DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), José Ramos Alexandre e José Rodrigo de Castro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., doravante designado por Requerente, com o número de identificação fiscal português ... e residência nos Estados Unidos da América em ..., ..., ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”).
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Constitui pretensão do Requerente a anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) emitida sob o n.º 2019..., relativa ao ano 2015, no montante total de € 126.602,86, que inclui € 9.895,78 de sobretaxa extraordinária e € 15.274,81 de juros compensatórios, bem como a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento da importância anulada até ao seu reembolso.
Para tanto, alega o Requerente os seguintes vícios, de índole material e formal:
(a) Incompetência territorial e falta de legitimidade do Estado português para praticar o ato tributário, uma vez que deixou de ser residente em Portugal a partir de 20 de fevereiro de 2015, data em que passou a ser residente permanente nos Estados Unidos da América, não dispondo em território português de habitação que faça supor a sua intenção de a manter e ocupar como residência habitual;
(b) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos obtidos no estrangeiro, designados por “juros abrangidos pela Diretiva da Poupança”, quando se trata essencialmente de mais-valias, que só poderiam ser consideradas pelo valor “líquido” – valor de realização deduzido do custo de aquisição – e não, como foram, pelo respetivo valor de realização; e,
(c) Vício de falta de fundamentação.
O Requerente juntou inicialmente 11 documentos, protestando juntar certidão de residência fiscal nos Estados Unidos da América, o que veio a concretizar em 9 de outubro de 2020.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 20 de março de 2020, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 23 de março de 2020 e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 29 de março de 2020.
Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, tendo sido notificadas dessa designação, em 6 de julho de 2020, não se opuseram.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 5 de agosto de 2020.
Por despacho de 6 de agosto de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a notificação da Requerida para apresentar Resposta, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT.
Em 7 de agosto de 2020, a entidade Requerida solicitou ao Tribunal a notificação do Requerente para proceder à junção do certificado de residência a emitir pelas autoridades fiscais dos Estados Unidos da América com a suspensão do prazo de Resposta, requerimento que foi deferido.
Em 24 de agosto de 2020, o Requerente manifestou o entendimento de que o cartão de residência permanente junto aos autos com o pedido arbitral faz prova plena da sua residência, também para efeitos fiscais, nos Estados Unidos da América, pelo que nada impede o normal desenvolvimento do processo. Sem prejuízo, informou continuar a aguardar a emissão do certificado de residência por parte das autoridades (Internal Revenue Service) do estado de Filadélfia, no prazo estimado de 30 dias a contar de 7 de agosto, devendo-se o atraso aos efeitos da pandemia. Subsequentemente, veio aos autos informar que se verificou um atraso
Em 30 de setembro de 2020 a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo (“PA”).
Reconhece que o ato de liquidação em crise assenta na qualificação errónea, a título de juros, dos rendimentos do Requerente relativos a “sales proceeds” da alienação de unidades de participação de fundos de investimento, que devem ser tratados como mais-valias ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), 5) do Código do IRS, pelo que foi parcialmente revogada a liquidação de IRS objeto dos autos, por despacho de 29 de setembro de 2020 da Subdiretora Geral da área do Imposto sobre o Rendimento e das Relações Internacionais.
No tocante à residência fiscal, a Requerida sustenta que o Requerente não fez prova da alegada residência nos Estados Unidos da América à data dos factos [2015], que depende da apresentação de um certificado de residência nesse país. Assim, os demais rendimentos auferidos relativos a juros estão sujeitos a tributação em Portugal, nos termos dos artigos 5.º e 15.º do Código do IRS.
Sobre o desconhecimento das notificações da AT referentes à correção dos rendimentos e ao ato de liquidação de IRS, de que o Requerente refere só ter tomado conhecimento em janeiro de 2020, a Requerida considera que mesmas foram remetidas nos termos do artigo 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), operando a presunção de notificação prevista no n.º 5 do referido artigo.
Preconiza ainda a Requerida que a presunção de veracidade e de boa-fé consagrada no artigo 75.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), foi afastada, no caso concreto, nos termos do seu n.º 2, alíneas a) e b), cabendo ao Requerente, dada a omissão na sua declaração. Assim, a responsabilidade da prova e o dever de esclarecimento da situação tributária, face à informação recebida pelas autoridades de Jersey, que faz fé em conformidade com o disposto no artigo 76.º, n.º 4 da LGT, cabia ao sujeito passivo. Ou seja, o ónus da prova recaía sobre o Requerente, e não sobre a Requerida.
