Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 239/2020-T
Data da decisão: 2020-10-26  IRC  
Valor do pedido: € 131.868,40
Tema: IRC; Tributações autónomas; Aplicação de jurisprudência uniformizada; SIFIDE.
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DECISÃO ARBITRAL

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelos outros Árbitros), Dra. Filomena Salgado Oliveira e Dra. Carla Castelo Trindade, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 18-08-2020, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

               

A..., S.A., anteriormente designada B..., S.A. e antes disso. C..., S.A., pessoa coletiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede no ..., ...-... Barreiro (doravante designada como “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação dos seguintes actos:

– despacho da Diretora de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), proferido em 27-01-2020, que indeferiu parcialmente o pedido de revisão oficiosa n.º ...2018..., relativo ao IRC do período de tributação correspondente ao ano de 2013, do grupo de que a Requerente era sociedade dominante;

– do acto tributário de autoliquidação de IRC relativo a 2013 constante da declaração Modelo 22 de IRC do grupo de substituição submetida em 18-06-2015, identificada pelo n.º..., espelhada na demonstração de liquidação de IRC de 2013 do grupo com o n.º 2015 ... e data de 10-08-2015, no montante de € 56.053,55, correspondente a tributação autónoma, e o consequente reembolso desta quantia à Requerente;

– despacho da Diretora de Serviços do IRC, proferido em 27-01-2020,  que indeferiu o pedido de revisão oficiosa n.º ...2018..., relativo ao IRC do período de tributação correspondente ao ano de 2014, do grupo de que a Requerente era sociedade dominante;

– a anulação do ato tributário de autoliquidação de IRC relativo a 2014 constante da declaração Modelo 22 de grupo de substituição submetida em 24-06-2015 e identificada pelo n.º..., espelhada na demonstração de liquidação de IRC de 2014 do grupo com o n.º 2015... e data de 10-08-2015, no montante de € 75.814,85, correspondente a tributação autónoma, e o consequente reembolso desta quantia à Requerente;

– a condenação da Fazenda Pública no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa anual de 4%, sobre a prestação tributária indevidamente paga, nos termos previstos nos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), e 100.º da LGT, ex vi artigo 24.º, n.º 5, do RJAT;

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 28-04-2020.

Em 17-07-2020, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 18-08-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente, invocando o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 08-07-2020, proferido no processo n.º 10/20.1BALSB.

Por despacho de 01-10-2020 foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

As Partes não apresentaram alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente é uma sociedade anónima de direito português cujo objeto social consiste na produção e venda de fibras acrílicas e respetiva comercialização, bem como quaisquer outras atividades com ela conexas ou relacionadas;

b)           A Requerente encontra-se abrangida pelo regime geral de tributação em sede de IRC e o seu período de tributação, nos exercícios de 2013 e 2014, correspondia ao ano civil;

c)            Nos períodos de tributação correspondentes aos anos de 2013 e 2014, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo fiscal para os efeitos do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”);

d)           No perímetro do grupo incluía-se a D..., Sociedade Unipessoal, Lda., pessoa coletiva e contribuinte fiscal n.º 501411569 (“D...”);

e)           Em 30-05-2014, a Requerente, enquanto sociedade dominante do grupo submetido ao RETGS, entregou a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC do grupo relativa a 2013, a qual foi identificada pelo n.º ... (Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

f)            A declaração individual da D... relativa ao exercício de 2013 foi submetida em 28-05-2014 e identificada pelo n.º ... (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

g)            Em 18-06-2015, a Requerente apresentou uma declaração Modelo 22 de IRC do grupo de substituição relativamente a 2013, identificada pelo n.º ..., em que apurou uma matéria coletável não isenta (lucro tributável do grupo) no montante de € 2.135.769,80, derrama estadual no montante de € 14.485,00 e um valor a pagar a título de tributações autónomas de € 56.053,55 (Documento  n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

h)           A matéria tributável apurada na declaração referida na alínea anterior foi, posteriormente, espelhada na demonstração de liquidação de IRC de 2013 do grupo com o n.º 2015... e data de 10-08-2015 (Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

i)             A Requerente dispunha, no período de tributação de 2013, de um crédito fiscal total relacionado com o Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE”) de € 2.807.297,83, correspondente à soma do saldo transitado e não deduzido em períodos anteriores (€ 2.651.744,60) e do montante gerado no próprio exercício de 2013 (€ 155.553,23) (quadro 073 do Anexo D da declaração Modelo 22 de substituição do grupo de 2013 junta como Documento n.º 3);

