Sumário:
1. A prática de não contabilização de saídas que deveriam ser abatidas na conta 11-Caixa tornou possível a ocorrência de saídas de numerário, sem contrapartida e sem suporte documental. Tais fluxos constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.
2. Não se mostra viciada de ilegalidade a liquidação da tributação autónoma prevista no CIRC sobre despesas não documentadas, que também não estão contabilizadas, determinadas pela AT em ação de verificação de caixa, para comprovação do saldo da conta 11-Caixa.
3. Também se não mostra viciada de ilegalidade a referida liquidação como resultado de a AT não ter recorrido a métodos indiretos para determinar quais as despesas que foram feitas, patenteadas pela inexistência na empresa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa e a que exercícios devem ser imputadas.
4. Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas, e não sobre o rendimento. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.
Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof.º Doutor Jónatas Machado e Dr. Luís M. S. Oliveira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06-08-2020, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., LDA., com sede na ..., Edifício..., ..., ...–... Albufeira e com o número de identificação de pessoa colectiva ... (doravante abreviadamente designada por "Requerente”) veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IRC n.º 2020..., relativa ao exercício de 2018, com o valor a pagar de € 183.328,37, incluindo o valor de € 2.803.20 de juros compensatórios, conforme Demostração de acerto de contas n.º 2020... .
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 22-04-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo, no prazo aplicável.
Em 07-07-2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 06-08-2020 (tendo em conta a suspensão de prazos determinada pelo artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março).
A Administração Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 02-10-2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.
As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
A) A requerente é uma sociedade que tem por objecto a actividade de restauração;
B) Foi efectuada uma acção inspectiva à Requerente ao abrigo da ordem de serviço OI2019..., relativa ao exercício de 2018;
C) Nessa acção inspectiva foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, em que se refere, além do mais o seguinte:
III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS à MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1. TRIBUTAÇÕES AUTÓNOMAS
A presente ação inspetiva teve por base a existência de saldos elevados de caixa que contabilisticamente foram declarados pelo sujeito passivo.
As Notas de Enquadramento do Código de Contas (SNC) referem que a classe de meios financeiros líquidos se destina a registar os meios financeiros líquidos que incluem, quer o dinheiro quer depósitos bancários, bem como ativos ou passivos financeiros mensurados ao justo valor.
Isto é, a conta caixa engloba os meios de pagamento, tais como notas e moedas metálicas de curso legal, cheques e vales postais recebidos de terceiros, expressos em euros ou outra moeda, detidos pela empresa/entidade, em determinado momento.
Ora esta conta regista o valor dos recursos monetários imediatamente disponíveis para efetuar pagamentos relacionados com a atividade do sujeito passivo.
Na consulta ao balancete analítico, constatou-se que o sujeito passivo, no ano de 2018, tinha um saldo devedor de caixa no valor total de 210.875,29€.
Verificou-se também a existência de saldo devedor na conta cliente (SNC - Conta 21- Clientes) um valor de 90.000,00€.
Esta conta 21 - Clientes regista os movimentos com os compradores de mercadorias, de produtos e de serviços. Isto é, considera clientes todos os compradores de bens produzidos e vendidos ou de serviços prestados pela empresa/entidade.
Também na consulta ao balancete analítico, verificou-se que não existia saldo na conta fornecedores (SNC -Conta 22 - Fornecedores).
Relativamente à situação da conta caixa, e a fim de testar a fiabilidade do saldo de caixa contabilizado, desloquei-me em 2018-12-17 pelas 15:30 horas, na seguinte morada em ..., ..., local onde se encontrava o sócio-gerente o Sr. B..., NIF..., tendo-se procedido à contagem de caixa, ao qual não se apurou qualquer valor. Mais foi declarado pelo sócio-gerente que "não tem qualquer dinheiro além do depositado em banco" e que deixou de exercer a sua atividade desde 2015 (não tendo a certeza da data).
