SUMÁRIO
1- A alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE uti¬liza o conceito de concurso público no sentido amplo, tradicional na ordem ju¬rídica portuguesa, tanto no âmbito da contratação pública como fora dele, que abran¬¬ge o universo dos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pú¬bli¬ca, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da pu¬bli¬cação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos necessários para o efeito.
2- O que releva na apreciação da abrangência da isenção prevista em tal norma não é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licen¬ça de exploração, mas o procedimento, anterior a esse, no qual foi cons¬tituída a situação jurí¬di¬ca em cuja titularidade a Requerente se fundou para reque¬rer a licença de explo¬ra¬ção.
3- Não pode ser qualificado como concurso público aberto, para este efeito, um procedimento concursal relativamente ao qual não foi feita a prova de a sua abertura ter sido publicitada de forma a permitir a apresentação de candidatura por um qualquer interessado.
4- Os tribunais arbitrais (CAAD) são competentes, em razão da matéria, para apreciar da legalidade de contribuições financeiras administradas pela AT.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S. A. (Requerente), NIPC..., com sede na ..., ...-... ..., apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
A) Pedido
A Requerente peticiona a anulação da liquidação n.º 2019 CESE ... de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), relativa ao exercício de 2015, e, ainda, das respetivas de liquidações de juros compensatórios e de juros de mora, no valor total de € 1.922.125,85, sendo € 1.656.223,49 respeitantes a tributo e € 265.902,36 a juros.
B) Posição das partes
A Requerente entende estar isenta do pagamento de tal contribuição, ao abrigo do disposto na alínea d) do art.º 4.º do RCESE, por, em suma, considerar que a sua licença ou direito contratual de exploração foi obtido através de um «concurso público».
Alega, ainda, a existência de vícios de forma e de procedimento, a saber (cfr. n.º 51 e 52 do requerimento inicial):
(i) Vício de violação dos princípios da participação e da colaboração, em especial, do direito de audiência prévia do sujeito passivo (…);
(ii) Vício quanto ao procedimento, por equivocamente ter baseado a decisão final adotada na verificação de um conjunto de pressupostos erróneos, relacionados com a suficiência e idoneidade dos elementos reunidos em ordem a uma decisão esclarecida e com a qualificação jurídica do despacho, parecer e lista provenientes de uma entidade terceira, aos quais atribuiu relevância decisiva e natureza vinculativa;
(iii) Vício de violação das regras do ónus da prova e do ónus de instrução e junção do processo administrativo que a AT deveria ter assegurado, ainda, ao abrigo dos princípios da colaboração e da cooperação, por ser aquela detentora da documentação procedimental necessária ao esclarecimento dos contornos do caso e, assim, a única capaz de garantir uma adequada instrução do procedimento.
(iv) A que acresce um vício de natureza mista, de verificação prévia, relacionado com a violação dos princípios da participação, da colaboração e da boa-fé e com o exercício dos poderes discricionários concedidos à AT no domínio da definição da tramitação procedimental, em particular, na fixação do prazo para a pronúncia em audiência prévia do sujeito passivo.
Na sua resposta, a AT sustenta a legalidade das liquidações impugnadas, por, na linha da fundamentação constante do RIT, entender que a Requerente não preenche os pressupostos factuais determinantes da existência da isenção que invoca. Conclui, também, pela inexistência dos demais vícios, formais e materiais, alegados pela Requerente.
A Requerida peticiona, ainda, o seguinte:
(i) ser julgada inconstitucional a alínea d) do art.º 4.º da RCESE, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (n.º 2 e 3 do art.º 103.º da CRP), quando interpretada no sentido de que a atribuição das licenças de produção de energia elétrica nos termos dos Decretos-Lei n.º 99/91 e n.º 100/91, ambos de 2 de Março, configuram concursos públicos para efeitos de aplicação da isenção nela prevista.
(ii) que a interpretação veiculada pela Requerente seja considerada como violadora do princípio constitucional da separação e interdependência de poderes, consagrado nos artigos 2.º e 111.º da CRP, constituindo-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. artigos 202.º e 203.º da CRP), bem como do princípio constitucional da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP.
Cumpre desde já referir que ambas as partes, nos seus articulados, fazem abundantes referências ao acórdão arbitral n.º 146/2019-T, que apreciou idêntica questão, ainda que apenas quanto aos alegados vícios de forma e de procedimento e relativamente a diferente exercício. Ora, independentemente do mérito de tal acórdão arbitral, há que frisar que a fundamentação da liquidação ora impugnada é substancialmente diferente, tal como a própria Requerente reconhece (não obstante concluir que a Requerida conscientemente reitera entendimentos erróneos censurados pelo Tribunal Arbitral), pelo que não se coloca a questão da autoridade de caso julgado anterior.
C) Tramitação processual
A Requerente procedeu à designação de árbitro, nos termos legais, tendo indicado para o efeito o Prof. Doutor Rui Medeiros. A Requerida procedeu igualmente à designação de Árbitro, apontando o Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida. Foi designado, de comum acordo entre os dois árbitros, o Prof. Doutor Rui Duarte Morais para presidir ao coletivo arbitral. Os árbitros aceitaram as designações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 2-09-2020.
A Requerida, depois de notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta.
Por despacho arbitral de 6-01-2021, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, sendo a questão da eventual incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, porque não suscitada pela Requerida, remetida para o acór¬dão arbitral, e, ainda, que não haveria lugar a alegações por as questões a resolver serem de direito e as partes, nos seus articulados, terem já exposto, de forma exaustiva, as suas posições. As partes não se opuseram a tal despacho.
II- SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. A ação é tempestiva. O processo não enferma de nulidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer, para além da que a seguir se aprecia.
II.1 - Eventual incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria e seu conhecimento oficioso
É conhecida a divergência existente quanto à questão da competência, em razão da matéria, dos tribunais arbitrais (CAAD) para conhecerem de impugnações de contribuições financeiras, como é o caso da CESE.
A) Esta exceção não foi suscitada pela Requerida pelo que, num primeiro momento, importa apenas apurar se deve ser objeto de conhecimento oficioso pelo tribunal arbitral.
Este tribunal arbitral conclui pela negativa, fazendo sua, com a devida vénia, a fundamentação constante do acórdão arbitral 146/2019 , que passamos a transcrever:
A arbitragem tributária foi criada pelo Governo através do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa que lhe foi concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril. A autorização legislativa era indispensável para o Governo legislar validamente sobre esta matéria, uma vez que se está perante matéria atinente às garantias dos contribuintes e à competência dos tribunais, inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alíneas i) e p), e 209.º, n.º 2, da CRP, e, por isso, o Governo não tem competência legislativa própria, como decorre dos artigos 198.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP.
O referido artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010 autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixando como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».
O RJAT, emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».
A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminando a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.
No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio fazer depender o acesso dos contribuintes à arbitragem tributária da existência de vinculação, decidida por membros do Governo, por acto de natureza regulamentar.
Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:
Artigo 1.º
Vinculação ao CAAD
Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:
a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e
b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).
Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
Artigo 3.º
Termos da vinculação
1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.
2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:
a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;
b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.
3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.
