Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 267/2013-T
Data da decisão: 2014-05-20  IRS  
Valor do pedido: € 459.150,45
Tema: IRS – Mútuo e adiantamento por conta de lucros, responsabilidade subsidiária
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Os árbitros Juiz Conselheiro Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Juiz José Poças Falcão e Dr. João Maricoto Monteiro (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29-01-2014, acordam no seguinte:

 

                1. Relatório

 

A, NIF n.º … e B, NIF n.º …, residentes na … (doravante Requerentes), formularam pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”).

Os Requerentes apresentaram os seguintes pedidos:

a) a declaração da ilegalidade e anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2013 ..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ... e do acerto de contas n.º 2013 ..., relativos ao ano de 2009.

b) a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao reembolso dos montantes indevidamente entregues;

c) a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral colectivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

Em 14-01-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 29-01-2014.

Em 05-03-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.

Em 17-03-2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que se decidiu haver lugar a produção de prova testemunhal e alegações orais.

A inquirição das testemunhas veio a ter lugar em 02-04-2014 e nela fixou-se prazo para alegações escritas simultâneas.

As Partes apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

 

2. Matéria de facto

               

2.1. Factos provados

 

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos, com relevância para apreciar as questões suscitadas:

 

                        Em 29-07-1977, os Requerentes A e B outorgaram escritura pública onde constituíram uma sociedade comercial por quotas com a designação “C", com o NIF … e com o capital social total de €59,855,75 representado por duas quotas de valor nominal unitário de €29,927,87 ficando a gerência a cargos dos dois sócios;

                        Em 20-07-2001 verificou-se um aumento de capital de €200.000,00 subscrito em dinheiro por ambos os sócios na proporção das suas quotas, ascendendo o capital social a €400.000.00, distribuído igualmente por ambos os sócios;

                        Em 30-03-2005, a sócia B cedeu parte da sua quota, ficando com uma quota €160.000,00 e transmitiu a outra parte, no valor de €40.000,00, a um novo sócio D. O capital social ficou distribuído por trés quotas: €200.000,00 concernente ao sócio A, €160.000,00 à sócia B e €40.000,00 pertencentes ao novo sócio D;

                        Em 07-12-2005, o sócio D transmitiu a sua quota na totalidade ao sócio A, ficando o capital social distribuído em 2 quotas uma de €240 000,00 pertencente ao sócio A e outra de €160 000,00 referente à sócia B;

                        Em 15-04-2009, de acordo com a acta n.º 42 (anexo 2 ao Relatório da Inspecção Tributária), foi decidido pelos sócios constituírem-se em assembleia-geral de acordo com o artigo 54.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) onde foi deliberada a divisão de quotas e a entrada de três novos sócios, sendo acordado que a quota pertencente ao sócio A, com o valor nominal de €240.000,00, fosse dividida em 4 novas quotas: uma com valor nominal de €239.700,00, que se manteve na titularidade do mesmo sócio, outras três quotas com valor nominal de €100,00 a ceder cada uma delas pelo preço de €100.00 a favor de:

                   E, NIF n.º …;

                   F, NIF n.º …;

                   G, NIF n.º …;

                        A transmissão de quotas referida na alínea anterior foi registada em 23-06-2009;

                        Em 22-06-2009, de acordo com a acta n.º 43 (anexo 3 ao Relatório da Inspecção Tributária), reuniram os sócios em assembleia geral, tendo aprovado por unanimidade a transformação do tipo social da empresa por quotas para anónima, com eficácia a partir de 23 de Junho de 2009 (data da menção no registo da Conservatória do Registo Comercial) passando a mesma a adoptar a designação de "C”;

                        Em 22-06-2009, foi aprovado o “Relatório justificativo da Transformação da sociedade “C” em Sociedade Anónima” cuja cópia consta do Anexo 4 ao Relatório da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:

A C tem-se assumido no mercado em que actua como player de referência, pela qualidade e notoriedade dos seus produtos e, bem assim, pela sua política comercial focalizada na fidelização da sua base de clientes. Esta projecção tem permitido à empresa consolidar a sua posição no mercado e manter um nível de facturação e, sobretudo, uma margem de comercialização, apreciáveis para a média do sector. Por outro lado os recursos afectos à empresa encontram-se ajustados à sua actua dimensão e não há ineficiências de gestão relevantes que importa corrigir.

Porém, este quadro endógeno contrasta vivamente com o ambiente exógeno em que a sociedade actualmente se insere e que é caracterizado por uma recessão generalizada ao nível global e pela consequente estagnação do sector em que a sociedade actua. Esta estagnação ao nível das vendas num sector extremamente concorrencial como é o dos produtos ... para ...s terá certamente como resultado um aumento das operações de concentração entre as empresas do sector ou o estabelecimento de parcerias com o objectivo de reduzir custos de exploração e de manter as margens comerciais actualmente praticadas. Tais concentrações poderão ocorrer tanto a um nível horizontal, integrando empresas da mesma fase da cadeia económica do produto, como a um nível vertical.

Este movimento de concentração que se antevê para os próximos anos, requer que as empresas como a C se mantenham preparadas para as oportunidades de parcerias ou de consolidação a todos os níveis, nomeadamente ao nível da gestão. Assim sendo, urge alterar o modelo societário da C, modernizando-o e adaptando-o a uma gestão mais profissional e mais independente dos detentores do capital. É fundamental, hoje em dia, que as Administrações das empresas possuam uma extensa capacidade de actuação para que não fiquem dependentes em assuntos que não sejam estruturais da empresa, como alterações dos estatutos, da vontade expressa dos accionistas. Neste quadro, importa ainda assegurar que as decisões fundamentais para o futuro da sociedade não fiquem à mercê de minorias de bloqueio, paralisando a sua actividade, o que só pode ser alcançado com o figurino societário de uma sociedade anónima.