No dia 2019-07-23 o Sr. B..., NIF..., na qualidade de sócio gerente, declarou que o saldo da conta 21 no valor de 90.000,00€, era devido a uma "dívida do cliente C... Lda, W/PC ... registada na contabilidade pelo montante de 90.000,00 € em 31-12-2018, que o montante já não se encontra em dívida, tendo sido pago em numerário. Repartido em dois pagamentos de 45.000,00 € um recebido em finais de outubro de 2017 e outro um ano depois, finais de 2018. Não tendo sido registado na contabilidade por não ter fornecido essa informação à contabilidade."
Assim, o saldo de caixa existente é do valor de 300.875,29€ (210.875,29€+90.000,00€).
Tendo em atenção ao exposto anteriormente, o sujeito passivo não conseguiu provar e justificar a saída/utilização do montante de 300.875,29€ da conta 11.1 - Caixa (SNC), desconhecendo o destino dado à verba que não se encontra efetivamente em caixa. Daí concluir-se que a diminuição dos referidos meios monetários foi efetuada através de despesas não documentadas, encontrando-se as mesmas sujeitas a tributação autónoma nos termos do preceituado do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC.
Determina aquele normativo legal que "As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.".
Dado que o sujeito passivo apresentou prejuízo fiscal no ano de 2018 e conforme o estipulado no n.º 14 do artigo 88º do CIRC as taxas de tributação são elevadas em 10 pontos percentuais.
Desta forma, e considerando a taxa de 60% (50%+10%) a que as mesmas se encontram sujeitas, apura-se um imposto em falta relativo a tributações autónomas do exercício de 2018 no valor de 180.525,17€ (300.875,29€ * 60%).
D) Na sequência da inspecção, a Administração Tributária emitiu:
• a liquidação de IRC n.º 2020..., com inclusão de € 180.525,17 de tributações autónomas;
• a liquidação de juros compensatórios relativos a pagamentos especiais por conta n.º 2020... no valor de € 13,72;
• a liquidação de juros compensatórios por retardamento da liquidação com o n.º 2020..., no valor € 2.789,48;
• a demonstração de acerto de contas n.º 2020... (documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
E) Na data de 17-12-2018, em que foi feito o controlo pela inspecção tributária, o saldo devedor da conta 11-Caixa era de € 210.875,29, sendo este também o saldo no final de 2018 (Relatório da Inspecção Tributária e documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
F) Em 31-12-2014, o saldo de caixa devedor era de € 224.839,52 (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
G) Em 31-12-2015, o saldo de caixa devedor era de € 247.960,02 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
H) Em 31-12-2016, o saldo de caixa devedor era de € 225.209,11 (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
I) Em 31-12-2017, o saldo de caixa devedor era de € 213.829,38 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
J) Em 31-12-2018, existia ainda um saldo devedor na conta 21-Clientes, no valor de € 90.000,00, referente a uma dívida de um cliente que se encontrava já paga, tendo € 45.000,00 sido pagos em 2017 e € 45.000,00 em 2018;
K) No exercício de 2018 a Requerente teve prejuízo fiscal;
L) Em 22-04-2020, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente.
Quanto aos saldos apresentados pela Requerente nos documentos n.ºs 5 a 9, os documentos não são impugnados.
Não se provou qual o destino que a Requerente deu às quantias em falta correspondentes ao saldo devedor da conta 11-caixa, nem foi apresentada qualquer prova sobre esse destino.
Não se provaram os seguintes factos alegados pela Requerente, por não ter sido apresentada qualquer prova sobre as matérias:
– não se provou que a existência do saldo de caixa referido se deva a erros ou irregularidades contabilísticas, designadamente «errada emissão de recibos sem que tenha ocorrido o respectivo pagamento ou, noutros casos, a falta ou retardamento na contabilização de documentos relativos a gastos da sociedade e/ou a pagamentos de facturas de fornecedores que não foram contabilisticamente registados ou a pagamentos que aguardam a remessa do respectivo documento de quitação do credor», como defende a Requerente;
– não se provou que seja «comum os Técnicos de Contas lançarem todos os recebimentos pela conta Caixa (...) e só posteriormente saldam esta conta por contrapartida da conta Depósitos à Ordem (quando e se procederem a reconciliação desta última com aquela), bem como lançam nesta conta todos os pagamentos por contrapartida dos recibos e outros documentos relativos à sua quitação quando estes chegam à posse do TOC».
