SUMÁRIO:
I. Na desconsideração pela Administração Tributária de faturas que reputa de falsas, a aplicação das regras do ónus da prova do artigo 74.º da LGT implica: i) que compete à Administração fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação, o que consiste, em tal contexto, na demonstração de indícios sérios e consistentes de que a operação constante da fatura não corresponde à realidade; ii) que, uma vez feita esta prova, cabe ao sujeito passivo a demonstração da veracidade da transação, do que resultará a anulação das liquidações que assentaram na indiciação da falsidade das faturas.
II. A aquisição de artigos de ouro usados (cascalho de ouro) para utilização como matéria‑prima na atividade de ourives enquadra-se como “transmissão de ouro sob a forma de matéria-prima” nos termos do disposto no art. 10.º, n.º 1 do Regime especial aplicável ao ouro para investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99, de 16.9, pelo que o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto (inversão do sujeito passivo).
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dr.ª Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Prof.ª Doutora Suzana Fernandes Costa e João Menezes Leitão (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A… –, LDA, pessoa coletiva n.º ………, com sede social na Rua ……., n.º …, ….-… Gondomar (a seguir, a Requerente ou A…), submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 25 de março de 2020, pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e de juros dos períodos dos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015[1], no montante global de € 372.352,66 (trezentos e setenta e dois mil trezentos e cinquenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos)[2].
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 26 de março de 2020 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), na mesma data.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.1, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), por decisão do Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foram, em 07 de julho de 2020, designados os árbitros do Tribunal Coletivo, que ficou assim constituído: Maria Fernanda dos Santos Maçãs, árbitra presidente e árbitros auxiliares Suzana Fernandes Costa e João Menezes Leitão, que comunicaram ao Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 06 de agosto de 2020.
Na mesma data, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar, se assim o entender, a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.
2. Em 30 de setembro de 2020, a Requerida apresentou a sua resposta e em 04 de outubro de 2020 foi proferido despacho a indeferir o pedido da Requerente quanto ao aproveitamento da prova testemunhal objeto de gravação áudio produzida no processo arbitral tributário n.º 366/2017-T, tendo em conta a oposição da Requerida. No mesmo despacho foi ordenada a notificação da Requerente para, em dez dias, identificar os factos que pretendia submeter a julgamento e não suscetíveis de prova documental, o que foi concretizado em 13 de outubro de 2020.
Em 16 de outubro de 2020, foi proferido despacho a designar o dia 26 de novembro de 2020, pelas 10:00 horas, para efeitos de realização da audiência de julgamento, através de videoconferência, ao abrigo do artigo 18.º do RJAT, na qual se procederia à inquirição das testemunhas a apresentar pelas partes, e seria fixada data para alegações escritas, a menos que as partes optassem por alegações orais.
Em 19 de outubro de 2020, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo (constituído unicamente pelo Relatório de Inspeção Tributária (RIT), datado de 27 de dezembro de 2016, respeitante à ordem de serviço OI2014…., emitida em 2014/04/01, e pela decisão de indeferimento do recurso hierárquico n.º …………, datada de 23 de dezembro de 2019), e em 21 de outubro de 2020 foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerente da junção do processo administrativo (a seguir, PA).
Em 23 de novembro de 2020, a Requerida requereu que a inquirição das testemunhas se realizasse da parte da tarde do dia 26 de novembro de 2020, devido a compromissos que surgiram após a marcação da reunião arbitral. No mesmo requerimento pediu que os mandatários e a testemunha por si arrolada fossem ouvidos por teleconferência, tendo indicado os emails das pessoas para o efeito. Em 24 de novembro de 2020, foi proferido despacho a deferir o pedido da Requerida, tendo-se procedido ao reagendamento da audiência de julgamento para as 14:30 horas do mesmo dia 26 de novembro de 2020.
3. No dia 26 de novembro de 2020 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual foram inquiridos, por meios de comunicação à distância disponibilizados pelo CAAD, o gerente da Requerente, B…, em declarações de parte, as testemunhas da Requerente, C…, D…, E… e F…, e a testemunha da Requerida, G…, tudo conforme ata constante dos autos.
Na referida reunião, o Tribunal determinou a junção pela Requerida do auto de declarações do Gerente da sociedade H…, Lda, I…, auto esse referenciado no RIT, mas não constante do PA.
Ainda na referida diligência foi concedido o prazo de quinze dias para a apresentação de alegações escritas sucessivas pelas partes, após a junção do referido auto de declarações.
4. Em 03 de dezembro de 2020, a Requerida procedeu à junção do auto de declarações respeitante a I…, tendo requerido ainda, em atenção às dúvidas colocadas em sede de audiência de julgamento pelos depoimentos de B… e C…, a audição do referido I…, a apresentar pela Requerida, para confirmação da realização da diligência inspetiva na data e local indicado e da veracidade do conteúdo do auto de declarações, requerimento que renovou em 18 de janeiro de 2021.
A Requerente, por requerimento de 19 de janeiro de 2021, opôs-se ao deferimento da inquirição desta nova testemunha numa fase do processo em que a instrução já se encontrava terminada, sustentando que o indicado documento do auto de declarações não configurava qualquer nova factualidade, ou qualquer outro tipo de novidade para os autos, que fosse merecedora do direito de requerer novos e adicionais meios de prova, os quais deviam ter sido indicados com a resposta.
Por despacho de 19 de janeiro de 2021, o Tribunal Arbitral decidiu que, a realizar-se a diligência, a testemunha em causa não poderia dizer mais do que consta do auto de declarações junto, pelo que indeferiu o pedido por manifesta inutilidade da diligência requerida, sendo certo que na decisão arbitral se procederia deviamente à apreciação da relevância probatória do referido auto e das declarações dele constantes.
A Requerente apresentou as suas alegações no dia 16 de dezembro de 2020.
A Requerida, na sequência do indicado despacho do Tribunal Arbitral de 19 de janeiro de 2021, apresentou as suas alegações no dia 02 de fevereiro de 2021.
5. O Tribunal Arbitral designou inicialmente o dia 06 de fevereiro de 2021 para a prolação da decisão arbitral, prazo que, por despachos de 29 de janeiro e de 1 de abril de 2021, foi prorrogado nos termos do art. 21.º, n.º 2 do RJAT, sem embargo da entrada em vigor, com efeitos a 22 de janeiro de 2021, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, introduzido pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que determinou a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais e cuja cessação se verificou com a entrada em vigor em 6 de abril de 2021 da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).
II. Saneamento
6. O tribunal arbitral é competente e está regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).
O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10.º n.º 1 alínea a) do RJAT e do artigo 102.º n.º 1 do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. Fundamentação
III. 1. Posição das partes
7. A Requerente requer, na sua petição inicial (PI), a anulação das liquidações de IVA impugnadas com fundamento em erro na qualificação do facto tributário e em erro nos pressupostos de facto e de direito.
Refere a Requerente que as liquidações de IVA de 2012, 2013, 2014 e 2015 que se encontram em causa, que tiveram origem em relatórios de inspeção tributária emitidos pela Direção de Finanças do Porto, foram efetuadas com base em dois fundamentos:
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Regime de IVA nas aquisições de cascalho de ouro – a AT entendeu que a Requerente fez aquisições de cascalho de ouro e que deduziu o IVA decorrente de tais aquisições “sem que para tal exista enquadramento legal”, pelo que não foi aceite a dedução do IVA referente a tais aquisições;
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Alegadas faturas falsas – a AT considerou que a Requerente incluiu na sua contabilidade faturas emitidas pela sociedade H…, Lda, “sem correspondência com transações reais”, que qualificou como falsas, pelo que não foi aceite a dedução do IVA dessas faturas dos meses de outubro, novembro e dezembro de 2012, no valor total de €20.679,41.
A Requerente indica que apresentou reclamações graciosas contra as indicadas liquidações de IVA, que foram expressamente indeferidas. E que as decisões das reclamações graciosas foram objeto de recursos hierárquicos, que vieram também a ser indeferidos.
Quanto à questão da dedução do IVA na aquisição de cascalho de ouro, a Requerente alega que adquire cascalho de ouro, não beneficiando de qualquer isenção de IVA na aquisição e sendo aplicável o regime geral da liquidação do imposto pelo vendedor, e que de seguida manda derreter e afinar o ouro (serviço que é debitado à Requerente com incidência de IVA), e passa a utilizá-lo como matéria-prima para a atividade de ourives. Para sustentar esta posição, a Requerente alude à ficha doutrinária da AT n.º 1208, de 10/11/2020, ficha esta que, segundo a Requerente, conclui que o regime especial do ouro para investimento, aprovado pelo Decreto-lei n.º 362/99 de 16-09, não tem aplicação nas operações de compra e venda de cascalho de ouro.
Relativamente às faturas emitidas à Requerente pela sociedade H…, Lda, que a AT considera como não correspondendo a operações reais, a Requerente afirma que as mesmas são verdadeiras e titulam fornecimentos reais de prata fina e de cascalho de ouro, não havendo qualquer simulação ou falsidade das mesmas.
Sobre esta questão, a Requerente faz referência à decisão do processo n.º 366/2017-T deste CAAD, em que estavam em causa as mesmas faturas, mas para efeitos de aceitação como custo em IRC de 2012, sendo que essa decisão entendeu que a AT não cumpriu o ónus de apresentar indícios suficientes para se considerarem falsas as faturas em causa. Segundo a Requerente, esta decisão faz caso julgado perante a AT, devendo ser declarada, diretamente por este efeito, a anulação das liquidações na parte respetiva.
A Requerente alega ainda que as mercadorias constantes das faturas em questão foram efetivamente adquiridas e revendidas pela Requerente (o caso da prata fina) ou utilizadas no seu processo produtivo (o caso do cascalho de ouro), já que a mesma se dedica ao comércio, fabrico e afinação de ouro e prata.
Ainda sobre esta questão, a Requerente alega também que todos os indícios recolhidos pela inspeção dizem apenas respeito à sociedade H…, Lda e não à própria Requerente, e que são insuficientes para a consideração da faturação como simulada.
A Requerente pede, a final, a anulação das liquidações de IVA impugnadas, assim como das liquidações de juros compensatórios.
A Requerente refere ainda que procedeu ao pagamento das liquidações de IVA em questão, pelo que peticiona a condenação da AT na devolução do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
8. A AT, por seu lado, sustenta na sua resposta (que se reporta apenas a liquidações de IVA e de juros compensatórios dos períodos dos anos de 2012 e de 2013) que o enquadramento do ouro em cascalho para efeitos de IVA foi erroneamente efetuado pela Requerente, e faz referência ao Regime especial do ouro para investimento (o referido Decreto-Lei n.º 362/99, de 16-09), afirmando que este regime não se aplica apenas ao ouro para investimento, mas também ao ouro sob a forma de matéria-prima, como é o caso das peças de ouro vendidas para serem fundidas, ainda que apenas e só no que respeita à inversão do ónus de liquidação, pelo que se deve considerar que nas aquisições de cascalho de ouro o devedor de IVA é o próprio adquirente.
A AT refere, assim, que as operações de compra e venda de cascalho de ouro, dado não se tratar de ouro para investimento, estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (RITI) ou do regime especial dos bens em segunda mão. No entanto, segundo a Requerida, o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 362/99 consagra uma norma relativa ao ouro sob a forma de matéria-prima, que não é ouro para investimento e que poderá ser aplicável ao cascalho de ouro, segundo a qual a obrigação de liquidação do IVA cabe ao adquirente (reverse charge), norma esta que deveria ter sido aplicada pela Requerente e que, não o tendo sido, implica a não dedução do IVA das respetivas faturas de aquisição de cascalho de ouro.
Relativamente às faturas emitidas à Requerente pela sociedade H…, a Requerida alega que esta sociedade não possuía, à data dos factos, estrutura física nem meios humanos para o desenvolvimento de uma atividade e que lhe permitisse efetuar todas as operações mencionadas nas faturas em causa, assim como foi ocultado à AT e ao contabilista certificado os elevados valores faturados e o IVA liquidado, e o sócio gerente negou ter emitido qualquer fatura em nome da empresa. Sustenta, assim, a Requerida que tais faturas não descrevem aquisições reais de bens e que correspondem a negócios jurídicos simulados, motivo pelo qual não se pode aceitar a dedução do IVA nelas consignado, por força do disposto no n.º 3 do art. 19.º do CIVA.
Conclui a Requerida que deve ser julgado improcedente, por não provado, o pedido arbitral, com as legais consequências.
III.2. Questões a decidir
9. Em face das alegações das partes acima sumariadas, as questões essenciais a decidir por este Tribunal, para efeitos da resolução material do litígio incidente sobre a legalidade das liquidações de IVA sindicadas e dos atos posteriores de indeferimento das reclamações graciosas e recursos hierárquicos apresentados, são as seguintes:
i) Correspondência com transações reais das faturas emitidas à Requerente pela compra de artigos de ouro e prata fina à sociedade H…, Lda;
ii) Determinação do regime do IVA respeitante às aquisições de cascalho de ouro realizadas pela Requerente nos períodos em causa e aplicação do direito à dedução do imposto.
III.3. Caso julgado
10. Antes, porém, de enfrentar, nas suas dimensões fáctica e jurídica, estas matérias atinentes às causas de pedir conformadoras desta pronúncia arbitral, deve-se apreciar a alegação da Requerente quanto à ocorrência de caso julgado por referência à decisão proferida no processo n.º 366/2017-T deste CAAD, dado estar aí em jogo questão que pode determinar ex ante a resolução da temática da correspondência das faturas emitidas pela sociedade H…, Lda com operações reais ou influenciar a estabilização da factualidade a isso pertinente.
A Requerente, com efeito, invoca, em relação a tais faturas postas em crise pela AT, que foi já julgado, por decisão transitada em julgado, no processo n.º 366/2017-T deste CAAD, embora para efeitos de aceitação como custo em IRC de 2012 e não em relação às liquidações adicionais de IVA relativas a 2012, que a AT não cumpriu o ónus de apresentar indícios suficientes para se considerarem falsas tais faturas, pelo que “a decisão acabada de citar, tendo-se pronunciado precisamente sobre a matéria sub judice – a alegada simulação das operações tituladas pelas faturas emitidas pela empresa H…, Lda – faz caso julgado perante a AT, e consequentemente deverá ser declarada, diretamente por este efeito, a anulação das liquidações na parte respetiva” (arts. 29 e 30 da PI).
11. Não obstante a Requerente não precisar, em termos definidos, o sentido desta invocação do caso julgado, só se pode pressupor que o faz em atenção ao efeito positivo ou autoridade do caso julgado, não ao efeito negativo do caso julgado que se manifesta quando este é feito valer como exceção.
Como escrevem LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., 2019, p. 599: “A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito”. Cite-se também a conhecida explicação de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O objeto da sentença e o caso julgado material (Estudo sobre a funcionalidade processual)” in BMJ 325 (1983), pp. 171 ss.: “A exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”; “Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição, no processo subsequente, do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente”.
Assim, na sua função negativa, o caso julgado, que pressupõe a repetição de uma causa, em termos de identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem como finalidade impedir que o (mesmo ou outro) tribunal da ação posterior seja colocado perante a alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja ocorrência impede o conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição do réu da instância (arts. 576.º, n.º 2, primeira parte, 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º do Código de Processo Civil - CPC).
Ora, seguramente não é deste efeito, que implica a inadmissibilidade deste segundo processo, que se trata nesta alegação da Requerente.
Aliás, compulsada na base de dados de jurisprudência do CAAD a referida decisão do processo n.º 366/2017-T, verifica-se que não existe identidade de objeto processual (mesmos pedido e causa de pedir – cfr. art. 581.º, n.ºs 3 e 4 do CPC) com o presente processo, ainda que parcialmente possa coincidir, em sede de causa de pedir (o acervo de factos essenciais alegados como fundamento do pedido), a factualidade narrada quanto à realidade das operações de aquisição de artigos de prata fina e de ouro subjacentes às faturas emitidas pela H…, Lda. Na verdade, o efeito jurídico que a Requerente pretende obter pela decisão deste Tribunal (cfr. art. 581.º, n.º 3 do CPC) não é o mesmo daquele outro processo n.º 366/2017-T, pois neste último estava em causa a anulação de liquidação de IRC respeitante ao ano de 2012, enquanto no presente processo trata-se da anulação de liquidações de IVA respeitantes ao anos de 2012, 2013, 2014 e 2015; em sede de causa de pedir (cfr. art. 581.º, n.º 4 do CPC), no presente processo está em jogo factualidade relativa a operações de aquisição ocorridas nos indicados anos de 2012 a 2015, enquanto no processo n.º 366/2017-T se apreciaram factos respeitantes apenas ao ano de 2012.