Em relação à alegada insuficiência de fundamentação, segundo a Requerida o Requerente foi notificado para comprovar os elementos das declarações e do imposto suportado no estrangeiro e entendeu perfeitamente o sentido e alcance do ato tributário, como revela no pedido de pronúncia arbitral.
Por fim, defende a Requerida que não se constata a prática de qualquer erro imputável aos serviços, pelo que não assiste ao Requerente o direito a juros indemnizatórios, devendo ser condenado em custas por ter dado azo à ação. Pugna pela improcedência da ação com a absolvição da Requerida de todos os pedidos.
Foram notificadas ambas as Partes, por despacho de 6 de outubro de 2020, da intenção de dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessária.
Em 9 de outubro de 2020, o Requerente juntou aos presentes autos o certificado de residência emitido pelas autoridades fiscais dos Estados Unidos da América, acompanhado da respetiva tradução, do que foi notificada a Requerida.
Por despacho de 20 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando como prazo para prolação da decisão arbitral o previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT. O Requerente foi ainda advertido em relação ao pagamento prévio da taxa arbitral subsequente.
Em 21 de outubro de 2020, a Requerida pronunciou-se no sentido de que a apresentação do certificado de residência fiscal por parte do Requerente comprovou que os rendimentos foram obtidos por um não residente fora do território português e, por essa razão, não estão sujeitos a tributação em Portugal devendo ser totalmente revogado o ato impugnado e julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, por falta de objeto, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Considera, porém, que o Requerente deve ser condenado nas custas processuais por não ter feito prova, à data do facto tributário e da consequente emissão da liquidação, da sua residência fiscal, junto da AT, por forma a obstar à prática do ato tributário, entendendo, por isso, ter sido aquele que deu causa à ação.
A Requerida procedeu à junção do despacho do Subdiretor Geral, de 19 de outubro de 2020, em concordância com a proposta de deferimento total da pretensão do Requerente, conforme constante da Informação elaborada pela Direção de Serviços das Relações Internacionais.
O Requerente, notificado para se pronunciar, em 27 de outubro de 2020 exprimiu a sua discordância, quer quanto à invocada inutilidade superveniente da lide, por não ter sido desencadeada no sistema informático a anulação parcial que a AT disse ter sido feita no articulado de Resposta e pela indefinição decisória expressa na proposta constante da Informação da Direção de Serviços das Relações Internacionais, quer quanto à sua condenação pelas custas do processo, tendo-se limitado a exercer o direito de impugnar o ato de liquidação de IRS indevidamente emitido. Reconhece que a desatualização do cadastro do Requerente lhe é imputável, mas justifica que o atraso na obtenção do certificado de residência se ficou a dever à pandemia.
Notificada para informar os autos sobre a efetiva revogação (anulação administrativa) do ato tributário de liquidação de IRS em causa, a Requerida comunicou nada mais haver a acrescentar à informação prestada.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária [23 de dezembro de 2019], por remissão para o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO
1. DE FACTO
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se consideram provados:
A. Em 2015, A..., aqui Requerente, era residente nos Estados Unidos da América, tanto para efeitos de tributação nesse país, como nos termos da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América, tendo deixado de ser residente em território português em 20 de fevereiro de 2015 – conforme certificado de residência emitido pelo departamento do Internal Revenue Service de Filadélfia, emitido em de 28 de setembro de 2020, e cartão de residência permanente (documento 3 junto com o ppa).
B. À data dos factos e posteriormente o Requerente consta no sistema cadastral da AT como tendo residência em Portugal, ...– ... em Albufeira – cf. PA e documento 9 junto com o ppa.
C. Foi apresentada declaração de rendimentos de IRS do Requerente, como residente em Portugal, referente ao ano 2015, na qual foram apenas reportados rendimentos do trabalho dependente desse ano, auferidos em Portugal (no período entre 01.01.2015 e 20.02.2015), no montante total de € 5.413,96. Esta declaração não incluiu o anexo J relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro e deu origem a uma liquidação a zeros, dada a dedução específica de montante equivalente ao rendimento global declarado – cf. documentos 4 e 5 juntos com o ppa.