Desta legislação e regulamentação pode concluir-se, embora a questão seja controversa, que a vinculação efectuada pela Portaria n.º 112-A/2011 restringe as possibilidades de acesso dos contribuintes à arbitragem tributária, pois a alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010 e a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT pre¬vêem a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apre¬cia¬ção da generalidade dos litígios relativos a actos de liquidação de tributos e a Portaria n.º 112-A/2011 limita a vinculação « à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões rela¬tivas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» ( com várias excepções).
Na verdade, os «impostos» são um dos tipos de «tributos», como decorre da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP e do n.º 2 do artigo 3.º da LGT, que esclarece que «os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas».
Seja como for, mesmo que assim se entenda, é inequívoco que o Governo, no exercício dos poderes legislativos que lhe foram concedidos pela autorização legislativa, atribuiu aos tribunais arbitrais competência para a declaração de ilegalidade de actos de liqui¬dação de tributos, sem qualquer restrição derivada da sua natureza, designadamente não limitando essa competência a «impostos».
Se o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT for interpretado como permitindo ao Governo, através de portaria, limitar a competência material dos tribunais arbitrais tributários definida no artigo 2.º do RJAT, a norma será materialmente inconstitucional, desde logo por força do disposto no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, que estabelece que «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qual¬quer dos seus preceitos».
Para além disso, o referido artigo 4.º, n.º 1, interpretado como permitindo que através de acto de natureza regulamentar fossem emitidas normas sobre garantias dos con¬tri¬buin¬tes e competências de tribunais, será também inconstitucional por incom¬pa¬ti¬bili¬dade com os artigos 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alíneas i) e p), e 209.º, n.º 2, da CRP, que impõem que essas matérias sejam reguladas por acto de natureza legislativa.
Assim, numa leitura conforme à Constituição, a vinculação efectuada através da Por¬ta¬ria n.º 112-A/2011 representará, à semelhança do que sucede com a convenção de arbitragem no âmbito da arbitragem voluntária, a manifestação de vontade da AT de aceitação da pretensão do contribuinte de submeter o litígio a arbitragem, formulada de forma genérica, que é necessária, como é a do contribuinte que formula o pedido de constituição do tribunal arbitral, para este se constituir.
Poderá entender-se que a falta do acordo necessário para a constituição do tribunal arbitral implica incompetência deste, sendo essa a consequência que resulta do regime previsto no artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de De¬zembro), que será subsidiariamente aplicável por remissão do artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável aos processos arbitrais tri¬butários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
Mas, pelo que se referiu, a falta de vinculação da AT a determinado litígio que tenha por objecto um acto de liquidação de um tributo não pode implicar incompetência ma¬te¬rial do tribunal, pois esta apenas pode ser definida validamente por acto de natureza legislativa e a que foi definida no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT atribui aos tribunais ar¬bi¬trais que funcionam no CAAD competência para apreciação da pretensão do con¬tri¬buinte.
Não implicando a falta de vinculação incompetência em razão da matéria, fica afas¬ta¬da, desde logo, a possibilidade de conhecimento oficioso, pois no contencioso tributário apenas a incompetência em razão da matéria e a incompetência em razão da hierar¬quia (que não está aqui em causa) podem ser apreciadas oficiosamente, como resulta do preceituado no artigo 16.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tri¬butários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
Assim, não se tratando de incompetência absoluta, tratar-se-á de incompetência re¬la¬tiva, cuja apreciação pelo Tribunal depende de arguição no prazo da defesa, quer se en¬tenda que é de aplicar o artigo 18.º, n.º 4, da Lei de Arbitragem Voluntária, que esta¬belece o regime de incompetência de tribunais arbitrais [aplicável por força da remis¬são efectuada no artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], quer se entenda que é de aplicar o artigo 103.º do Código de Pro¬cesso Civil, que regula os casos de incompetência relativa, diploma este também de apli¬cação subsidiária aos processos arbitrais tributários, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Pelo exposto, não tendo sido arguida a falta de vinculação no prazo da defesa, não se toma conhecimento da hipotética questão de incompetência.
b) Ainda que entendesse ser tal exceção do conhecimento oficioso, este tribunal arbitral sempre concluiria pela sua competência, pelos fundamentos constantes do acór¬dão arbitral n.º 312/2015-T que, também com a devida vénia, se transcrevem:
Por último, invoca ainda a Requerida a incompetência material do tribunal, fun¬da¬men¬ta-da na não vinculação formal da AT aos tribunais arbitrais constituídos para a apre¬cia¬ção de quaisquer questões que não estejam relacionadas com “impostos”. Em ou¬tras palavras, o que a AT defende é que, na eventualidade de o tribunal concluir que o tri¬buto em apreço é juridicamente uma “contribuição” e não um “imposto”, uma tal de¬cisão não será oponível à AT, na medida em que esta, por efeito do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, apenas se encontra vinculada à “jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apre¬ciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja co¬metida referidas no n.º 1 do artigo 2.º [do RJAT]”.
Para a AT, embora o RJAT refira expressamente, na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, que o âmbito material da arbitragem abrange “a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos”, o facto de o mencionado artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 ter usado a expressão “impostos” em vez de manter a de “tributos” significa que o Governo terá querido restringir os litígios a que a AT se vincula aos que se relacionam com impostos.
Todavia, uma tal interpretação não se nos afigura juridicamente correta.
Em primeiro lugar, o teor literal e a articulação sistemática dos preceitos não permitem um esclarecimento direto e evidente do sentido das normas. E se algum sentido se pode atribuir de forma mais próxima e fiel à interpretação literal-sistemática dos preceitos, é o de que a referência a “impostos” em vez de “tributos” no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, seguida da remissão expressa para o n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e da enunciação expressa de um conjunto de exceções, indicia que o ‘legislador’ da Portaria não teve a intencionalidade restritiva clara que a AT invoca, pois se assim fosse teria feito alusão expressa a essa restrição no leque das alíneas que contemplam as exceções.
Em segundo lugar, a convocação dos elementos teleológico e racional da interpretação jurídica também não apontam para a razoabilidade de uma tal restrição, mas apenas para a “limitação do âmbito de vinculação da AT através da titularidade dos poderes para administrar os tributos”, sendo esse, de resto, o limite lógico da vinculação – não abrangendo a restrição assim os relacionados com “contribuições” também por ela liquidadas.
O facto é que o procedimento de liquidação e cobrança dessas “contribuições” em nada se distingue, na sua natureza e estrutura, do dos “impostos” (a AT atua aí como se de impostos se tratasse), donde não há razão válida para excluir a vinculação da AT, nesses casos, à arbitrabilidade.
A inexistência de uma referência expressa no texto do artigo 2.º da mencionada Portaria n.º 112-A/2011 a esse tipo de tributos dever-se-á apenas, ao fim e ao cabo, ao facto de, à data dela, ainda não se encontrar atribuído à administração da AT qualquer tributo com tais características.
Mais, a doutrina em que a AT se louva não permite sustentar uma posição diversa, antes pelo contrário.