Quanto aos factos referentes à conta 21-Clientes, dão-se como provados os factos que se referem no Relatório da Inspecção Tributária, com base nas declarações do sócio-gerente, pois não se vê no processo qualquer fundamento para duvidar que correspondam à realidade.
3. Matéria de direito
A Administração Tributária apurou que o saldo da conta 11-Caixa da Requerente a 31-12-2018, era no montante de € 210.875,29 e que este valor não se encontrava em Caixa à data da contagem, bem como a quantia de € 90.000,00 correspondente a um saldo devedor da conta 21-Clientes, referente a uma dívida de um cliente da Requerente que já se encontrava paga e não foi apresentado qualquer documento que comprove qual o destino que foi dado às quantias referidas.
Com base nesses factos, a Administração Tributária concluiu que houve saídas de fluxos financeiros no mesmo montante, sem que fosse apresentado qualquer documento de suporte, pelo que aplicou a esse valor a tributação autónoma prevista no n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, por despesas não documentadas, agravada nos termos do n.º 14 do mesmo artigo por a Requerente ter prejuízo fiscal no exercício de 2018.
Assim, foi liquidada a tributação autónoma de 180.525,17€, com base na quantia em falta (300.875,29€) e à taxa de 60%, além de juros compensatórios por retardamento da liquidação no montante de € 2.789,48 (os restantes juros compensatórios, no valor de € 13,71 reportam-se a pagamentos especiais por conta).
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
– evolução dos saldos da conta 11-Caixa ao longo dos exercícios de 2014 até ao ano de 2018, inclusive, denota manifestamente a sua incorrecção e falta de fidedignidade;
– não existiam as quantias em falta correspondentes aos saldos da conta 11-Caixa em virtude de erros, omissões e irregularidades na sua contabilidade;
– o facto de não dispor, num determinado momento, das disponibilidades evidenciadas na conta 11-Caixa não constituí em si um facto para a incidência real do imposto (IRC) em sede de tributação autónoma com base na presunção de que o valor da divergência do saldo da conta 11-Caixa corresponde a despesas não documentadas;
– aplicação da tributação autónoma em sede de IRC aqui em apreço está sujeita às normas próprias deste tributo, designadamente, no que respeita às regras relativas a especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, conforme decorre, para além do mais, dos artigos 8.º e 18.º do CIRC, já que tal tributação autónoma tem subjacente factos tributários instantâneos e de natureza financeira;
– na tributação autónoma em análise, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, sendo necessário, antes de mais, demonstrar a efectiva ocorrência das despesas (não documentadas), ónus este que recai sobre a A.T. nos termos do artigo 74º da LGT, estando esta obrigada, no âmbito da fundamentação formal do acto de liquidação, a demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais (de facto e de direito) de que depende o direito à liquidação;
– o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa e esgota-se no acto de realização de determinada despesa, a qual que carece de ser identificada;
– o legislador fiscal, no âmbito dos encargos fiscais dedutíveis (ou não), ao reportar-se aos gastos e perdas, distinguiu intencionalmente as despesas e, nomeadamente, as despesas não documentadas (vide artigos 23º e 23º-A e 88º do CIRC);
– a assunção contabilística de um custo não implica necessariamente a concretização da respectiva despesa, ou seja, o reconhecimento de um custo não determina a efectivação da correspondente despesa (pagamento);
– as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro;