De qualquer modo, como se adiantou, a invocação do caso julgado pela Requerente prender-se-á antes com a autoridade do caso julgado, em que se joga o efeito positivo de a solução resultante de uma primeira decisão se impor vinculativamente à segunda decisão de mérito, como seu pressuposto necessário e indiscutível.
12. A autoridade do caso julgado respeita à situação em que, no âmbito de um segundo processo entre as mesmas partes com objeto processual distinto conexionado por uma relação de prejudicialidade com um primeiro processo, o teor da decisão já transitada em julgado neste primeiro processo determina o sentido da decisão de mérito no segundo processo. Pela autoridade ou efeito positivo do caso julgado, quando o objeto do primeiro processo envolve uma questão prejudicial relativamente ao objeto do segundo processo, a resolução daquela questão prejudicial impõe-se neste segundo processo, mediante a determinação de um elemento da causa de pedir – “o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação, mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento positivo da causa de pedir”, sempre que se verifique a “existência duma relação de prejudicialidade entre a primeira e a segunda acção: na primeira terá de ser ter decidido questão jurídica cuja resolução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda, nomeadamente por respeitar à causa de pedir ou a uma exceção perentória” (LEBRE DE FREITAS, “Um polvo chamado autoridade de caso julgado”, in ROA, Ano 79, III/IV (Jul-Dez 2019), p. 693 e p. 700).
Sucede que este efeito positivo do caso julgado não colhe aplicação no presente processo, desde logo porque o caso julgado material não possui, via de princípio, virtualidade para se estender aos fundamentos de facto.
Escreve-se, elucidativamente, a este respeito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.11.2018, proc. n.º 478/08.4TBASL.E1.S1 o seguinte:
“a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada.
Ora, os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram.
Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.
De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação.
Por isso mesmo é que o artigo 421.º do CPC dispõe sobre o valor extraprocessual das provas produzidas num processo no sentido de permitir, nas condições ali estabelecidas, o seu aproveitamento noutro processo.
Em suma, afigura-se que os juízos probatórios que recaem sobre os factos dados como provados ou não provados numa ação não constituem, em si mesmos, decisão de questão jurídica que possa valer com autoridade de caso julgado material como pressuposto de pretensão deduzida noutra ação”.
Precisamente, como, aliás, é reconhecido pela Requerente, a decisão arbitral proferida no processo n.º 366/2017-T assentou estritamente num juízo sobre a falta de prova indiciária dos factos apontados pela AT, pois essa decisão limitou-se a considerar que: “não nos parece que tenha sido realizada, por parte da AT, prova suficiente para que se considerem falsas as faturas emitidas por simulação das operações pelas mesmas tituladas. Significa isto que este tribunal entende, face ao estabelecido nos artigos 74.º e 75.º da LGT, que seriam necessários indícios mais fortes do que os que foram apresentados para se considerarem falsas as faturas aqui em causa” e que: “não se considerando provada a existência de fundados indícios de deficiente contabilidade ou de que esta e/ou documentos que lhe servem de suporte não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo, não é exigível ao contribuinte que seja ele a provar ou demonstrar o eventual erro da AT na quantificação ou na desconsideração total ou parcial da matéria coletável”.
Como se observa, jogam-se aqui apenas juízos probatórios sobre factos formulados nesse processo n.º 366/2017-T, pelo que não se configura decisão sobre questão jurídica que possa constituir caso julgado material nos termos do art. 619.º, n.º 1 do CPC.
Resta, pois, extrair a conclusão de que a decisão proferida no processo n.º 366/2017-T não releva em termos de autoridade de caso julgado para efeitos da apreciação do mérito da presente causa.
13. Elucidada esta questão prévia, segue-se proceder à fixação dos factos relevantes para a resolução do litígio em atenção às diversas soluções plausíveis das questões de Direito colocadas nos autos.
III.4. Fundamentação de facto
III.4.1. Factos provados
14. Examinadas as alegações das partes formuladas nas respetivas peças processuais, designadamente os enunciados de factos integradores dos vícios imputados pela Requerente aos atos impugnados e a posição a seu respeito adotada pela Requerida, analisada a prova documental apresentada com a PI e a que resulta do procedimento administrativo (PA) junto aos autos (constituído apenas, como se referiu, pelo Relatório de Inspeção Tributária datado de 27 de dezembro de 2016, e pela decisão de indeferimento de recurso hierárquico n.º ………….., datada de 23 de dezembro de 2019), e apreciados os depoimentos testemunhais prestados por C…, D…, E…, F…, arrolados pela Requerente, e G…, arrolado pela Requerida, bem como as declarações de parte do gerente da Requerente B…, o Tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos (que se sistematizam em factos materiais e factos procedimentais):
A) Factualidade material
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A Requerente é uma sociedade comercial unipessoal por quotas que tem por atividade, entre outras, o comércio, fabrico, importação, exportação e afinação de ouro e prata, encontrando-se enquadrada em sede de IVA no regime normal de periocidade mensal desde 1998/01/01 (factualidade não controvertida referenciada no art. 32 da PI e no RIT, n.ºs II.3.1. e II.3.2).
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A Requerente possui a licença n.º P….., de armazenista e importador de ourivesaria, emitida pela Contrastaria do Porto, estando habilitada a exportar e fornecer a retalhistas os artefactos de ourivesaria que, para o efeito, haja adquirido a industriais ou tenha importado diretamente (factualidade referenciada no RIT, n.ºs II.3.4.).
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A Requerente, no âmbito da sua atividade, adquiriu cascalho de ouro, isto é, ouro em segunda mão, que é normalmente comprado a particulares por empresas de recolha de ouro usado que o vendem à Requerente, a qual, em seguida, manda derreter e afinar o ouro e passa a utilizá-lo como matéria-prima para a sua atividade de ourives (factualidade reconhecida nos arts. 9, als. a e c e 33 da PI).
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As aquisições de cascalho de ouro efetuadas pela Requerente para utilização como matéria-prima nos anos em apreço foram sujeitas a IVA com aplicação do regime geral de liquidação do imposto pelo vendedor, assim como os serviços para derreter e afinar o ouro foram debitados à Requerente com incidência de IVA, tendo o IVA sido deduzido pela Requerente (factualidade reconhecida no art. 9, als. b, c e d e nos arts. 17, 18 e 19 da PI).
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A sociedade H…-, Lda, que foi constituída com um capital social de apenas € 1,00, coletou-se em 11/07/2012 e logo em 17/07/2012 começou a emitir faturas de venda de metal ouro e prata (factualidade referida no RIT, ponto III.2, p. 25, não contraditada pela Requerente).
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A sociedade H…, Lda não tinha quaisquer instalações para o exercício da atividade declarada, ocultou à AT e ao TOC os valores faturados e de IVA liquidado, pois, apesar de proceder ao envio das declarações periódicas de IVA, não declarou qualquer valor de vendas nem de IVA liquidado, e também nenhuma entidade declarou vendas à H… (factualidade referida no RIT, ponto III.2, pp. 24-25, não contraditada pela Requerente conforme arts. 42, 43, 44, 48 e 54 da PI).
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A Requerente comprou à sociedade H…-, Lda prata fina em 10/10/2012, em 30/10/2020, em 05/11/2012 (neste dia em quatro ocasiões), em 06/11/2012, em 12/11/2012, em 16/11/2012 e em 11/12/2012, na quantidade total de 106.272,10 gramas, o que foi pago por cheques sobre o Millennium-BCP das mesmas datas, exceto um dos cheques respeitantes a fatura de 5-11-2012 que data de 9-11-2012, e cascalho de ouro em 29/11/2012 e em 17/12/2012, na quantidade total de 519,56 gramas, que foi liquidado por cheques sobre o Millennium-BCP de 10/12/2021 e de 17/12/2012, respetivamente (tudo conforme faturas e cheques que aqui se dão por reproduzidos juntos agregadamente no doc. n.º 1 à PI, bem como declarações de parte do gerente da Requerente e depoimentos testemunhais de C… e de E…).
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As transações ocorridas no final de 2012 entre a Requerente e a H…, Lda foram realizadas por parte desta por I…, gerente da H…., e por C…, seu irmão, tendo tido lugar nas instalações da Requerente, onde era rececionada a mercadoria, que era transportada em automóvel utilizado pela H… e entregue embrulhada em papel ou em sacos de plástico, e paga mediante os cheques acima mencionados constantes do doc. n.º 1 à PI, emitidos a favor da referida fornecedora H…,Lda (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimentos testemunhais de C… e de E…).
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As faturas eram emitidas manualmente nas instalações da Requerente e entregues ao gerente da mesma, B…, sendo preenchidas pelo gerente da H…, I…, ou pelo seu irmão C…, que também acompanhava o gerente nas transações, pertencendo, assim, as caligrafias nas faturas a C… e a I… (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimento testemunhal de C…, bem como confrontação com o depoimento testemunhal de G…).
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A mercadoria até 2 kilos era pesada pelo gerente da Requerente no seu gabinete ou, quando superior, pelo funcionário F…, na balança que se encontrava na oficina das instalações da Requerente, sendo armazenada no cofre da oficina (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimentos testemunhais de E… e de F…).
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Feita a pesagem e acordado com o gerente da Requerente o preço, que era determinado tendo em conta a cotação bolsista da prata ou do ouro, cotação que podia variar ao longo do dia, o gerente da H…, I… ou o seu irmão C… preenchiam a fatura e entregavam-na ao gerente da Requerente, que emitia de imediato o cheque de pagamento (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimento testemunhal de C…).
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Os cheques de pagamento foram todos levantados em numerário pelo gerente da H…, I… , ou pelo seu irmão C… (factualidade referida no RIT, ponto III.2, pp. 27 e 29 e também objeto das declarações de C… ).
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A H… adquiriu a prata a pessoas que dispunham de pequenas quantidades ou a pequenos ajuntadores, como lojas de compra de ouro ou prata em 2.ª mão, e o ouro foi adquirido sob a forma de cascalho, sendo feitas pequenas operações de cada vez, pagando a pronto e revendendo a pronto, e recebendo logo o pagamento, o que permitia realizar liquidez imediata em cada venda (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimentos testemunhais de C… e de D… ).
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A H… recorria a serviços de terceiros para fazer a fundição e ensaio da prata, designadamente ensaiava a prata nas instalações da D. J …, ficando assim a conhecer o “toque” (grau de pureza) dessa prata e revendia-a à Requerente já como prata fina (declarações de parte do gerente da Requerente e depoimento testemunhal de D… ).
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A mercadoria de prata fina adquirida à H… foi revendida pela Requerente à sociedade K…-..., S.A., NIPC ……, com sede na Rua …….., ….-… Porto, sociedade que funciona em Portugal como representante e agente de compra de metais preciosos da sociedade espanhola L…, SA, operador ibérico na compra e venda de prata, conforme guias de transporte de 15.10.2012, 30.10.2012, 6.11.2012, 12.11.2012, 20.11.2012, 28.11.2012 e 13.12.2012, todas com referência a material entregue pela A…, e comprovativos de transporte por DHL, juntos agregadamente como doc. n.º 2 à PI, que aqui se dão por reproduzidos, e declarações de parte do gerente da Requerente.
B) Factualidade procedimental
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A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção tributária ao ano de 2012, que decorreu ao abrigo da Ordem de Serviço OI2014….., e aos anos de 2013 a 2015 que decorreu ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2016….., OI2016….. e OI2016….. (cfr. a factualidade indicada no n.º 1 da PI não contraditada na resposta).
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A indicada ação de inspeção ao ano de 2012 originou o Relatório de Inspeção Tributária que se mostra junto no PA, do qual consta, no que aqui mais diretamente releva, o seguinte:
- “Sujeito passivo selecionado pelo facto de, no âmbito da ação de inspeção à sociedade H… –, Lda., NIF ………., que decorreu ao abrigo da OI2013….., se ter detetado a emissão de faturas sem correspondência com transações reais com destino à A…, no período compreendido entre outubro e dezembro de 2012.
- II.3.7 – A especificidade do enquadramento fiscal do ouro para investimento
Com a publicação do Decreto-Lei 362/99 de 16 de setembro, o legislador transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 98/80/CE, do Conselho, de 12 de outubro de 1998, que completa o sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado e estabelece um regime especial aplicável ao ouro para investimento. (...)
Concluindo-se que o mesmo foi criado com o objetivo de prevenir a fraude e a evasão fiscal e evitar o pré-financiamento do imposto, tendo-se estabelecido que, para as transmissões de ouro de investimento quando tenha havido opção pela tributação, e para as transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados, que o devedor seja o adquirente dos bens, desde que este tenha direito à dedução total ou parcial do imposto.
Desta forma, o ouro que cumpre com as características previstas no artigo 2.º de referido decreto, que se classifica como ouro para investimento, está isento de IVA, qualquer que [seja] o destino dado ao ouro ou a natureza do adquirente (sujeito passivo ou particular), conforme dispõe o artigo 3.º do mesmo diploma.
Pode, no entanto, ser exercida a renúncia à isenção nos termos do artigo 5.º, desde que o adquirente seja sujeito passivo de imposto, situação em que se aplica IVA às referidas operações, mas o imposto deverá ser liquidado pelo adquirente que, simultaneamente também deduz o mesmo.
Ainda de acordo com o artigo 10.º, nas transações de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos, o IVA é devido pelo adquirente, sendo o mesmo responsável pela liquidação tendo, simultaneamente, direito à dedução.
Ou seja, a aplicação do diploma não se restringe unicamente ao conceito de ouro fino ou ouro bruto, dado que o mesmo abrange igualmente o ouro sob a forma de matéria-prima.
Para que se compreenda tal definição de ouro sob a forma de matéria-prima, temos que interpretar a letra da lei, o seu contexto e o objetivo dessa mesma disposição.
Assim, no que se refere à letra da Lei, deve-se interpretar o conceito de ouro sob a forma de matéria-prima como abrangendo qualquer material que é composto em parte por ouro.
No seu conceito lato considera-se qualquer material que se destina a uma transformação posterior, ou seja, dito de outra forma é suscetível de abranger o ouro em estado bruto, o ouro como metal puro ou ainda qualquer material parcialmente composto de ouro.
Já quanto ao seu contexto, a disposição aplica-se somente ao ouro sob a forma de matéria-prima com um toque igual ou superior a 325 milésimas.
No que concerne aos objetivos da regulamentação, não se vislumbram outros que não sejam prevenir a fraude e atenuar os encargos financeiros. De facto, o texto da própria diretiva refere que “... a experiência demonstra que, no que se refere à maior parte das entregas de ouro com um toque superior a determinado valor, a aplicação do pagamento do imposto pelo cliente pode contribuir para prevenir a fraude fiscal e, ao mesmo tempo, atenuar os encargos financeiros das operações...”.
E, de facto, caso se defina o adquirente do objeto como devedor do IVA, a dívida fiscal e o direito à dedução coincidem na mesma pessoa, pelo que a administração fiscal não é obrigada a devolver qualquer montante ou a considerar créditos em sede do adquirente.
Tanto mais que o risco de uma fraude ao IVA é tendencialmente mais elevada, quanto mais valiosos e mais fáceis de transportar são os bens comercializados.
Assim, se atendermos à redação do art.º 10.º do D.L. 362/99, de 16/09, concluímos que não há motivos para incluir no conceito de ouro sob a forma de matéria-prima, apenas o ouro fino quando a disposição abrange simultaneamente produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimas. Por outro lado, a exigência em relação ao toque mínimo não deve abranger somente produtos semitransformados, mas também ouro sob a forma de matéria-prima, conforme dispõe o próprio diploma. E por último, não é conciliável com a função desta disposição diferenciar, no caso de ouro sob a forma de matéria-prima, por exemplo entre ligas e cascalho de ouro, na medida em que, em virtude do toque decisivo para o valor, a vulnerabilidade a fraudes de negócios com objetos que contêm ouro não dependerá deste facto.
Pelo que, tendo em consideração os referidos objetivos da regulamentação, “ouro sob a forma de matéria-prima” não deve abranger qualquer material que apresente um toque de ouro igual ou superior a 325 milésimas, mas apenas o material que não constitui um produto final e que, por conseguinte, não é adequado a entregas a consumidores finais que não sejam sujeitos passivos.
Neste sentido, o conceito de “ouro sob a forma de matéria-prima” abrange qualquer material que se destina a uma transformação superior, e não ao consumo final, mas que, no entanto, não constitui qualquer “produto semitransformado”, desde que apresente um toque de ouro igual ou superior a 325 milésimas.