Assim, p. ex., SÉRGIO VASQUES e CARLA CASTELO TRINDADE em «O âmbito material da arbitragem tributária», Cadernos de Justiça Tributária n.º 00 (Abril/Junho 2013), pág. 24, deixam claro que
“os serviços e organismos referidos no artigo anterior [hoje, a AT] vincu¬la¬ram-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que te¬nham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja ad¬mi¬nistração lhes esteja cometida referidas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
Nos termos do art.º 2.º do DL n.º 118/2011, de 15/12, o qual aprovou a Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, esta entidade tem assim sob a sua égide a administração dos direitos aduaneiros, dos impostos sobre o rendimento, dos impostos sobre o património e dos impostos sobre o consumo e, bem assim, dos demais tributos que lhe sejam legalmente atribuídos como, por exemplo, as contribuições especiais”.
Nesta medida, considera-se que o âmbito da arbitrabilidade abrange, como decorre da interpretação conjugada dos artigos 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, a apreciação das pretensões relativas a tributos cuja administração esteja cometida à AT, com exceção dos casos enunciados nas alíneas do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 - abrangendo, portanto, também as pretensões relativas a “contribuições” por ela administradas.
Consequentemente, e uma vez que a CESE, tal como resulta do artigo 7.º do respetivo regime jurídico, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (na redação entretanto atualizada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, e pela Lei n.º 33/2015, de 27 de Abril) é um tributo administrado pela AT, cujo procedimento de liquidação e cobrança é estruturalmente idêntico ao dos impostos, o tribunal arbi¬tral é competente para dirimir o presente litígio, independentemente de este tributo vir a ser qualificado como contribuição ou como imposto.
c) Restará acrescentar, no sentido da conclusão pela competência, que a sustentação da tese contrária, que, como resulta do acima transcrito, assenta na valoração a atri¬buir ao uso da palavra «imposto» no corpo do art. 2º da “portaria de vinculação”, pa¬re¬ce decisivamente posta em causa em razão da nova alínea e) desse mesmo artigo (introduzida pela Portaria nº 287/2019, de 3 de setembro), segundo a qual são excluí¬das da vinculação da AT à jurisdição do CAAD as pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no nº 1 do artigo 63º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via adminis¬tra¬tiva nos termos do nº 11 do mesmo artigo.»
A subscrever-se (melhor, a continuar a subscrever-se) a tese da incompetência ma¬te¬rial dos tribunais arbitrais para apreciarem da legalidade de contribuições financeiras, seríamos conduzidos a um absurdo: os tribunais arbitrais seriam materialmente incom¬petentes, exceto quando tais liquidações resultassem da aplicação da norma anti¬abu¬so, tendo havido prévio recurso à via administrativa.
A nova norma deve, a nosso ver, ser entendida como constituindo expressão literal atualizada do âmbito de vinculação da AT aos tribunais arbitrais, isto é, que a mesma abrange quaisquer tributos de que tenha a administração.
III – PROVA
III. 1 – Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A atividade da Requerente consiste na produção de eletricidade de origem térmica, operando a Central Termoelétrica B...– central a ciclo combinado a gás natural.
b) A 20.01.1995 foi atribuída à ora Requerente uma licença vinculada de produção de energia elétrica na Central Termelétrica B..., nos termos do n.º 2 do art. 11.º do Decreto-Lei nº 99/91, de 2 de março.
c) Aos concorrentes foi disponibilizada a documentação tida por necessária para elaborarem as suas candidaturas, nomeadamente os documentos intitulados Parte I – Programa; Parte II – Base da Licença de Produção de Energia Elétrica, anexos aos autos e que aqui se dão por reproduzidos.
d) De tais documentos (Parte I – programa da consulta) consta, nomeadamente, o seguinte:
Em nome do Governo Português, a E..., (E...), abre esta consulta a produtores especializados de equipamentos para centrais de turbinas a gás, com a finalidade de selecionar um investidor interessado na construção e exploração da primeira Central de ciclo combinado, para produção de eletricidade em Portugal, na modalidade de B.O.O (Built, Operate and Own) (parte I, ponto 1.3).
- Os investidores competindo a esta consulta são convidados a apresentar uma proposta tipo “chave na mão” (…) (ponto 1.5).
– Em resultado desta consulta, a E... irá apresentar ao Governo Português um relatório de avaliação das propostas, fundamentando a hierarquização técnico- económica das opções possíveis (parte I, ponto 1.7).
- Após concretização deste acordo tripartido entre as três entidades referidas no ponto anterior, será atribuída pelo Governo Português uma licença para a construção e exploração da central ao investidor selecionado em resultado desta consulta.
Na altura, a entidade consultada formalizará a constituição da sociedade que irá construir e operar a Central, submetendo-se à legislação em vigor em Portugal para a construção de instalações de produção de eletricidade (ponto 1.8).
e) A licença será atribuída pelo Governo Português de acordo com a legislação em vigor para o acesso e exercício da atividade de produção de energia elétrica, por via térmica (parte II, ponto1.1)
f) A licença atribuída terá carácter definitivo e será título para a construção e exploração da Central (parte II, ponto 1.3).
g) Em cumprimento do que então dispunha o art. 85º do Tratado de Roma (relativo à proibição de acordos restritivos da concorrência e suas exceções), o acordo celebrado entre a E..., então empresa detida integralmente pelo Estado, e a Requerente foi sujeito a aprovação pela Direção-geral da Concorrência da CEE
h) A concordância com a versão final de tal acordo ficou expressa pela Comunicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias – Caso IV/E-3//35.485 – REN- A...– Central F..., em 23 de Abril de 1996.
i) De tal comunicação consta, nomeadamente, o seguinte: De acordo com as novas regras para o setor do fornecimento de eletricidade, os produtores de eletricidade independentes, para além de um certo limite, «arrendam» instalações de produção de eletricidade à REN, proprietária das centrais elétricas. O aumento de novas capacidades é realizado através de concurso. Cada processo de concurso para a expansão da capacidade incide sobre instalações específicas e é aberto a todos os candidatos nas mesmas condições (…) (ponto 11).
j) No presente caso, as disposições contratuais envolvem um conjunto de acordos, principalmente os seguintes: acordo de compra de eletricidade; um acordo de construção entre a A... e alguns membros do respetivo consórcio, relativo à construção da central elétrica; um acordo de exploração e manutenção entre a A... e a C..., relativo à gestão da central elétrica.
k) Do despacho do Sr. Ministro da Indústria e Energia de 09.08.91 consta o seguinte: Na sequência da apreciação das conclusões preliminares resultantes da consulta lançada em 14 de Agosto de 1990 para a instalação na B... de uma central a gás natural de ciclo combinado em regime de BOO (Build, Own and Operate), foi nomeada, pelo meu Despacho de 15 de Abril da 1991, uma Comissão com o objetivo de proceder a esclarecimentos e de prosseguir negociações com os dois grupos que haviam apresentado as propostas consideradas mais favoráveis: G... e .../....