D. Ao abrigo da Diretiva da Poupança - Diretiva 2003/48/CE -, transposta para o ordenamento jurídico interno pelo Decreto-Lei n.º 62/2005, de 11 de março, as autoridades fiscais de Jersey (Reino Unido) comunicaram à AT que, em 2015, o Requerente obteve os seguintes rendimentos de juros pagos pela entidade bancária B...:
a) USD 313.400,00/€ 287.866,26, com a natureza de “sales proceeds”;
b) GBP 129,66/€ 176,66, com a natureza de juros (interest);
c) USD 1.920,00/1.763,57, com a natureza de juros (interest);
– cf. documento 8 junto com o ppa e PA.
E. O Serviço de Finanças de Faro remeteu, por correio registado com aviso de receção, para a morada do cadastro do Requerente, o ofício n.º..., de 25.09.2019, relativo à omissão da declaração de rendimentos sob a forma de juros, abrangidos pela diretiva da poupança, de acordo com a informação recebida do território de Jersey, em relação ao ano 2015, no valor de € 289.806,49. Este oficio visava notificar o Requerente para o exercício do direito de audição e informar sobre a possibilidade regularização da situação tributária mediante entrega da correspondente declaração de substituição “contemplando todos os rendimentos obtidos em 2015, ou seja, incluindo os de fonte estrangeira e que deveriam constar do Anexo J” – cf. documento 6 junto com o ppa.
F. Um segundo ofício do mesmo teor foi remetido para a morada do cadastro do Requerente, sob o n.º..., com data de 08.10.2019, novamente por carta registada com aviso de receção, pelo Serviço de Finanças de Faro – cf. documento 7 junto com o ppa.
G. Ambos os ofícios foram devolvidos ao Serviço de Finanças com carimbo aposto pelos Correios de “não reclamado” – cf. PA.
H. Subsequentemente, foi emitida a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) emitida sob o n.º 2019..., relativa ao ano 2015, no montante total de € 126.602,86, que inclui € 9.895,78 de sobretaxa extraordinária e € 15.274,81 de juros compensatórios – cf. documento 1 junto com o ppa.
I. A nota de cobrança de IRS relativa ao valor de € 126.602,86 acabado de referir foi emitida com data limite de pagamento de 23.12.2019 – cf. documento 2 junto com o ppa.
J. Em 18 de fevereiro de 2020, o Banco B... veio esclarecer que as transações reportadas como “sales proceeds” às autoridades fiscais de Jersey para ano 2015, ao abrigo da Diretiva da Poupança, respeitavam a unidades [de participação] de três fundos detidas pelo Requerente e alienadas nas seguintes datas: 24.06.2015, 26.06.2015, 07.07.2015 – cf. documento 10 junto com o ppa.
K. Inconformado com liquidação de IRS de que foi alvo, o Requerente apresentou no CAAD, em 20 de março de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
L. Na Resposta apresentada pela Requerida na presente ação arbitral, esta confirmou que os rendimentos reportados pelas autoridades de Jersey como “sales proceeds”, no valor de € 287.866,26, não podem ser qualificados como juros, pois respeitam à alienação de unidades de participação em fundos de investimento, revestindo a natureza de mais-valias. Por esta razão, após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, foi parcialmente revogada a liquidação de IRS controvertida, por despacho da Sudiretora Geral da área do Imposto sobre o Rendimento e das Relações Internacionais – cf. Resposta.
M. Em 28 de setembro de 2020, as autoridades norte americanas emitiram o certificado de residência que atestando que o Requerente era residente nesse país, no ano 2015, quer para efeitos da sua tributação nos Estados Unidos da América, quer da aplicação da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre os Estados Unidos e Portugal, – cf. certificado de residência junto como documento superveniente.
N. A Direção de Serviços de Relações Internacionais elaborou uma informação na qual, com fundamento na prova entretanto junta [certificado de residência], conclui dever ser deferida a pretensão do Requerente – cf. Informação de 14.10.2020 junta pela Requerida.
O. Tendo por base esta Informação dos Serviços, a Subdiretora Geral determinou, por despacho de 19 de outubro de 2020, que se procedesse em conformidade com o proposto [deferimento total da pretensão da Requerente] – cf. despacho aposto na Informação de 14.10.2020 junta pela Requerida.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos e no consenso das Partes em relação à mesma.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
2. DE DIREITO
A. ANULAÇÃO OU “REVOGAÇÃO” DO ATO TRIBUTÁRIO IMPUGNADO
O Requerente suscita dúvidas sobre a efetividade da revogação do ato tributário em crise nos presentes autos arbitrais. Não tem, contudo, razão.