j)             Foi deduzido à coleta de IRC do grupo do exercício de 2013 o montante de benefícios fiscais de € 533.942,45, todo ele respeitante ao SIFIDE, tendo o remanescente (€ 2.273.355,38) transitado para os  exercícios seguintes (quadro 073 do Anexo D da declaração Modelo 22 de substituição do grupo junta como Documento n.º 3 e linhas 12 e 14 da demonstração de liquidação junta como Documento n.º 4, cujo teor se dá como reproduzido);

k)            Em 29-05-2015, a Requerente, enquanto sociedade dominante do grupo submetido ao RETGS, entregou a declaração anual de rendimentos Modelo 22 de IRC do grupo relativa a 2014, a qual foi identificada pelo n.º ... (Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

l)             A declaração individual da D... relativa ao exercício de 2014 foi submetida em 29 de maio de 2015 e identificada pelo n.º ... (Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

m)          Em 24-06-2015, a Requerente apresentou uma declaração Modelo 22 de IRC do grupo de substituição relativamente a 2014, identificada pelo n.º ..., na qual apurou uma matéria coletável não isenta (lucro tributável do grupo) no montante de € 307.663,64 e um montante a pagar a título de tributações autónomas de € 75.814,85 (Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

n)           A matéria tributável apurada na declaração referida na alínea anterior foi, posteriormente, espelhada na demonstração de liquidação de IRC de 2014 do grupo com o n.º 2015 ... e data de 10-08-2015 (Documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

o)           A Requerente dispunha, no período de tributação de 2014, de um crédito fiscal total de SIFIDE de € 2.433.371,54, correspondente à soma do saldo transitado e não deduzido em períodos anteriores (€ 2.273.355,38) e do montante gerado no próprio exercício de 2014 (€ 160.016,16) (quadro 073 do Anexo D da declaração Modelo 22 de substituição do grupo de 2014 junta como Documento n.º 7);

p)           Foi deduzido à coleta de IRC do grupo no exercício de 2014 o montante de benefícios fiscais de € 70.762,64, todo ele respeitante ao SIFIDE, tendo o remanescente (€ 2.362.608,90) transitado para os exercícios seguintes (quadro 073 do Anexo D da declaração Modelo 22 de substituição do grupo junta como Documento n.º 7 e linhas 12 e 14 da demonstração de liquidação junta como Documento n.º 8); 

q)           Em 19-02-2018, a Requerente apresentou, com base no disposto no artigo 78.º, n.ºs 1 e 2, da Lei Geral Tributária (“LGT”), um pedido de revisão da autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2013 constante da declaração Modelo 22 de substituição do grupo submetida em 18-06-2015 e identificada pelo n.º..., tendo aí requerido, a final, “a) A dedução da importância relativa ao benefício fiscal SIFIDE (…) à colecta da derrama estadual apurada, e até à sua concorrência, no montante de € 14.485,00; b) A dedução da importância relativa ao benefício fiscal SIFIDE (…) à coleta da tributação autónoma apurada, e até à sua concorrência, no montante de € 56.053,55; c) O reembolso da derrama estadual apurada no montante de € 14.485,00, peticionando-se desde já os respetivos juros indemnizatórios (…); d) O reembolso da tributação autónoma apurada no montante de € 56.053,55, peticionando-se desde já os respetivos juros indemnizatórios (…)”;

r)            Pelo ofício da Direção de Serviços do IRC datado de 20-11-2019, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre o projeto de indeferimento parcial do pedido de revisão da autoliquidação de IRC de 2013 (Documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

s)            No referido projecto, a Direção de Serviços do IRC argumentou, por um lado, que “1 – A coleta do grupo apurada nos termos do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC deve incluir a derrama estadual com a consequente aceitação das deduções relativas a benefícios fiscais (SIFIDE), previstas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC, até à concorrência da coleta do grupo; 2 – Assim não tendo ocorrido, tal facto traduz-se num erro imputável aos serviços, passível de correção mediante a revisão oficiosa da liquidação de IRC do ano de 2013, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2 do art.º 78.º da LGT”;

t)            O projecto de (in)deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC de 2013 foi convolado em decisão definitiva por despacho da Diretora de Serviços do IRC de 27-01-2020 (Documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