O Relatório da Comissão de Avaliação foi-me entregue e tendo-o analisado, aprovo as conclusões do mesmo no sentido em que "a comissão é da opinião que o consórcio G... é o que apresenta a melhor proposta para a construção e operação da futura central de ciclo combinado a gás natural da B...".
l) Tais acordos inseriram-se no objetivo de criar concorrência no mercado de produção de energia elétrica, abrindo-o à iniciativa privada.
m) Foi efetuado um procedimento de inspeção interno à Requerente, que originou as liquidações ora impugnadas.
n) No quadro de tal inspeção, a Requerente forneceu documentos que, a seu ver, comprovariam estar isenta do pagamento da contribuição em causa, os quais foram remetidos à DGEG, para que esta, no âmbito da sua competência técnica na matéria, emitisse parecer.
o) Foi elaborada, pela DGEG, a informação n.º 287/2018, de 03.08.2018, a qual remeteu para a informação n.º 71/2016, anteriormente elaborada, a qual versava sobre a mesma situação, ainda que relativamente a diferente exercício.
p) Esta informação concluiu como se segue: A exceção prevista na alínea d) do artigo 4.º diz respeito a licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, e salvo melhor opinião o procedimento evidenciado pelas empresas não nos parece configurar a figura do concurso público previsto no Código de Contratação Pública.
q) Mais, refere tal informação que todas as centrais do Decreto-Lei n.º 240/2004, de 27 de dezembro, celebraram o Acordo de Cessação antecipada do CAE (Contrato de Aquisição de Energia) ao abrigo deste diploma e atualmente com CMEC (Contrato para a Manutenção do Equilíbrio Contratual) não suscitaram a isenção ao abrigo da alínea d) do artigo 4.º da CESE, situação que apenas ocorreu para estas duas centrais (a Requerente e outra) que não celebraram esse Acordo, mantendo os respetivos CAE.
r) No ponto III de tal informação, intitulado “repercussões e implicações da isenção de pagamento ou não da CESE por parte dos centros electroprodutores titulares de CAE” (entre os quais aparece expressamente mencionada a Requerente), que aqui se dá por reproduzido, é feito um alerta para o facto de tais titulares poderem, por força de tais contratos, requerer o recálculo da respetiva remuneração, caso se verifique um acréscimo de custos decorrentes de alterações legislativas, de modo a que sejam colocados na mesma situação em que se encontrariam caso não tivesse ocorrido tal alteração legislativa. É aí, ainda, analisada a e situação que se geraria caso titulares de CAE pedirem o recálculo das respetivas remunerações contratuais em resultado de obrigação de pagamento da CESE.
s) Esta informação foi sancionada pelo Senhor Diretor-geral da DGEG, como se segue: Concordo com o exposto na presente informação. À consideração do Senhor Secretário de Estado a homologação sobre o entendimento da DGEG de que não existe informação recolhida que comprove a existência de concurso público, pelo que não se deve considerar que estes Centros Eletroprodutores titulares de CAE, (…) e A..., estão isentos ao abrigo do disposto na alínea d) do artigo 4.º da CESE.
t) A 13.08.2018, o Senhor Secretário de Estado da Energia despachou a informação DGEG n.º 287/2018, nos seguintes termos: Visto. Deve a DGEG fornecer à AT todos os elementos necessários à boa decisão sobre esta questão.
u) Nos termos do novo n.º 12 do art.º 7.º do RCESE, a DGEG passou a enviar à AT, até 31 de janeiro de cada ano, a lista dos sujeitos passivos que exercem as atividades elencadas no art.º 2.º do RCESE, bem como eventual enquadramento no art.º 4.º do mesmo regime. Em tal lista a Requerente figura como sujeito passivo não isento, sendo que não houve alteração de circunstâncias factuais entre o exercício em causa nos presentes autos e aquele (s) a que se refere tal lista.
v) De várias intervenções públicas de membros de sucessivos Governos resulta o entendimento destes de que o Contrato de aquisição de Energia (CAE) relativo à Central B... resultou de um concurso público (audição parlamentar do então Ministro da Indústria e Energia, Eng. ..., em 4 de julho de 2018 e entrevista do Dr. D..., na altura Secretário de Estado da Energia, publicada, a 3 de julho de 2018, pelo Observador).
w) Da proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2019 constava uma norma visando restringir o leque dos operadores isentos da CESE.
x) Tal proposta foi entendida, pela imprensa à época, como visando obrigar alguns produtores de energia, entre eles, especificamente, a Requerente, ao pagamento da CESE, de que estariam isentos.
y) Tal proposta não foi aprovada.
z) A A... solicitou, em 26/11/2019, a prorrogação do prazo para o exercício do direito de audição prévia, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT).
aa) Tal requerimento foi indeferido nos seguintes termos: O prazo que a Lei Geral Tributária (LGT) concede, que varia entre 15 e 25 dias, tem que ser necessariamente conciliado com os prazos que a própria Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tem nos termos da lei, designadamente pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e pelo art. 45º da LGT, sob pena de preclusão do prazo de caducidade do direito à liquidação.
bb) Apesar de a Requerente, no entender da AT, ter exercido o seu direito para além do prazo concedido, foi o mesmo considerado na versão definitiva do RIT.
cc) A Requerente solicitou que lhe fosse fornecida cópia da lista dos sujeitos passivos, elaborada pela DGEG em cumprimento do novo n.º 12 do artigo 7.º do regime jurídico da CESE, lista essa expressamente mencionada no RIT.
dd) A AT recusou tal pedido, invocando para tal a garantia dos restantes contribuintes, incluídos na lista elaborada pela DGEG, em termos de sigilo e confidencialidade e de forma a prevenir a perversão dos normativos legais em vigor (cfr. p. 29/41 do RIT).
Os factos dados como provados são consensuais, não tendo sido objeto de impugnação, sendo, na totalidade, confirmados por documentos tidos por idóneos.
III – Factos não provados
Não ficou provada a forma como foi publicitada a abertura do procedimento concursal em causa.
IV – O Direito
Não tendo a Requerente indicado qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios que imputa às liquidações impugnadas, começar-se-á pela apreciação da questão da isenção invocada pela Requerente, atento o disposto no art. 124.º, n.º 2, al. a), do CPPT.
IV.1 -. A questão central que cumpre apreciar no presente acórdão é a de saber se a Re-querente se encontra abrangida pelo regime de isenção previsto na alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energé¬tico (CESE).
Dispõe a referida alínea que é isenta da contribuição extraordinária sobre o setor ener¬gé-tico “a produção de eletricidade por intermédio de centros eletroprodutores com licenças ou direitos contratuais atribuídos na sequência de concurso público, des¬de que os respetivos produtores não se encontrem em incumprimento das obriga¬ções resultantes da adjudicação no âmbito de tais procedimentos”.
A questão cifra-se, assim, em saber se foi na sequência de concurso público que foi emitida a licença ou o direito contratual ao abrigo do qual funciona o centro eletro¬pro¬dutor por intermédio do qual a Requerente produz eletricidade.
A análise deve ser colocada em dois planos: o da determinação, em abstrato, do sentido e alcance da previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE; e o da subsunção ou não, em concreto, da situação da Requerente a essa previsão nor¬ma¬tiva.
IV.2. Comecemos, pois, pelo primeiro plano da análise.
A alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE tem em vista isentar desta contri-bui¬ção extraordinária “centros eletroprodutores com licenças ou direitos contra¬tuais atribuídos na sequência de concurso público”.
