou vincular-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais, as pretensões relativas a tributos que não constituam impostos stricto sensu?
Vejamos os dispositivos legais pertinentes.
No RJAT, dispõe o art.º 2.º, no que aqui mais releva, como segue:
“Artigo 2.º - Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
(…).”
Por sua vez, na Portaria de Vinculação, rege o respectivo art.º 2.º assim:
“Artigo 2.º – Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.”
Sem maiores desenvolvimentos, por desnecessários ao nosso caso como se verá, poder-se-ia pretender retirar da redacção conjugada destes normativos que a esfera de competência material dos Tribunais Arbitrais Tributários teria ficado assim “recortada” (excluindo-se da mesma) das pretensões respeitantes a quaisquer outros tributos que não os tributos pertencentes à espécie impostos. Isto por (como vimos de ver) na redacção do art.º 2.º do RJAT se fazer referência a “tributos” e, depois, no art.º 2.º da Portaria se utilizar a palavra “impostos”.
Melhor explicado, colocar-se-ia a questão de apreciar se deverão entender-se excluídas do âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais outras situações que não as que o legislador, pela Portaria de Vinculação, excluiu de forma expressa ao longo das alíneas do respectivo art.º 2.º (v. supra). Saber se, ao referir-se “impostos” na Portaria de Vinculação simultaneamente se remetendo para o art.º 2.º, n.º 1 do RJAT, de cuja redacção consta a expressão “tributos”, sim ou não se teria intencionado excluir do âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais tributos que não impostos em sentido estrito.
Muito sucintamente neste ponto, refira-se que, não obstante o nosso Ordenamento Jurídico não conter uma definição legal de “tributo”, é pacífico o entendimento de que esta mesma figura – o género – abrange entre nós várias possíveis espécies. Como decorre, desde logo, seja da nossa Constituição (v. art.º 165.º, n.º 1, al. i)), seja da Lei Geral Tributária (v. art.ºs 3.º e 4.º). Veja-se como dispõe, sob a epígrafe “Classificação dos tributos”, o art.º 3.º, n.º 2 da LGT: “Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas.”
Retornando mais concretamente ao caso dos autos. A entender-se que o legislador ao assim exprimir-se (nos art.º 2.º do RJAT/art.º 2.º da Portaria de Vinculação) teria efectivamente querido excluir os tributos da espécie Contribuições , seria ainda possível entender-se, parece-nos, ser de apreciar da natureza jurídica do tributo em causa (e consequente regime jurídico a ser considerado aplicável), para então poder concluir-se pela respectiva inclusão, ou não, no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais. Isto sempre sem deixar de verificar da questão da titularidade activa na relação jurídico-tributária em causa, que deverá pertencer à administração tributária, com o sentido que o legislador pretendeu significar pela expressão “cuja administração lhes esteja cometida”, que utilizou no corpo do art.º 2.º da Portaria de Vinculação. Pois que, esta sim , é certo que terá sido querida pelo legislador como condição necessária à competência material em apreço.
Sem mais desenvolvimentos a este respeito, avancemos, porém. Pois que, no caso dos autos, não se torna sequer necessário continuar a percorrer este caminho. Senão vejamos.
O tributo cuja liquidação se coloca em crise - a Contribuição Especial (“CE”) - foi criado (e como tal denominado) pelo legislador, por DL autorizado (o DL n.º 43/98 ), com justificação na valorização substancial de que beneficiam “os prédios rústicos e os terrenos para construção envolventes” - cfr. Preâmbulo do Diploma - em consequência dos investimentos efectuados para a realização de determinadas infra-estruturas ferroviárias, respectivos acessos e investimentos públicos conexos . Ainda no Preâmbulo, e entre o mais, lê-se: “Tal valorização justifica a criação de uma contribuição especial, nos termos já adoptados, em caso de obras públicas de elevados custos, nas zonas beneficiadas com o respectivo empreendimento.”