Da mesma forma, de acordo com o sentido comum imanente aos conceitos de “ouro sob a forma de matéria-prima” e “produtos semitransformados”, estes devem ser distinguidos de acordo com o grau de processamento para obter o produto final, sendo que, neste sentido “ouro sob a forma de matéria-prima” designa objetos em que apenas o ouro contido – independentemente da forma que apresenta em cada caso – é relevante para o processo de produção seguinte, sendo que “produtos semitransformados” abrange objetos que já foram submetidos a uma transformação com vista ao produto final.
Outrossim, o ofício circulado 30014, de 2000/01/13, da Direção de Serviços do IVA veio esclarecer o enquadramento de ouro que não seja ouro para investimento referindo que “As transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro que não seja ouro para investimento estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI. Todavia, nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima (barra, placa, granalha, solda, etc.) ou de produtos semitransformados (por ex. fio, fita, tubo que não sejam artefactos de ouro) de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações (com exceção das previstas no artigo 12.º), devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto”.
Ou seja, se dúvidas existissem quanto à redação do art.º 10.º do Decreto-Lei 362/99 de 16 de setembro, este ofício circulado veio clarificar tal situação, quanto à exigência mínima do toque de ouro igual ou superior a 325 milésimas, enumerando a título meramente exemplificativo tipos de materiais que se enquadram nos conceitos de “ouro sob a forma de matéria-prima” e “produtos semitransformados”, no sentido de uma interpretação lata, isto é suscetível de abranger qualquer material parcialmente composto por ouro, nela se incluindo o ouro destinado a fundição e posterior transformação em ouro fino, vulgarmente designado por “ouro sucata” ou “ouro cascalho”.
Trata-se assim, de uma lei especial (lex specialis) relativa aos produtos específicos aí referidos.
Saliente-se igualmente que o anteriormente Regulamento das Contrastarias dispunha no n.º 2 do art.º 30.º que “...considerar-se-á «cascalho» o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável...”, ou seja, ouro cascalho são objetos de ouro que perderam a sua identidade por terem sido inutilizados de forma irreparável, sem qualquer possibilidade de recuperação como artefactos.
Destaque-se igualmente o mencionado no Regime Jurídico da Ourivesaria e das Contrastarias, doravante RJOC, que, no art.º 3, alínea mm), define “Subproduto novo resultante de artigos com metal precioso usados” como o artigo com metal precioso não transformado, em forma de barra, lâmina ou outro artigo com metais preciosos que resulte da fundição de artigos com metal precioso usados e adquiridos a um particular. Ou seja, também esta definição perfila pela interpretação lata que anteriormente se referiu quanto ao “ouro sob a forma de matéria-prima”, nomeadamente sendo suscetível de abranger qualquer material parcialmente composto de ouro, independentemente de ser adquirido a um particular ou a um sujeito passivo de imposto, no sentido de ser definido como um subproduto.
Vulgarmente, de acordo com os conceitos reais de mercado neste setor, é nesta situação que se enquadra o cascalho de ouro, que se destina a fundição e a ser reaproveitado na fabricação ou a ser vendido no estado de barra ensaiada ou como ouro fino, acolhendo também o RJOC quanto a este conceito o sentido de matéria-prima.
Assim, em resumo, se se tratar de ouro sob a forma de barra ou de placa, com pesos aceites pelos mercados de ouro, com um toque igual ou superior a 995 milésimos, tal operação será isenta de IVA. Porém, pode o vendedor exercer a renúncia desde que o adquirente seja sujeito passivo de imposto, sendo este último responsável pela liquidação tendo, simultaneamente, direito à dedução.
Se se tratar de ouro sob a forma de matéria-prima, ou produtos semitransformados, com toque igual ou superior a 325 milésimas, o responsável pela liquidação é sempre o adquirente, desde que seja sujeito passivo de imposto.”.
- “a sociedade A… deduz IVA decorrente de aquisições de cascalho de ouro, sem que para tal exista enquadramento legal. (...).
Recupere-se neste momento tudo o que anteriormente se referiu quanto ao enquadramento do ouro cascalho para efeitos de IVA, nomeadamente quanto ao emolduramento do “ouro sob a forma de matéria-prima”, no qual o responsável pela liquidação é sempre o adquirente, desde que seja sujeito passivo de imposto.
Por seu turno, e como também anteriormente se expôs, o “ouro sob a forma de matéria-prima” é um conceito lato no qual se inclui todo e qualquer objeto parcialmente composto por ouro, desde que respeitando o toque mínimo de 325 milésimas, e outrossim, desde que não seja produto final, nele se incluindo o cascalho
Aceitar a dedução de IVA, tendo por base liquidações de IVA sobre cascalho de ouro seria uma deturpação do regime do ouro para investimento, quanto ao conceito de ouro sob a forma de matéria-prima previsto no art.º 10.º desse mesmo diploma.
De facto, sendo o cascalho de ouro objetos de ouro que perderam a sua identidade por terem sido inutilizados de forma irreparável [De acordo com o n.º 2 do art.º 30.º do Regulamento das Contrastarias, entretanto revogado mas em vigor à data dos factos] e, como se afere no caso em concreto da A…, ter sido esse mesmo cascalho, fundido, ensaiado e afinado, e convertido em ouro fino que posteriormente é integrado na fabricação de novos artefactos, constata-se que esse mesmo cascalho de ouro mais não é que uma matéria-prima.
Por outro lado, tal situação não só seria uma desvirtuação do conceito de ouro sob a forma de matéria-prima, como desvirtuaria igualmente o objetivo primordial do D.L. 362/99, de 16/09, que visa impedir a fraude fiscal, sendo exemplo concreto dessa situação as vendas efetuadas à A… pela sociedade M…, Lda., tendo esta última a montante sociedades sem correspondência com reais transações comerciais e surgem apenas para que a M… não tenha que entregar nos cofres do Estado o IVA que liquida à A…, entre outras entidades.
Mas as evidências que se tem vindo a expor, também despontam quando se observam os preços unitários constantes das faturas, não fazendo qualquer sentido quando analisados à luz de regras de experiência comum e da prática do setor de compra e venda de metais preciosos.
De facto, tratando-se o ouro fino de um bem indiferenciado (1 kg de ouro fino no mercado ou país A é exatamente igual a 1 kg de ouro fino no país B) cujos preços são determinados e cotados internacional e globalmente, os operadores do mercado, nacional e internacional, são meros “price takers”, isto é, tomadores de preços porque nenhum deles tem influência sobre o preço praticado.
Todos os preços praticados nos diferentes extratos da pirâmide são determinados a partir desta cotação internacional, descontados de uma margem de comercialização muito semelhante entre os operadores situados ao mesmo nível na pirâmide.
Ora no caso em concreto da A…, (...) temos preços distintos para o cascalho de ouro, em períodos ou dias semelhantes (...)
(...) constatamos preços unitários perfeitamente distintos para o mesmo tipo de mercadoria (ouro cascalho), concretamente nos dias 1 e 2 de julho, 1 e 2 de agosto, 27 de setembro e 1 de outubro e 7 e 12 de dezembro, que se estranha dado estarmos perante o mesmo tipo de mercadoria e com toques semelhantes, conforme se atesta pelas fundições e ensaios da própria A….
Mas, atente-se igualmente às cotações do ouro fino, quer AORP, quer London Market Fixing nessas datas ou datas próximas (...)
Concluindo-se que, tomando em linha de conta por exemplo as cotações da AORP, e admitindo aquisições no máximo a €2,50/grama abaixo da cotação, sendo o valor anteriormente obtido multiplicado pelo toque, resultam preços unitários substancialmente superiores aos que constam nas faturas dos fornecedores da A….
Porém a A… também efetuou aquisições de ouro cascalho sem que tenha existido qualquer liquidação de IVA, por parte dos seus fornecedores (...)
As aquisições supra, foram efetuadas utilizando o regime especial de tributação dos bens em 2.ª mão, também designado por “regime da margem”, uma vez mais não se compreendendo o preço unitário praticado de acordo com o funcionamento do mercado que anteriormente se expressou, tendo a A… aquisições do mesmo tipo de mercadoria (cascalho de ouro) com liquidação de IVA discriminado, nos meses de janeiro e fevereiro de 2012, a preços unitários substancialmente diferentes.
Outrossim, não se compreende o facto de se usar o regime dos bens em 2.ª mão, para vendas de cascalho de ouro quando na realidade este regime apenas é aplicável a bens móveis suscetíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação, o que não é o caso em concreto do cascalho de ouro que se destina a ser fundido.
Assim, face ao exposto nas aquisições de cascalho de ouro, o devedor do imposto, diga-se devedor do IVA, é o próprio adquirente pelo que nos termos do CIVA não é possível a existência de crédito de imposto com origem em dedução de IVA, resultante de errada aplicações da Lei, pois caso contrário estaríamos a desvirtuar por completo a finalidade de tal alteração legislativa, não conferindo direito à dedução em sede da A… o IVA deduzido tendo para base aquisições de cascalho de ouro em que o IVA foi liquidado pelo emitente.
III.2 TRANSAÇÕES COM A H…
Consoante inicialmente se referiu detetou-se a emissão de faturas sem correspondência com transações reais com destino à A…, no período compreendido entre outubro e dezembro de 2012, por parte da sociedade H…, Lda., doravante designada somente por H…, NIF ……...
De facto analisada a contabilidade da A… atesta-se que entre 10 (dez) de outubro e 17 (dezassete) de dezembro do ano de 2012, constam fornecimentos por parte da sociedade H… de 106.272,10 gramas de prata fina e 519,56 gramas de cascalho de ouro, de acordo com a discriminação que se efetua no quadro subsequente:
Outrossim, se concluiu no âmbito do procedimento inspetivo à sociedade H…, Lda. que tais fornecimentos, perante os factos descritos, constituem fortes indícios que se trata de faturas que não correspondem a transações reais, dos quais se destacam:
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Inexistência de instalações para o exercício da atividade declarada, não possui nem possuía à data dos factos, instalações através das quais pudesse exercer a atividade, o proprietário das instalações indicadas como sede pelo sujeito passivo, declarou desconhecer a sociedade e o sócio gerente, alegando ter emprestado as instalações a C…, irmão do I…, instalações que se verificou não terem condições para o exercício de qualquer atividade, ou seja, nada foi encontrado com interesse ou que indiciasse que naquele local se desenvolvesse qualquer atividade relacionada com a comercialização de ouro.
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Coletou-se para o exercício de atividade de fabrico em 2012/07/11, e logo em 2012/07/17 começou a emitir faturas de venda de metal ouro e prata;
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Falta de recursos económicos financeiros da sociedade, constituída com o capital apenas de €1,00, e do sócio gerente para o exercício da atividade. Sócio que desde 2009 não declarava rendimentos, e dos rendimentos declarados de 2012, € 2.425,00 da Categoria A pagos pela empresa H…, que não recebeu, e apenas €3.086,13 da categoria A que lhe foram pagos pela empresa N…, SA;
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Ocultou à AT e ao TOC os elevados valores faturados e de IVA liquidado, pois apesar de proceder ao envio das declarações periódicas de IVA, não declarou qualquer valor de vendas nem de IVA liquidado, e que dos documentos conhecidos atingem o valor respetivamente de € 817.962,77 e € 81.735,92, sendo ainda desconhecidas parte das faturas emitidas. Pretendeu justificar a existência de tais faturas com o facto de alguém, que diz desconhecer, estar a utilizar indevidamente o nome da empresa, sem que ele tenha tido qualquer participação na emissão e requisição das mesmas na tipografia.
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O sócio gerente negou ter emitido em nome da empresa qualquer fatura, tendo também o TOC declarado desconhecer as Faturas/Recibo em causa;
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Apesar dos elevados valores dos metais preciosos faturados, ninguém declarou vendas para o sujeito passivo;
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As Faturas – Recibo conhecidas apresentam caligrafias diferentes no seu preenchimento, consoante o utilizador;
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Junto da tipografia apurou-se que o primeiro livro de faturas-recibo foi requisitado por I… e o segundo livro de faturas-recibo foi requisitado pelo seu irmão C….
De facto, no ano de 2012, a sociedade H…, Lda., emitiu faturas para três entidades, entre as quais a A…, que descrevem as quantidades totais que no quadro abaixo se resume:
Se quanto às vendas de cascalho ainda se pode alegar que são transacionadas no estado em que se adquirem, tal já não é possível quanto às transações de ouro fino e prata fina, pois desconhecendo-se reais fornecedores da H… concernentes a ouro fino e prata fina, leva a concluir que para vender essas quantidades a H… teria que ter serviços de fundição, ensaio e afinação de ouro e prata.
Porém, junto de afinadores e ensaiadores de metais preciosos não se encontrou qualquer serviço de ensaio e/ou de afinação de ouro prestado à H…, facto que se estranha uma vez que este faturou cerca de 400 kg de prata fina e 10 kg de ouro fino.
Não obstante as várias diligências efetuadas, não se apurou que a H… tenha adquirido quaisquer bens que lhe permitissem realizar as vendas subsequentes.
No que concerne às transações com a A…, analisadas as faturas emitidas pela H…, deparamo-nos com diversas caligrafias constantes das mesmas. Sem querer emitir juízos de valor, porquanto só com um exame caligráfico eventualmente se poderiam retirar conclusões quanto às mesmas, o certo é que desde logo na fatura/recibo 43, de 12/11/2012, e na fatura/recibo 64, de 17/12/2012, se constata que a caligrafia constante das mesmas é de C…, irmão do gerente de direito da H…, tal como se havia concluído em procedimento inspetivo a um outro utilizador das faturas da H…..
Em outras faturas da H.. constatamos que a caligrafia é muito idêntica à constante das faturas emitidas pela A…, levando fundamentadamente a crer que as mesmas foram preenchidas pelo próprio utilizador.
No que concerne a meios de pagamento, aferiu-se que, para pagamento dos fornecimentos da H…, a A… emitiu os cheques que se discriminam no quadro subsequente:
Todos os cheques acima referenciados foram levantados à “boca do caixa” por I… gerente de direito da H…, nas datas e nos balcões identificados.
Relativamente aos meios de pagamento acima discriminados, desde logo não deixa de se estranhar o facto de, para pagamento de fatura/recibo 52, de 29/11/2012, ter sido emitido o cheque n.º 4548389519, que foi descontado na mesma data, porém a data aposta no cheque é de 10/12/2012.
Mas porventura o indício mais forte relaciona-se com o facto de nenhum desses cheques ter sido depositado em conta(s) bancária(s) da sociedade H… ou do seu responsável de direito. Esta conduta de efetuar, de forma reiterada, levantamentos de cheques em numerário, com a clara intenção de não deixar qualquer tipo de rasto financeiro, faz com que se perca o rasto documental daquelas quantias, desconhecendo-se o seu destino.
Quanto a estes meios de pagamento esclareceu o gerente de direito da H…, I… que, de facto, o mesmo acompanhado do seu irmão C… efetuou tais levantamentos à “boca do caixa”. Contudo, posteriormente regressavam à A… e entregavam o numerário a B… ou à sua esposa.
Mais esclareceu que as faturas emitidas pela H… à A… não representam qualquer entrega de mercadoria por parte da H…, recebendo uma pequena contrapartida financeira que se situa entre €200,00 e €300,00, que era dividida entre o mesmo e o seu irmão.
As declarações de I… coligadas com todos os indícios que se expuseram, vem confirmar as fortes suspeitas que as mesmas não configuram reais transações entre a H… e a A…..
Apesar dos factos acima expostos, e acerca das transações com a sociedade H…, Lda., foi ouvido em auto de declarações B…, responsável de direito da A…, tendo o mesmo afirmado que I… e o seu irmão C… surgiram um determinado dia na sede da A…, perguntando se futuramente a A… estaria interessada em comprar ouro e prata. Foi verificado se a aludida sociedade estava registada junto da AT, procedimento que a A… realiza sempre que surge um novo fornecedor. Esclareceu ainda que, de todas as vezes que efetuou aquisições à H…, as mesmas ocorreram na data das faturas sempre com I… e o seu irmão C… presentes. Confrontado com as diversas evidências existentes quanto à inexistência de transações comerciais com a entidade H…, no sentido de identificar os verdadeiros fornecedores, B… reiterou que as transações ocorreram com a entidade H… e não com entidades terceiras.
Desde logo, das declarações de B…, quando refere que as transações ocorreram na data das faturas, destaca-se a evidência de, somente no dia 5 de novembro de 2012, através das faturas/recibo 36, 37, 38 e 39, a H… alegadamente vendeu 39.056,00 gramas de prata fina e, no dia seguinte, 6 de novembro, alegadamente vendeu mais 4.031,20 gramas de prata fina.
Face às evidências anteriormente expostas, desconhece-se a proveniência de tais avultadas quantidades em um tão curto espaço de tempo, da mesma forma que se estranha por que motivo no dia 5 de novembro foi necessário emitir quatro faturas.