Na economia do preceito, ocupa papel central o conceito de concurso pú¬blico.
Vejamos, pois, a respeito desse conceito.
O conceito de concurso público tem longa tradição na ordem jurídica portuguesa. Tradicionalmente, correspondia aos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pública, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos neces¬sá¬rios para o efei¬to. E contrapunha-se, desse modo, aos procedimentos de ajuste di¬reto, assim como aos concursos sem publicação de anúncio, isto é, aos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pública, são qualificados como procedi¬men¬tos fechados, por não serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, mas atra¬vés de convite dirigido a uma ou mais entidades, para a apresentação de propostas.
Em 2008, o vigente Código dos Contratos Públicos (CCP) veio, entretanto, regu¬lar o pro¬¬¬¬¬-ce¬dimento de concurso público, no âmbito da contratação pública, com um âmbito mais restrito, contrapondo-o à no¬va figura do concur¬so limitado por prévia qua¬lificação. Dentro do universo dos pro¬ce¬¬dimentos abertos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, e, portanto, dos procedimentos que, até aí, corres¬pon¬diam, indiferenciadamente, ao con¬ceito de concurso público, esta¬bele¬ceu, assim, o CCP uma distinção, consoante os con¬correntes necessitem ou não de pre¬encher requi¬sitos de pré-qualificação para po¬derem apresentar propostas: se neces¬sitarem de pre¬encher esses requisitos, o concurso é um concur¬so limitado por prévia qua¬lificação; se não necessitarem, é um concurso público.
É de notar que, na economia do CCP, tanto o concurso público, como o concurso limitado por prévia qualificação, são procedimentos aber¬tos, por serem lançados atra¬vés da publicação de um anúncio, com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos que preencham os requisitos necessários para o efei¬to, e, portanto, são concur¬sos públicos, no sentido tradicional da expressão. O que sucede é apenas que o concurso limitado por prévia qualificação é mais exigente quan¬to aos requisitos de cujo preenchimento faz depender a possibilidade de os in¬teres¬sados apresentarem propostas.
Esta circunstância explica que, do ponto de vista da possibilidade da sua utili¬za¬ção pelas entidades adjudicantes, o CCP, de harmonia com o regime das Diretivas da União Europeia sobre a matéria, dê o mesmo tratamento ao con¬curso públi¬co e ao concurso limitado por prévia qualificação, permitindo que elas escolham livre¬men¬te se recorrem a um ou a outro. Com efeito, a escolha do concurso limitado por pré¬via qualificação não compromete a publicidade e a transparência da contratação: do que se trata é apenas de estabelecer, à partida, requisitos mais exigentes de partici¬pa¬ção dos eventuais interessados.
IV.3. Atendendo ao quadro que acaba de ser descrito, coloca-se a questão de saber em que sentido o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE terá pre-tendido utilizar o conceito de concurso público.
Em nosso entender, não é no sentido que resulta do CCP que o conceito é utiliza¬do no preceito em análise. E isto, por diversas ordens de razão.
Desde logo, porque, tendo o legislador em vista, no preceito em causa, situações que necessariamente se cons¬¬ti¬tuí¬ram em momento anterior ao da entrada em vigor do CCP, não é natural que ele adote como referência um conceito que o CCP introduziu com carácter inovatório. Tanto mais, na medida em que não se vê razão justificativa para que o fizesse.
Com efeito, se é tradicional, na nossa ordem jurídica, que o legis¬la¬¬dor dê, para diversos efeitos, tratamento diferen¬ciado às situações constituídas me¬di¬ante concurso público em relação às demais, isso devia-se à circunstância de que, como foi ex¬plicado, a figura do concurso público abrangia o universo dos procedi¬mentos abertos, lançados atra¬vés de um anúncio, em contraponto aos procedi¬men¬tos fechados, de ajuste direto ou concurso, lançados atra¬vés de convite, dirigido a uma ou mais enti¬da¬des, para a apresentação de propostas.
Pelo contrário, como foi dito, o CCP dá o mesmo tratamento ao con¬curso públi¬co e ao concurso limitado por prévia qualificação, do ponto de vista da possibilidade da sua utili¬za¬ção pelas entidades adjudicantes, precisamente porque, sendo ambos procedi¬mentos abertos, a escolha entre um e outro só pode ser determinada por razões de ordem técnica, relacionadas com o maior ou menor grau de complexidade dos contratos a celebrar.
Ora, colocando-se a questão nestes termos, não se vê por que razão o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE haveria de pretender restringir o âmbito de aplicação do preceito às situações de concurso público, com a configu¬ra¬ção que lhe é dada pelo Código dos Contratos Públicos, com exclusão das situações resultantes de concurso limitado por prévia qualificação.
A isto acresce que a utilização do tipo procedimental de concurso público, com a configuração que o CCP lhe confere, faz sentido, no âmbito dos procedimentos de formação do vasto universo dos con¬tra¬tos submetidos às regras da contratação públi¬ca, para a seleção de concorrentes à cele¬bra¬ção de con¬tratos de objeto indiferenciado, em relação aos quais não se justifica a impo¬si¬ção de requisitos de pré-qualificação de natureza técnica ou financeira dos con¬corr¬en¬tes, sendo nesse pressuposto que se jus¬tifica e compreende a contraposição que, no CCP, tal como sucede nas Diretivas euro¬peias da contratação pública, é estabelecido entre concursos com e sem a im¬posição de re¬qui¬sitos de pré-qualificação.
Pelo contrário, no domínio específico que a alínea d) do artigo 4.º do Re¬gime Jurídico da CESE tem em vista, a questão coloca-se de modo diferente, pois não é de conceber que a atribuição de licenças ou direitos contratuais para a produção de eletri¬ci¬dade por intermédio de centros eletroprodutores possa ser objeto de um con¬curso no qual não sejam impo¬stos requisitos de pré-qualificação de natureza técnica e finan¬ceira.
Mais do que isso: não se vê a que situação concreta se poderia aplicar a previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE, se ela fosse interpretada no sentido de exigir que as licenças ou direitos contratuais a que se refere tivessem sido atribuídos na sequência de um concurso público com a configuração específica que o Código dos Contratos Públicos associa ao conceito (com efeito, e ao contrário do que admite a Requerida, os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 182/95 e 183/95, ambos de 27 de julho, para a aquisição de licenças de exploração de centros eletro¬pro¬dutores, no âmbito da celebração de contratos de produção de energia, também não pre¬¬viam a existência de concursos públicos, com a configuração específica que o Có¬digo dos Contratos Públicos associa ao conceito).
Considerando, pois, que tem em vista situações que necessariamente se cons¬¬ti¬tuí¬ram em momento anterior ao da entrada em vigor do Código dos Contratos Pú¬bli¬cos; que nenhuma razão parece justificar, para o efeito em análise, a diferenciação entre as situações constituídas por concurso público e por concur¬so li¬mitado por prévia quali¬fi¬cação; e, para mais, que nos movemos num do¬mínio em que não há lugar à apli¬ca¬bilidade do tipo procedimental de concurso pú¬blico, com a configuração espe¬cí¬fica que o CCP lhe confere, não se afigura que tenha sido por referência a este tipo de pro¬ce¬di¬men¬to que o legislador da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurí¬dico da CESE pre¬tendeu utilizar o conceito de concurso público.