Dispõe o legislador, no art.º 4.º, n.º 3 da LGT, que “As contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade são consideradas impostos.”
Atentando no regime jurídico da “nossa” CE (seja considerando o Preâmbulo e demais legislação que o mesmo refere, seja pelo disposto no Diploma, incluindo no Regulamento - “RCE”), facilmente se conclui que estamos perante uma contribuição subsumível no n.º 3 do art.º 4.º da LGT, do tipo também por vezes referido como “contribuição de ganho de vento”, ou “contribuição de melhoria” .
Tributo, pois, nos termos da LGT - art.º 4.º, n.º 3, supra - considerado imposto.
Em comentário a este artigo da LGT, escreve António Lima Guerreiro : “O n.º 3 do presente artigo, sem conter verdadeiramente uma definição de contribuições especiais, esclarece que são impostos.” / “(...) a referida vantagem não resulta de um serviço directamente prestado ao contribuinte, mas é apenas indirecta.”. E, ainda, assim: “As contribuições especiais não são, assim, um tertium genus distinto das taxas e dos impostos, mas uma categoria de impostos. (…) Figuram actualmente, entre as contribuições especiais, as chamadas contribuições de melhoria reabilitadas após o regresso das grandes obras públicas a partir do termo da década de 80, como são as constantes dos Decretos-leis números (…) e 43/98, de 3 de Março (…).” Precisamente, pois, o “nosso” DL.
É nosso entendimento que, desde logo, o confronto entre os art.ºs 3.º (n.ºs 2 e 3) e 4.º (n.ºs 2 e 3) da LGT não favorece a tão desejável clareza conceptual na matéria da tripartição, que hoje é pacificamente aceite , do género tributos (em impostos, contribuições e taxas). E que a tal não serão alheias as dificuldades de qualificação jurídica em matéria de contribuições. Mas, como quer que seja, o certo é que o legislador distingue expressamente de outras contribuições as contribuições especiais – no n.º 3 do art.º 4 da LGT, assim: “(...) são consideradas impostos.”
Ora, independentemente de aprofundarmos se o legislador terá querido aqui apenas remeter para o regime jurídico aplicável aos impostos, ou, mais que isso, estaria a reconhecer às contribuições especiais uma natureza jurídica indistinta da dos impostos, fica claro que quanto a estes tributos em particular o legislador determinou expressamente ser aplicável o regime legal a que estão sujeitos os impostos – o regime jurídico dos impostos.
Comando a que, refira-se, não foi alheio o legislador, desde logo, aquando da criação da CE: esta efectivamente foi criada, vimos já, por DL autorizado.
Veja-se, ainda a este respeito, como escreve Casalta Nabais : “(...) os mencionados preceitos da LGT ou repetem o que prescreve aquele preceito constitucional [art.º 165.º, n.º 1, al. i)], como faz o art.º 3.º, n.º 3, ou consideram impostos as contribuições especiais, como prescreve o art.º 4.º, n.º 3, que dispõe: (…). Pelo que e em conclusão, o referido tertium genus – as demais contribuições financeiras – não parece ser ainda objecto de um regime jurídico próprio, uma vez que as “contribuições especiais” são consideradas impostos e as demais “contribuições financeiras” são equiparadas, em termos do seu regime, às taxas.”
No nosso caso, se dúvidas restassem quanto a tratar-se de um tributo considerado pelo legislador como sendo um imposto, por força do regime jurídico aplicável, facilmente as mesmas se dissipariam. Com efeito, não só a Doutrina é inequívoca nesse sentido, como também a Jurisprudência que foi sendo produzida a propósito deste tributo nos conduz à mesma conclusão. Entre outros, podem consultar-se com interesse para o tema os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 63/2006, publicado no DR 1.ª Série-A de 3 de Março de 2006, e n.º 579/2011, proc.º n.º 493 11 e o Acórdão do STA de 30.01.2013, no proc.º 0804/12.