Atento o exposto e tendo em atenção o actual quadro legal regulamentador das sociedades comerciais, é opinião da gerência que o tipo de sociedade anónima é o que melhor responde aos circunstancialismos apresentados e o que potencia e sustenta o crescimento da sociedade. (cfr. anexo 3 do projecto de relatório de inspecção).

                        Em vários momentos anteriores à transformação da sociedade, a C tentou, sem sucesso, a contratação de um Director Comercial, a testemunha …, inquirida no presente processo (depoimento desta testemunha);

                        Em 23-07-2009, um mês após a transformação do tipo societário, os três novos accionistas, E, F e António G alienaram as suas 300 acções ao accionista A;

                        Em 13-10-2009 o accionista A, propôs a aquisição de acções suas pela própria sociedade, operação com parecer favorável da sociedade de revisores emitido em 01-10-2009 (anexo 4 ao Relatório da Inspecção Tributária);

                        Por deliberação de 13-10-2009, da assembleia-geral da C  foi decidida a aquisição de 125.000 acções pela sociedade (anexo 5) e consequentemente, a redução do capital social de igual valor (€125.000,00).

                        Em 13-10-2009, de acordo com o contrato de compra e venda de ações (anexo 6 a Relatório da Inspecção Tributária), o accionista A vende 125.000 acções, com o valor nominal de €1,00 cada, à sociedade "C " pelo valor de €750.000.00.

                        Em 16-11-2009, os Requerentes alienaram 275.000 acções da “C, com o valor nominal de € 275.000,00, das quais 115.000 pertenciam ao Requerente A e 160.000 à Requerente B, pelo valor global de €3.900.000,00, aos seguintes compradores (anexo 7 ao Relatório da Inspecção Tributária):

           H, NIF n.º … – 220.000 acções pelo valor de € 3.120.000,00;

           I, NIF n.º …  – 27.500 acções pelo valor de € 390.000,00;

           J, NIF n.º … – 27.500 acções pelo valor de € 390.000,00.

                   Relativamente à alienação de 275.000 acções da “C”, pelo valor total de € 3.900.000,00, os sujeitos passivos declararam, na Declaração de Rendimentos Modelo 3 - IRS, para o exercício de 2009, particularmente, o seguinte (página 5 do Relatório de Inspecção):

                                            i.      no Anexo G - Mais valias e outros incrementos patrimoniais (quadro 8), a alienação de 300 acções adquiridas em Julho de 2009, pelo valor de € 300,00 e alienadas por € 4.254,56 em Novembro de 2009;

                                          ii.      no Anexo G1 - Mais  valias não tributadas (quadro 4), a alienação de 274.700 acções adquiridas em Janeiro de 2002 e alienadas em Novembro de 2011 por € 3.895.745,40;

                        Através da Ordem de Serviço n.º OI..., a Direcção de Finanças de … deu início a um procedimento inspectivo, relativo ao exercício de IRS do ano de 2009, “com especial enfoque no controlo inspectivo das operações de alienação de partes sociais” (relatório final de inspecção tributária, doc. 3 do pedido de pronúncia arbitral);

                        Os Requerentes foram notificados, através do ofício n.º …, de 18-10-2012, da abertura de um procedimento especial, nos termos do art. 63.º do CPPT, para efeito de aplicação da norma geral antiabuso, prevista no art. 38.º, n.º 2 da LGT.

                        Os Requerentes foram notificados por carta registada (RD…PT), através do ofício n.º ..., de 29-04-2013, do projecto de relatório e para exercício do direito de audição, do qual não fizeram uso.

                        Os Requerentes foram notificados através de carta registada com aviso de recepção (RD…PT) do Relatório de Inspecção Tributária, Ofício n.º ..., datado de 12-06-2013.

                        No Relatório de Inspecção Tributária conclui-se que, havendo sido “autorizada [aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT], nos termos do art. 63.º, n.º 7 do CPPT, por despacho do Senhor Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, datado de 13-03-2013, considerando-se demonstrados os pressupostos” e “atendendo ao disposto no art. 72.º do CIRS, [o] acréscimo ao saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias no montante de € 4.096.405,45, é tributado à taxa especial de 10% (n.º 4), propõe[-se] o acréscimo de imposto em sede de IRS no valor de € 409.640,54”; com base nos seguintes fundamentos, que se destacam:

“51. [O] elemento [meio] concretiza-se com a forma utilizada através da divisão da quota do accionista A, a entrada de três novos sócios e da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, sem que não se encontrasse qualquer justificação na vida da sociedade e dos seus negócios, visando assim uma conduta com o único objectivo de eliminar a tributação em sede de IRS nos ganhos obtidos pelos Sujeitos Passivos na alienação das suas acções em detrimento da normal operação de alienação de partes sociais de uma sociedade por quotas

[...]

53. O elemento resultado encontra-se presente quando os meios utilizados nos actos praticados possam ser substituídos pelos actos normais tributados, pois o meio que podia e devia ter sido utilizado, atingindo o mesmo resultado económico, seria a alienação de quota, facto este gerador de imposto (tributação da mais-valia obtida) e não a alienação de acções.

[...]

55. No caso em apreço [, no que concerne ao elemento intelectual], ao longo da descrição dos factos constantes da informação ficou mais que evidenciado que os Sujeitos Passivos não tiveram outra vantagem, que não a vantagem fiscal, com o facto dos actos ou negócios praticados pelos mesmos serem essencial e principalmente dirigidos ao resultado que é a vantagem fiscal. Uma normal alienação de partes sociais numa sociedade por quotas, determinaria a sua tributação a uma taxa de 10% em vigor à data, na esfera dos sócios.