No entender deste Tribunal, a alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE uti¬liza, pois, o conceito de concurso público no sentido amplo, tradicional na ordem ju¬rídica portuguesa, tanto no âmbito da contratação pública, como fora dele, que abran¬¬ge o universo dos procedimentos que, no Direito Europeu da Con¬tra¬¬ta¬¬ção Pú¬bli¬ca, são qualificados como procedimentos abertos, por serem lançados com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos necessários para o efeito.
IV.4. Passemos agora à análise da questão de saber se a situação da Requerente deve ser subsumida à previsão da alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE.
Em sentido contrário à possibilidade de tal subsunção, afirma a Requerida que “para os efeitos do gozo da isenção em causa o que releva é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licença de exploração”. Ora, a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia nos termos do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de março, e, portanto, no termo do procedimento regulado pelo Decreto-Lei n.º 100/91, de 2 de março, que não era um procedimento concor¬ren¬cial, mas um procedimento desencadeado pela apre¬-sentação de requerimento do interes¬sa¬do, que ao órgão competente cum¬¬pria decidir, de acordo com o preâmbulo do diplo¬ma, mediante uma “apreciação da conformidade da energia primária com as políticas energé¬ti¬cas do País” que precedia a fase de licenciamento técnico da central.
No entender deste Tribunal, esta perspetiva da situação é, no entanto, uma perspetiva redutora, que não apre¬ende, em toda a sua plenitude, o contexto em que ela se inscreve.
É verdade que a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia nos termos do n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de março, e, por¬tan¬to, no termo do procedimento regulado pelo Decreto-Lei n.º 100/91, de 2 de março, que não era um procedimento concor¬ren¬cial. Tal como o procedimento regula¬do por este Decreto-Lei se encontrava nele configurado em abstrato, ele podia, pois, ser efe¬tiva¬men¬te desencadeado por qualquer interes¬sa¬do que, motu proprio, decidisse empre¬ender um projeto de produção de energia — hipótese na qual, como referido no pre¬âm¬¬¬¬¬bulo do diplo¬ma, haveria que se começar, naturalmente, por proceder a uma “apre¬¬¬ciação da conformidade da energia primária com as políticas energé¬ti¬cas do País” an¬tes de se avançar para a fase de licenciamento técnico da central.
A verdade, porém, é que não foi nessa circunstância que, em concreto, a Reque¬ren¬te se apresentou a requerer a licença de exploração. Se a Requerente se apresentou a requerer a licença de exploração, condição naturalmente necessária para que o cen¬tro eletroprodutor pudesse funcionar, foi porque ela já era titular de uma situação jurídica previamente constituída pelo Estado Português no âmbito de outro procedi¬men¬to, anterior a esse, que tinha sido desencadeado por iniciativa do Estado Portu¬guês, com vista à concretização do projeto de produção elétrica em causa. De onde resulta que, quando ela se apresentou a requerer a li-cen¬ça de exploração, a Reque¬rente não veio submeter um projeto próprio à apre¬¬¬ciação da sua conformidade com as polí¬ti¬cas energé¬ti¬cas do País, mas apenas pedir o licen¬ciamento técnico de uma central cuja conformidade com as políticas energé¬ti¬cas do País já estava adquirida.
Ora, esta circunstância reveste-se da maior importância para o efeito da presente análise. Nas concretas circunstâncias do caso em presença, o procedimento no âmbito do qual a licen¬ça de exploração foi atribuída pelo Diretor-Geral de Energia não pode, pois, ser entendido de forma isolada, como se nada tivesse existido a montante dele. Pelo contrário: se a licença de exploração foi atribuída à Requerente, não foi apenas porque o projeto por ela apresentado preencheu os requisitos técnicos necessários ao seu licenciamento; foi, antes disso, porque ela era titular de uma situação jurídica dirigida à constituição do direito de proceder a essa exploração que tinha sido constituída no âmbito de um procedimento anterior ao procedimento de licenciamento propriamente dito.
Na verdade, o Estado Português tinha lançado, antes, um procedimento dirigi¬do a sele¬cio-nar um investidor estrangeiro interessado em adquirir, financiar a cons¬trução, e operar a cen¬tral termoelétrica em causa, para produção de energia na moda¬lidade de Built, Operate and Own. E, no programa do referido procedimento, esta¬belecia-se que à en¬ti¬da¬de que viesse a ser selecionada seria assegurada pelo Governo Português a trans¬mis¬são da licença de produção de energia elétrica relativa à central em causa, com vista à celebração com a E... dos contratos de compra da mesma e de forne¬ci¬men¬to da ener¬gia elétrica produzida, acrescentando-se que, nessa altura, a en¬ti¬dade se¬le¬¬cio¬na¬da for¬ma¬lizaria a constituição da sociedade que iria adquirir e ex¬plorar a cen¬tral, sub¬meten¬do-se à legislação em vigor para o exercício desta ati¬vi¬dade.
O que, no caso em presença, sucedeu foi, pois, que, no termo de um pro¬cedi¬men¬to lançado pelo Estado Português, foi adjudicado a um investidor o direito de adquirir, financiar a construção, e operar a central termoelétrica, tendo sido esta¬be¬lecido que, na sequência disso, viria a ser constituída uma socieda¬de que iria adquirir e explorar a central, para o que teria, designadamente, de obter o licen¬cia¬mento técnico da mesma, em conformidade com a le-gislação em vigor para o exercício da atividade. E foi assim que a Requerente veio a ser consti-tuí¬da e neste contexto peculiar que ela veio a reque¬rer a atribuição da li¬cen¬ça de exploração da central termoelétrica, em conformidade com o disposto nos Decretos-Leis n.º 99/91 e 100/91.
IV.5. Colocando-se a questão nos termos em que acaba de ser colocada, verifica-se, pois, que, ao contrário do que sustenta a Requerida, para os efeitos de se determinar, nos presentes autos, se a Requerente se encontra abrangida pelo regime de isenção que reivindica, o que releva não é o procedimento levado a cabo para a obtenção da licen¬ça de exploração, mas o procedimento, anterior a esse, no qual, como vimos, foi cons¬tituída a situação jurí¬di¬ca em cuja titularidade a Requerente se fundou para reque¬rer a licença de explo¬ra¬ção.
Vejamos, pois.
Esse procedimento foi aberto a produtores especializados de equipamentos para centrais de turbinas a gás (d) dos factos provados).
Porém, não ficou provada a forma como foi dado conhecimento aos eventuais interess-ados da sua abertura (a forma como as sócias da Requerente tiveram conhecimento da sua existência e, consequentemente, da possibilidade de se candidatarem), se houve uma publi-citação (um “anúncio”) nos termos da qual fosse possível a participação de qualquer interes¬sa-do, ou se teve lugar uma consulta dirigida a determinado número de empresas poten¬cial¬men¬te interessadas.