Mais. A própria Requerida assim o reconheceu já. Veja-se o Acórdão do STA de 29.10.2014, proc.º 0406/12, no qual se lê, logo no início do texto integral, assim: “(...) a Fazenda Pública interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte (…) terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões: (…) E. Com efeito, a Contribuição Especial – a qualificar como imposto – foi criada pelo citado Decreto-Lei n.º 43/98, de 03 de Março, em cujo Preâmbulo se diz da sua relação com os investimentos efectuados ou a efectuar (...) os quais valorizariam substancialmente os prédios rústicos e os terrenos para construção envolventes (…).”
Bastando-nos com o que antecede, há pois que considerar o tributo cuja liquidação está em crise nestes autos como um imposto. Espécie de tributo que, sem necessidade de outras considerações, integra a competência material dos Tribunais Arbitrais.
E, dúvidas não se suscitam, é um tributo administrado pela AT. As normas nos Capítulos que no RCE tratam a “Determinação da matéria colectável”, a “Liquidação e cobrança” e a “Revisão oficiosa, reclamação graciosa e impugnação judicial” são inequívocas a tal respeito, como o é, desde logo, o art.º 3.º do DL n.º 43/98, que rege assim: “A administração da contribuição a que se refere o presente diploma cabe à Direcção-Geral dos Impostos (DGCI).”
O presente Tribunal é, pois, materialmente competente, e não subsistem quaisquer excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
V. Matéria de Direito
V.1. Questões a decidir
24. As questões a decidir nos presentes autos são de Direito e de facto, a saber:
A) Verifica-se, ou não, o vício de incompetência relativa do Adjunto do Chefe do Serviço de Finanças do Porto ….. para praticar o ato de liquidação?
B) Houve ou não preterição de formalidades legais, nomeadamente: (i) vício de forma por incumprimento da obrigação de realização de vistoria prévia, e (ii) vício de falta de fundamentação/fundamentação insuficiente?
C) Houve ou não vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, não se verificando o aspeto material do elemento objetivo da incidência da contribuição especial?
25. Por fim, haverá que decidir quanto a (i) reembolso das quantias pagas e, decidindo-se pelo reembolso, quanto a (ii) juros indemnizatórios.
26. Em conformidade com o disposto no art.º 124.º do CPPT, que rege quanto à ordem de conhecimento dos vícios na sentença, procederemos prioritariamente à apreciação do vício de violação de lei (em C) supra), por ser, dos invocados, o vício cuja procedência determina “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”, considerando ainda que a eventual incompetência relativa invocada não é causa de nulidade do ato, mas de mera anulabilidade - Cfr. Ac. do STA de 3-05-2017, Processo n.º 0924/16. Como segue.
V.1.1. Houve ou não vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, não se verificando o aspeto material do elemento objetivo da incidência da contribuição especial?
27. Invocam os Requerente que a Liquidação em causa nos autos “erra profundamente nos pressupostos de facto e viola ainda os artigos 1.º e 2.º do dito Regulamento, pois que a incidência tipificada nestas normas não se verificou nem verifica na realidade”. A Requerida, não se manifesta sobre o invocado vício de violação de lei sobre os pressupostos de facto e de direito.
28. Trata-se, assim, de apreciar se, sim ou não, a situação fáctica tomada por pressuposto da liquidação e dada por verificada pela Requerida sem qualquer fundamentação para, assim, emitir a Liquidação, se verificou na realidade.
29. Ou, dito de outro modo, trata-se de apreciar e decidir se a previsão da norma ao abrigo da qual a Requerida considerou verificado o facto tributário no seu elemento objetivo integra, ou não, a factualidade dada como provada. Vejamos.