Em suma, coligadas todas as evidências, a factualidade descrita e os elementos probatórios recolhidos constituem fortes indícios de que a faturação emitida em nome de H… para a A… não consubstancia transações reais e efetivas entre aquelas duas entidades, tratando-se de faturação falsa.
Apesar do sócio gerente da H… alegar nada ter transacionado, somos levados a crer que todo este esquema foi desenvolvido com a colaboração do sócio gerente, pois ficou demonstrado que foi o próprio a requisitar o 1º livro de faturas na tipografia e a levantar ao balcão os cheques emitidos pelos utilizadores, tendo em vista dar credibilidade às faturas. (...)
Para efeitos de IVA, nos termos do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, o IVA deduzido pela A…, nos meses de outubro, novembro e dezembro do ano de 2012, constante das faturas emitidas pela H… não confere direito à dedução, de acordo com o quadro sequente:
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Em 29.07.2016, no âmbito do procedimento inspetivo relativo ao ano de 2012, foi ouvido em declarações I…, sócio gerente da H…, conforme auto de declarações, assinado pelo declarante, pelo Inspetor Tributário G… e pela testemunha O…, ITAP ….., junto com o requerimento da AT de 13.12.2020, que aqui se dá por reproduzido, no qual consta o seguinte:
i) “referiu que surgiu uma oportunidade de efetuar serviços de ourivesaria para a A…, Lda e para a P…, tendo-se coletado para o exercício da atividade de fabricação de artigos de joalharia e outros artigos de ourivesaria”;
ii) escolheram o sócio gerente I… e o seu irmão C… como sede da H… local que tinha sido a oficina do irmão C… entre 1998 e 2000;
iii) “Posteriormente apercebi-me que as faturas da H… serviam para outros expedientes, nomeadamente a compra e venda de ouro e prata fina e em cascalho ouro. Concretamente quanto às faturas emitidas pela H… para a A…, as que contém no descritivo cascalho de ouro ou ouro usado foram solicitadas pelo B…, sócio-gerente da A… ao meu irmão C…, sem existir qualquer entrega de mercadoria. As faturas emitidas à A… que contêm prata fina no descritivo também não representam qualquer entrega de mercadorias, foram também pedidas pelo B… ao meu irmão, que era para legalizar uma prata final que a A… tinha”;
iv) “Questionado sobre quem preenchia as faturas referiu que era o seu irmão, ou então pelo B… e sua esposa. Questionado acerca dos meios de pagamento (cheques) emitido pela A… para pagamento destas faturas, refere que o próprio e o seu irmão deslocavam-se ao banco para levantar os cheques. Posteriormente regressavam à A… e entregavam o numerário ao próprio e à esposa. Outras ocasiões levavam o numerário diretamente para a oficina da P… (...) e entregavam lá o numerário que julga que era entregue ao D… porque permanecia na viatura enquanto o seu irmão C… entrava nas instalações, porque o irmão era o gerente de facto da H…, Lda. Por estas operações recebiam certa de €200,00/300,00 que dividiam em partes iguais entre C… e I…”.
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Na sequência das correções técnicas promovidas, a Requerente foi notificada das seguintes liquidações de IVA e de juros, a cujo pagamento procedeu nos seguintes termos (conforme documentos não numerados juntos à PI com as designações a seguir indicadas):
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2012-03, que determina um valor de imposto no montante de € 1.344,16 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidações n.ºs 000000….. e 000000….. referentes a juros compensatórios e moratórios sobre a liquidação precedente, que determinam um valor de juros no montante total de € 352,77 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2012-05, que determina um valor de imposto no montante de € 373,85 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000….. referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 66,82 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………… referente a IVA do período 2012-06, que determina um valor de imposto no montante de € 3.547,92 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq 1206”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 622,10 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2012-08, que determina um valor de imposto no montante de € 4.187,86 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000….. referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 706,31 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2012-09, que determina um valor de imposto no montante de € 864,83 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000….. referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 142,73 e cujo pagamento ocorreu em 10.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2013-04, que determina um valor de imposto no montante de € 14.421,36 e cujo pagamento ocorreu em 13.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…..referente a juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 2.851,40 e cujo pagamento ocorreu em 13.3.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………… e demonstração de acerto de contas n.º 2017………… referente a IVA do período 2013-05, que determinam um valor de imposto no montante de € 10.410,34, cujo pagamento ocorreu quanto a €10.168,77 em 13.3.2017 e quanto a €241.57 em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000…..referente a juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros a pagar no montante de € 1.961,19 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 ……….. e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ……….. referente a IVA do período 2013-06, que determinam um valor de imposto no montante de € 22.296,94, cujo pagamento ocorreu quanto a €1.709,18 em 15.3.2017 e quanto a €20.587,76 em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 3.465,51, cujo pagamento ocorreu quanto a €320,89 em 15.3.2017 e quanto a €3.144,62 em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 ………… e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ………… referente a IVA do período 2013-07, que determinam um valor de imposto no montante de € 29.344,42, cujo pagamento ocorreu quanto a €19.933,59 em 15.3.2017 e quanto a €9.410,83 em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000….. referente a juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 3.645,66, cujo pagamento ocorreu em 15.3.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 …………. referente a IVA do período 2013-08, que determina um valor de imposto no montante de € 8.414,43, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000……. referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.361,98, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2013-09, que determina um valor de imposto no montante de € 9.273,43, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.468,50, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ……….. referente a IVA do período 2013-10, que determina um valor de imposto no montante de € 10.883,18, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.688,83, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ……….. referente a IVA do período 2013-11, que determina um valor de imposto no montante de € 13.700,59, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 2.079,48, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2013-12, que determina um valor de imposto no montante de € 6.552,84, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 972,33, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-02, que determina um valor de imposto no montante de € 1.637,24, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 232,35, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-03, que determina um valor de imposto no montante de € 8.230,80, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.139,23, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-04, que determinam um valor de imposto no montante de € 12.234,43, cujo pagamento ocorreu quanto a €2.076,40 em 22.12.2017 e quanto a €10.158,03 em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….compactado”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 997,24, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros moratórios sobre a liquidação referida em gg), que determina um valor de juros no montante de € 375,34, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 ………. e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-05, que determina um valor de imposto no montante de € 10.657,85, cujo pagamento ocorreu quanto a €4.461,38 em 22.12.2017 e quanto a €6.196,47 em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios e liquidação de juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determinam um valor de juros no montante de € 817,59, cujo pagamento ocorreu quanto a €786,86 em 22.12.2017 e quanto a €30,73 em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 ………. e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-06, que determina um valor de imposto no montante de € 5.557,12, cujo pagamento ocorreu quanto a €2.115,31 em 22.12.2017 e quanto a €3.441,81 em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 00000…… referente a juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 363,10, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação mencionada em ll), que determina um valor de juros no montante de € 78,96, cujo pagamento ocorreu em 28.12.2017 (cfr. doc. “liq ….-compactado”);
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Liquidação n.º 2017 …… e demonstração de acerto de contas n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-07, que determinam um valor de imposto no montante de € 2.880,86, cujo pagamento ocorreu quanto a €2.332,73 em 22.12.2017 e quanto a €548,13 em 28.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros moratórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 389,81, cujo pagamento ocorreu em 22.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-08, que determina um valor de imposto no montante de € 419,84, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 51,16, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 …… referente a IVA do período 2014-09, que determina um valor de imposto no montante de € 3.354,62, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 397,40, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-10, que determina um valor de imposto no montante de € 10.995,97, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.266,49, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-11, que determina um valor de imposto no montante de € 8.809,75, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 982,82, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2014-12, que determina um valor de imposto no montante de € 5.619,03, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 609,00, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-03, que determina um valor de imposto no montante de € 9.050,82, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 891,69, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-04, que determina um valor de imposto no montante de € 25.436,96, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 2.419,64, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-05, que determina um valor de imposto no montante de € 13.493,18, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.240,62, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-06, que determina um valor de imposto no montante de € 10.422,16, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 922,86, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-07, que determina um valor de imposto no montante de € 6.411,50, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 545,94, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-08, que determina um valor de imposto no montante de € 20.758,30, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.694,78, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-09, que determina um valor de imposto no montante de € 6.411,44, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 503,07, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-10, que determina um valor de imposto no montante de € 16.095,13, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 1.210,00, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-11, que determina um valor de imposto no montante de € 6.430,96, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 460,91, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 2017 ………. referente a IVA do período 2015-12, que determina um valor de imposto no montante de € 12.030,27, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”);
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Liquidação n.º 000000…… referente a juros compensatórios sobre a liquidação precedente, que determina um valor de juros no montante de € 822,67, cujo pagamento ocorreu em 27.12.2017 (cfr. doc. “liq ….”).
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A Requerente apresentou reclamações graciosas contra as liquidações adicionais de IVA e de juros dos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015, as quais foram objecto do processo de RG n.º ……………. referente a liquidações de IVA de 2012 e 2013, que foi indeferido por despacho notificado através do ofício n.º 2018……….com data de 2018-12-21, e do processo de RG n.º ……………., referente a liquidações de IVA de 2013, 2014 e 2015, que foi indeferido por despacho notificado em 2018-12-28 (cfr. os pontos n.ºs 1, 2 e 4 do despacho de indeferimento do recurso hierárquico n.º ……………..constante do PA e a factualidade não controvertida referida no art. 4 da PI).
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Contra as duas decisões de indeferimento das reclamações graciosas, a Requerente apresentou recursos hierárquicos, os quais foram objecto do processo de RH n.º …………….., referente a liquidações de IVA de 2012 e 2013, que foi indeferido por despacho datado de 23-12-2019, notificado em 27/12/2019, e do processo de RH n.º ………., referente a liquidações de IVA de 2013, 2014 e 2015, também notificado em 27/12/2019 (cfr. o despacho de indeferimento do recurso hierárquico n.º ……………..constante do PA e a factualidade não controvertida referida no art. 5 da PI).
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A decisão de indeferimento do processo de RH n.º ……………., referente a liquidações de IVA de 2012 e 2013, sustentou-se na seguinte fundamentação essencial, que se transcreve:
“DA NÃO ACEITAÇÃO DO PROCEDIMENTO SEGUIDO PELA A…, NO QUE RESPEITA À AQUISIÇÃO DE CASCALHO DE OURO
25. No comércio (compra e venda) de artefactos em ouro, podem aplicar-se os seguintes regimes:
- Regime especial aplicável ao ouro para investimento, previsto no Decreto-Lei n.º 362/99, de 16 de setembro;
- Regime especial de tributação dos bens em segunda mão, objetos de arte, de coleção e antiguidades, a que se refere o Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de outubro;
- “Regime especial” (inversão do sujeito passivo, previsto na alínea i) do n.º 1 do art.º 2.º do Código do IVA (CIVA), pela transmissão de bens a que se refere o Anexo E ao CIVA, ambos editados pela Lei n.º 33/2006, de 28 de julho;
- Regime geral de tributação, previsto no CIVA.
26. Em harmonia com o disposto na parte final do n.º 2 do art.º 30.º do Regulamento das Contrastarias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 391/79, de 20 de setembro (entretanto revogado pela Lei n.º 98/2015, de 18 de agosto, que aprova o regime jurídico da ourivesaria e das contrastarias), o “cascalho” é definido como “o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável”.
27. Esta Direção de Serviços tem emitido diversas instruções administrativas, considerando como “cascalho de ouro”: “os objetos de ouro que perderam a sua identidade por terem sido inutilizados de forma irreparável”, que se destinam a ser fundidos, ensaiados, afinados e convertidos em ouro fino, sendo posteriormente integrados na fabricação de novas peças.
28. O Regime Especial Aplicável ao Ouro para Investimento (REOI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99, de 16 de setembro, cujos esclarecimentos sobre a sua aplicação constam do Ofício-Circulado n.º 30014/2000 da Direção de Serviços do IVA (DSIVA), de 13 de janeiro, aplica-se apenas às operações sobre ouro para investimento, cujas especificidades se encontram descritas no art.º 2.º desse diploma legal.
29. Os sujeitos passivos que produzam ouro para investimento, transformem qualquer ouro em ouro para investimento, que forneçam habitualmente ouro para fins industriais no quadro da sua atividade profissional ou os intermediários que atuem em nome e por conta de outrem, nas transmissões de ouro para investimento, podem renunciar à isenção, caso a caso, nas condições referidas no art.º 5.º do citado diploma, devendo a respetiva fatura conter a menção: “IVA – autoliquidação”.
30. Na elaboração do RIT, os SIT, ao descreverem a especificidade do enquadramento fiscal do ouro para investimento, deixaram claro que “se se tratar de ouro sob a forma de matéria-prima, ou produtos semitransformados, com toque igual ou superior a 325 milésimas, o responsável pela liquidação é sempre o adquirente, desde que seja sujeito passivo de imposto.
31. E, conforme se infere dos elementos constantes no processo, as correções meramente aritméticas que estiveram na origem das LA ora recorridas resultaram do facto de a recorrente ter deduzido IVA, sem para tal existir enquadramento legal.
32. Os SIT consideraram que a aceitação das deduções, tendo por base liquidações de IVA sobre cascalho de ouro seria uma deturpação do regime do ouro para investimento, quanto ao conceito de ouro sob a forma de matéria-prima previsto no art.º 10.º desse mesmo diploma.
33. A esse respeito, vide parecer emitido no processo 2018 000 …, de 2018-02-06, da DSIVA: «Quer seja aplicável o regime previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, aditado ao Código do IVA pela Lei n.º 33/2006, de 28/7, em vigor desde 1 de outubro de 2006, ou o sujeito passivo opte pela renúncia à isenção nos termos e condições previstas no REOI, a liquidação e entrega do imposto compete ao adquirente dos bens (inversão do sujeito passivo), pelo que a liquidação do imposto pelo fornecedor é indevida, bem como a consequente dedução desse imposto, efetuada pelo adquirente (Vd. N.º 8 do artigo 19.º do CIVA).»
DA NÃO ACEITAÇÃO DA DEDUÇÃO DE IVA NAS FATURAS DA H…, LDA
34. Face ao mecanismo das deduções do IVA, previsto nos artigos 19.º a 26.º do CIVA, refere-se na alínea a) do n.º 1 do art.º 19.º que, para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzirão ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuarem o imposto que lhes foi faturado na aquisição de bens e serviços por outros sujeitos passivos.
35. Dispõe, no entanto, o n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, que não poderá ser objeto de dedução o imposto que resulte de operação simulada, referindo, ainda, o n.º 4 do mesmo artigo que não poderá, igualmente, deduzir-se o imposto que resulte de operações em que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não entregue nos cofres do Estado o imposto liquidado, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada.
36. Neste caso, estabelece o n.º 1 do art.º 79.º do CIVA que o adquirente dos bens ou serviços que seja um sujeito passivo que exerça de um modo independente e com caráter de habitualidade uma atividade de produção, comércio ou prestação de serviços e não isento, como é o caso da requerente, é solidariamente responsável com o fornecedor pelo pagamento do imposto quando a fatura ou documento equivalente, cuja emissão seja obrigatória nos termos do art.º 29.º do mesmo Código, não tenha sido passada, contenha indicações inexatas quanto ao nome ou endereço das partes intervenientes, à natureza ou à quantidade dos bens transmitidos ou serviços fornecidos, ao preço ou ao montante do imposto devido.
37. Quando resulte imposto dedutível de operações simuladas, ou em que seja simulado o preço, dispõe o n.º 4 do art.º 79.º do CIVA que o adquirente dos serviços, sendo sujeito passivo do imposto ou agindo como tal, é solidariamente responsável pelo pagamento do imposto, com o sujeito passivo que, na fatura ou documento equivalente, figure como fornecedor dos bens ou prestador de serviços, ainda que prove ter pago a totalidade ou parte do imposto (n.º 5 do art.º 79.º do CIVA).
38. No caso em análise, foi demonstrado, fundamentadamente, pelos SIT, que a H…, Lda não possui qualquer estrutura física nem meios humanos para o desenvolvimento de uma atividade e que lhe permitisse efetuar todas as operações mencionadas nas faturas aqui postas em causa.
39. Resultando provada a inexistência de estrutura para o desenvolvimento da atividade, concluíram que as faturas emitidas pela H…, Lda não consubstanciam aquisições reais de bens e que correspondiam apenas a negócios jurídicos simulados, não tendo a requerente, nos autos, logrado fazer qualquer prova em sentido contrário.
40. Deste modo os SIT procederam à correção ao IVA dedutível por concluírem não se terem efetivamente realizado as operações consubstanciadas em determinadas faturas, desconsiderando tais operações porque, face ao disposto no n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, não é conferido direito à dedução do imposto (IVA) que resulte de operação simulada.