Ora, no entendimento acima explanado em IV.3, a alínea d) do artigo 4.º do Regime Jurídico da CESE uti¬liza o conceito de concurso público no sentido amplo como procedimentos abertos, por serem lançados com vista a permitir a participação, sem dis¬tinção, de todos os eventuais interes¬sa¬dos, desde que preencham os requisitos necessários para o efeito.
Não importa, pois, para a qualificação de um procedimento concursal como aberto, o nú-mero de entidades consultadas, por mais amplo que seja. Nem releva a igualdade de opor¬tu¬ni-da¬des (a efetiva concorrência) que tenha existido entre os participantes no procedimento. O que importa considerar é, apenas, o universo dos potenciais concorrentes.
Não tendo sido feita prova direta sobre a forma como foi publicitada a abertura do concurso em questão, importa saber se dos demais factos provados resulta, com clareza, que tenha sido um procedimento aberto, nos termos atrás referidos.
Nada de conclusivo se poderá extrair da documentação dada como provada em d), onde o termo empregue é, sempre, consulta, e sem que em nenhum momento seja nela feita refe¬rên-cia à publici¬ta¬ção por anúncio dessa consulta.
Nada de conclusivo se poderá extrair das declarações de responsáveis políticos, dadas como provadas em w), e também dos extratos de imprensa da época juntos pela Requerente, em que a referência à existência de um concurso público não pode ser, só por si, determinante para a qualificação jurídica, em sentido técnico, do procedimento realizado como um procedimento aberto e, portanto, como um concurso público.
Nada de conclusivo se pode, também, retirar da Comunicação da Direção Geral da Concorrência da C.E.E. (i) dos factos provados), entidade que se terá limitado a aferir da “livre concorrência” entre os concorrentes (da igualdade entre todos os concorrentes) e não da questão – situada a montante e que é a que aqui releva – do universo dos potenciais can¬di¬da-tos a concorrentes.
Por fim, não se diga – como pretende a Requerente – que sempre caberia ao Tribunal (ou à AT, em sede de procedimento) investigar oficiosamente a forma como foi publicitada a abertura do procedimento concursal em causa.
Para além das limitações óbvias de um tribunal arbitral para proceder a uma tal inves-tigação, por não ter poderes para coagir terceiros, mormente entidades públicas, a colaborar, o certo é estamos perante um facto (a forma como as sócias da Requerente – concorrentes ao concurso em causa - tiveram conhecimento da sua abertura) que é, substantivamente, um facto pessoal, pelo que a Requerente não pode alegar desconhecimento como justificativo de não o ter alegado, bem sabendo da sua essencialidade.
Ou seja, está em causa, antes do ónus da prova, o ónus da alegação de um facto cons-titutivo do direito (à isenção) invocado pela Requerente. Sendo que, em mesmo em termos de ónus da prova, precisamente por estar em causa um facto constitutivo do direito que invoca, a título de exceção, a dúvida sempre deveria redundar em seu desfavor (art.º 74º da LGT).
Ora, o que, quanto a este ponto, resulta da atuação processual da Requerente é que o seu entendimento (já expresso na audição prévia constante do processo administrativo) é o de que o procedimento no âmbito do qual a sua situação jurídica foi constituída foi do mesmo tipo daquele que, mais tarde, veio a ser regulado pelo Decreto-Lei n.º 183/95, de 27 de julho, que veio instituir uma consulta feita no mínimo a três entidades: ou seja, de que se tratou de um procedimento de concurso sem publicação de anúncio, e, portanto, fechado, por convite, que não pode ser qualificado como concurso público.
Assim sendo, não havendo factos provados que permitam concluir estarmos em presença de um concurso público aberto, há que concluir pela improcedência do pedido à luz desta causa de pedir.
V- Importa, agora, apreciar os demais vícios invocados pela Requerente:
V.I -Vício prévio: violação dos princípios da participação, da colaboração e da boa-fé e dos termos do exercício dos poderes discricionários concedidos à AT no domínio da definição do prazo para a pronúncia em audiência prévia do sujeito passivo.
Nos nº 65 a 79 do seu requerimento inicial, sob a epígrafe referida, a Requerente insurge-se contra o facto de a AT não ter deferido o seu pedido de prorrogação do prazo para o exercício do direito à audição prévia, nos termos dados como provados em aa) e bb), o que considera violador dos princípios acima referidos.
Importará aqui também ter presente o dado como provado em cc), ou seja, que apesar de a Requerente, no entender da AT, ter exercido o seu direito para além do prazo concedido, foi o mesmo considerado na versão definitiva do RIT.
Apreciando:
Nenhuma dúvida se suscitará, cremos, quando ao facto de a segunda parte do n.º 6 do art.º 60º da LGT envolver a concessão de certo grau de discricionariedade administrativa. O que não significa que tal faculdade discricionária escape ao poder de cognição do tribunal. Mas nunca estará em causa este substituir a decisão administrativa pelo que entenda que teria sido a melhor decisão, mas tão só apreciar da legalidade daquela, atenta a respetiva fundamentação.
A AT não fundamentou o indeferimento na rejeição das razões invocadas pela Requerente, antes lhes contrapôs uma “contra-razão”: que o risco de caducidade do direito à liquidação não seria compatível com o peticionado.
Risco esse que, atentas as datas em que o exercício do direito de audição prévia aconteceria, é perfeitamente de aceitar.
Colocava-se, pois, uma contraposição de interesses: o interesse legítimo da Requerente em dispor de maior prazo e o interesse, igualmente legítimo, da Requerida em não correr o risco da caducidade do direito à liquidação.
Assim sendo, porque a decisão administrativa tem uma fundamentação razoável, não sendo, portanto, arbitrária, é legal, atenta a referida discricionariedade concedida pelo legislador.
Mais ainda, admitindo que o exercício do direito de audição aconteceu para além do prazo concedido, há que concluir que a AT deu tradução ao princípio da participação ao considerar o então alegado pela requerente na versão final do RIT.
Improcedem pois a alegação dos vícios ora em questão.
V.2- Vício de violação dos princípios da participação e da colaboração, em especial, do direito de audiência prévia do sujeito passivo, que compreende o direito de se pronunciar sobre todas as questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e de direito, o que pressupõe o conhecimento dos elementos que poderiam influir na decisão.
Os n.º 80º a 116º do requerimento inicial, sob a epígrafe referida, referem-se aos factos dados como provados em dd) e ee), ou seja: a AT, no RIT, invocou a existência de uma lista dos sujeitos passivos, elaborada pela DGEG, nos termos do novo n.º 12 do artigo 7.º do regime jurídico da CESE, norma aditada pela Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2019, onde a Requerente figuraria como sujeito passivo e não isento de CESE.
Entende a Requerente a AT lhe deveria ter disponibilizado esta lista, para que pudesse pronunciar-se sobre a mesma. Como dado como provado, a AT indeferiu tal pedido da Requerente, invocando estar tal lista abrangida pelo sigilo tributário.
Começaremos por afirmar que, no entender deste tribunal arbitral, a decisão procedimental em causa está suficientemente fundamentada.
Assim sendo, a questão que cumpre apreciar é de natureza substantiva: o não acesso a tal lista prejudicou os direitos de defesa da Requerente?