30. Dispõe o DL n.º 43/98, no que agora releva, como segue:
“ANEXO - REGULAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO ESPECIAL
CAPÍTULO I - Incidência
Artigo 1.º
1 - A contribuição especial incide sobre o aumento de valor dos prédios rústicos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção urbana, situados na área das seguintes freguesias: (...)
2 - A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados nas áreas referidas no número anterior.
Artigo 2.º
1 - Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre (...).
2 - Os valores que servem para determinar a diferença são determinados por avaliação nos termos do presente Regulamento.
Artigo 3.º
A contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra.
CAPÍTULO II - Determinação da matéria colectável
Artigo 4.º
1 - A avaliação referida no n.º 2 do artigo 2.º ficará a cargo de uma comissão constituída pelo contribuinte ou seu representante e por dois peritos nomeados pela Direcção-Geral dos Impostos de entre os incluídos nas listas distritais.
2 - (...)
3 - A avaliação será efectuada com precedência de vistoria, devendo as decisões ser devidamente fundamentadas.”
*
31. A questão que se suscita é, referimos já, apenas a relativa ao aspeto material do elemento objetivo da incidência (artigo 1.º, n.º 2) . Com efeito,
32. A enquadrar-se em alguma das normas de incidência objetiva a situação, teria que ser na norma constante do n.º 2 do art.º 1.º do RCE (supra), que define o aspeto material do elemento objetivo da incidência. Está-se aqui perante um prédio urbano, sendo que no n.º 1 do art.º 1.º apenas se determina a incidência sobre o aumento de valor de prédios rústicos, enquanto no n.º 2 se determina que a CE “incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados (...)”.
33. É sabido como a tipicidade em matéria tributária abrange, desde logo, a incidência real e pessoal, como um dos elementos essenciais dos tributos que é. Por isso que, inexistindo tributo sine lege previa, scripta, cert, et stricta, mergulhamos em profundidade no âmbito do princípio da legalidade fiscal, com as implicações que lhe são próprias . Não recaindo a situação de facto no tipo legal do facto tributário não há incidência. A previsão da norma não chega a ser preenchida pelo facto que, a verificar-se, teria por consequência o nascimento do tributo, ficando igualmente vazia a respetiva estatuição.
34. Por outro lado, na interpretação das leis tributárias regem os critérios gerais da hermenêutica jurídica – nos termos do art.º 11.º, n.º 1 da LGT e, por via deste, do artigo 9.º do Código Civil.
35. Sabe-se como estas regras e princípios gerais de interpretação, enquanto determinação ou fixação do exato sentido normativo das regras contidas na norma como fonte de direito, e aplicação das leis, também vigentes, pois, em Direito Tributário, operam. Sendo que, não obstante diversas posições doutrinárias, se adota a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, para quem os critérios ou fatores interpretativos são essencialmente dois: (i) elemento gramatical, correspondente à letra da lei, ao texto, e (ii) elemento lógico, subdividido este, por sua vez, em três outros, a saber, elemento racional ou teleológico, elemento sistemático, e elemento histórico . Sendo que, a letra e o espírito da lei (elemento gramatical/elemento lógico) devem necessariamente ser utilizados em conjunto.