[...]

57. [Em relação ao elemento normativo], o legislador pretendia que a ratio legis da exclusão de tributação de mais valias prevista no art. 10.º, n.º 2, alínea a) do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31/10, em vigor à data da alienação das acções, se tratasse de um incentivo ao desenvolvimento do mercado de capitais, sendo que o requisito da permanência das acções durante 12 meses indiciava a não existência de um intento especulativo na alienação das acções.

58. Advém que os Sujeitos Passivos, com a realização destes negócios, procuraram evitar a tributação de situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso da alienação das quotas, obtendo para si uma vantagem fiscal contra o espírito da lei, ou seja, transformar uma mais valia tributada numa mais valia não tributada, merecendo assim reprovação e cujo efeito fiscal tem que ser desconsiderado.

59. Face ao exposto, não existe qualquer dúvida que estamos face à prática de actos jurídicos - divisão de quotas, aumento do número de sócios, transformação da sociedade - que predominantemente foram dirigidos para obtenção da eliminação total do imposto que seria devido pelos Sujeitos Passivos.

[...]

61. [Em relação ao elemento sancionatório,] trata-se, portanto, de obstar à utilização de manipulações negociais quando elas tenham, como único ou principal objectivo, ultrapassar normas que visam uma distribuição equitativa e economicamente eficiente dos encargos tributários.

62. Assim, com a efectivação da CGAA de acordo com o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, desconsideram-se todos os efeitos da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e a sua subsequente venda de acções, considerando-se de uma venda de quotas como seria a escolha normal dos sujeitos passivos no exercício da sua actividade, sem motivos preponderantes de índole fiscal.

63. Ou seja, o rendimento obtido, qualificado como mais valia, está sujeito a tributação, e resulta da diferença positiva entre o valor realização, determinado de acordo com as regras estabelecidas no art. 44.º do CIRS, e o valor de aquisição, determinado nos termos dos artigos 45.º e 48.º do mesmo código, acrescidos das despesas necessárias e efectivamente praticadas inerentes à alienação, conforme dispõe o art. 51.º do CIRS.

64. Sucedendo assim a tributação da mais valia sujeita a IRS, nos termos do n.º 1, alínea b) do art. 10.º do CIRS, à taxa de 10% de acordo com o disposto no art. 72.º, n.º 4 do CIRS, à data em vigor, e daí resultando um imposto de € 410.036,00 (cálculo constante da informação da DF)

65. Por efeito da transformação da sociedade as mais valias declaradas apenas totalizam € 3.954,55, dado que as restantes foram consideradas excluídas de tributação nos termos do n.º 2 do art. 10.º do CIRS, por serem acções detidas pelos seus titulares à mais de 12 meses, por remissão da alínea b) do n.º 4 do art. 43.º do mesmo código.

66. Entende-se assim que estão integralmente verificados os pressupostos previstos no n.º 2 do art. 38.º da LGT e cumprindo a fundamentação supra os requisitos estabelecidos no n.º 3 do art. 63.º do CPPT na redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, reunindo as condições para a aplicação da cláusula geral antiabuso ao quadro factual plasmado na informação da DF de … para efeitos de liquidação do imposto que se mostre devido”” (cfr. anexo 1 do projecto de relatório de inspecção).

                        Refere-se ainda no Relatório da Inspecção Tributária sobre a aplicação da cláusula geral antiabuso:

III.3. Valores de tributação propostos

24. Da autorização para aplicação da norma antiabuso, a que se refere o n.º 7 do art. 63.º do CPPT, resulta a desconsideração, para efeitos fiscais, da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, e consequente tributação da alienação de quotas, como mais-valias, que deveriam ter sido declaradas no anexo G, da modelo 3 de IRS, de acordo com a al. b), n.º 1 do art. 10.º do Código do Imposto sobre o rendimentos das pessoas singulares (doravante CIRS). Assim, deve proceder-se à anulação dos valores declarados pelo Sujeito passivo no Anexo G1 (relativo a mais valias não tributadas), e ao acréscimo da matéria coletável, no valor de €4.096.405,45, resultado da mais-valia da operação em causa, no Anexo G (relativo a mais valias e outros incrementos patrimoniais), da declaração de rendimentos Modelo 3 - IRS do exercício de 2009.

25. Relativamente às mais valias obtidas com a alienação das partes sociais ocorridas em 2009, teremos de considerar as seguintes situações. Em 15-04-2009 - cedência de 3 quotas da empresa" C" cada uma delas de valor nominal de €100,00, pertencentes a A, a E (NIF …), F (NIF …) e G (NIF …) pelo valor de €100,00, cada uma delas – Não sujeito a tributação, dado que, nos termos da alínea d) do n.º 4 do art. 43.º do Código do IRS (Redação 2009) “Tratando-se de valores mobiliários da mesma natureza e que confiram idênticos direitos, os alienados são os adquiridos há mais tempo”. Assim e dado que esta é a 1.ª transmissão efectuada por A desde a constituição da sociedade em 01-08-1977, sendo nessa data a sua quota de €29 927,87, esta alienação não se encontra sujeita a IRS nos termos do n.º 1 art. 5.º do DL n.º 442-A/88, de 30/11 (decreto lei que aprova o Código de IRS), ou seja “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º46373, de 9 de junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou de afectação destes a uma actividade comercial ou industrial exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição de bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código”.