u)           Também em 19-02-2018, a Requerente apresentou, com base no disposto no artigo 78.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, um pedido de revisão da autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2014 constante da declaração Modelo 22 de substituição do grupo apresentada em 24 de junho de 2015 e identificada pelo n.º 2160-C1459-10, tendo aí requerido, a final, “a) A dedução da importância relativa ao benefício fiscal SIFIDE (…) à coleta da tributação autónoma apurada, e até à sua concorrência, no montante de € 75.814,85; b) O reembolso da tributação autónoma apurada no montante de € 75.814,85; c) Adicionalmente, peticionam-se os juros indemnizatórios devidos (…)”;

v)            Por ofício da Direção de Serviços do IRC datado de 20-11-2019, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre o projeto de indeferimento do pedido de revisão da autoliquidação de IRC de 2014 (Documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

w)          O projecto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC de 2014 foi convolado em decisão definitiva por despacho da Diretora de Serviços do IRC de 27 de janeiro de 2020 (Documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

x)            Em 27-04-2020, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente.

 

3. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do processo é a de saber se as despesas de investimento que beneficiam do SIFIDE podem ser deduzidas às quantias devidas a título de tributações autónomas em IRC relativas aos exercícios de 2013 e 2014.

A questão coloca-se por o regime do SIFIDE II aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55 A/2010, de 31 de Dezembro, para vigorar entre 2011 e 2015, prever, no artigo 4.º, n.º 1, do respetivo regime, que os sujeitos passivos podiam «deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento».

Na mesma linha, o Código Fiscal do Investimento (CFI), para que foi transferida regulamentação legal do SIFIDE II, para vigorar nos anos de 2014-2020 (artigo 35.º), estabelece  no seu artigo 38.º, n.º 1, que «os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante da coleta do IRC apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento».

Estas referências «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC» e «ao montante da coleta do IRC apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC» foram objecto de interpretações divergentes na jurisdição arbitral, sendo proferidas várias decisões no sentido de nesse montante se incluir a colecta de IRC derivada de tributações autónomas (   ) e várias decisões em sentido contrário. (   )

Entretanto, foram publicadas alterações ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC (actual n.º 22), com declaradas pretensões interpretativas, pelas Leis n.ºs 7-A/2016, de 30 de Março (artigo 135.º), e 114/2017, de 29 de Dezembro (artigo 233.º), sobre que se suscitaram dúvidas de inconstitucionalidade que vieram a justificar decisões do Tribunal Constitucional no sentido da sua inconstitucionalidade por violação da proibição da retroatividade dos impostos que consta do n.º 3 do artigo 103.º da CRP (   ) e também da sua constitucionalidade. (   )

Recentemente, o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, em Recurso para Uniformização de Jurisprudência, pronunciou-se sobre a questão da interpretação daquelas normas do SIFIDE, no acórdão de 08-07-2020, processo n.º 010/20.1BALSB, em que decidiu o seguinte, em sumário:

I - As tributações autónomas, embora liquidadas no âmbito do IRC, constituem uma imposição fiscal material e estruturalmente distinta deste.

II - Para não frustrar os objectivos tributários prosseguidos com a tributação através de tributações autónomas não são admitidas deduções à respectiva colecta que não estejam expressamente previstas na lei, designadamente, está excluída a possibilidade de dedução dos montantes apurados a título do benefício fiscal SIFIDE II, aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010.

III - Esta interpretação normativo-legal dos preceitos tributários do CIRC e do Regime legal do SIFIDE II não foi alterada com a introdução do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC por efeito da aprovação da Lei n.º 7-A/2016.

 

Na fundamentação deste acórdão, refere-se, além do mais, o seguinte:

 

3.2. Da dedução à colecta das tributações autónomas de montantes de benefícios fiscais do SIFIDE II

 

3.2.1. O pressuposto material em que repousa a decisão arbitral fundamento baseia-se, como dissemos, em jurisprudência consolidada do STA quanto à qualificação das tributações autónomas como imposição fiscal diversa do IRC e, nessa medida, não subordinadas às regras gerais da liquidação daquele imposto, designadamente à regra da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, que estabelece a dedução dos benefícios fiscais (neste caso os valores apurados segundo as regras do SIFIDE II) à colecta do IRC no âmbito das operações de liquidação do mesmo.

Com base neste pressuposto, conclui a decisão arbitral fundamento que o disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial (SIFIDE II), aprovado pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (LOE/2011), ao estipular que “[…] Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português (…) podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação […]” , não autoriza a dedução daqueles valores à colecta das tributações autónomas apuradas conjuntamente com os exercícios fiscais.