– uma despesa implica sempre a saída efectiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património;
– tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afectar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018;
– a A.T., uma vez que esta se limitou presumir que a inexistência do numerário na caixa social (em divergência com o saldo contabilístico da conta 11-Caixa) correspondia a uma despesa (ou despesas) não documentada ocorrida à data da na inspecção tributária realizada, ou seja, em 17-12-2018 e, por isso tributável no exercício de 2018;
– tal presunção não é legalmente aceite, desde logo, porque não tem qualquer suporte legal e, por outro lado, porque a divergência do saldo de Caixa pode dever-se a muitas outras circunstâncias que a justificam, nomeadamente erro e omissões nos lançamentos contabilísticos nessa conta como acima se deixou bem evidenciado e que em nada se prendem com despesas não documentadas;
– tais presunções apenas teriam cabimento legal no âmbito do procedimento com recurso a avaliação indirecta nos termos do artigo 87.º e seguintes da lei Geral Tributária;
– no regime de tributação autónoma o imposto incide sobre cada despesa efectuada, em si mesma considerada, sendo esta tributação autónoma apurada de forma independente do IRC, que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo;
– não é legítimo presumir, como fez a A.T. que a despesa ocorreu, no montante total em apreço, no próprio dia da verificação física feita pela inspecção quando se deslocou ao estabelecimento da aqui requerente em 17-12-2018;
– a caixa social não tinha os valores necessários à realização das alegadas despesas não documentadas o valor de 300.875,29€ à data da realização do controlo de caixa feito pela inspecção tributária em 2018, nem sequer dessas disponibilidades dispunha pelo simples facto de se ter operado a mera transferência contabilística dos saldos da conta 11-Caixa sucessivamente, ano após ano, ou seja, de um exercício para o seguinte, até 2018;
– os elevados saldos da conta 11 – Caixa ao longo dos exercícios de 2013 a 2018 são fictícios, não tendo qualquer adesão à realidade das disponibilidades de numerário existentes na sociedade, não sendo por isso fidedignos;
– a evolução desses saldos ao longo dos vários exercícios indiciam que, a terem ocorrido despesas não documentadas (o que não se concede), uma parte significativa dessas despesas já teriam ocorrido em exercícios anteriores, sendo, aliás, óbvio, que as despesas a imputar a cada exercício seriam apenas as decorrentes do acréscimo do saldo da conta 11-Caixa em cada um desses mesmos exercícios;
– a A.T. não pode partir da premissa falsa e manifestamente inaceitável, da presunção da veracidade e retidão e da contabilidade da aqui requerente;
– a inspecção veio a basear-se na presunção de que existia correspondência entre a contabilidade e a realidade até à data da inspecção, quando e manifesto que, nessa altura, há muito que não havia correspondência entre os valores monetários existentes e o saldo contabilístico da conta 11-Caixa;
– a presunção permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção;
– artigo 100.º, n.º 1 do CPPT dispõe que “Sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”;
– o montante de despesas não documentadas que é imputado à aqui Requerente como tendo sido efectuadas no exercício da tributação, atento o seu elevado montante de € 300.875,29, a terem ocorrido, não o terão sido neste exercício e muito menos em momento imediatamente anterior ao da realização da inspeção que procedeu à contagem física da caixa social, mostrando-se, assim, violado o princípio da especialização e periodização dos exercícios;
– a tributação autónoma aceita apenas uma interpretação restritiva.