 Em 13-10-2009 - alienação de 125000 ações, pertencentes a A da “C.” com o valor nominal de €125 000,00 à própria sociedade por €750 000,00, sendo que pelas razões expostas no ponto anterior, não são sujeitas a tributação 29.628 acções (diferença entre o capital subscrito inicialmente e as três quotas vendidas em 15-04-2009, com valor nominal de €300,00, ou seja, 29928 acções – 300 acções), As restantes 95 072 acções (125.000-29.928) que correspondem a um valor nominal de €95.072,00 e a um valor de realização de €570.432,00, será proposta a tributação nos termos do artigo 10º do CIRS, uma vez que foram já adquiridas na vigência do Código do IRS, não aproveitando o regime de excepção previsto no art. 5.º do DL 442-A /88.

Em 16-11-2009 alienação de 275.000 acções da "C " com o valor nominal de €275.000,00, das quais 115.000 pertenciam a A e 160.000 a B. Para esta alienação será proposta a tributação da totalidade das partes sociais alienadas pois as quotas relativas à constituição da sociedade (anteriores a 1 de Janeiro de 1989) e que estão excluídas de tributação nos termos do art. 5.º do DL n.º 442-N88, de 30/11, foram já alienadas: a do sócio A como consta dos pontos 7.1 e 7.2 e a da sócia B com a transmissão da quota em 30/03/2005 no valor nominal de €40.000,00 a D, dado que, nos termos da alínea d) do n.º 4 do art. 43º do Código do IRS (Redacção 2009) “Tratando-se de valores mobiliários da mesma natureza e que confiram idênticos direitos, os alienados são 0s adquirido há mais tempo”.

26. No quadro seguinte resumem-se as operações de alienação de partes sociais, sendo evidenciadas:

As operações não sujeitas a tributação por força art. 5.º do DL n.º 442-A/88, de 30/11;

As operações que originariam mais valias sujeitas a tributação nos termos da al. b) do n.º  1 do art. 10º do Código do Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares se não se tivesse operado a transformação societária:

27. Atendendo ao disposto no artigo 72.° do Código do IRS, este acréscimo ao saldo positivo entre as mais valias e menos-valias no montante de €4.096.405,45 é tributado á taxa especial de 10% (n.° 4), pelo que se propõe o acréscimo de imposto em sede de IRS no valor de €409.640,54.

                        Os requerentes foram notificados da:

                   liquidação adicional de IRS n.º 2013 ..., relativa ao ano de 2009, com valor a pagar de € 460.995,53;

                   da liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ..., com valor a pagar de € 49.114,44; e

                   do acerto de contas n.º 2013 ..., com valor a pagar de € 459.150,45 e com prazo de pagamento até 28-08-2013 (cfr. doc. 4 do pedido de pronúncia arbitral).

                        Em 26-08-2013, os Requerentes pagaram voluntariamente a totalidade do valor liquidado, € 459.150,45 (doc. n.º 4 do pedido de pronúncia arbitral);

                        O REQUERENTE, fundador da empresa, mais de 20 anos antes da venda das acções, estabeleceu com a empresa uma ligação emocional;

                        A empresa assumiu-se como um operador de referência no mercado em que se inseriu, designadamente na concepção, fabricação e distribuição de produtos ... para ...;

                        Anos antes da transformação da C, os Requerentes começaram a ponderar uma diferente forma de organização, por se terem apercebido que a natureza pessoal e familiar da empresa poderia passar a ser um entrave ao seu crescimento, necessário para fazer face à intensa concorrência sector em que aquela sociedade actua;

                        Os Requerentes consideraram, inicialmente, que a mudança, não implicava, em princípio, a abertura da estrutura de capital a qualquer outro investidor, mas apenas que se assegurasse um modelo de gestão mais profissional e institucional, menos personalizada, da sociedade, tendo feito várias tentativas junto da testemunha … para assumir a gestão da empresa;

                        A vantagem fiscal fez parte das razões que motivaram a transformação da sociedade (confissão, art. 49-50.º do pedido de pronúncia arbitral).

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que o motivo único ou principal da transformação da sociedade por quotas e sociedade anónima fosse a obtenção de vantagens fiscais.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se na confissão de todos factos invocados pela Autoridade Tributária e Aduaneira nos pontos III.1 e III.2 do Relatório (art. 15.º do pedido de pronúncia arbitral), bem como nos documentos indicados para cada um dos pontos, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas.

No que concerne aos factos referidos nas alíneas x) a aa) são alegados pelos Requerentes e confirmados, na sua essência, pelo depoimento da testemunha … que aparentou depor com isenção e com conhecimento directo dos mesmos, proveniente se ter sido contactado por mais de uma vez para assumir a gestão da empresa.

Aliás, a própria Autoridade Tributária e Aduaneira, no ponto 4. das suas alegações, realça «a seriedade e idoneidade da prova testemunhal carreada aos autos pela Autora».

Deste depoimento decorre que a empresa tinha uma estrutura familiar, era a «obra da vida» do Requerente e que lhe custou a vendê-la, só tendo optado por esta solução, por não ter encontrado outra, designadamente, não ter obtido a colaboração da testemunha para a gestão da empresa ou alguém com experiência no ramo que lhe desse alguma tranquilidade. Segundo este depoimento, ao fim de muitos anos de trabalho na criação e manutenção da empresa, o Requerente pretendia descansar embora não desligar-se totalmente da empresa, tendo apresentado várias propostas, sucessivamente melhoradas, para aliciar a testemunha para assumir a gestão da empresa, até que a testemunha recusou definitivamente por motivos pessoais.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Da existência ou não dos requisitos legais e dos factos objectivos e subjectivos para aplicação da cláusula geral antiabuso

 

3.1.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

 

Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ( [1] ): o planeamento fiscal legítimo “consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais”; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo “consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo”.