Segundo a decisão arbitral fundamento, a pretendida dedução afigura-se substancialmente incompatível com o próprio conceito normativo de tributações autónomas e o seu respectivo regime jurídico. Já para a decisão arbitral recorrida não existe um fundamento jurídico válido para subtrair a colecta das tributações autónomas da referida dedução.

Em sentido contrário, para a decisão arbitral fundamento o direito à dedução dos montantes apurados em sede daqueles benefícios fiscais apenas é possível no âmbito da colecta de IRC. Se não existir colecta daquele imposto (se a mesma for nula por não ter saldo positivo) ou se o respectivo montante se revelar insuficiente para permitir a dedução da totalidade dos valores apurados em sede de benefícios fiscais, essa dedução (total ou parcial) não pode ter lugar. Em outras palavras, não sendo possível promover a dedução dos montantes apurados a título de benefício fiscal SIFIDE II à colecta de IRC, como determina o artigo 4.º, n.º 1 do SIFIDE II, também não é possível promover a respectiva dedução a uma realidade tributária substancialmente diversa, como é o caso da colecta das tributações autónomas, apenas pela circunstância de a mesma se apurar conjuntamente com o IRC.

 

3.2.1.1. E na circunstância de o montante apurado do benefício fiscal SIFIDE II “exceder” a colecta de IRC e, por essa razão, não ter objecto a que poder ser deduzido, uma vez que nesta operação não pode entrar a colecta das tributações autónomas, tal não consubstancia, qualquer “restrição” ou “interpretação restritiva” do artigo 4.º do SIFIDE II na redacção aprovada pelo artigo 133.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro. Estamos apenas – repita-se – perante o regime geral do imposto do IRC relativamente ao qual as tributações autónomas constituem realidade tributária substancialmente diversa, sendo este o fundamento para a inadmissibilidade da dedução. Não estamos ante nenhuma interpretação restritiva da norma, uma vez que a colecta das tributações autónomas não integra aquela previsão normativa.

 

3.2.2. É também com base neste pressuposto de qualificação jurídico-tributária das tributações autónomas como tributação de natureza jurídica diversa do IRC que a decisão arbitral fundamento conclui pelo não direito à dedução do benefício fiscal do SIFIDE II à colecta daquelas tributações e pela irrelevância da questão de constitucionalidade do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, uma vez que a “nova redacção” do artigo 88.º do CIRC aprovada em 2016, a que o legislador veio atribuir “natureza interpretativa” e que num acórdão do Tribunal Constitucional surge qualificada (como veremos) como norma com conteúdo inovador, é, no entendimento daquela decisão, irrelevante para a decisão do caso.

Uma solução que resulta expressamente do seguinte trecho da decisão arbitral fundamento:

«[…] Atento o acima exposto, conclui-se, desta forma, pela ilegalidade da dedutibilidade do SIFIDE à colecta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (OE para 2016), ao artigo 21.º do artigo 88.º do Código do IRC, nos termos do qual “a liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”

Assim sendo, deixa de fazer sentido a invocada inconstitucionalidade do nº 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de Março, por violação do princípio da retroactividade da lei, proibida pelo artigo 103.º, nº3, da CRP, na medida em que tal normativo não é convocado sequer na resolução do caso em apreço.

Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que não assiste razão à Requerente, pelos fundamentos acima invocados, no que respeita à possibilidade de dedução do benefício fiscal relativo ao “SIFIDE” à colecta das tributações autónomas relativas ao exercício de IRC de 2011 […]».

E é contra este entendimento que a Recorrida se insurge nas suas contra-alegações, ao afirmar que a interpretação do artigo 90.º do CIRC em que repousa a decisão arbitral fundamento viola o sentido do que foi decidido no acórdão n.º 267/2017 do Tribunal Constitucional.

 

3.2.3. Do que vimos de dizer depreende-se que para a decisão do presente caso importa compulsar a orientação perfilhada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 267/2017 e o que sobre ela se explicita no acórdão n.º 107/2018. Decisões pelas quais aquele Tribunal, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, julgou inconstitucional o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, com fundamento em violação da regra consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição de proibição de criação de imposto com natureza retroactiva. Apesar de decidirem de forma coincidente, não há, como veremos, total coincidência entre estes acórdãos, sendo a respectiva diferença ― que se deve interpretar como complementaridade ― muito significativa.

O acórdão n.º 267/2017 conclui pela inconstitucionalidade do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016 por entender que a alteração da redacção do artigo 88.º do CIRC (em especial o aditamento do n.º 21) assume conteúdo inovador quanto à proibição de dedução à colecta das tributações autónomas do montante apurado em sede de pagamento especial por conta.