No presente processo, a Administração Tributária defende a posição assumida no RIT, dizendo, em suma:
– a Requerente não fez prova dos factos que alega, designadamente em que medida o saldo da conta 11-Caixa não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários, ou identificar as anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade que poderiam afectar o apuramento e controle do lucro tributável;
– o princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo;
– a sujeição a tributação autónoma das «despesas não documentadas» não depende da sua prévia contabilização como «gastos» de modo a afectar negativamente o resultado do exercício;
– tal exigência não se retira do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, que contempla na base de incidência da tributação autónoma, as “despesas”, e não os “gastos”, ressalvando que se as despesas tiverem sido contabilizadas como gastos, a circunstância de estes não serem fiscalmente dedutíveis por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 23-A do mesmo Código, não afasta a tributação autónoma;
- em conformidade com a letra e espírito do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as «despesas não documentadas», contabilizadas como “gastos”, mas também aquelas com as mesmas características, i.e., não documentadas, que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado contabilístico e fiscal;
– a AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, dentro dos limites que a sua actuação lhe permitiria, apoiando-se na (1) demonstração da divergência entre o saldo contabilístico da conta 11-Caixa e as existências reveladas pela contagem física; e (2) na solicitação de documentos justificativos da diferença apurada, mais não lhe podendo ser exigido;
– a própria Requerente confirma a divergência apurada e até apelidando o saldo contabilístico da conta 11-Caixa de fictício e inverosímil, em simultâneo, demite-se de explicar a sua origem e, embora aludindo a eventuais erros ou irregularidades contabilísticos, não os identifica nem concretiza;
– como a Requerente incumpriu a obrigação de contabilizar as «despesas não documentadas», é a verificação da falta de meios financeiros detectada pela contagem física que gera, por si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, não existindo, pois, qualquer ilegalidade do acto de liquidação da tributação autónoma objecto do pedido de decisão arbitral;
– as características específicas das «despesas não documentadas» afastam-nas do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC, que assenta no critério de competência económica;
- no atinente às «despesas não documentadas», o critério de competência económica é, na sua essência, inaplicável, dado o desconhecimento da natureza e origem das operações subjacentes, pelo que, para efeitos de estabelecer a respectiva imputação a um dado exercício apenas pode ser utilizado o chamado critério de competência de caixa;
– porém, mesmo este critério de competência de caixa só é exequível quando se está perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente como tal, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também reflectido nas contas de meios monetários;
– a verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2018;
– sendo certo que já eram elevados os saldos devedores da conta 11-Caixa no final dos exercícios anteriores, a respeito dos quais a Requerente afirma que não representavam de modo fidedigno a realidade, de todo o modo figuram nos balanços aprovados pelos sócios e, além disso, não foram disponibilizados documentos validados pelo órgão de gestão que evidenciem os resultados de contagens físicas realizadas no final de cada exercício;
– afrontaria a própria natureza e finalidade de dissuasão/sancionatória adstrita à tributação autónoma das «despesas não documentadas» “premiar” fiscalmente os contribuintes que se eximem da obrigação básica de contabilização e/ou declaração daquele tipo de despesas;
– a regra do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT não se aplica às despesas não documentadas;
– o critério de imputação daquelas despesas é meramente financeiro, estando ligado ao acto do dispêndio ou das saídas de meios financeiros o qual, todavia, fica prejudicado quando, como na situação em apreço, as «despesas não documentadas» não estão registadas como tal na contabilidade nem são facultados registos de entrada e saídas de meios monetários;
– se as despesas não estão documentadas então não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial, logo é factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização.
3.2. Apreciação das questões
3.2.1. «Despesas não documentadas»
O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A».
O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos»), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, no acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, que «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.
Em qualquer caso, importa clarificar de imediato – porquanto a temática tem implicações quanto à solução de Direito – que este entendimento assenta no pressuposto de que as despesas, embora não documentadas, foram contabilizadas, sem o que nem mesmo em termos contabilísticos aquelas afetam o resultado do exercício. Não ocorre pois a necessidade de adição de tais despesas quando é apurado o lucro tributável, em sede de autoliquidação na declaração anual, nem se mostra necessário que a AT proceda, nessa parte, à correção da referida liquidação.
3.2.2. A tributação autónoma sobre «despesas não documentadas» não apresenta nexo de conexão com a respetiva relevância como custos dedutíveis
Defende a Requerente a interpretação de que «as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro; – uma despesa implica sempre a saída efectiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património; tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afectar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018».
É manifesto que não é assim. Trata-se de petição de princípio. Apenas seria assim caso a Requerente tivesse contabilizado as despesas não documentadas, para refletir as saídas de caixa. Não as contabilizou, e por isso apresenta os saldos da conta 11-Caixa que apresenta. E como não as contabilizou, não fez diminuir o resultado líquido do exercício.
Aliás, como bem se consagra em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a lei não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.
Na jurisprudência arbitral já havia sido defendido este entendimento, designadamente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T:
«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender – e também o entende este tribunal arbitral – que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.