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ( [2] ) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta “um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal” ( [3] ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar “uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema” ( [4] ). Este tipo de actuação é comummente designada de “fraude à lei fiscal” mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de “evitação abusiva de encargos fiscais”, “evitação fiscal abusiva” ou ainda “elisão fiscal”( [5] ).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem ( [6] ).

Sub iudice, sucintamente, os Requerentes contestam que configure planeamento fiscal abusivo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, por considerarem que essa transformação se enquadra na reestruturação da empresa e entenderem que a estrutura de capital e organizativa das sociedades anónimas se afigura mais adequada para o potenciar o crescimento da sociedade; comportamento que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende constituir um planeamento fiscal abusivo, na medida em que, através daquela transformação em sociedade anónima, que considera desnecessária e fiscalmente motivada, mais considerando que os demais actos e negócios jurídicos se perfilam como “manipulações negociais [que têm,] como único ou principal objectivo, ultrapassar normas que visam uma distribuição equitativa e economicamente eficiente dos encargos tributários” (ponto 61 do anexo 1 do projecto de relatório de inspecção), e subsequente venda de acções (em vez de quotas), os Requerentes evitam a tributação de mais valias em sede de IRS.

Assim sendo, a questão colocada a este Tribunal, na sequência do procedimento de  aplicação da cláusula geral antiabuso — um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo —, reside em saber se a actuação do sujeito passivo se situa intra ou extra legem, ou seja, se o planeamento fiscal que adoptou é legítimo ou ilegítimo, se é não abusivo ou abusivo.

 

 

3.1.2. Elementos da cláusula geral antiabuso

 

Sob a epígrafe “Ineficácia de actos e negócios jurídicos”, dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:

“São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Esta norma é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ( [7] ).

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal ( [8] );

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos “normais” e de efeito económico equivalente ( [9] );

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja “essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte “pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam” ( [10] );

– no elemento normativo, que “tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela” ( [11] );

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, “efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

 

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, “a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro”, pelo que estes “não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente” ( [12] ).

Apreciemos, tendo este aspecto em consideração, os elementos da cláusula geral antiabuso tendo em atenção os factos provados e a argumentação jurídica das partes.

A Autoridade Tributária e Aduaneira fundamenta a sua decisão, alegando, em síntese, que:

 

                        a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, por parte dos sujeitos passivos, faz parte de um complexo de actos despropositado, “pois o meio que podia e devia ter sido utilizado, atingindo o mesmo resultado económico, seria a alienação de quota, facto este gerador de imposto (tributação da mais-valia obtida) e não a alienação de acções”;

                        “os sujeitos passivos, com a realização destes negócios, procuraram evitar a tributação de situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso da alienação das quotas, obtendo para si uma vantagem fiscal contra o espírito da lei, ou seja, transformar uma mais valia tributada numa mais valia não tributada, merecendo assim reprovação e cujo efeito fiscal tem que ser desconsiderado”;

                        os sujeitos passivos não tiveram outra vantagem, que não a vantagem fiscal;

                        a actuação dos sujeitos passivos é contrária à ratio legis do art. 10.º, n.º 2, al. a) do CIRS.

 

3.1.2.1. Elemento resultado

 

Comparando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das acções (actos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (actos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação, à face do regime legal vigente em 2009, beneficia de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objecto de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, a segunda é considerada uma mais valia, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, al. b) do CIRS, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.

 

3.1.2.2. Elementos meio e intelectual

 

Embora tal constatação baste para preencher aquele requisito, o seu preenchimento é, por si só, irrelevante para a aplicação da cláusula geral antiabuso, em função da estrutura de actos e negócios jurídicos realizados: “em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si só qualquer ideia de abuso jurídico” ( [13] ).

A denominada “step transaction doctrine”, teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e em que a Autoridade Tributária e Aduaneira alicerça a sua argumentação, consiste na consideração do conjunto complexo de actos ou negócios jurídicos que surgem numa arquitectura global, planeada, composta por actos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do acto ou negócio jurídico que é objectivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se detecta o desenho elisivo ( [14] ).

O argumento avançado pelos Requerentes e repudiado pela Administração Tributária e Aduaneira, de que existem justificações de natureza económica empresarial para a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, é plausível e verosímil. A organização societária em sociedade anónima contém virtualidades adequadas aos propósitos avançados no relatório justificativo da transformação da sociedade, designadamente: a maior abertura do capital, permitindo uma melhor preparação “para as oportunidades de parecerias ou de consolidação todos os níveis”; “gestão mais profissional e mais independente dos detentores do capital”.

Decerto que a mera plausibilidade e verosimilhança dessa circunstância e aptidão é insuficiente para a prova da existência de justificações de natureza económica empresarial, não bastando a mera menção dessas justificações no relatório justificativo de transformação da sociedade. Identicamente, não obstante alguns dos factos articulados pelos Requerentes possam ser considerados verosímeis, a sua prova não se basta com essa verosimilhança. É insuficiente a mera declaração, em articulado, dum historial de factos tendentes a demonstrar a existência de uma justificação, sem qualquer suporte probatório.

Na lição de Pires de Sousa, a verosimilhança corresponde ao id quod plerumque accidit, ou seja, a um princípio de normalidade, segundo o qual “os factos não se encontram isolados, mas relacionados entre si, seja por relações de causa-efeito seja por uma ordem lógica e regular” ( [15] ). Como Isabel Fonseca realça, a verosimilhança “coloca[-se] no quadro do id quod plerumque accidit e das máximas de experiência”, “aparec[endo] a priori e em abstracto na convicção do juiz”, pelo que “não se está ainda no domínio da prova, mas somente no campo da afirmação factual, cuja existência parece verosímil se corresponde à normalidade” ( [16] ).