Este aresto, embora com eficácia limitada ao processo em que foi proferido (artigo 80.º, n.º 1 da LTC (Lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actualizada.)), parece, numa primeira leitura, revelar que o Tribunal Constitucional, em linha, de resto, com um pendor já assinalado ao acórdão n.º 18/2011, vem, pela via da “constitucionalização material das questões”, “interferir metodologicamente” com a competência deste Supremo Tribunal Administrativo no que respeita à “última palavras” quanto à interpretação jurídico-legal das normas tributárias e à qualificação dos respectivos conceitos jurídicos. Vejamos.

 

3.2.3.1. No acórdão n.º 267/2017, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma em que a AT se baseara para impedir a dedução do valor do pagamento especial por conta à colecta das tributações autónomas de IRC relativas ao exercício fiscal de 2012, com o fundamento de que essa impossibilidade de dedução resultava exclusivamente da alteração da redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzida pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, à qual o artigo 135.º da mesma lei atribuíra a qualificação de norma interpretativa, sendo essa qualificação afastada pelo Tribunal Constitucional, que a classificou, como já dissemos, como norma de conteúdo inovador e, enquanto tal, violadora da regra contida no n.º 3 do artigo 103.º da CRP (proibição de criação de impostos retroactivos) (Sublinhe-se que a decisão arbitral fundamento “afasta” a jurisprudência vertida neste acórdão ao concluir que in casu é desnecessário lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (OE para 2016), ao artigo 21.º do artigo 88.º do Código do IRC.).

A questão crítica relativa a esta decisão prende-se com o facto de no exercício hermenêutico que levou a efeito para alcançar o resultado da inconstitucionalidade,o Tribunal Constitucional ter, aparentemente, adentrado metodologicamente no âmbito da qualificação jurídica de conceitos jurídico-tributários, substituindo-se inevitavelmente à interpretação e qualificação jurídica que o Supremo Tribunal Administrativo havia feito das tributações autónomas (Uma “sobreposição” de competência material para a qual expressamente se alerta no voto de vencido que acompanha esta decisão, como, de resto, já havia sucedido no acórdão n.º 18/2011 e na respectiva declaração de voto que o acompanha.), como resulta expressamente do excerto seguinte:

«[…]Em suma, a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico, mas antes desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa. A despesa objeto de tributação constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação, sendo a sua realização assumida pelo legislador como facto revelador da capacidade contributiva.

Porém, a autonomia da tributação em apreço quanto à sua base de incidência, quanto às taxas aplicáveis e até quanto ao momento de pagamento, só por si, não determina – nem lógica nem juridicamente – a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento da coleta do próprio IRC – questão regulada, em geral, no artigo 90.º, n.º 1, do CIRC –, nomeadamente quanto à integração daquela nesta última e, por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeito da realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Tal questão, na ausência de norma específica de sentido contrário – como aquela que, por exemplo, veio a ser consagrada no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC – releva da própria configuração legislativa do IRC, nesta incluída a relevância ou irrelevância, para efeitos de apuramento da coleta final de IRC, dos montantes pagos a título de tributações autónomas […]» (destacados nossos).

Com efeito, a qualificação que este aresto assim, aparentemente, opera da colecta das tributações autónomas como “parte integrante da configuração legislativa do IRC” consubstancia uma pronúncia pouco clara, que está na base de alguma confusão que perpassa nas contra-alegações do presente recurso, e que pode ser interpretado como extrapolando o âmbito da “questão de constitucionalidade”, e assim afectando o âmago da tarefa jurisdicional de interpretação legal da norma fiscal e de qualificação de uma categoria tributária, como são as tributações autónomas.

A admitir-se uma tal interpretação daquela decisão do Tribunal Constitucional, a mesma estaria até em contradição com a orientação que havia sido firmada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2015, em que, chamado a apreciar a conformidade constitucional das tributações autónomas a se com os princípios fundamentais da tributação das empresas pelo rendimento real, da capacidade contributiva, da igualdade fiscal, da proporcionalidade e da protecção do direito de propriedade, aquele Tribunal havia afirmado que:

“[…] a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

[…]

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12) […]”

Como a dado passo se diz no aresto que vimos de citar, as tributações autónomas revelam capacidade contributiva a partir das despesas (“evitáveis”, porque não, ou não estritamente, ligadas à actividade empresarial) que constituem o respectivo facto tributário, pelo que o contribuinte tem, nos casos em que realiza essas despesas, de estar em condições de suportar o encargo fiscal que elas representam:

“[…] A lógica da tributação autónoma a que se referem as disposições do n.º 13 do artigo 88.º parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para atribuir aos seus gestores indemnizações excessivas e não contratualmente previstas e que não têm direta relação com o desempenho individual na obtenção de resultados económicos positivos. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.