41. Importa sublinhar que as alegações e a argumentação esgrimidas no presente RH contra a aplicação de correções meramente aritméticas são, em tudo, idênticas às expendidas anteriormente na RG, verificando-se que não foi carreado para os autos qualquer novo elemento probatório hábil a alterar a decisão recorrida.”.
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A Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral em 25 de março de 2020 (indicação constante do sistema de gestão processual).
III.4.2. Factos não provados
15. Em face da factualidade dada como provada, não se descortina outra matéria que assuma relevância para a resolução do litígio julgar como não provada.
III.4.3. Fundamentação da matéria de facto
16. Cabe agora expor a fundamentação da decisão de facto, relativamente à qual, para além da indicação dos meios de prova que foram decisivos para a formação da convicção do Tribunal, já acima elencados em sede da factualidade provada, importa apresentar as razões que, nos termos da análise crítica desenvolvida sobre as provas produzidas, conduziram o processo lógico e racional na base da decisão.
A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados nos n.ºs 7, 15 e 19 do probatório fundou-se no exame dos documentos juntos aos autos pela Requerente, conforme indicado a respeito de cada um desses pontos, sendo que em relação aos enunciados fácticos constantes dos n.ºs 7 e 15 se atendeu igualmente aos depoimentos testemunhais e às declarações de parte aí mencionadas. Nos mesmos moldes, os factos dados como provados nos n.ºs 17, 18 e 22 resultaram dos documentos constantes do PA ou juntos pela Requerida conforme especificado nesses pontos.
Conferiu-se relevância aos factos invocados no RIT que foram aceites ou não contraditados pela Requerente. Desde que sujeitas a contraditório e não se verificando a sua impugnação, as asserções fácticas contantes do RIT possuem força probatório nos termos do art. 76.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), segundo o qual “as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei” (cfr. ainda o art.º 115.º, n.º 2 do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT) que estabelece que “as informações oficiais só têm força probatória quando devidamente fundamentadas, de acordo com critérios objetivos”). Em consequência, deram-se como provados os factos constantes dos n.ºs 2, 5, 6 e 12 do probatório.
Os factos dados como provados nos pontos n.ºs 16, 20 e 21 foram alegados sustentadamente pela Requerente e mostram-se em consonância com elementos documentais juntos aos autos, designadamente o despacho de indeferimento do recurso hierárquico n.º ……………. constante do PA, nunca tendo sido colocados em questão pela Requerida, o que, por se tratarem de elementos provenientes da própria AT, seria incompreensível que não o tivesse feito, pelo que se julgam provados em conformidade com o art. 110.º, n.º 7 do CPPT e tendo ainda presente o que se pode colher do n.º 2 do art. 74.º da LGT.
Deram-se igualmente como assentes em atenção aos posicionamentos expressos nas peças processuais e no RIT relativamente a matéria de facto, as asserções fácticas reconhecidas, admitidas por acordo ou não controvertidas que são indicadas nos pontos n.ºs 1, 3 e 4 do probatório.
Relativamente aos factos provados nos pontos n.ºs 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, isso resultou, nos termos neles referidos, dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente, C…,D…, E… e F…, e da testemunha arrolada pela Requerida, G…, bem como das declarações de parte do gerente da Requerente, B….
No que concerne às “declarações de parte” do gerente da Requerente (cfr. art. 466.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT), foi-lhes atribuída relevância (cfr. os factos provados n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14 e 15) na medida em que as afirmações produzidas encontraram apoio em outros elementos probatórios, sejam depoimentos testemunhais (como sucedeu em relação aos factos indicados nos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 13 e 14) sejam documentos (como sucedeu designadamente em relação ao facto indicado no n.º 15 em atenção aos documentos de transporte aí referidos). Efetivamente, conforme a jurisprudência tem advertido (cfr. por exemplo, o acórdão da Relação do Porto, de 23.3.2015, proc. n.º 1002/10.4TVPRT.P1 e o acórdão da Relação de Guimarães de 14.9.2017, proc. n.º 167447/09.1YIPRT.G1), quando se limitam a afirmar factos que são favoráveis à própria versão da parte que depõe, designadamente quando se limitam a confirmar o alegado pela parte na peça processual apresentada, não obstante submetidas à livre apreciação do tribunal (n.º 3 do art. 466.º do CPC), tais “declarações de parte” não são, tendencialmente, suficientes só por si para comprovar os factos assim alegados, sendo apropriado a sua corroboração com outros meios de prova, de modo a sustentar razoavelmente uma convicção, já que só assim se assegura a credibilidade do declarado, dada a natural parcialidade e interesse no resultado do processo por banda do depoente.
Especifique-se que os depoimentos das testemunhas foram atendidos para a formação da convicção probatória quanto aos factos dados como provados sob os n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, porquanto se mostraram neutros, objetivos e congruentes, com conhecimento direto dos factos pela sua presença ou intervenção nos mesmos (embora aludindo ao muito tempo entretanto decorrido).
Assim, a testemunha C…, irmão do gerente da H…, I…, declarou: que funcionava como um moço de recados do irmão, a quem este pagava alguma coisa para o auxiliar (tendo negado, interrogado pela Requerida, que trabalhasse para a A…); que o irmão e ele compravam material que revendiam, designadamente à A…, a quem levavam prata, 5kg, 6kgs, algumas vezes 10kgs, e algum ouro em cascalho, que pesavam nas instalações da A… e aí acordavam o preço; que o irmão ou ele passavam as faturas e recebiam o pagamento em cheque, que iam logo levantar ao Banco, até porque precisavam do dinheiro para continuarem a fazer as compras para revenda, utilizando o automóvel para tratar de tudo; que recorriam à fundição do D… para derreter as peças. Esta testemunha confirmou ainda, perante a exibição dos documentos, como sendo sua ou do irmão a letra das faturas constantes do doc. n.º 1 junto à PI, pelo que se julgaram provados os enunciados constantes dos n.ºs 9 e 11 do probatório, sendo que, por outra parte, a testemunha arrolada pela AT, o Inspetor Tributário G…, reconheceu, não obstante o indicado no RIT (cfr. facto provado n.º 17), não ter elementos bastantes para colocar em causa a autoria da caligrafia nas referidas faturas.
A testemunha E…, guarda-nocturno, que trabalhou para a A… entre 2010 e 2013, confirmou as entregas de barras de prata em sacos ou embrulhadas em jornais, que depois eram guardadas num cofre na oficina pelo F…. Também a testemunha F…, ourives, que trabalha na oficina da A… desde 2001, declarou, embora indicando que já foi há muito tempo, que durante um período curto os irmãos I… e C… iam levar objetos de prata às instalações da A… e que, por vezes, ele era chamado para fazer as pesagens na balança da oficina, pois a balança que o gerente tinha no seu gabinete era pequena.
Pelo seu lado, a testemunha D…, industrial de ourivesaria, que possui uma fundição, declarou conhecer os irmãos I… e C…, que sabia que compravam ouro e prata em pequenas quantidades a outras pessoas para revenda, e que, algumas vezes, duas ou três, cedeu-lhes o espaço e o forno das suas instalações para fundirem os metais, que iam depois ensaiar à D. J… em Gondomar. Estas afirmações, que corroboraram as declarações do gerente da Requerente, contribuíram para se julgar provada a factualidade constante dos n.ºs 13 e 14 do probatório.
Esclareça-se, em contrapartida, que o Tribunal não pode dar credibilidade ao teor das declarações do Gerente da H…, I… constantes do auto que se reportou no n.º 18 do probatório.
Previamente, importa começar por lembrar que a força probatória de tal auto de declarações, na decorrência do previsto na alínea b) do art. 55.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (segundo o qual: “A recolha de elementos no âmbito do procedimento de inspeção deve obedecer a critérios objetivos e conter: b) A integral transcrição das declarações, com identificação das pessoas que as profiram e as respetivas funções, sendo as referidas declarações, quando prestadas oralmente, reduzidas a termo”), concerne tão só à materialidade das declarações nele contidas, ou seja, à existência dessas declarações tal como foram prestadas pelo seu autor perante a Inspeção Tributária, e não à sua veracidade ou exatidão, não envolvendo, pois, tal força probatória a correspondência com a realidade dos factos materiais que são invocados.
Deste modo, o Tribunal deu como provado no referido n.º 18 a realização das declarações documentadas no referido auto, mas não o respetivo conteúdo, como resulta dos factos em contrário que se julgaram provados nos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14. Com efeito, quanto à exatidão do declarado, que se subordina à regra da livre apreciação da prova, o Tribunal verificou, desde logo, que a falta de credibilidade destas declarações foi reconhecida pela própria AT quando assinalou no RIT (cfr. n.º 17 do probatório) a sua contradição com factos que se consideraram demonstrados (“Apesar do sócio gerente da H… alegar nada ter transacionado, somos levados a crer que todo este esquema foi desenvolvido com a colaboração do sócio gerente, pois ficou demonstrado que foi o próprio a requisitar o 1.º livro de faturas na tipografia e a levantar ao balcão os cheques emitidos pelos utilizadores, tendo em vista dar credibilidade às faturas”). Mas, sobretudo, as afirmações constantes do auto mostraram-se inteiramente desconformes com os depoimentos testemunhais de C…, D…e Q…, E… e F…, acima descritos (diga-se que a testemunha C… foi questionada sobre as declarações do irmão I…, que desmentiu – “Isso é mentira” – indicando não saber a razão por que o irmão as fez).
17. Exposto o exame crítico das provas que conduziu à convicção do Tribunal quanto à factualidade provada, proceda-se agora à resolução jurídica do litígio em função da matéria fáctica assim apurada.
III.5. Fundamentação de direito
A. Operações tituladas pelas faturas emitidas por H…, Lda
18. A primeira questão que se vai considerar respeita ao vício invocado de erro sobre os pressupostos de facto e de direito atinente à falsidade das faturas referentes a fornecimentos de prata fina e de cascalho de ouro efetuados à Requerente pela fornecedora H…, Lda que fundamenta a correção ao IVA dedutível, com recusa, nos termos do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) do ano de 2012, no valor total de €20.679,41, constante das faturas emitidas pela H…, o que foi mantido pelas subsequentes decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico deduzidos (cfr. factos provados n.ºs 17, 20, 21 e 22).
Importa, então, apreciar se as operações objeto das faturas emitidas pela sociedade H…, Lda no ano de 2012 se devem reputar como simuladas para os efeitos do n.º 3 do art. 19.º do CIVA, que estabelecia (na redação anterior às modificações resultantes do Decreto-Lei n.º 197/2012, de 24 de agosto, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 2013) que: “Não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente”.
Na verdade, se o direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do IVA, por força do método subtrativo indireto, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz ao imposto liquidado nos seus outputs o imposto liquidado nos respetivos inputs, de modo a que “[e]m cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço” (art. 1.º, n.º 2, § 2 da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, dita Diretiva IVA), não confere direito à dedução de IVA, nos termos do citado n.º 3 do art. 19.º do CIVA, o imposto que resulte de operação simulada constante de “fatura falsa”.
19. O objeto do litígio neste ponto cifra-se, pois, na apreciação da materialidade das operações descritas nas faturas emitidas pela sociedade H…, Lda que se referenciam no facto provado n.º 7 e que são reproduzidas no doc. n.º 1 à PI, relativamente às quais a AT considerou existirem “fortes indícios que se trata de faturas que não correspondem a transações reais”, pelo que procedeu a correções ao IVA deduzido, por desconsideração dessas faturas reputadas de falsas e, consequentemente, do IVA nelas contido e deduzido.
É sabido que, segundo jurisprudência constante (cfr., entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19.10.2016, proc. n.º 0511/15 e de 16.11.2016, proc. n.º 0600/15, do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.9.2016, proc. n.º 00356/08.7BEVIS e do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.1.2021, proc. n.º 343/11.8BEALM), com arrimo nos enunciados normativos dos arts. 74.º, n.º 1 e 75.º, n.º 2, als. a) e b) da LGT, nos casos em que se verifiquem indícios sérios e fundados de operações simuladas, portanto, em que são emitidas faturas na forma legal, mas sem correspondência a qualquer realidade, porque as operações que era suposto refletirem não tiveram lugar (“facturas falsas”), à AT, para consubstanciar probatoriamente que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação, cabe apenas demonstrar esses indícios objetivos, sólidos e consistentes, sendo bastante, pois, a prova dos elementos indiciários que traduzam uma probabilidade elevada de as faturas em causa não corresponderem a operações reais, competindo, então, ao sujeito passivo provar que as operações aparentemente simuladas foram efetivamente realizadas, mediante a demonstração da materialidade das operações económicas subjacentes às faturas.
Cite-se, conclusivamente, a síntese confirmada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.2.2019, proc. 01424/05.2BEVIS 0292/18: “a AT, para proceder a correções decorrentes da não aceitação da dedução do IVA mencionado nas faturas relativamente às quais considerou que as transações nelas mencionadas não correspondem à realidade, não tinha de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240º do CCivil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende. Antes lhe bastando provar a factualidade que a levou a não aceitar a respetiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito à dedução do IVA) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente”.
20. Principie-se, então, por analisar se a Requerida comprovou, como lhe competia, a verificação de indícios conducentes a inferência de que às faturas indicadas não subjazem as operações que supostamente implicaram a respetiva emissão.
Conforme resulta do RIT (cfr. facto provado n.º 17), a Requerida fundamentou a sua apreciação de que as faturas não correspondem a transações reais na conjugação dos seguintes factos índice essencialmente respeitantes à sociedade H…:
i) inexistência de instalações para o exercício da atividade declarada, por nada se ter encontrado que indiciasse que no local que foi indicado se desenvolvesse qualquer atividade relacionada com a comercialização de ouro;
ii) a empresa coletou-se para o exercício de atividade de fabrico em 2012/07/11 e logo em 2012/07/17 começou a emitir faturas de venda de metal ouro e prata;
iii) falta de recursos económicos e financeiros da sociedade, constituída com o capital social de apenas €1,00;
iv) a empresa ocultou à AT e ao TOC os valores faturados e de IVA liquidado, dado que, apesar de proceder ao envio das declarações periódicas de IVA, não declarou qualquer valor de vendas nem de IVA liquidado;
v) o sócio gerente da sociedade negou ter emitido em nome da empresa qualquer fatura, tendo igualmente o TOC declarado desconhecer as faturas-recibos em causa;
vi) apesar dos elevados valores dos metais preciosos faturados, ninguém declarou vendas para o sujeito passivo, sendo que junto de afinadores e ensaiadores de metais preciosos não se encontrou qualquer serviço de ensaio e/ou de afinação de ouro prestado à H…;
vii) as faturas-recibos conhecidas apresentam caligrafias diferentes no seu preenchimento, consoante o utilizador;
viii) apurou-se na tipografia que o primeiro livro de faturas-recibo foi requisitado por I… e o segundo livro de faturas-recibo foi requisitado pelo seu irmão C…;
ix) os cheques de pagamento foram levantados à “boca do caixa” por I…, gerente de direito da H…, e pelo seu irmão C…, tendo o gerente da H… declarado que, posteriormente, regressavam à A… e entregavam o numerário a B… ou à sua esposa.
É entendimento consolidado (cfr., por exemplo, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.1.2021, proc. n.º 116/16.1BEALM e de 25.01.2018, proc. n.º 06744/13) que, na recolha probatória e demonstração dos factos indiciários da simulação e da inexistência das operações, a Administração Tributária pode recorrer a elementos advenientes de fiscalização cruzada, obtidos junto de outros contribuintes (indícios externos), não se exigindo, pois, que os dados indiciadores da falsidade das faturas provenham do próprio contribuinte fiscalizado, muito embora se deva procurar apurar junto deste último todos os elementos pertinentes à possível concretização ou não das operações, de modo a verificar se os indícios recolhidos no emitente não são contrariados por meios probatórios no contribuinte (indícios internos) que afinal comprovem a existência das concretas operações tituladas pelas faturas.