O despacho da Subdiretora Geral que remete para a proposta constante da Informação dos Serviços é claro ao determinar que se proceda em conformidade com a proposta dos Serviços, a qual, por seu turno, refere expressamente o “deferimento total da pretensão do requerente”.
Deste modo, constatando-se a existência de uma pronúncia do órgão administrativo competente em sentido concordante ao do deferimento total da pretensão do Requerente, que (interessa relembrar) se consubstancia na anulação do ato tributário e, bem assim, no pagamento de juros indemnizatórios, conforme deduzido no pedido de pronúncia arbitral, estamos perante um ato decisório que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos, numa situação individual e concreta, nos termos do disposto no artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).
Tal ato consubstancia, por isso, a anulação administrativa que determinou a destruição dos efeitos da liquidação de IRS em discussão, com fundamento na respetiva invalidade (artigo 165.º, n.º 2 do CPA) correspondendo, na anterior terminologia, à denominada revogação do ato. Do ponto de vista jurídico o ato foi invalidado e cessou qualquer fundamento para a sua produção de efeitos. Por outro lado, a anulação implica a reposição do statu quo ante, com a consequência repristinatória da situação que se verificaria caso o mencionado ato (de liquidação) não tivesse sido praticado (reconstituição atual hipotética).
Problema distinto é o de saber se os atos materiais de execução necessários, nomeadamente de inserção no sistema informático da Requerida, foram realizados. Esta questão suscitada pela Requerente coloca-se no plano da execução da decisão anulatória e não é suscetível de pôr em causa a própria decisão, a sua validade e vigência. No limite, se esta [decisão não for executada] estar-se-á perante o incumprimento de um dever que recai sobre a Administração, podendo o Requerente empregar os meios ao seu dispor no CPA (artigos 175.º e seguintes) e no Código de Processo dos Tribunais Administrativos (“CPTA”, artigo 157.º, n.º 2), pois dispõe de um título juridicamente válido (o ato anulatório).
À face do exposto, conclui-se que foi efetivamente “revogado” (anulado administrativamente) o ato tributário de liquidação de IRS referente aos rendimentos do Requerente no ano 2015 e que a decisão do órgão competente ao referir-se ao “deferimento total da pretensão” daquele, implica a abrangência, quer do pedido principal deduzido (anulação da liquidação) quer do pedido dependente de juros indemnizatórios, pois só assim o deferimento da pretensão será “total”.
Não se compreende que tendo a Requerida determinado o deferimento total da pretensão do Requerente, venha de seguida opor-se ao pagamento de juros indemnizatórios, quando essa decisão já foi por si tomada em sentido favorável. Como atrás se referiu, a interpretação do deferimento total da pretensão do Requerente não pode deixar de abranger o pedido inteiro, completo, i.e., no seu conjunto: anulação do imposto mais juros, sob pena de aniquilação do sentido útil do emprego do adjetivo “total”.
Em síntese, conclui-se que o ato praticado pela Subdiretora Geral, em 19 de outubro de 2020, é um ato decisório que determinou a eliminação jurídica do ato de liquidação de IRS objeto desta ação arbitral, implicando, de igual forma, o deferimento da pretensão de juros indemnizatórios.
B. IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Como se referiu, o ato tributário sindicado, foi anulado por despacho de 19 de outubro de 2020, data em que já se encontrava constituído este Tribunal Arbitral (o que se verificou em 5 de agosto de 2020).
Neste âmbito, importa compulsar o artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.
A impossibilidade da lide ocorre quer em caso de morte ou extinção de uma das partes, quer por desaparecimento do objeto do processo ou extinção de um dos interesses em conflito.
A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tenha qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.
A pretensão formulada pelo Requerente, de anulação do ato tributário de liquidação de IRS e juros compensatórios, ficou prejudicada pela decisão administrativa de “revogação” daquele (artigo 79.º, n.º 1 da LGT), que produziu os seus efeitos já na pendência da instância arbitral. Estamos, desta forma, perante uma vicissitude superveniente que eliminou o objeto da pretensão impugnatória deduzida pelo Requerente [a liquidação adicional de IRS e juros].
Com efeito, com a anulação administrativa pela AT, os efeitos jurídicos dos atos tributários são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o disposto no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral de 4 de novembro de 2013, no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”. Em consequência, deve extinguir-se a instância processual, por se encontrar desprovida de objeto, nos termos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
C. QUESTÃO TEMPORAL
Poderia suscitar-se a dúvida sobre a tempestividade da anulação administrativa, atendendo a que já havia decorrido o prazo de 30 dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, estabelecido no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT para a AT proceder à “revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo”, estipulando o n.º 3 desta norma que, findo este prazo, “a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”.