A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização despesa […]”.

Não ignoramos que, como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo também tem admitido, o legislador tem vindo a alargar a categoria das tributações autónomas e a torná-la cada vez mais complexa e difícil de recortar dogmaticamente como categoria unitária – v., por todos, acórdão de 27 de Setembro de 2017 (proc. 146/16), onde se conclui que não obstante as tributações autónomas não constituírem imposto sobre o rendimento, elas também não podem qualificar-se como encargos fiscais dedutíveis, uma vez que o intérprete e primacial aplicador da lei deve assegurar que aquela espécie tributária cumpre integralmente a sua função sistémica no ordenamento jurídico tributária, qual seja, mormente, a de assegurar que despesas não intrinsecamente empresarias possam ser aproveitadas no âmbito da tributação do rendimento empresarial como forma de desagravamento da tributação geral dos rendimentos dessas actividades:

«[…] Tanto mais que, a nosso ver, a teleologia das tributações autónomas impõe a recusa da dedutibilidade dos encargos fiscais suportados com as mesmas. Essa recusa é evidente relativamente àquelas despesas que não são, elas mesmas, dedutíveis para efeitos de determinação da matéria tributável, como é o caso das despesas não documentadas e quanto às importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal privilegiado. Mas também nos casos – como o de que ora nos ocupamos – em que as tributações incidem sobre encargos fiscalmente dedutíveis, mal se compreenderia que a intenção do legislador, que é a de atenuar ou mesmo anular o efeito financeiro decorrente da dedução, fosse depois contrariada pela dedução dos encargos com essas tributações. Se a tributação autónoma serve, nestes casos, para fazer face à dificuldade de controlo rigoroso de despesas da carácter empresarial e de carácter pessoal, desincentivando a realização das mesmas, e para compensar a perda de receita fiscal decorrente dessa realização, constituindo, ao final, uma redução do montante dos custos dedutíveis na determinação da matéria tributável, não faria sentido que, depois, fosse permitir a dedução dos encargos com a tributação autónoma […]».

Ora, partindo desta compreensão interpretativa geral das tributações autónomas, que este Supremo Tribunal Administrativo continua a sufragar, admitir que as deduções que não podem ser efectuadas à colecta de IRC por ausência ou insuficiência desta pudessem ser deduzidas à colecta das tributações autónomas, seria frustrar a razão de ser desta categoria tributária autónoma.

Por todas estas razões, nunca poderia resultar da fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017 uma “adulteração” do conceito legal e da racionalidade jurídico-tributária das tributações autónomas, tal como ela é definida por este Supremo Tribunal Administrativo. Sobretudo, porque estamos ante uma questão de interpretação da legalidade tributária (alheia às competências do Tribunal Constitucional) e não uma questão de constitucionalidade.

E, de facto, não foi isso que se pretendeu com aquela jurisprudência, como, de resto, é expressamente dito no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 107/2018, quando aí se destrinça a dimensão funcional do exercício judicativo de cada uma das jurisdições, deixando expressamente afirmado o seguinte:

«[…] O Tribunal Constitucional não «sufragou» qualquer interpretação da lei em matéria de deduções dos pagamentos especiais por conta aos montantes das tributações autónomas que integram a colecta do IRC. Não o fez, desde logo, por não lhe compete determinar o sentido da lei, mas apenas apreciar a constitucionalidade da lei com o sentido que lhe foi fixado pelas instâncias. Daí decorre que o facto de certa interpretação da lei ser inconstitucional, no juízo do Tribunal Constitucional, não implica a adesão a qualquer interpretação alternativa da lei, nem sequer o juízo de que tal interpretação, a vir a ocorrer, não é inconstitucional; significa apenas que a interpretação que constitui o objeto do recurso ─ e apenas essa ─ é inconstitucional. Em todo o caso, no Acórdão n.º 267/2017, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC ─ nos termos da qual os pagamentos especiais por conta não podem ser deduzidos aos montantes das tributações autónomas -, mas a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que lhe atribui natureza interpretativa (e, por essa via, nos termos das regras gerais, efeito retroativo). A constitucionalidade da solução consagrada no n.º 21 do artigo 88.º não esteve, nesse ou no presente recurso, em causa. Mais: o que o Tribunal julgou inconstitucional foi a imposição legal de determinado sentido, o que em nada impede que o mesmo sentido seja alcançado através da interpretação jurisdicional da lei, ou seja, não porque o legislador a impôs, mas porque entente o tribunal do caso que essa é a interpretação correta da lei […]».