Mas, se é certo que não se pode dar como provado, com o grau de certeza relativa reclamado numa decisão jurisdicional, que as motivações de natureza económica e empresarial correspondam à realidade, a sua plausibilidade e verosimilhança também não permitem, obviamente, que se afaste a possibilidade séria de serem reais, antes corroboram um juízo neste sentido.

Por outro lado, a intenção e a justificação económica invocadas como fundamento da transformação da sociedade não se limitam à mera afirmação num documento interno da sociedade, pois provaram-se as tentativas insistentes de obtenção um director comercial experiente, com propostas sucessivamente melhoradas perante as suas recusas de aceitação, factos estes que apontam manifestamente no sentido de existir uma real preocupação do Requerente com o futuro da empresa, que reforça a credibilidade das motivações invocadas para a transformação da empresa em sociedade anónima.

De qualquer modo, tem de se concluir que toda a prova produzida aponta no sentido da realidade das motivações invocadas para a transformação da sociedade e que nenhuma prova se produziu que aponte no sentido de as razões fiscais fossem as únicas ou as principais. Na verdade, a Autoridade Tributária e Aduaneira nenhuma prova apresentou nesse sentido, nem mesmo pela negativa infirmando as razões não fiscais invocadas, pelo que uma conclusão no sentido propugnado pela Autoridade Tributária e Aduaneira não se poderia basear em mais do que um mero palpite, que não é um meio de prova admissível em direito.

Sendo assim, fica-se, pelo menos, numa situação de dúvida sobre a correspondência à realidade das referidas motivações não fiscais, o que se reconduz, num contexto em que o ónus da prova dos factos alegados para aplicação da cláusula geral antiabuso recai sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), a que essa dúvida tenha de ser valorada a favor dos Requerentes e não contra eles, o que equivale, em termos processuais práticos, a uma situação em que se provassem essas motivações.

Por conseguinte, tem de se concluir que não se demonstrou que aquela transformação e venda de acções sejam actos e negócios “centrais” de uma estrutura de actos e negócios jurídicos “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal.

 

3.1.2.3. Elemento normativo

 

Acresce que, na pena de Saldanha Sanches, é “necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador” ( [17] ). Com efeito, sublinha, deve ser possível extrair-se uma “intenção inequívoca de tributação” ( [18] ).

Este autor dá, inclusive, como exemplo de “lacuna consciente de tributação” a situação que aqui é objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções), sublinhando que “se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais” ( [19] ).

Efectivamente, “mesmo que a transformação [fosse] motivada por razões exclusivamente fiscais”, é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.

E fê-lo deliberada e insistentemente, pois trata-se de uma norma várias vezes revista e ponderada.

Na verdade, na redacção inicial do CIRS, previa-se já a tributação em IRS das mais-valias obtidas com a «alienação onerosa de partes sociais» [artigo 10.º, n.º 1, alínea b), na redacção do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro], mas excluíam-se as mais-valias provenientes da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses» [artigo 10.º, n.º 2, alínea c)], limite temporal este que tinha como objectivo evidente afastar a exclusão da tributação relativamente a mais-valias que, no conceito então vigente, eram consideradas especulativas.

Com a Lei n.º 30-B/92, de 28 de Dezembro, esta alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º passou a excluir da tributação as «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», aumentando, assim, o âmbito da não tributação da alienação de acções, ou, doutra perspectiva, a restrição do conceito de mais-valias especulativas.

A Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, reafirmou a vigência deste regime, eliminando a alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º, mas transpondo a sua redacção para a nova alínea b).

A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, eliminou a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções, mas limitou a exclusão às acções adquiridas após a sua entrada em vigor, mantendo expressamente o regime anterior para as acções adquiridas antes dessa data (artigo 4.º, n.º 5, do DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000).

Este novo regime não chegou a ser aplicado, pois a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, estabeleceu, no n.º 9 do seu artigo 147.º, que nos anos de 2001 e 2002 seria aplicável regime anterior à Lei n.º 30-G/2000 e, depois, o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, reintroduziu o regime de não tributação das mais-valias derivadas da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», ao dar uma nova redacção à alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS.

Esta redacção manteve-se até à sua revogação pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

É, assim, manifesto, que houve uma opção legislativa deliberada, mantida com variações desde a redacção inicial do CIRS, no sentido da não tributação de algumas das mais-valias provenientes da alienação de acções, opção essa, como a da fixação de uma taxa liberatória reduzida, é justificada pela existência de uma «política de desenvolvimento do mercado financeiro», expressamente reconhecida no 5.º parágrafo do ponto 12 do Relatório do CIRS.

A «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 1/IX, que veio a dar origem à Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária para aprovar o Decreto-Lei n.º 228/2002 é elucidativa no sentido de se ter reconhecido que a não tributação das mais-valias não especulativas provenientes da alienação de acções era preferível à sua tributação dizendo-se:

 

Com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, que tornou indispensável a revisão do Código de IRS operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, foi alargado o âmbito de incidência a todas as mais-valias de valores mobiliários e eliminou-se a taxa liberatória de 10%.

Na sequência desta alteração as mais-valias de valores mobiliários são simultaneamente englobadas e sujeitas às taxas gerais progressivas, que se situam entre 12% e 40%.

Acresce que, de acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 30-G/2000, o referido regime de tributação das mais-valias só é aplicável aos valores mobiliários adquiridos após 1 de Janeiro de 2001, mantendo-se o anterior regime de tributação para as mais-valias quanto aos adquiridos antes dessa data.