Cremos que não. Além de não se vislumbrar o interesse legítimo da Requerente em saber quais as outras sociedades que em tal lista figuram como isentas ou não isentas, porquanto o que sempre estaria em causa seria a apreciação da sua situação de individual (do seu direito à isenção) e não uma análise comparativa entre as situações de diferentes sujeitos passivos, o certo é que este tribunal arbitral considerou tal lista absolutamente irrelevante para a boa decisão da causa (nenhuma referência lhe é feita na fundamentação do presente acórdão arbitral), pela simples razão que – como afirmado no acórdão arbitral anterior já referido - esta entidade administrativa não tem competência para se pronunciar, em termos vinculativos para os particulares, sobre quem está ou não isento de CESE.
Não tendo qualquer interesse para a decisão da causa, há que concluir que os direitos da Requerente não resultaram minimamente beliscados pelo facto de ela não lhe ter sido facultada.
Assim, conclui-se pela improcedência dos alegados vícios ora em análise.
V.3- Vício quanto ao procedimento, por equivocamente ter baseado a decisão final adotada na verificação de um conjunto de pressupostos erróneos, relacionados com a suficiência e idoneidade dos elementos reunidos em ordem a uma decisão esclarecida e com a qualificação jurídica do despacho, parecer e lista provenientes de uma entidade terceira, aos quais foi atribuída relevância decisiva e natureza vinculativa para efeitos decisórios
Nos nº 117 a 178 do requerimento inicial, sob a epígrafe referida, a Requerente insurge-se contra o facto de a AT ter considerado como elementos que se constituem como pilares basilares conducentes à atual correção a informação da DGEG e respetivos despachos.
É inequívoco que, na decisão da AT de não reconhecer a existência do direito à isenção, assumiu papel relevante a opinião veiculada pela DGEG, de cujo conteúdo que dão conta os factos dados como provados de o) a v).
Mas, como reconhece a Requerente, a Requerida – diferentemente do que sucedeu quando da liquidação subjacente ao já referido processo arbitral 146/2019-T -, neste caso, emitiu uma decisão própria, exerceu a competência que, legalmente, lhe está atribuída, não se tendo considerado vinculada ao parecer da DGEG, como – erroneamente – havia sustentado na fundamentação dessa anterior liquidação.
No presente caso há uma decisão administrativa da autoria da AT, fundamentadora do ato tributário ora impugnado, sendo irrelevante, em termos de existência de vício procedimental, o facto de se ter ou não baseado, de ser ou não coincidente, com atos ou decisões de outra entidade pública.
É a legalidade de um ato decisório praticado pela AT, a suficiência da sua fundamentação, que releva nestes autos. Ou seja, o vício procedimental que terá ocorrido em liquidação anterior, que deu origem ao citado processo procedimental, não aparece repetido na fundamentação da liquidação ora impugnada.
Improcede assim o alegado vício procedimental.
V.4- Vício de violação das regras do ónus da prova e do ónus de instrução e junção do processo administrativo que a AT deveria ter assegurado, ainda, ao abrigo dos princípios da colaboração e da cooperação, por ser aquela detentora da documentação procedimental necessária ao esclarecimento dos contornos do caso e, assim, a única capaz de garantir uma adequada instrução do procedimento.
A Requerente alega, em suma, que existirão elementos de prova de que não dispõe e que se deverão encontrar em poder das entidades que, à data do procedimento de atribuição da licença, estavam incumbidas da sua direção: a E... e o Ministério da Indústria e Energia e que, tendo solicitado à AT que diligenciasse no sentido da sua obtenção, tal não aconteceu.
Assumido, como pressuposto, o dever de investigação a cargo da AT, no sentido de realizar as diligências que se mostrem necessárias ao esclarecimento da verdade material, temos que o cumprimento de tal dever, como o de toda a atividade administrativa, tem que ser entendido (e limitado) por aplicação de outros princípios estruturantes do procedimento e processo, quais sejam o da proporcionalidade, da colaboração do interessado e da praticabilidade. Ou seja, não há apenas um princípio aqui aplicável, há diferentes princípios, com igual dignidade, que entram em colisão, tendo, em cada caso, que ser procurado o justo equilíbrio
Em termos de praticabilidade, não podemos olvidar o fator temporal: tendo o procedimento inspetivo acontecido quase no limite do prazo de caducidade do direito à liquidação – o que, sendo lamentável, é um facto -, fácil é concluir que as diligências pretendidas pela Requerente, implicariam, necessariamente, o adiamento do momento da liquidação e, consequentemente, a caducidade de tal direito.
O confronto entre os interesses e direitos em presença – o direito da Requerente a tentar obter um maior esclarecimento da verdade material e o direito do Estado à arrecadação dos tributos – não permite concluir que o interesse da Requerente, no caso concreto, devesse necessariamente prevalecer.
Mais importante, o dever de investigação não exclui o dever de colaboração do interessado: a atividade investigatória da administração tem que ter um objetivo pré-determinado, tem que visar apurar factos concretos, sob pena de a tarefa administrativa poder facilmente resultar totalmente desproporcionada relativamente ao resultado obtido. É do manifesto interesse de todos os cidadãos que haja uma utilização parcimoniosa dos recursos públicos. Ora, a Requerente nunca alegou quais os concretos factos que pretendia provar, ou, mesmo, factos concretos relevantes que seriam do seu desconhecimento. Aliás, no seu requerimento inicial neste processo, a Requerente continua a colocar a questão em termos de obtenção de meios de prova, sem nunca concretizar os factos que pretenderia provar.
Se a Requerente tivesse, nomeadamente, alegado – por ser este o facto central para a boa decisão da causa – que o concurso público tinha sido publicitado por determinada forma (forma que, como atrás se explicitou – é necessariamente do seu conhecimento), mas que não conseguia fazer prova da existência de tais anúncios, dado o tempo decorrido, e que cópia dos mesmos estariam em poder das entidades referidas, a questão poderia ser, porventura, avaliada de forma diferente.
Mas alegar simplesmente que existirá documentação eventualmente relevante a que não tem acesso e pretender que a AT a pesquise (o que não aconteceu), não permite concluir - ao menos no entender deste coletivo arbitral - que, atento todo o circunstancialismo do caso concreto, estejamos perante uma violação do princípio da investigação.
Um ilimitado apelo ao princípio da investigação, a exigência de diligências administrativas de resultado não previsível, ou seja, diligências não proporcionais ao concreto fim visado, resultaria num total bloqueio da atividade administrativa e, no âmbito tributário, na sistemática caducidade do direito à liquidação dos impostos, o que não é aceitável.
Termos em que se conclui pela improcedência dos vícios procedimentais ora em análise
VI. Em decorrência do exposto, considera-se prejudicada, por inútil, a apreciação das inconstitucionalidades arguidas pela Requerida, pois que o foram no pressuposto de se vir a concluir, na análise infraconstitucional, pela procedência do pedido.
V – DECISÃO
Termos em que se conclui pela total improcedência da presente impugnação.
Valor do processo: € 1.922.125,85
15 de fevereiro de 2021
Rui Duarte Morais
Rui Medeiros
Mário Aroso de Almeida