O preceito em apreço deve ser interpretado no sentido de que, uma vez transcorrido o mencionado prazo de 30 dias, a AT fica impedida de praticar um novo ato dispositivo que regule a relação jurídico-tributária, relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, exceto com fundamento em factos novos. Porém, esta restrição não ocorre em caso de simples anulação administrativa do ato impugnado, desacompanhada de nova regulação da situação jurídica.
Nesta última hipótese, afigura-se não merecer tutela o princípio da estabilidade da instância subjacente às limitações legais à atuação administrativa no decurso de pendência jurisdicional, uma vez que a Parte vem, simplesmente, reconhecer que à outra assiste razão, com fundamento material na lei, e, nessa medida, permitir a resolução antecipada do litígio e consequente extinção da instância, com economia processual e de meios. Deixou de existir razão para a subsistência do litígio, pois, ainda que em momento superveniente, foi gerado consenso suportado na convergência das partes quanto ao regime legal aplicável.
Esta interpretação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo em relação ao processo de impugnação judicial, que é regido pelo artigo 112.º do CPPT , o qual estabelece uma disciplina similar à do artigo 13.º, n.ºs 1 e 3 do RJAT, este último aplicável à ação arbitral tributária. Constituindo o processo arbitral tributário um meio alternativo à impugnação judicial, é inegável a manifesta identidade de razões, a que acresce o facto de o CPA e as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários serem de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º n. º1, alíneas c) e d) do RJAT.
Sobre a aplicação do regime do CPA à “revogação” de atos administrativos em matéria tributária preconiza o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 15 de março de 2017, no processo n.º 449/14, que:
“A possibilidade legal de revogação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um ato que faz cessar ou elimina os efeitos de um ato anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respetivo regime previsto nos arts. 138° a 146° do CPA).
Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário – arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)]. […]”
No mesmo sentido da aplicabilidade do regime da invalidade administrativa aos atos em matéria tributária voltou o Supremo Tribunal Administrativo a pronunciar-se no Acórdão de 17 de dezembro de 2014, relativo ao processo n.º 454/14.
Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3 do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão. É, assim, de concluir pela tempestividade da anulação administrativa efetuada por despacho de 19 de outubro de 2020 que, ao dar satisfação integral à pretensão anulatória incidente sobre o ato tributário em crise, retira à lide arbitral o seu objeto, pelo que se julga extinta a instância processual, em conformidade com o disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
D. RESPONSABILIDADE PARA EFEITOS DE CUSTAS
A emissão do ato de liquidação de IRS aqui impugnado derivou do erro de enquadramento do Requerente como fiscalmente residente em Portugal, quando este já era residente nos Estados Unidos da América e aí sujeito a tributação. Erro este que se ficou a dever à omissão do dever de declarar a alteração de residência, por parte do Requerente, e que este reconhece, afirmando até que se reconduz à sua “punibilidade por contraordenações praticadas”.
Com efeito, se o Requerente tivesse oportunamente alterado a sua residência no cadastro da AT, a sua condição de não residente não teria atraído a tributação em sede de IRS de rendimentos de “juros” de fonte estrangeira. Nestes termos, não pode deixar de considerar-se que foi o Requerente que deu causa à ação arbitral, pelo que sobre o mesmo deve impender a responsabilidade de pagamento das custas processuais.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (v. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT), nomeadamente em relação aos vícios imputados ao ato tributário anulado.
IV. DECISÃO
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
(a) Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, abrangendo quer o pedido de anulação do ato de liquidação adicional de IRS emitido com referência aos rendimentos do Requerente do ano 2015, sob o n.º 2019 500571006, quer o pedido de juros indemnizatórios;
(b) Condenar o Requerente nas custas do processo, por ter dado azo à ação,
tudo com as legais consequências.
V. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de € 126.602,88, por ser aquele que corresponde à liquidação adicional de IRS cuja anulação se pretende, nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, e do artigo 3.º, n, º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VI. CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, 527.º e 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerente, uma vez que deu causa à ação (ao ter incumprido os seus deveres declarativos de cessação de residência fiscal em Portugal, gerando por essa via a emissão do ato de liquidação).
Notifique-se.
Lisboa, 4 de fevereiro de 2021
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins
José Ramos Alexandre
José Rodrigo de Castro