3.2.3. A questão da imputação das despesas não documentadas a um concreto período de tributação
A Requerente defende que, a concluir-se pela existência de despesas, elas não poderão ser imputadas todas ao período de 2018, apenas devendo sê-lo as que correspondem à diferença entre o saldo da conta 11-Caixa em 31-12-2017 e 26-12-2018, data em que foi feita a conferência.
A Administração Tributária questiona, além do mais, que seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios e defende que as despesas devem ser imputadas ao exercício em que foi detectada a divergência entre o saldo e a realidade.
E densifica assim a sua interpretação: - a Requerente incumpriu a obrigação de contabilizar as «despesas não documentadas», pelo que é a verificação da falta de meios financeiros detetada pela contagem física que gera, por si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC; - as características específicas das «despesas não documentadas» afastam-nas do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC, que assenta no critério de competência económica; - no atinente às «despesas não documentadas», o critério de competência económica é, na sua essência, inaplicável, dado o desconhecimento da natureza e origem das operações subjacentes, pelo que, para efeitos de estabelecer a respetiva imputação a um dado exercício apenas pode ser utilizado o chamado critério de competência de caixa; – porém, mesmo este critério de competência de caixa só é exequível quando se está perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente como tal, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também reflectido nas contas de meios monetários; – a verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2018.
Dilucidar este ponto pressupõe avançar por etapas na dogmática da tributação autónoma, desde logo partindo da exegese do CIRC, em particular dos preceitos referentes à mesma.
Às tributações autónomas sobre certas despesas, cujo enquadramento normativo consta do CIRC aplicam-se todos os regimes do Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza, precisamente porque formalmente inseridas no mesmo.
Recorde-se que a originária consagração deste tipo de tributações autónomas no sistema tributário se fez por lei avulsa, não codificada, especificamente o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho. Aí se consagrou a aplicação de uma tributação à taxa de 10% para “despesas confidenciais ou não documentadas”. Anteriormente, tais despesas eram exclusivamente objeto de exclusão de dedutibilidade (como continuam a ser). O âmbito de aplicação das tributações autónomas foi sendo alargado a outras tipologias de despesas através de sucessivas modificações ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, introduzidas por leis do orçamento de Estado.
A autonomia das tributações autónomas foi pois também formal, ou sistemática, até à opção de política legislativa de as inserir no próprio Código, quando da Reforma Fiscal de 2001, portanto com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
Em razão desta inserção no CIRC – e, paralelamente, no CIRS – é hoje incontrovertido que se aplicam às tributações autónomas as regras do Código relativas à apresentação de declarações, à autoliquidação, à liquidação adicional e bem assim todas as outras que sejam necessárias para a sua aplicação.
A questão de Direito essencial na controvérsia entre Requerente e AT no presente processo reconduz-se a determinar se é também aplicável às tributações autónomas o princípio da especialização dos exercícios.
Importa começar por notar que este princípio se reporta especificamente à «periodização do lucro tributável», como decorre do artigo 18.º do CIRC.
As tributações autónomas em IRC são – acompanhando o IRC propriamente dito – apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respectiva liquidação reporta-se a cada período fiscal. Assim, na liquidação impugnada, em que só se liquidaram adicionalmente tributações autónomas e os respectivos juros compensatórios, se faz referência ao período de 2018 e se diz que a Requerente fica notificada «da liquidação de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos» (documento n.º 1).
Ou seja, nos termos do respetivo regime legal, a liquidação das tributações autónomas tem de ser efetuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas a elas sujeitas.
Porém, daí não decorre necessariamente que para as tributações autónomas previstas no CIRC vigore o princípio da anualidade, enunciado no artigo 8.º, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».
Importa pois aprofundar a dogmática da natureza das tributações autónomas.
3.2.4. A natureza das tributações autónomas inseridas no CIRC
No mesmo voto de vencido proferido pelo Prof. Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T, acima referenciado, são trazidos à colação, sobretudo por referência a arestos do Tribunal Constitucional, dogmáticas clarificadoras de quão afastadas estão as tributações autónomas da fenomenologia própria do IRC enquanto imposto sobre o rendimento:
«Quanto ao espírito do preceito [n.º 1 do art. 88.º do CIRC], escreve-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de Janeiro de 2011, Processo n.º 204/2010 e que, aliás, é transcrito no acórdão do presente processo: «A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transacções efectuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo directamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afectar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal» (cfr. ainda acórdão do mesmo Tribunal n.º 310/2012, de 20 de Junho de 2012, Processo n.º 150/12).»