Em suma, como decorre, cristalinamente, do excerto antes transcrito, o decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017 não contende com a interpretação e qualificação que o Supremo Tribunal Administrativo sempre fez das tributações autónomas.

3.2.4. A conclusão que, aparentemente, a Recorrida pretende extrinsecar do acórdão n.º 267/2017 do Tribunal Constitucional é resultante de uma incorrecta compreensão da metodologia do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, como aqui procuramos esclarecer.

O objecto do controlo na fiscalização concreta ― “os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restrito à questão da inconstitucionalidade (…) suscitada no âmbito de um processo” (artigo 71.º, n.º 1 da LTC) ― desencadeia permanentes dificuldades metodológicas, não só na destrinça entre “a norma que serviu de parâmetro de decisão ao caso” (o objecto do controlo) e a “decisão judicial que aplicou essa norma” (a qual não integra o objecto do recurso), mas também quanto ao sentido que as decisões positivas e negativas de constitucionalidade podem assumir. O Tribunal Constitucional atem-se ao parâmetro de decisão mobilizado pelo julgador do Tribunal a quo, ou seja, à interpretação da norma legal em que se fundou a decisão do caso, ignorando o sentido da decisão material recorrida, pois a sua competência é restrita à questão normativa da constitucionalidade da norma aplicada como parâmetro de decisão e não abrange a cassação das decisões recorridas, nem envolve qualquer poder de julgamento em substituição.

Mas a questão pode tornar-se mais complexa quando o parâmetro normativo convocado e aplicado pelo Tribunal a quo envolva, simultaneamente, a qualificação jurídico-material do conceito atinente à área jurídica a que respeita a questão controvertida e a sua interpretação (sua, leia-se, do tribunal a quo) em conformidade com a constituição ― ou, numa formulação metodológica que nos parece mais correcta, o tribunal constitucional seja chamado a controlar a conformidade constitucional do sentido normativo-conceitual alcançado segundo as regras da hermenêutica jurídica aplicadas à área jurídica a que o conceito pertence a partir da interpretação constitucional do mesmo construída e aplicada pelo Tribunal a quo ― é neste caso que surgem os aparentes conflitos positivos de competência como aquele que a Recorrida entende que está aqui presente, mas que na realidade não existe.

O que foi decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017, e reiterado no acórdão n.º 107/2018, foi apenas a inconstitucionalidade do segmento normativo, consagrado no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, que impunha a interpretação e aplicação aos casos controvertidos anteriores da solução explicitada no novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC. A dimensão inovadora e merecedora de censura constitucional é, no entendimento daqueles arestos, apenas a que resulta da obrigação de aplicação do sentido fixado no n.º 21 do artigo 88.º do CIRC a factos tributários anteriores à sua entrada em vigor e não o conteúdo dessa norma tributária.

Assim, é evidente que: primeiro não resulta das referidas decisões do Tribunal Constitucional que seja inconstitucional a inadmissibilidade de deduzir à colecta das tributações autónomas o montante do pagamento especial por conta (lembre-se que era esta a questão discutida); segundo o Tribunal a quo que tenha decidido não admitir a dedução à colecta com fundamento na aplicação da norma interpretativa (o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016) julgada inconstitucional, pode, em sede de reforma da sua decisão no âmbito da execução do disposto no n.º 2 do artigo 80.º da LTC, manter a proibição da referida dedução, desde que fundada noutra norma, designadamente, na interpretação de que aquela proibição já resultava, implicitamente, da redacção anterior dos artigos 88.º e 90.º do CIRC, como sucede na decisão arbitral aqui recorrida.

 

3.2.5. Portanto, é com base nestes pressupostos que se nos afigura correcto enunciar a “questão que é objecto do presente recurso” da seguinte forma:

Primeiro, a possibilidade de dedução ou não dos montantes apurados a título de benefício fiscal SIFIDE II à colecta das tributações autónomas em sede de IRC à luz das disposições legais em vigor em 2011 e 2012 deve considerar-se inadmissível à luz da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que, independentemente da modificação da redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC que teve lugar com a aprovação do artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, as tributações autónomas sempre foram qualificadas por este Tribunal Supremo como tributação materialmente diferente da tributação em IRC ainda que seja uma tributação efectuada conjuntamente com o IRC.