36. A tarefa interpretativa é complexa, mesmo quando as fontes de direitos se expressam em termos aparentemente claros, devendo ter-se em conta o que, a propósito, referem, nomeadamente, os seguintes Autores:
a) Para MANUEL ANDRADE , O intérprete “(…) tem que partir do pressuposto de que a lei emana de um legislador razoável; e, por isso, terá que perguntar-se como um tal legislador teria pensado e querido a lei ao legislar no condicionalismo do tempo da sua publicação e no ambiente histórico em que foi sancionada a lei.(...)”;
b) BAPTISTA MACHADO sublinha: “(...) ponto de referência da interpretação: a unidade do sistema jurídico. Dos três factores interpretativos a que se refere o n.º 1 do art.º 9.º, este é sem dúvida o mais importante. (...).";
c) SALDANHA SANCHES , especificamente quanto à interpretação das leis no Direito Tributário referia-se, por sua vez, assim: “(…) A interpretação teleológica pode conduzir, assim, a uma maior sistematicidade no Direito Fiscal, como uma técnica necessariamente estruturante e atribuidora de um sentido àquilo que, de outra forma, será um mero conglomerado de leis, (…). A obtenção dessa unidade sistemática, que é uma condição indispensável para evitar o arbítrio na aplicação da lei fiscal, passa necessariamente por uma interpretação que assegure a coerência, como um postulado a obter, na ordenação das consequências do Direito, (...);
d) Por último, CASALTA NABAIS , sublinha que: "Todavia, pode considerar-se como um realce da "consideração económica" e não a opção por uma autónoma "interpretação económica" dos factos tributários recortados na lei, chamando a importância para o elemento teleológico implicado na ponderação da realidade económica enquanto pressuposto e suporte de toda a interpretação".
36. Ainda com interesse para o thema decidendum, dispõe, depois, o n.º 2 do mesmo art.º 11.º da LGT, assim: “Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.”
37. E porque este Tribunal se revê na fundamentação de direito da decisão arbitral proferida no Processo n.º 599/2018-T, aliás, já referido, assume-a e transcreve-a como segue:
Percorrido o regime jurídico do tributo conforme consagrado pelo DL n.º 43/98, atento também o teor constante do Preâmbulo do mesmo e, bem assim, confrontado o teor da respectiva Lei de Autorização com o que ficou a constar, em matéria de incidência, do DL autorizado, e confrontado, ainda, o DL que criou e estabeleceu o regime jurídico de tributo paralelo anteriormente criado em moldes idênticos e para o qual se remete no Preâmbulo do DL , dúvidas não nos restam de que - não só na letra da lei, como no espírito do legislador - o que se pretendeu tributar foi a valorização decorrente (dos investimentos públicos) para fins de construção (urbana). Sendo a valorização das áreas para construção o que se visou tributar.
Senão, vejamos.
A “encabeçar” o regime jurídico em causa, refere o legislador, no Preâmbulo, na justificação da criação da CE, expressamente e tão só assim: “Os investimentos efectuados ou a efectuar (…) vêm valorizar, substancialmente, os prédios rústicos e os terrenos para construção envolventes.”
A delimitar a incidência, no DL, estabelece o legislador, por sua vez, assim (cfr. supra): A CE incide sobre o aumento de valor dos prédios rústicos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção urbana (v. art.º 1.º/1) e ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes (v. art.º 1.º/2). Sendo que a CE é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra (v. art.º 3.º).
Na Lei de Autorização , por seu turno, estabelecia o legislador Parlamentar, como possibilidades de âmbito de incidência objectivo para a CE a criar, as que seguem:
“1) Sujeitar os prédios rústicos que aumentem de valor pela possibilidade da sua utilização como terrenos aptos para a construção urbana a uma contribuição especial;
2) Sujeitar a uma contribuição especial os terrenos aptos para a construção, as áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes, bem como as daqueles prédios que, por efeito de obras de remodelação, sofram alteração na sua volumetria;”
A parte final (a última das situações sobre as quais na Lei de Autorização se autorizava criar incidência) não foi depois incluída pelo legislador no DL n.º 43/98. O que, tudo visto e ponderado, não terá sido por mero acaso. Em coerência com o que vimos de expor e com o que veremos.
Confrontados os termos utilizados pelo legislador no DL que criou a CE e estabeleceu o seu regime jurídico, com os termos, por sua vez, utilizados pelo legislador no âmbito do Direito do urbanismo e da edificação e, bem assim, tendo em mente alguns conceitos próprios da arquitectura e do urbanismo incorporados no Direito, apreciemos ainda .