Aquele regime tributário foi contudo alterado, transitoriamente, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2002), a qual veio estabelecer uma isenção da tributação das mais-valias relativamente a rendimentos inferiores a 2500 Euros, fazendo-se, no entanto, o englobamento, apenas, para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.

Considerando que o impacto desta reforma fiscal no mercado de capitais foi altamente prejudicial para os investidores, configurando-se como um desincentivo ao investimento, com todas as inerentes consequências negativas para o desenvolvimento de uma política de recuperação económica, urge revogar o regime de tributação das mais-valias aprovado pela Lei n.º 30-G/2000 e, posteriormente, acolhido pelo Decreto-Lei n.º 198/2001 e, em consequência, retomar o regime de aplicação da taxa liberatória de 10%, bem como da exclusão de tributação das mais-valias de valores imobiliários detidos pelo seu titular durante mais de 12 meses, tributando-se apenas as mais-valias especulativas.

 

O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, que reintroduziu a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular há mais de 12 meses é também elucidativo sobre a existência desta intenção legislativa ao dizer:

O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias derivados da alienação onerosa de valores mobiliários, aquando da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi significativamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.

Os traços mais salientes do quadro então instituído consistiram na abolição da exclusão tributária de que beneficiavam as mais-valias provenientes da alienação de obrigações e de outros títulos de dívida e da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, passando a incidir uma tributação generalizada sobre estes rendimentos, atenuada por uma isenção de base para os saldos positivos inferiores a determinado montante e pela consideração dos saldos positivos ou negativos em percentagem variável em função do período de detenção dos títulos pelo alienante.

Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, não chegou a ser aplicado.

O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos

 

                Por outro lado, a situação fiscalmente privilegiada da alienação de acções em relação à alienação de quotas justifica-se pela preferência manifestada pelo legislador pela adopção do modelo de organização societária próprio das sociedades anónimas, cuja adopção desde a redacção inicial do CIRS teve intenção de incrementar e veio a tornar-se patente no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que reformou um vasto conjunto de leis relacionadas com as sociedades comerciais, com especial atenção para a simplificação e eliminação de actos e procedimentos registrais e notariais (art. 1.º, n.º 1) e para as sociedades anónimas (art. 1.º, n.º 2: “o presente decreto-lei visa ainda actualizar a legislação societária nacional, adoptando designadamente medidas para actualizar e flexibilizar os modelos de governo das sociedades anónimas”).

Explanando as razões de política económica subjacentes à reforma, o legislador afirma, no preâmbulo daquele Decreto-Lei:

 

Assim, as linhas de fundo da reforma realizada por este decreto-lei prendem-se com as seguintes ideias. De um lado, a preocupação de promover a competitividade das empresas portuguesas, permitindo o seu alinhamento com modelos organizativos avançados. A presente revisão do Código das Sociedades Comerciais assenta no pressuposto de que o afinamento das práticas de governo das sociedades serve de modo directo a competitividade das empresas nacionais. Esse é o primeiro objectivo de fundo que este decreto-lei visa prosseguir, em prol de uma maior transparência e eficiência das sociedades anónimas portuguesas. Ao encetar este caminho, Portugal colocar-se-á a par dos sistemas jurídicos europeus mais avançados no plano do direito das sociedades, salientando-se o Reino Unido, a Alemanha e a Itália como países que têm identicamente orientado reformas legislativas com base nestes pressupostos. […] Importa ainda apontar o atendimento das especificidades das pequenas sociedades anónimas como preocupação que esteve subjacente à preparação deste decreto-lei”.

 

Neste contexto, há uma opção legislativa deliberada no sentido de afastar a tributação das mais-valias não especulativas, como incentivo à criação de sociedades anónimas, formas de organização mais avançada, que proporciona tendencialmente gestão mais profissionalizada e eficiente, com benefícios para a economia em geral e, reflexamente, para o próprio interesse da tributação de rendimentos empresariais.

Por outro lado, é de notar que a afirmação do interesse público em não tributar as mais-valias não especulativas derivadas da detenção de acções foi, conscientemente, considerado superior ao da arrecadação das receitas que a tributação podia gerar e que esta afirmação foi efectuada já depois da Lei Geral Tributária ter previsto a cláusula geral antiabuso, no seu artigo 38.º, n.º 2.

Sendo assim, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira, num Estado de Direito, assente na soberania popular, no princípio da separação de poderes e no primado da Lei (artigos 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), deixar de acatar os juízos de valor legislativamente formulados, não podendo sobrepor os seus próprios juízos sobre a gestão de interesses públicos à ponderação de valores conflituantes efectuada legislativamente, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.

Isto é, mais concretamente, tendo o legislador expressamente considerado o interesse público da criação de sociedades anónimas superior ao interesse na tributação de mais-valias não especulativas e materializado a sua preferência num incentivo à criação de sociedades anónimas, criando para os detentores do seu capital um regime fiscal privilegiado em relação aos detentores do capital de sociedades por quotas, não pode, por via da aplicação da cláusula geral antiabuso, ser inviabilizado, por via administrativa, esse objectivo legislativo, aplicando àqueles que deram satisfação àquele interesse público através da criação de sociedades anónimas o regime que lhes seria aplicável se o não tivessem satisfeito.

Ou, doutra perspectiva, talvez mais clarificadora, não se poderá, em regra, numa situação de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónima, entender que o acto foi essencial ou principalmente dirigido à satisfação de interesse fiscal dos intervenientes (como exige o n.º 2 do artigo 38.º da LGT para ser accionada a cláusula geral antiabuso), pois esse acto, objectiva e forçosamente, com vontade do sujeito passivo ou sem ela, dirige-se sempre à satisfação do interesse público do incremento da criação de sociedades anónimas, interesse este que, na óptica legislativa, é sempre o essencial ou principal a atender nessa situação, para efeitos de tributação.