Segundo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida nos acórdãos n.º 267/2017 e n.º 107/2018 não contende com esta interpretação, quer por os efeitos daquelas decisões se circunscreverem aos processos em que foram proferidas, quer por respeitarem a uma dedução à colecta das tributações autónomas de natureza diversa da que está em aqui em apreço, quer ainda por, em rigor, não “responderem” à questão aqui suscitada na conformação metodológica da interpretação em “(des)conformidade com o direito constitucional”.

Explicitando um pouco melhor a última dimensão antes mencionada, queremos destacar que:

i) atendendo a que o Tribunal Constitucional, no já mencionado acórdão n.º 197/2016 não reputou inconstitucionais as tributações autónomas no sentido em que as mesmas têm vindo a ser qualificadas pela jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo como tributos material e estruturalmente diversos do IRC, assentes numa expressão diversa de capacidade contributiva e que se destinam a realizar, também, objectivos especiais de política fiscal;

ii) atendendo a que, segundo esta qualificação jurídico-normativa das tributações autónomas, não é admissível a dedução à respectiva colecta de valores suportados pelo sujeito passivo a título de benefícios fiscais; e

iii) atendendo ainda a que, nessa medida, o aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC, decorrente da alteração legislativa aprovada pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, não tem conteúdo inovador;

a eventual desconformidade constitucional do segmento normativo que aqui mobilizamos como ratio decidendi ― um segmento normativo que resulta da interpretação legal do disposto nos artigos 88.º e 90.º do CIRC, na redacção em vigor em 2011 e 2012, do qual decorre não serem admissíveis deduções à colecta das tributações autónomas para além daquelas que estavam expressamente previstas no artigo 88.º do CIRC, não sendo admissível, por isso (i. e., em virtude da sua natureza intrínseca e não da norma interpretativa do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2006), a aplicação do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, nem a dedução à colecta das tributações autónomas dos montantes apurados à luz do artigo 4.º do regime jurídico do SIFIDE II ― pressuporia uma qualificação jurídico-legal diversa das tributações autónomas ou a demonstração de que a interpretação assim firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo viola regras ou princípios constitucionais.

 

3.3. Em suma, é ilegal a dedução à colecta das tributações autónomas dos montantes apurados a título de benefícios fiscal SIFIDE II que não possam ser deduzidos à colecta de IRC.

 

Este acórdão do Supremo Tribunal Administrativo foi proferido com 11 votos a favor e 1 contra, pelo que é de pressupor que se trate de jurisprudência que se poderá considerar consolidada, para efeitos do n.º 3 do artigo 284.º do CPPT, pelo menos enquanto não for alterada consideravelmente a composição do Pleno, como vem sendo jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo.

 Neste contexto, visando o regime legal dos recursos para uniformização de jurisprudência obstar a que se produzam decisões jurisdicionais divergentes sobre as mesmas questões de direito, os tribunais arbitrais, como tribunais que julgam em 1.ª instância, devem aplicar a jurisprudência uniformizada, quando não se entrevê, com objectividade, a possibilidade de ela ser alterada.

Por outro lado, sendo esta jurisprudência no sentido de que a interpretação correcta do regime legal do SIFIDE e das tributações autónomas já ser a que neste aresto se perfilha, mesmo antes das novas redacções do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC declaradas como interpretativas pelos artigos 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, e 233.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, não se colocam as questões de inconstitucionalidade por ofensa do princípio  da não retroactividade dos impostos.

 Assim, pelos fundamentos invocados no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, justifica-se que seja julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, ficando prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Requerente.

Improcedendo o pedido de pronúncia arbitral quanto à questão da ilegalidade das liquidações, improcedem também os pedidos anulação das decisões dos pedidos de revisão oficiosa que as confirmaram, bem como o pedido de juros indemnizatórios, cujo direito depende de pagamento indevido (artigo 43.ºda LGT).

 

 4. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)            julgar improcedentes os pedidos de anulação das autoliquidações do grupo da Requerente relativas aos exercícios de 2013 e 2014, bem como as liquidações de IRC com base nelas emitidas, com os n.ºs 2015 ... e 2015...;

b)           julgar improcedentes os pedidos de anulação das decisões dos pedidos de revisão oficiosa n.ºs ...2018... e ...2018...;

c)            julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;

d)           absolver a Administração Tributária de todos os pedidos.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de € 131.868,40.

      

Lisboa, 26-10-2020

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Filomena Salgado Oliveira)

(Carla Castelo Trindade)