Decorre do art.º 157.º do RJIGT que a demolição apenas em certos e determinados casos, poucos, deve à partida, ser autorizada , constituindo a ultima ratio das medidas de tutela urbanística. Sendo que se impõe a harmonização desta norma, por sua vez, com as normas do RJUE. No RJUE , como se lê no respectivo Preâmbulo “(...) Consagra-se ainda expressamente o princípio da protecção do existente em matéria de obras de edificação, retomando assim um princípio já aflorado nas disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (…).” Do art.º 60.º deste último Diploma decorre o Princípio da protecção do existente, que na sua vertente activa, ao consubstanciar um desvio à regra do tempus regit actum em relação a obras de reconstrução ou de alteração, traduz o interesse público, assim reconhecido pelo legislador, da recuperação do património construído.
E neste último Diploma Legal, dispõe o artigo 2.º assim:
“Artigo 2.º – Definições
Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
(…)
b) «Obras de construção», as obras de criação de novas edificações;
(...)
d) «Obras de alteração», as obras de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente, ou sua fração, designadamente a respetiva estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada;
(…)
e) «Obras de ampliação», as obras de que resulte o aumento da área de implantação, da área total de construção, da altura da fachada ou do volume de uma edificação existente;
(…) ”
São vários os tipos de obras de edificação, de acordo com a classificação seguida pelo legislador, cfr. art.º 2.º do RJUE. Sendo que, para o que ao caso releva, nos diz o legislador que há obra de construção quando há criação de novas edificações. Ora, a criação de novas edificações implica, como pressuposto, edificação não existente - ab initio, por ruína ou demolição . Num caso como o nosso, em que a edificação (pré)existente é um prédio urbano da espécie imóvel destinado a utilização humana ou “edifício”, prédio urbano habitacional, teria que ter havido demolição do existente – demolição deste prédio urbano – para se poder levar a cabo uma posterior obra de construção (cfr. art.º 2.º, al. b) do RJUE). Da qual viria a resultar uma nova edificação.
Assim interpretamos então o n.º 2 do art.º 1.º do DL n.º 43/98, na parte que aos autos releva: com referência a prédios urbanos a CE incide sobre o aumento de valor das áreas para construção resultantes da demolição do existente.
Ou seja, o legislador, no DL n.º 43/98, faz apenas recair a incidência, quando de prédios urbanos edificados se trate, sobre as situações que, no quadro do nosso Ordenamento Jurídico, serão desejavelmente excepcionais – a respectiva demolição, com consequente criação de área de construção. Faz recair a incidência sobre situações de demolição do existente, pois. Afigura-se-nos, além do mais, ser esta a interpretação que permite manter a coerência com a preferência, plasmada no nosso Ordenamento Jurídico, pela recuperação do imobiliário em detrimento da respectiva destruição para substituição por novas edificações.
E não se nos afigura, no caso, tenha havido demolição do existente.
Com efeito, o que houve foi um aproveitar do existente, alterando-o tendo em vista o seu melhoramento. Como vimos de analisar e como resulta, desde logo, da matéria de facto provada. O Prédio foi mantido tendo-se, pela obra levada a efeito, recuperado e alterado a casa (moradia unifamiliar) já existente, respeitando traça original e aspectos construtivos, e acrescentando elementos de conforto e segurança.
As obras em causa foram pois – cfr. art.º 2.º, al. d) do RJUE - obras de alteração . (...)
38. Não se transcreve a parte restante do parágrafo por dizer respeito à prova produzida no processo onde foi proferida a decisão cuja parte se transcreve. Adita-se, pois, que, neste PPA, da prova produzida [os documentos (i) alvará de licenciamento de obras de alteração/ampliação, (ii) caderneta predial e (iii) registo predial] decorre que:
a. Das obras realizadas não resultou demolição, total ou parcial, do prédio existente;
b. Não houve alteração à área total do prédio (219,05 m2);
c. Não houve alteração à "área coberta" (120,6 m2) e
d. Foi mantida a área total de construção de 350 m2), pelo que, mesmo que o Alvará se refira a ampliação, tal autorização não implicou mais área coberta do que a preexistente.