Pois bem, na base desta diretriz, este Tribunal considera que a AT cumpriu cabalmente o ónus probatório que lhe competia de demonstrar indícios objetivos suscetíveis de legitimar a conclusão administrativa de que às faturas emitidas pela H… não subjazem as operações nelas indicadas, porquanto:
- esta empresa emitente das faturas não possuía capital social apropriado nem qualquer estrutura empresarial corpórea mínima, sendo destituída de instalações, o que pareceria prima facie necessário para a comercialização do ouro e prata, designadamente para aquisição dos metais e para serviços de fundição, ensaio e afinação, sendo certo, por outro lado, que nenhumas entidades declararam ter prestado serviços ou vendas para com a H… (cfr. o RIT e as citações reproduzidas no facto provado n.º 17; cfr, ainda factos provados n.ºs 5 e 6);
- a H… evidenciou, como entidade fornecedora, um perfil incumpridor das suas obrigações contabilísticas e fiscais (cfr. o RIT e as citações reproduzidas no facto provado n.º 17; cfr. ainda facto provado n.º 6);
- as faturas emitidas não apresentavam todas a mesma caligrafia, o que pode indiciar o seu preenchimento pelo utilizador, o que foi declarado pelo gerente da H… (cfr. o RIT e as citações reproduzidas no facto provado n.º 17, bem como o auto de declarações referido no facto provado n.º 18);
- os cheques emitidos pela Requerente foram todos levantados em numerário junto do balcão e o gerente da H… declarou que esse dinheiro era devolvido ao gerente da Requerente (cfr. o RIT e as citações reproduzidas no facto provado n.º 17, bem como o auto de declarações referido no facto provado n.º 18);
Estes elementos, particularmente num contexto em que o gerente da H… afirmou expressamente (seja lá por que motivos fosse e independentemente da veracidade do declarado) a inexistência de entrega de mercadoria à Requerente, conduzem, efetivamente, à asserção de que a AT recolheu indícios bastantes, mesmo que centrados essencialmente no emitente da faturação, da falsidade das faturas, até porque aquelas declarações do gerente puseram igualmente em causa os termos da emissão dos cheques de pagamento pela Requerente como adquirente dos bens fornecidos. Assim, os factos indicados, apreciados no seu conjunto e vistos à luz das regras da experiência comum, compõem um quadro que envolve a probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas emitidas pela sociedade H… não terem tido lugar, pelo que alicerçam probatoriamente e legitimam a atuação da AT que, baseando-se neles, conseguiu sustentar com consistência o seu juízo sobre a simulação das operações subjacentes às mencionadas faturas e a consequente desconsideração do IVA deduzido.
Daí a conclusão de que, no caso concreto, os indícios recolhidos quanto às faturas emitidas pela H… são suficientes para considerar satisfeito o ónus probatório que, nos moldes acima enunciados no n.º 19 e conforme previsto no art. 74.º da LGT, incidia sobre a AT, pois “a lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente refletem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte” (a citação pertence ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.4.2002, rec. 0102/02).
A demonstração (indiciária) da falsidade das faturas implica a atribuição à Requerente do ónus de provar a materialidade das operações faturadas, de modo que fique concretamente justificado, pela realidade dos fornecimentos, o direito à dedução do IVA.
21. Sucede, precisamente, que se a AT demonstrou factos indiciários bastantes para sustentarem a suspeição fundada sobre a veracidade das faturas emitidas pela H…, a Requerente, no âmbito deste julgamento, como resulta dos factos provados n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15, logrou provar a realidade das operações tituladas pelas faturas que lhe foram emitidas, designadamente por força da prova testemunhal que carreou para os autos, dado que as testemunhas arroladas confirmaram e atestaram a realização efetiva dos fornecimentos, conforme exposto acima em sede de motivação da decisão de facto no n.º 16.
Como patenteiam, na verdade, os factos dados como provados, a Requerente demonstrou:
- que os bens consistentes na prata fina adquirida ingressaram e saíram das instalações da Requerente, tendo entrado na sua disponibilidade e sido vendidos subsequentemente (cfr. n.ºs 7, 8, 10, 11 e 15 do probatório);
- que a origem dos bens fornecidos pela H… foram pessoas que dispunham de pequenas quantidades ou pequenos ajuntadores e lojas, que a fundição e ensaio de prata eram feitas em instalações de terceiros, sendo o seu transporte realizado em automóvel para as instalações da Requerente, onde eram pesados os bens e acertado o preço (cfr. n.ºs 7, 10, 11, 13 e 14 do probatório);
- os fornecimentos efetivaram-se com a sociedade emitente das faturas, e não com qualquer outra entidade, por I…, gerente da H…, e por C… (cfr. n.ºs 8 e 9 do probatório);
- foram fornecidos os bens a que correspondem as faturas que suportam as respetivas transações pelos preços e valores nelas indicadas (cfr. n.ºs 7, 8 e 9 do probatório).
Atenta a prova destes factos, a inexistência de instalações para o exercício da sua atividade pela H… perdeu o seu significado indiciário já que ficou demonstrado que a compra da prata e do ouro pela H… se fazia a pessoas diversificadas, em quantidades não muito volumosas (o fornecimento maior foi de 20kgs), que era transportada no automóvel utilizado pela empresa para as instalações da Requerente, onde era pesada e revendida (factos provados n.ºs 7, 10 e 13). Por outro lado, relativamente a equipamentos de fundição da prata ou de ensaio e afinação, foi dado como provado que a H… recorria a serviços de terceiros para o efeito (facto provado n.º 14). Assim, não seria indispensável para a concretização dos fornecimentos à Requerente pela H… a existência de armazéns ou instalações para movimentar ou transformar os bens.
Depois, se é certo que a factualidade dada como provada no n.º 6 do probatório evidencia que a fornecedora e emitente das faturas H… se caracterizou, no desenvolvimento da sua atividade, por operações assentes em manifesta informalidade, não cumprindo com as suas obrigações declarativas, é sabido que essa realidade, em si mesma, nada implica quanto à inexistência dos fornecimentos de bens.
Também foi afastada a suspeita suscitada no RIT (cfr. facto provado n.º 17) relativa à elaboração das faturas pelo utilizador, pois a testemunha C… asseverou, em face dos documentos, que foram emitidas por ele próprio ou pelo gerente da H…, pertencendo-lhes, pois, a caligrafia de tais faturas (cfr. facto provado n.º 9).
Por fim, os depoimentos testemunhais, bem como as declarações de parte, que mereceram credibilidade, aparentando sinceridade, ao assegurarem a realização efetiva dos fornecimentos e dos pagamentos, ampararam a consistência dos documentos relativos aos meios de pagamento das faturas. É que, se não se desconhece que o “fenómeno da faturação falsa é, muitas vezes, acompanhado pela preocupação em documentar todo o circuito de pagamento através de cheques, com cópias dos documentos emitidos, de forma a que se estabeleça a exata correspondência entre a fatura e o meio de pagamento”, sendo que “este circuito documental não tem a suportá-lo, muitas vezes, o correspondente circuito financeiro ou do dinheiro, tratando-se, por isso, de uma mera aparência de pagamentos e recebimentos” (cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 25.05.2017, proc. 08666/15), no caso, a demonstração da entrega e levantamento dos cheques, ainda que em numerário à “boca do caixa”, não conduziu à conclusão da mera aparência de fornecimentos por os depoimentos testemunhais terem asseverado, de um modo objetivo e fiável, as transações e as entregas de ouro e prata tituladas pelas faturas.
Deste modo, dado que a prova produzida em audiência evidenciou, de modo consistente, que os fornecimentos descritos nas faturas emitidas pela H… tiveram concretização efetiva, há que reputar as transações subjacentes a tais faturas como operações económicas reais.
22. Resulta, assim, da facticidade provada que a Requerente logrou afastar os indícios de sinal contrário recolhidos pela AT, mediante a apresentação de prova bastante de que os fornecimentos reportados nas faturas que lhe foram emitidas em 2012 pela H… tiveram lugar, o que implica a comprovação da factualidade tributária que esteve, nesse âmbito, na base do direito à dedução do IVA nos termos do art. 19.º do CIVA.
A Requerente demonstrou, pois, que adquiriu os bens que constam das faturas e que os mesmos lhe foram fornecidos pelo emitente dessas faturas, o que significa que, tendo feito tal prova, a impugnação tem de proceder neste âmbito.
Dado que, como é sabido, os atos impugnados têm que ser apreciados como foram praticados, com a fundamentação que presidiu à sua formação, não cabe ponderar no âmbito de um processo, como o presente processo arbitral, que é essencialmente de legalidade, se a decisão administrativa poderia basear-se noutros fundamentos que não foram invocados, conforme resulta do RIT (cfr. facto provado n.º 17) em relação à não aceitação da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) de 2012, no valor total de €20.679,41, relativa às faturas emitidas pela empresa H…, Lda.
Em consequência, considera-se procedente a impugnação na parte em que se reporta à correção da não aceitação da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) de 2012, no valor total de €20.679,41, relativa às faturas emitidas pela empresa H…, Lda, que padece assim de erro sobre os pressupostos de facto.
B. Regime da dedução do IVA na aquisição de cascalho de ouro
23. Considerem-se agora as correções na base das liquidações adicionais de IVA que se prendem com a não aceitação pela AT das deduções em IVA relativas à aquisição de “cascalho de ouro” com fundamento em que, ao contrário da sujeição das compras ao regime geral do IVA, com liquidação do imposto pelo vendedor, a que se procedeu no caso (vd. facto provado n.º 4), deveria ter havido lugar à inversão do sujeito passivo (cfr. fundamentação do RIT reportado no facto provado n.º 17).
Para tanto, entendeu a AT que “o cascalho de ouro” deve ser tratado como uma matéria‑prima, em conformidade com o art. 10.º, n.º 1 do Regime especial aplicável ao ouro para investimento (a seguir REOI) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99, de 16.9 (segundo o qual: “Nas transmissões de ouro para investimento em que tenha sido exercida a renúncia à isenção do imposto prevista no artigo 5.º e nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações, com exceção das previstas no artigo 12.º, devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto”).
Pelo seu lado, a Requerente sustenta que o Regime especial aplicável ao ouro para investimento, incluindo a regulação constante do art. 10.º deste Decreto-Lei, não tem aplicação às operações de compra e venda de “cascalho de ouro”, pelo que o enquadramento jurídico-fiscal das transmissões onerosas de “cascalho de ouro” é a sua sujeição ao regime geral do IVA, com liquidação do imposto pelo vendedor. Para além disso, alega ainda a Requerente que este enquadramento se impõe também em atenção aos princípios da boa fé e da confiança que devem pautar a atuação da Administração Tributária, pois foi adotado na Ficha Doutrinária n.º 1208, de 10/11/2010, cuja orientação a Requerente procurou observar nas compras de “cascalho de ouro” que fez.
24. A questão primária que neste âmbito se impõe resolver prende-se com apreciar se, como esta na base das liquidações adicionais impugnadas, nas operações de aquisição de “cascalho de ouro” que aqui se encontram em causa (cfr. o facto provado n.º 3) a liquidação de IVA é devida pelo adquirente, mediante a aplicação da regra da inversão do sujeito passivo.
O litígio entre as partes a este respeito centra-se, desde logo, na própria interpretação da doutrina administrativa emanada da AT, com base na qual a Requerente sustenta a infração dos princípios da boa fé e da confiança pela AT. Efetivamente, como se viu (vd. supra n.ºs 7 e 23), a Requerente invoca a Ficha Doutrinária com o número de processo 1208, de 10/11/2010, sobre “Cascalho de Ouro – RB em 2.ª mão – Ouro para Investimento”, da qual resultaria, na sua leitura, que o regime especial do ouro para investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99 de 16-09, não tem aplicação nas operações de compra e venda de cascalho de ouro, pelo que estas operações estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI, leitura esta que é questionada pela Requerida. Releva, pois, para a resolução do presente litígio verificar as orientações que são apresentadas na referida Ficha Doutrinária.
No pedido de informação vinculativa subjacente a tal Ficha questionava-se, relativamente à “compra e venda de artigos de ouro usado, vulgarmente designado de “cascalho de ouro”, qual o regime de IVA, por um lado, quando um empresário “vende o “cascalho de ouro” a um sujeito passivo de IVA, no estado em que o comprou” e, por outro lado, quando, “após comprar o “cascalho de ouro”, leva-o a uma empresa para o derreter em ouro fino, para ser usado novamente na produção de artefactos, sendo-lhe faturada a respetiva prestação de serviços”.
Ora, nesta Ficha Doutrinária n.º 1208, depois de se assinalar que: “De harmonia com o n.º 2 do artigo 30º do Regulamento das Contrastarias anexo ao Decreto-Lei n.º 391/79, de 20 de Setembro, o cascalho é definido como «o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável»” (n.º 2), sustenta-se, em primeiro lugar, quanto ao “Regime especial aplicável ao ouro para investimento - Dec-Lei n.º 362/99, de 16 de Setembro”, que: “O "regime especial aplicável ao ouro para investimento", aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99, de 16 de Setembro, o qual foi objeto de esclarecimentos para a sua correta e efetiva aplicação, através do Ofício-Circulado 30014/00, de 13/01 - Direção de Serviços do IVA, aplica-se apenas às operações sobre ouro para investimento, considerando-se como tal o ouro descrito no art.º 2º do referido regime” (n.º 3) e que: “O "cascalho de ouro" (objetos de ouro que perderam a sua identidade por terem sido inutilizados de forma irreparável), pela sua própria definição, não se considera ouro para investimento tal como vem definido no nº 1 do artº 2º do regime especial” pelo que: “o Regime especial aplicável ao ouro para investimento aprovado pelo Dec-Lei nº 362/99, de 16 de Setembro, não tem aplicação nas operações de compra e venda de "cascalho de ouro"” e assim “as operações de compra e venda de ‘cascalho de ouro’, dado não se tratar de ouro para investimento, estão sujeitas a tributação, de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI” (n.ºs 5 e 6).
Em segundo lugar, no que concerne ao “Regime especial dos bens em segunda mão, regulamentado pelo D.L. nº 199/96, de 18 de Outubro”, esta Ficha Doutrinária observa que: “Atento o conceito de "Bens em segunda mão", definido no Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro, considerando como tal, "Os bens móveis suscetíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação ...", e, por outro lado, a definição de cascalho como «o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável», afigura-se que aquele regime especial de bens em segunda mão, não tem aplicação na transmissão de "cascalho de ouro"” e “Assim, a sua transmissão fica sujeita a tributação, de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI” (n.º 14).
No que concerne ao “ouro fino”, entende-se nesta Ficha (n.º 15) que: “Relativamente à venda de "ouro fino" (cascalho de ouro, derretido em ouro fino), para ser usado novamente na produção de artefactos, a produtores, sujeitos passivos de IVA, terá que se atender ao que vem referido no ponto II, do Ofício-Circulado 30014/00, de 13/01 - da Direção de Serviços do IVA, o qual veio clarificar o regime especial aplicável ao ouro para investimento: 15.1. «As transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro que não seja ouro para investimento estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI. 15.2. Todavia, nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima (barra, placa, granalha, solda, etc) ou de produtos semitransformados (por ex. fio, fita, tubo que não sejam artefactos de ouro) de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações (com exceção das previstas no artigo 12º), devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto. 15.3. O adquirente deverá proceder à liquidação e dedução simultânea na declaração periódica de imposto. Saliente-se que a dedução deverá ser efetuada de acordo com as regras dos artigos 19º a 25º do Código do IVA. 15.4. O fornecedor dos bens abrangidos por este preceito deve, para cumprimento do disposto no artigo 36º, nº 5, e) do Código do IVA, incluir na fatura emitida a menção " IVA devido pelo adquirente"».
Assinale-se, em complemento, que o Ofício-Circulado 30014/00, de 13/01/2000, da Direção de Serviços do IVA, relativo à clarificação do regime especial aplicável ao ouro para investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 362/99, de 16 de Setembro, que é invocado nesta Ficha Doutrinária n.º 1208, no que concerne ao “ouro que não seja ouro para investimento”, consigna o seguinte:
“As transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro que não seja ouro para investimento estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI.
Todavia, nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima (barra, placa, granalha, solda, etc) ou de produtos semitransformados (por ex. fio, fita, tubo que não sejam artefactos de ouro) de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações (com exceção das previstas no artigo 12º), devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto.
O adquirente deverá proceder à liquidação e dedução simultânea na declaração periódica de imposto. Saliente-se que a dedução deverá ser efetuada de acordo com as regras dos artigos 19º a 25º do Código do IVA.
O fornecedor dos bens abrangidos por este preceito deve, para cumprimento do disposto no artigo 35º, nº 5, e) do Código do IVA, incluir na fatura emitida a menção "IVA devido pelo adquirente"”.
Pois bem, em face dos dizeres da Ficha Doutrinária n.º 1208, bem como do Ofício-Circulado n.º 30014/00, para que aquela Ficha remete, não é adequado concluir, como pretende a Requerente, que perante operações atinentes ao “cascalho de ouro”, caracterizado como “o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável”, a AT firmou a orientação de que nunca se aplica a tais operações o regime da inversão do sujeito passivo, subordinando-se sempre ao regime geral do IVA com liquidação do imposto pelo fornecedor.