Por isso, em situações deste tipo, de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, o abuso de formas jurídicas indispensável para viabilizar a aplicação da cláusula geral antiabuso e a existência de uma intenção contrária ao desígnio legislativo só são perscrutáveis em situações em que não possa considerar-se satisfeito aquele interesse público da criação de sociedades anónimas, como, por exemplo, poderá suceder em situações em que a criação da sociedade anónima não é seguida da sua manutenção como realidade económica por um período de tempo apreciável.

No caso em apreço, é inequívoco que não se verifica uma situação desse tipo e, por isso, foi satisfeito com a operação de transformação da sociedade por quotas em sociedades por acções o interesse que, na perspectiva legislativa, é o principal a atender, superior ao da própria tributação.

Por outro lado, não se vislumbra nesta actuação dos Requerentes, em perfeita sintonia com o desígnio legislativo que se visou atingir com criação de um regime mais favorável de tributação dos detentores de acções, o uso de qualquer meio artificioso ou fraudulento ou abuso de formas jurídicas (como exige a aplicação da cláusula geral antiabuso) já que a transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas está expressamente prevista na lei como um meio normal de criação de sociedades deste tipo (artigos 1.º, n. 2, e 130.º do Código das Sociedades Comerciais), inclusivamente no âmbito da tributação do rendimento [artigo 43.º, n.º 6, alínea b), do CIRS]. O que, decerto, constituiria artifício ou fraude legislativa, incompaginável com o princípio constitucional da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, seria incentivar legislativamente os sujeitos passivos de IRS à criação de sociedades anónimas, através do anúncio da atribuição de uma vantagem fiscal e, uma vez satisfeito o interesse público que se visava com tal incentivo, não lhes reconhecer o direito à vantagem prometida.

Consequentemente, não se verifica uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, desde logo por não existir um acto que possa considerar-se dirigido essencial ou primacialmente à obtenção de vantagens fiscais, pois ele foi forçosamente dirigido também à criação de uma sociedade anónima, mas também por não ter sido utilizado qualquer meio artificioso ou fraudulento para obtenção de vantagens fiscais.

 

3.1.2.4. Elemento sancionatório

 

Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral antiabuso, particularmente do normativo, não há lugar à aplicação da estatuição do artigo 38.º, n. 2, da Lei Geral Tributária, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente ao que entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.2. Conclusão

 

Conclui-se, assim, que não se verificam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso.

Consequentemente, é ilegal o acto de liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida, que tem como pressupostos a verificação dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, por violação do preceituado no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IRS n.º 2013 ..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ... e do acerto de contas n.º 2013 ..., relativos ao ano de 2009, por enfermarem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).

Assim, o pedido formulado pelos Requerentes tem de ser julgado totalmente procedente.

 

 

4. Juros indemnizatórios

 

Os Requerentes pedem o reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 459.150,45, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

Os Requerentes pagaram as quantias liquidadas, como se refere na alínea w) da matéria de facto fixada.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade parcial do acto de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”, na parte correspondente à correcção que foi considerada ilegal.

No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro que a ilegalidade do acto é imputável à Administração Tributária e Aduaneira, que, por sua iniciativa praticou sem suporte legal.

Está-se perante um vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária.

Consequentemente, os Requerentes têm direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagaram indevidamente.

Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução ao presente acórdão, nos termos do art. 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir aos Requerentes e calcular os respectivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos arts. 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).

Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento (26-08-2013), até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 459.150,45.

 

 

6. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.344,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária ( [20] ), a cargo da requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

7. Decisão

 

    De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

– julgar procedentes os pedidos de declaração da ilegalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2013 ..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ... e do acerto de contas n.º 2013 ..., relativos ao ano de 2009;

– anular as referidas liquidações e acerto de contas;

– julgar procedente o pedido de restituição da quantia paga correspondente às referidas liquidações (€ 459.150,45) e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituí-la;

– julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los aos Requerentes, calculados sobre a quantia a restituir, desde a data do pagamento (26-08-2013), até à do processamento da nota de crédito, em que devem ser incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT), às taxas legais que vigorarem até ao pagamento, nos termos do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).

– condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do presente processo.

 

Lisboa, 20-05-2014

 

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

(João Maricoto Monteiro)



[1] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 21.

[2] Cfr. AcTCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.

[3] Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 340-341.

[4] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.

[5] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.

[6] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: “a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais”. Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[7] Ou seja, a uma “actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário” (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[8] Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2 da LGT: “actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

[9] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2 da LGT: “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, als. a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, “a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam” e “a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais”.

[10] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.

[11] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.

[12] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma “relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei”.

[13] Cfr. Leite de Campos, Diogo, e Costa Andrade, João, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Coimbra, Almedina, 2008, p. 82.

[14] “Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, naquela que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da realização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe seguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado” (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 166-167).

[15] Cfr. Sousa, Luís Filipe Pires de, Prova por Presunção no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 2012, p. 45 e 131.

[16] Cfr. Fonseca, Isabel Celeste M., Processo Temporalmente Justo e Urgência - Contributo para a autonomização da categoria da tutela jurisdicional de urgência na justiça administrativa, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Tese de Doutoramento, 2006, pp. 782-783

[17] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 180.

[18] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 180-181.

[19] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 182.

[20]  O valor foi calculado com base em € 4.896,00, correspondentes ao último escalão tabelado (até € 275.000,00), acrescidos de € 2.448,00, correspondentes ao produto de € 306 por cada 8 fracções de € 25.000,00 acima de € 275.000,00.