Continuando a transcrição:
Note-se também que em intervenções sobre edifícios pré-existentes as mesmas hão-de reconduzir-se, em princípio, a uma das espécies constantes do art.º 2.º do RJUE; sendo no nosso caso a ampliação ocorrida de 4 m2 no logradouro, não deixará a obra de ser de alteração, ainda que com um elemento de ampliação, sem alteração da área de implantação do edifício. E que, de todo o modo, não fica implicado no que de decisivo se conclui para os nossos autos: não houve demolição do existente.
Não há demolição do existente, como não há a que seria a consequente (“resultante”, nas palavras do legislador) criação de área para construção, construção essa que seria de uma nova edificação.
Nem resultaria em contrário do que vem de se concluir a possível destruição pontual de um ou outro elemento (como seja, por exemplo, uma parede, uma janela, um degrau) no contexto da obra de alteração. Pois que sempre tanto poderá suceder, até mesmo em obras de diminuta dimensão. Como até a habitual necessidade de remover entulho do local de tais obras o demonstra. E é neste contexto que, como não poderia deixar de ser, entendemos os pontuais elementos assinalados a amarelo nas Alterações constantes das Telas Finais – cfr. al. s) factos provados (supra). Estamos perante uma obra de edificação incidente sobre um edifício preexistente, mantendo-o, ainda que modificado – melhorado.
E, afigura-se-nos, não deixa também de ir neste sentido a interpretação veiculada na Doutrina Administrativa a que a Requerida refere ter recorrido para auxílio na interpretação das normas que aplicou, aí se salientando que é necessária uma análise casuística dos factos e verificação das obras efectivamente realizadas se desconformes com o alvará, e que para haver tributação se exige haver demolição com posterior construção ou reconstrução.
Note-se, por fim, como uma interpretação menos contextualizada daquilo a que o legislador pretendeu referir-se na parte pertinente do n.º 2 do art.º 1.º do DL permitiria conduzir, no limite, ao entendimento de que o mesmo teria querido sujeitar à incidência da CE situações como a de um proprietário que, pretendendo deitar abaixo uma parede interior em sua casa (e por excesso de zelo, por hipótese, solicitasse um alvará de obra à Câmara Municipal), ficaria impossibilitado de o fazer a menos que procedesse ao pagamento da CE, por virtude de o Estado ter entendido proceder a obras públicas (como as abrangidas pelo DL) na zona envolvente. Com justificação na valorização adveniente dessas obras públicas.
E por outro lado, em situações no sentido oposto, como no caso de uma obra de maior dimensão, refira-se, também não será por uma alteração ser mais substancial (ou uma ampliação ser mais acentuada) que deixaremos de estar perante uma alteração (ou uma ampliação) para estarmos perante uma nova edificação .
No mesmo sentido, de que aquilo de que se trata na norma que vimos interpretando é de demolição do existente e construção de nova edificação, v., entre outros, o douto Acórdão do STA de 30.01.2013, proc.º 0804/12, onde se lê: “(...) O RCE considera que este valor – ou melhor, a sua realização tributariamente relevante – se consome uma vez verificadas determinadas condições específicas: utilização de prédios rústicos ou terrenos para construção urbana ou demolição de prédios urbanos já existentes para neles edificar novas construções, as quais saem valorizadas pelas acessibilidades resultantes das obras públicas identificadas pelo diploma.”
E ainda, com interesse para a compreensão do todo e de que a interpretação que vimos de fazer é a que respeita a necessária coerência do sistema, veja-se no mesmo Aresto: “Conforme decorre dos artigos 1.º e 2.º acima transcritos, a chamada “contribuição de melhoria” incide sobre o “aumento de valor” dos prédios ou terrenos, situados nas áreas territoriais definidas na lei, substancial e “anormalmente” valorizados como directa decorrência de importantes investimentos públicos.” Com efeito, diremos nós, não será através de obras levadas a cabo num edifício existente, mantendo-o, preservando-o e melhorando-o, que se configurará uma anormal e substancial valorização em directa decorrência das obras públicas em zona envolvente.