É que, como se observa das transcrições antecedentes, a AT pronunciou-se nessa informação sobre a qualificação de duas operações distintas, a propósito das quais emprega, em ambos os casos, a expressão “cascalho de ouro” (vd. n.ºs 6 e 14, por um lado, em que se fala em “cascalho de ouro”, e n.º 15, por outro lado, em que se fala em “cascalho de ouro, derretido em ouro fino”): numa dessas operações, o cascalho de ouro é vendido “no estado em que o comprou” e, na outra, o cascalho de ouro é comprado e derretido “em ouro fino, para ser usado novamente na produção de artefactos” – ora, só para o primeiro caso a Ficha Doutrinária n.º 1208 declara a sua sujeição a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI, pois para a segunda situação de “cascalho de ouro, derretido em ouro fino” explicitamente se reporta às “transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima (barra, placa, granalha, solda, etc) ou de produtos semitransformados (por ex. fio, fita, tubo que não sejam artefactos de ouro) de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações (com exceção das previstas no artigo 12º), devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto”.
Precisamente, como a seguir se explicita em sede de apreciação do enquadramento jurídico, é essencial verificar, para efeitos da qualificação jurídico-tributária, se a operação de aquisição de cascalho de ouro é realizada para revenda dos artefactos, ainda que inutilizados, no estado em que se encontram (designadamente em razão do valor artístico que ainda mantenham) ou em atenção ao seu teor de ouro para ser aproveitado na produção de novos artefactos de ourivesaria.
Em consequência, não se pode acolher a leitura da Requerente de que nesta Ficha Doutrinária n.º 1208 ficou excluída a consideração do cascalho de ouro e das transações respetivas como transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima, com a consequência de que nunca caberia aplicar a tais transações o regime da inversão do sujeito passivo nos termos do art. 10.º do REOI.
Aliás, uma tal conclusão sobre a posição da AT sempre seria problemática em face de outras manifestações da doutrina administrativa, que também seriam suscetíveis de consideração pela Requerente.
Assim, registe-se que na Ficha Doutrinária com a referência A100 2006107 – despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Director-Geral, em 21-01-2009, depois de se referir que:
“2. O Decreto-Lei n° 362/99, de 16/09, cuja entrada em vigor ocorreu em 1 de Janeiro de 2000, procedeu à aprovação do regime especial aplicável ao ouro para investimento, transpondo para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva 98/80/CE, do Conselho, de 12 de Outubro de 1998.
3. Através do Ofício-Circulado n° 30 014, de 2000/01/13, desta Direção de Serviços, foram dadas instruções administrativas no sentido de clarificar a aplicação do referido regime especial.
4. Assim, este regime é exclusivamente destinado às operações sobre ouro para investimento, sendo este considerado como tal, nos termos do n° 1 do art° 2° do Regime, se cumulativamente reunir as seguintes condições:
- Se apresente sob a forma de barra ou de placa, com pesos aceites pelos mercados de ouro;
- Tenha um toque igual ou superior a 995 milésimos, seja representado ou não por títulos;
- As barras ou placas sejam de peso superior a 1 g.
5. De harmonia com o n° 1 do art° 3° do Regime, "Estão isentas de imposto sobre o valor acrescentado as transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro para investimento" como tal definido no art° 2° do Regime, qualquer que seja o destino que lhe seja dado ou a natureza do adquirente (sujeito passivo ou particular).”,
esclarece-se o seguinte:
“14. Quanto às transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro que não seja ouro para investimento, as mesmas estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI.
15. Porém, na segunda parte do n° 1 do art° 10° do Regime especial aplicável ao ouro para investimento, estabelece-se que nas transmissões de ouro:
- sob a forma de matéria-prima (barra, placa, granalha, solda, etc.) ou de produtos semitransformados (por ex. fio, fita, tubo que não sejam artefactos de ouro);
- com um toque igual ou superior a 325 milésimos;
o devedor do imposto é o adquirente, desde que sujeito passivo de IVA, com direito à dedução total ou parcial do imposto, que deverá proceder à liquidação e dedução simultânea na declaração periódica de imposto, não constituindo o IVA qualquer custo financeiro para estes sujeitos passivos.
16. No que respeita aos artefactos de ouro as suas transmissões, aquisições intracomunitárias e importações estão sujeitas a IVA nos termos gerais previstos no Código do IVA e no RITI.
17. Do exposto, conclui-se:
- As transmissões, aquisições intracomunitárias e importações de ouro que não seja ouro para investimento, estão sujeitas a tributação de acordo com as regras do Código do IVA e do RITI;
- O regime especial aplicável ao ouro para investimento (Decreto-Lei n° 362/99 de 16/09), só é aplicável ao ouro que cumulativamente apresente as condições do n° 1 do art° 2° do Regime, sendo as suas transmissões, aquisições intracomunitárias e importações isentas, qualquer que seja o destino que lhe seja dado ou a natureza do adquirente (sujeito passivo ou particular);
- Os sujeitos passivos que produzam ouro para investimento, transformem qualquer ouro em ouro para investimento, forneçam habitualmente ouro para fins industriais no quadro da sua atividade profissional, podem renunciar à isenção anteriormente referida desde que o adquirente seja um sujeito passivo do IVA dos mencionados na alínea a) do n° 1 do artigo 2° do Código do IVA ou um sujeito passivo registado para efeitos de IVA noutro Estado membro ou ainda um adquirente de um país não pertencente à Comunidade Europeia;
- Ainda que sujeitas à tributação pelas regras gerais, as transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados (que não sejam artefactos), de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações (com exceção das previstas no art° 12° do Regime - registo de operações), devem ser cumpridas pelo adquirente, desde que sujeito passivo que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto”.
Igualmente pertinente é a Ficha Doutrinária respeitante ao Processo n.º 3001, com despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Diretor-Geral, em 2012-03-30, onde se pode ler:
“a venda de ouro em placa só será de enquadrar no referido Regime Especial caso se trate de ouro que caiba nos limites conceptuais do artº 2º do referido Regime Especial.
8. Estabelece o artº 10º do referido regime especial, sob a epígrafe "Cumprimento da obrigação" que, "Nas transmissões de ouro para investimento em que tenha sido exercida a renúncia à isenção do imposto prevista no artigo 5º e nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações, com exceção das previstas no artigo 12.º, devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto".
9. Com este normativo pretende-se que seja o adquirente (sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto) a cumprir a obrigação, ou seja, a efetuar o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações, com exceção das previstas no artigo 12.º.
10. Note-se, porém, que nos termos estabelecidos no artº 10º, o pagamento do imposto pelo adquirente só se verifica, se for efetuada a renúncia à isenção do imposto prevista no artigo 5º, no caso de se tratar de transmissões de ouro para investimento e no caso de se tratar de transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos”.
Conclui-se, pois, destas informações administrativas que, fora do campo do ouro para investimento, tal como definido no art. 2.º, n.º 1 do REOI, as transações de bens ou objectos de ouro podem estar sujeitas a tributação de acordo com as regras gerais do Código do IVA e do RITI ou ao regime especial de inversão do sujeito passivo, regime este que tem aplicação, por força do art. 10.º do REOI, às transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos de toque igual ou superior a 325 milésimos.
25. Em face do que se vem de apreciar, que evidencia que não se pode asseverar que exista uma posição administrativa indubitável pela qual as transações incidentes sobre “cascalho de ouro” não podem constituir “transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima”, não tem procedência a alegação da Requerente de que os atos tributários sindicados infringem os princípios da boa fé e da confiança que devem pautar a atuação da Administração Tributária, por se mostrarem desconformes com a doutrina expendida na Ficha Doutrinária n.º 1208, de 10/11/2010.
Na verdade, para se poder consubstanciar a infração dos princípios da boa fé e da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica (cfr. art. 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e arts. 55.º e 59.º da LGT), enquanto princípios ligados à boa administração, seria necessário apresentar um critério administrativo que não foi observado e a prática de um ato em sentido contrário à orientação administrativa firmada, o que acima se rejeitou, pelo que falece base para configurar no caso uma situação de confiança e para a criação de expectativas legítimas (cfr. art. 10.º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo) relativamente ao tratamento tributário da situação particular em apreço.
Acrescente-se, por outra parte, que a Ficha Doutrinária n.º 1208, de 10/11/2010 não constitui uma orientação genérica nos termos e para os efeitos do art. 68.º-A da LGT (cfr. também art. 59.º, n.º 3, al. b) da LGT), mas trata-se de uma informação vinculativa, publicada nos termos do n.º 17 do art. 68.º da LGT, a qual não foi emitida em relação à situação fiscal individualizada da Requerente (n.º 1 do art. 68.º da LGT), não possuindo, assim, à partida, qualquer eventual efeito vinculativo para o caso sub judice (cfr. art. 68.º, n.º 14 da LGT), pois, como se escreve, com rigor, nos acórdãos do TCA Sul de 10.07.2014, proc. n.º 07558/14 e do TCA Norte de 13.10.2016, proc. n.º 00089/11.7BEBRG e de 10.5.2018, proc. n.º 00101/2002.TFPRT.21, “A Administração Tributária, com a emissão de uma informação vinculativa, não fica obrigada ao seu cumprimento em relação a todas as situações que se lhe colocam dentro do objeto dessa mesma orientação. Pelo contrário, a vinculação da Administração Tributária ao teor das mesmas é uma vinculação inter-partes, pois somente em relação ao caso em concreto objeto do pedido a Fazenda Pública não pode proceder em sentido diverso da informação prestada, ressalvado o cumprimento de decisão judicial”.
Não procede, em suma, a alegação da Requerente (arts. 22 e 23 da PI) de que os atos tributários sindicados, e o entendimento a eles subjacentes de que o cascalho de ouro deve ser tratado como transmissão de ouro sob a forma de matéria-prima, viola os princípios da boa fé e da confiança por inobservância da orientação exposta na Ficha Doutrinária n.º 1208, de 10/11/2010.
26. Muito embora a argumentação apresentada pela Requerente quanto à questão da dedutibilidade do IVA liquidado nas faturas de aquisição de cascalho de ouro se centre essencialmente na questão da violação dos princípios da boa fé e da confiança em face da Ficha Doutrinária n.º 1208, acima decidida, o julgamento do presente litígio não prescinde da resolução da questão substantiva da qualificação das operações de aquisição de cascalho de ouro em causa nestes autos (cfr. factos provados n.ºs 3 e 4).
O primeiro ponto que, a este propósito, se deve destacar prende-se com assinalar que se trata aqui de uma questão que não pode ser resolvida na base do simples uso da expressão “cascalho de ouro”, que é comumente usada para designar artigos de ouro usado[3], mas tem que ser examinada atentando em concreto às operações de alienação de bens, objetos, peças ou artefactos de ouro (artigos com metais preciosos[4]) que foram realizadas, considerando os seus termos, realidade económica e destino material. É desta apreciação que resultará a qualificação no conceito adequado de uma certa previsão legal, o que determinará a competente estatuição.
Na verdade, como escreve CLOTILDE CELORICO PALMA, “A tributação das transações de ouro em IVA. Poderão os artefactos em ouro ser sucata? ” in ROA, ano 79 (Jan/Jun 2019), p. 78[5]: “Quando estamos perante transações de ouro, consoante a qualificação do objeto, peça ou artefacto, e as características da operação, poderemos aplicar quatro regimes em IVA a saber: a) Regime especial aplicável ao ouro para investimento (Decreto-Lei n.º 362/99, de 16 de Setembro); b) Regime especial de tributação dos bens em segunda mão previsto no Decreto-Lei n.º 199/96 de 18 de Outubro; c) Regime especial de inversão do sujeito passivo pela transmissão de bens a que se refere o Anexo E do Código do IVA (CIVA), de acordo com o previsto na alínea i) do n.º 1 do art. 2.º do CIVA; d) Regime geral de tributação em IVA”.
Ora, em atenção à natureza do objeto e às características da operação, as transações de objetos de ouro podem ser imediatamente categorizadas em atenção à transformação a que tais objetos podem ser sujeitos em três espécies: i) peças de ouro revendidas no seu estado original, sem transformação; ii) peças de ouro revendidas como artefactos transformados, mas para servir a sua função original, designadamente como joias ou objetos de ornamentação; iii) peças de ouros revendidas em atenção ao seu teor de ouro para transformação e fabrico de novos objetos como artefactos de metal precioso ou artefactos de ourivesaria[6].
Pois bem, não havendo controvérsia nos autos entre as partes sobre a inaplicabilidade do regime do ouro para investimento, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 362/99, bem como sobre a inaplicabilidade do regime especial dos bens em segunda mão, previsto no Decreto-Lei n.º 199/96, de 18.10, a única questão que se tem de elucidar prende-se com saber, como já se referiu, se a operações de aquisição de “cascalho de ouro” em causa nos autos se reconduzem a transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados, caso em que se aplica o mecanismo de autoliquidação ou inversão do sujeito passivo, ou se são tão só transmissões de artefactos de ouro como tal, a que não corresponde qualquer regime particular, pelo que se aplicam as regras gerais de tributação em IVA.
27. O conceito de “transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima” que consta do art. 10.º do REOI não possui direta definição na lei.
Na sua base está a Diretiva 98/80/CE do Conselho de 12 de Outubro de 1998 que completa o sistema geral de imposto sobre o valor acrescentado e altera a Diretiva 77/388/CEE - Regime especial aplicável ao ouro para investimento (entretanto revogada pela Diretiva 2006/112/CE) que se reportava ao ouro utilizado como matéria-prima industrial e que assumia que “no que se refere à maior parte das entregas de ouro com um toque superior a determinado valor, a aplicação do pagamento do imposto pelo cliente poderá contribuir para prevenir a fraude fiscal e, ao mesmo tempo, atenuar os encargos financeiros das operações”, tendo introduzido o art. 26.º-B , em cujo Ponto F se estabeleceu o seguinte: “Em derrogação do nº 1, alínea a), do artigo 21º, alterado pelo artigo 28º G, quando, no caso de entregas de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semi-transformados, de toque igual ou superior a 325 milésimos, ou de entregas de ouro para investimento, tiver sido exercida uma das opções referidas no ponto C do presente artigo, os Estados-membros podem designar o comprador como o devedor do imposto, de acordo com procedimentos e condições por eles estabelecidos”.
Esta regra passou depois para a Diretiva IVA no art. 198.º que dispunha o seguinte nos n.ºs 2 e 3:
“2. Quando for efetuada uma entrega de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semi-transformados, de toque igual ou superior a 325 milésimos, ou uma entrega de ouro para investimento, tal como definido no n.º 1 do artigo 344.º, por um sujeito passivo que tenha exercido uma das opções previstas nos artigos 348.º, 349.º e 350.º, os Estados-Membros podem designar o adquirente como devedor do imposto.
3. Os Estados-Membros fixam os procedimentos e as condições de aplicação dos n.ºs 1 e 2”.
Justamente, como se indicou no acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de maio de 2016, Envirotec, C-550/14, n.ºs 26 e 27, “nem o artigo 198.° da diretiva IVA, nem outras disposições da mesma diretiva, nem a Diretiva 98/80, que está na origem do conteúdo deste artigo 198.°, n.° 2, precisam o que se deve entender pelo conceito de «ouro sob a forma de matéria‑prima ou de produtos semitransformados, de toque igual ou superior a 325 milésimos»”, pelo que “Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte” e “a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito da União não fornece nenhuma definição deve fazer‑se tendo em atenção o contexto geral em que são utilizados e em conformidade com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em causa”.
28. Pois bem, para a compreensão deste conceito de ouro sob a forma de matéria-prima dispomos de indicações relevantes da jurisprudência europeia.
Primeiramente, importa atender à importante característica assinalada pelo Advogado-Geral MICHAL BOBEK, nas conclusões apresentadas no processo C-154/17, SIA “E LATS”, n.º 49, aos objetos fabricados com ou que contenham metais preciosos ou pedras preciosas: “A natureza dos objetos fabricados com metais preciosos ou pedras preciosas ou que os contenham é específica. A sua função (e o seu valor) é duplo. Dependendo da qualidade e do estado de cada bem específico, este constituirá não apenas um objeto especificamente elaborado ou desenhado dotado de uma certa funcionalidade (valor funcional), mas possuirá, ainda, o valor intrínseco que a sociedade atribui aos metais preciosos ou pedras preciosas (o valor intrínseco material)”.