Concluindo, de volta ao caso dos autos.
Não houve obras de construção – que dão origem a criação de nova edificação – cfr. art.º 2.º, al. b) do RJUE – e têm como pressuposto edificação não existente. O que tão só poderia suceder - no caso de prédios urbanos da espécie do dos autos, cfr. n.º 2 do art.º 1.º do DL 43/98 - por via da demolição do existente.
Houve sim obras de alteração – cfr. art.º 2.º, al. d) do RJUE. Obras que têm como pressuposto uma edificação existente, como finalidade a modificação sem acréscimo de impacto, e como resultado a inovação parcial . Não implicando, pois, demolição do existente (que não se verificou) com consequente criação de área para construção (área que a ter sido criada, pela demolição do existente, teria que entender-se o legislador ter considerado beneficiar de valorização – cfr. critério de determinação de incidência eleito pelo legislador no art.º 1.º/2 do DL na parte que vimos de interpretar).
A situação fáctica em apreço não cabe, pois, no âmbito de incidência da norma.
Antecipando a decisão, conclui-se que a liquidação em crise padece de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, determinantes da respectiva anulabilidade.
4.2. Questões de conhecimento prejudicado
39. Da fundamentação antecedente resulta a ilegalidade da liquidação e respetivos juros compensatórios por vício que impede a sua renovação. Considera-se, em consequência, prejudicado o conhecimento dos demais vícios que lhe são imputados pelo Requerente, por força do artigo 124.º do CPPT – que pressupõe, ao ordenar o conhecimento dos vícios, deixar de ser necessário o conhecimento dos restantes logo que julgado procedente um que assegure a eficaz tutela dos direitos do impugnante. Como sucede nos presentes autos, em que é pedida a declaração de ilegalidade da liquidação.
5. Reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios
40. A Liquidação encontra-se, pois, ferida de ilegalidade, por erro sobre os pressupostos de facto e erro na aplicação do Direito. Deve em consequência ser anulada, o que aqui se decide, sendo as respetivas quantias, indevidamente pagas, restituídas aos Requerentes.
41. Os Requerentes peticionam ainda juros indemnizatórios. Vejamos se lhes assiste razão.
42. Estabelece o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT a obrigação do pagamento de juros, qualquer que seja a respetiva natureza, nos termos previstos na LGT e no CPPT. Conforme disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem lugar quando se determine ter havido erro, imputável aos Serviços, do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. E vimos já que houve erro, sobre os pressupostos de facto e erro de Direito, do que resultou pagamento em quantia superior à devida. No caso, não devida. O erro é imputável aos Serviços, que praticaram os atos de liquidação em violação da lei, ao aplicarem a norma de incidência a uma situação fáctica nela não enquadrável.
43. Na situação dos autos não pode, pois, deixar de considerar-se o erro em que a Requerida incorreu como sendo a si imputável, pelo que se defere o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, como infra.
6. Decisão
43. Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o PPA, e assim:
a. Declarar ilegais e consequentemente anular a liquidação de CE e a liquidação de juros compensatórios melhor identificadas nos autos;
b. Condenar a Requerida na restituição ao Requerente do valor indevidamente pago, de € 2.607,09;
c. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido até emissão da respetiva nota de crédito (cfr. artigo n61.º, n.º 5 do CPPT e artigo 43.º da LGT), sendo a taxa determinada nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT e do artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil).
7. Valor do processo
44. Nos termos conjugados do disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2, do CPC, fixa-se o valor do processo em € 2.607,09.
8. Custas
45. Conforme disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 14 de junho de 2021
O Árbitro
(Manuel Faustino)