Ora, quando estes objetos são comercializados unicamente devido aos materiais preciosos que contêm, portanto, em atenção não à funcionalidade inicial do objeto concreto, mas do “valor armazenado” que é independente de tal funcionalidade, como observa o Advogado-Geral MICHAL BOBEK, nas suas indicadas conclusões, n.ºs 54 e 55, tais bens não se revendem pela sua funcionalidade, mas pelo valor intrínseco da matéria prima de que se compõem, pelo que tais bens não pertencem ao ciclo económico próprio dos bens em segunda mão, mas entram num novo ciclo económico de matérias primas, “servindo efetivamente como matéria para a elaboração de novos artigos fabricados com materiais preciosos ou pedras preciosas”. O Tribunal de Justiça, no acórdão proferido em 11 de julho de 2018 neste processo C-154/17, SIA “E LATS” acolheu esta apreciação (n.ºs 33 e 34) assinalando a relevância da distinção entre um objeto composto por metais preciosos ou pedras preciosas com uma funcionalidade diferente da que é inerente aos materiais que o compõem, que a conserva e pode ser reutilizado, no estado em que se encontra ou após reparação, e um objeto que não tem outra funcionalidade senão a que é inerente ao material que o compõe ou que não é capaz de ter outra funcionalidade, sendo que neste último caso o objeto em questão não se mantém no ciclo económico que era o seu e só servirá para ser transformado num novo objeto que terá um novo ciclo económico.
Assim, nestas situações em que o bem perdeu a sua funcionalidade original ou no contexto da operação em causa tal funcionalidade carece de relevância, os artigos com metal precioso são transmitidos como matéria para a fabricação de novos artigos de ourivesaria. Nestes casos, a aquisição dos artigos de ouro não pressupõe que tais bens vão desempenhar uma função do tipo da originária, mas diversamente visa-se a extração dos metais precisos neles contidos para sua utilização como matéria-prima para a elaboração de novos artefactos de ourivesaria e, por isso, o preço destes bens é fixado em função do preço atual de mercado do metal precioso, ou seja, o preço do artigo é afinal o preço do metal precioso de que se compõe.
Precisamente, no acórdão Envirotec, já referido, depois de se observar que (n.º 29): “No que se refere, em primeiro lugar, à redação do conceito de «ouro sob a forma de matéria‑prima ou de produtos semitransformados, de toque igual ou superior a 325 milésimos», (...) há que observar, antes de mais, que, segundo as versões linguísticas do artigo 198.°, n.º 2, da diretiva IVA, os termos «ouro sob a forma de matéria‑prima» são suscetíveis de abranger o ouro em estado bruto, o ouro como metal puro ou ainda qualquer material parcialmente composto por ouro” e que (n.º 38): “nada na diretiva IVA indica que o mecanismo de autoliquidação previsto no artigo 199.°, n.º 1, alínea d), da mesma diretiva seja necessariamente exclusivo do mecanismo previsto no seu artigo 198.°, n.º 2, na medida em esta última disposição pode ser concebida como uma lex specialis relativa aos produtos específicos aí referidos”, atribui-se particular relevância ao objetivo que a regulação prossegue, nos seguintes termos (n.ºs 40 e 41): “decorre do considerando 42 da diretiva IVA que os regimes de autoliquidação que os Estados‑Membros podem instituir em certos setores ou no momento de certos tipos de transações se destinam a simplificar as regras e a combater a fraude e evasão fiscais. Este mesmo objetivo encontra expressão no considerando 55 da diretiva IVA, que a este respeito faz eco do oitavo considerando da Diretiva 98/80 e segundo o qual, «[t]endo em vista impedir a fraude fiscal e, ao mesmo tempo, atenuar os encargos financeiros associados às entregas de ouro com um toque superior a determinado valor, justifica‑se autorizar os Estados‑Membros a designar o adquirente como devedor do imposto»”, sendo que “o que aumenta o risco de fraude fiscal e, consequentemente, justifica a aplicação de um mecanismo de autoliquidação para as entregas de certos bens, entre eles, o ouro, é o seu elevado valor de mercado em relação ao seu tamanho, que os torna mais fáceis de transportar. No que se refere ao comércio do ouro, e caso não se trate de um produto acabado, como uma joia, é o teor de ouro do bem em causa que determina o seu valor. Por conseguinte, o risco de fraude fiscal é tanto mais importante quanto mais elevado for o teor de ouro desse bem”.
Refira-se que nas conclusões apresentadas em 17.12.2015 pela Advogada-Geral neste mesmo processo, para que se remete neste acórdão do Tribunal de Justiça, se afirmara precisamente que (n.º s 50 e 51): “Tendo por base este objetivo, a regulamentação do artigo 198.°, n.º 2, da Diretiva IVA (...) deve ser interpretada de uma forma que tenha em consideração os riscos particulares associados, do ponto de vista do legislador da União, ao comércio de ouro a respeito de possíveis fraudes de IVA. Como também o considerando 55 realça, este risco está relacionado de forma decisiva com o toque de ouro de um objeto. Caso este seja elevado, verifica‑se também uma relação vulnerável a fraudes entre o tamanho do objeto e o seu valor de mercado” e “Por conseguinte, não há, em primeiro lugar, motivos para incluir no conceito de ouro sob a forma de matéria‑prima na aceção do artigo 198.°, n.º 2, da Diretiva IVA apenas o ouro fino quando a disposição abrange, sem margem para dúvida, simultaneamente pelo menos produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos. Em segundo lugar, esta exigência em relação ao toque mínimo não deve dizer apenas respeito a produtos semitransformados, mas também a ouro sob a forma de matéria‑prima, para apenas abranger material de valor elevado. Por fim, em terceiro lugar, não é conciliável com a função desta disposição diferenciar, no caso de ouro sob a forma de matéria‑prima, entre ligas «frescas» e «resíduos» de ouro, na medida em que, em virtude do toque decisivo para o valor, a vulnerabilidade a fraudes de negócios com objetos que contêm ouro não dependerá deste facto”.
Entende-se, então, nestas conclusões apresentadas no processo Envirotec, nos termos de uma interpretação teleológica, que (n.º 59): “De acordo com o sentido e a finalidade do artigo 198.°, n.º 2, da Diretiva IVA, o conceito de «ouro sob a forma de matéria‑prima» abrange, neste sentido, qualquer material que se destina a uma transformação posterior, e não ao consumo final, mas que, no entanto, não constitui qualquer produto semitransformado, desde que apresente um toque de ouro igual ou superior a 325 milésimos”, mais se esclarecendo (n.º 63), de “acordo com o sentido comum imanente aos conceitos de ouro sob a forma de matéria‑prima” que: “«ouro sob a forma de matéria‑prima» designa objetos em que apenas o ouro contido — independentemente da forma que apresenta em cada caso — é relevante para o processo de produção seguinte”.
29. Ora, em face destas indicações que se colhem da jurisprudência europeia, não se pode deixar de ajuizar que, quando os artigos de ouro usados que se encontram inutilizados – o “cascalho de ouro” – são vendidos como materiais para extração do ouro, de modo a ser utilizado na elaboração de novos artefactos de ourivesaria, configuram-se, para os efeitos do art. 10.º do REOI e em atenção às exigências de prevenção da fraude fiscal e de atenuação dos encargos financeiros associados às entregas de ouro, transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima.
Assim, quando nos termos de uma avaliação objetiva, apreciando a finalidade da operação como a percecionaria um observador independente tendo em conta as suas circunstâncias objetivas (para o que é particularmente significativo o facto de o método de avaliação dos objetos ser o seu teor de ouro que determina o seu preço de mercado), se verifica que as peças ou objetos de ouro são comercializadas devido aos materiais preciosos que contêm, para o seu aproveitamento como matéria-prima para a fabricação de novos artefactos de ouro, impõe-se a qualificação das transações como transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima.
Como acima se referiu, a aquisição, nestes casos, dos artigos de ouro usados não pressupõe o desempenho de uma função como a originária, mas dirige-se à extração dos metais precisos neles contidos para sua utilização como matéria-prima para a elaboração de novos artefactos de ourivesaria, sendo, nessa medida, o preço fixado em função do valor atual de mercado do metal precioso.
30. Conforme resulta dos factos provados (n.º 3; cfr também n.º 11), foram estas as espécies de transações desenvolvidas pela Requerente que se encontram em apreciação nesta sede: a Requerente, no âmbito da sua atividade, adquiriu cascalho de ouro, portanto ouro em segunda mão, habitualmente comprado a particulares por empresas de recolha de ouro usado, que o vendem seguidamente à Requerente, a qual, em seguida, manda derreter e afinar o ouro e passa utilizá-lo como matéria prima para a sua atividade de ourives.
Mostra-se, então, fundada a apreciação constante do RIT (cfr. facto provado n.º 17) de que “sendo o cascalho de ouro objetos de ouro que perderam a sua identidade por terem sido inutilizados de forma irreparável [De acordo com o n.º 2 do art.º 30.º do Regulamento das Contrastarias, entretanto revogado mas em vigor à data dos factos] e, como se afere no caso em concreto da A…, ter sido esse mesmo cascalho, fundido, ensaiado e afinado, e convertido em ouro fino que posteriormente é integrado na fabricação de novos artefactos, constata-se que esse mesmo cascalho de ouro mais não é que uma matéria-prima”.
Decorre, pois, daqui que as operações em causa consubstanciam transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima, pelo que, conforme estabelece o art. 10.º do REOI, segundo o qual “nas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima ou de produtos semitransformados de toque igual ou superior a 325 milésimos, o pagamento do imposto e as demais obrigações decorrentes dessas operações, com exceção das previstas no artigo 12.º, devem ser cumpridas pelo adquirente quando este seja um sujeito passivo dos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha direito à dedução total ou parcial do imposto”, a liquidação do IVA era devida pelo adquirente, a aqui Requerente, cabendo aplicar a regra da inversão do sujeito passivo assim estatuída.
Nesta situação, como se escreveu no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 21.12.2017, proc. n.º 00381/12, o “Impugnante não tem, neste caso, qualquer direito à dedução do IVA mencionado pelo fornecedor porque a liquidação de imposto que lhe confere o direito à dedução era a que deveria ter efetuado e não a que o fornecedor (indevidamente) mencionou na fatura e cujo valor, aliás, também não entregou nos cofres do Estado”.
Isto posto, e não sendo imputados pela Requerente quaisquer outros vícios de violação de lei quanto à correção respeitante à omissão pela Requerente da liquidação do imposto pelas aquisições de “cascalho de ouro” nos termos da regra da inversão do sujeito passivo (reverse charge) estabelecida pelo art. 10.º do REOI, impõe-se julgar improcedente, neste âmbito, o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se nesta parte as liquidações e subsequentes atos tributários sindicados.
C. Devolução dos montantes pagos; juros indemnizatórios; liquidação de juros compensatórios
31. Peticiona a Requerente a devolução das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios à taxa legal desde a data de pagamento até integral reembolso.
Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
De igual modo, o artigo 100.º da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Prescreve, aliás, o art. 24.º, n.º 5 do RJAT que é devido o pagamento de juros, nos termos previstos na LGT e no CPPT.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, nos termos do referido art. 24.º, n.º 5 e do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Em face dos factos provados (n.º 19) e dado o acima decidido, no que concerne à correção respeitante à não aceitação da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) de 2012, no valor total de €20.679,41, relativa às faturas emitidas pela empresa H…, Lda, que foi julgada ilegal, procede igualmente o pedido da Requerente de reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal, conforme se estatui nos art. 43.º, n.ºs 1 e 4 da LGT e do art. 61.º do CPPT, desde as datas do pagamento indevido do imposto até integral reembolso das quantias indevidamente pagas.
32. A procedência do pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA e atos subsequentes na parte e medida em que têm subjacente a correção respeitante à não aceitação da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) de 2012, no valor total de €20.679,41, relativa às faturas emitidas pela empresa H…, Lda, implica, na sua decorrência, a invalidade das correspondentes liquidações de juros compensatórios, que só possuiriam base se ocorresse dilação na liquidação do imposto ou reembolso superior ao devido por facto imputável ao sujeito passivo (art. 35.º, n.º 8 da LGT e art. 96.º, n.º 1 do CIVA), o que é excluído pela verificação de vício de violação de lei nos atos anulados.
IV. Decisão
Termos em que se decide:
-
julgar parcialmente procedente o pedido objeto da presente pronúncia arbitral na parte em que respeita a correção respeitante à não aceitação da dedução do IVA pela Requerente nos meses de outubro (€2.750,18), novembro (€13.400,15) e dezembro (€4.529,08) de 2012, no valor total de €20.679,41 e anular os atos tributários sindicados na medida em que têm subjacente tal correção e as correspondentes liquidações de juros compensatórios;
-
na parte que respeita ao decidido na antecedente alínea a), condenar a Requerida na restituição dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios à taxa legal, desde as datas dos pagamentos indevidos até integral reembolso, com as legais consequências;
-
julgar improcedente, em tudo o mais, o pedido de pronúncia arbitral, mantendo, consequentemente, nessa parte, os atos tributários impugnados;
-
condenar ambas as partes nas custas processuais na proporção de 9/10 a cargo da Requerente e de 1/10 a cargo da Requerida.
V. Valor do processo
Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, ex vi art. 29.º, als. a) e e) do RJAT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 372.352,66 (trezentos e setenta e dois mil trezentos e cinquenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos), que constitui o montante global das liquidações impugnadas cuja anulação é objeto do pedido de pronúncia arbitral.
VI. Custas
De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €6.120,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, ficando, em face da procedência meramente parcial do pedido, 9/10 a cargo da Requerente e de 1/10 a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Maio de 2021.
A Árbitra Presidente
(Fernanda Maçãs)
A Árbitra Vogal
(Suzana Fernandes da Costa)
O Árbitro Vogal
(João Menezes Leitão-Relator)
[1] No introito do requerimento do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente menciona como objecto de impugnação “Liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes aos períodos dos anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016”. Como não são apresentados quaisquer documentos de liquidação de imposto em relação aos períodos do ano de 2016, tratar-se-á de lapso a menção a este ano.
[2] A Requerente refere como valor global das liquidações impugnadas a quantia de € 363.612,87 (trezentos e sessenta e três euros, seiscentos e doze euros e oitenta e sete cêntimos), mas o somatório total é o que se indica no texto.
[3] Recorde-se que “cascalho” constituía locução usada no Regulamento das Contrastarias aprovado pelo Decreto-Lei n.º 391/79, de 20.9 (que foi revogado pela Lei n.º 98/2015, de 18.8) no contexto da caracterização dos bens expostos para venda (cfr. o respetivo art. 30.º, n.ºs 1 e 2: “Consideram-se expostos à venda ao público os artefactos de ourivesaria acabados, cravados ou não, as barras, medalhas comemorativas e moedas de metal precioso e os relógios de uso pessoal, existentes nos estabelecimentos ou noutro local próprio de venda, qualquer que seja o lugar onde se encontrem, e também aqueles que se encontrem em trânsito e de que logicamente se possa concluir destinarem-se à venda” – n.º 1; “Os artefactos ou relógios destinados a conserto e o «cascalho» não se consideram expostos à venda desde que estejam encerrados em armários ou gavetas, providos de letreiros, bem visíveis, com as palavras «consertos» ou «cascalho», conforme os casos. Considerar-se-á «cascalho» o conjunto de artefactos inutilizados de forma irreparável” – n.º 2).
[4] Em termos definitórios, para efeitos de caracterização, pode-se recorrer ao art. 3.º, alíneas i) e ff) do Regime jurídico da ourivesaria e das contrastarias (RJOC), aprovado, em anexo, pela Lei n.º 98/2015, de 18.8 (com as alterações do Decreto-Lei n.º 120/2017, de 15.9) segundo o qual “Artigos com metal precioso” são “os artefactos de metal precioso, os artefactos compostos, as medalhas e os objetos comemorativos de metal precioso, as barras de metal precioso” e “Metais preciosos” são “a platina, o ouro, o paládio e a prata, assim indicados por ordem decrescente de preciosidade”. Anteriormente, vd. o art. 1.º do Regulamento das Contrastarias aprovado pelo Decreto-Lei n.º 391/79, de 20.9 (com as alterações posteriores).
[5] Diga-se que este estudo, conforme resulta do seu subtítulo (cfr. também p. 78), se centra na apreciação sobre se o regime das sucatas é aplicável aos artefactos de ouro, concluindo em sentido negativo, mas não analisa especificamente se as transações de artefactos de ouro podem ser consideradas transmissões de ouro sob a forma de matéria-prima.
[6] Nos termos do RJOC, os “artefactos de metal precioso” ou “artefactos de ourivesaria” são definidos como “os artefactos constituídos por metais preciosos ou pelas respetivas ligas, adornados ou não com pedras, pérolas, esmaltes ou outros materiais não metálicos, incluindo os artefactos mistos de metal precioso e os relógios de metal precioso, cuja caixa é feita de metal precioso” (art. 3.º, al. e)).