Na verdade, acrescentamos nós, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011 inclui outra asserção, que temos por relevante, não transcrita no referido voto de vencido: «no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e, por isso, passível de tributação.»
Regressamos ao voto de vencido:
«E escreve-se também no Acórdão do STA, de 21 de Março de 2012, Processo n.º 0830/11: «Sobre a razão de ser das tributações autónomas, segundo a doutrina dominante, o legislador criou taxas de tributação autónomas que visam aplicar-se a determinado tipo de despesas com vista a dissuadir as sociedades, no caso de IRC, a apresentá-las com regularidade e de elevado montante, para evitar que os sujeitos passivos de IRC utilizem determinadas despesas para proceder a distribuição camuflada de lucros e para evitar a fraude e a evasão fiscal». Vê-se, assim, a amplitude do objectivo da norma, não se encontrando, face à sua letra e ao seu espírito e considerando a teoria da interpretação das leis fiscais - que hoje observa as regras e princípios gerais da interpretação das leis (artigo 11.º n.º 1 LGT) -, razão para se limitar a respectiva aplicação aos casos de contabilização da despesa como gasto ou/e ser necessário afectar o resultado líquido do período de tributação, visto, desse modo, poder alcançar-se o que a lei não deseja, sem qualquer influência no respectivo resultado, como sucede no caso. Em conformidade, atentos a letra e espírito do artigo 88.º n.º 1 CIRC, devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas. Aliás, a irrelevância da contabilização, como gasto, de encargos não dedutíveis resulta ainda do proémio do artigo 45.º do CIRC. Na situação em análise, temos uma saída de caixa cuja contrapartida não se provou ser um activo (o valor em «Devedores» não foi provado ser uma verdadeira dívida de terceiros, aliás, nem se sabe quem é o terceiro). Coerentemente, entendo, no caso sub judice, ser devida tributação autónoma, nos termos do acima citado artigo 88.º n.º 1.»
Também nos diz o Tribunal Constitucional (Acórdão 197/2016, de 23 de Maio) o seguinte:
«A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa "zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial" e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407). Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. […] como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012). Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).»
A tributação autónoma exprime o exercício de uma função regulatória através do CIRC, inerente às finalidades e exigências de um Estado de direito material, onde se incluem objetivos incentivar a formalização da economia, o rigor e a fiabilidade das contas das empresas, prevenir a fraude e a evasão fiscal, nomeadamente através da retirada dissimulada de ativos monetários.
3.2.5. Questão da existência de «despesas»
No caso em apreço, constatou-se que a conta 11-Caixa tinha um saldo elevado, mas não existiam na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo, não se apurando quais as razões da divergência.
À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respectiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.
Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.
Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.
Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.
Há, assim, fundamento factual para aplicação da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC.
Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.
Também é da experiência comum não ser infrequente em certas atividades que a caixa, no sentido físico, seja esvaziada no final de cada dia, podendo os valores retirados ser depositados em conta bancária da entidade, na manhã seguinte, como seria de boa prática, mas podendo em alternativa, ser simplesmente apropriados, totalmente ou em parte, pelos ‘donos’ da empresa. Nesta segunda hipótese, a eventual consulta aos movimentos bancários da entidade pouco ou nada permite apurar, nem sobre entradas nem sobre saídas. E podem tais valores também não ser depositados nas contas pessoais dos próprios ‘donos’ da empresa.
«Na restauração as situações de “caixa aberta” e consequentemente a não declaração de muitas transacções, são conhecidas e referidas por muitos como um exemplo claro de informalidade.» (‘Economia Informal no Comércio, Alojamento e Restauração: Manifestações e Soluções’, Francisca Guedes de Oliveira, Sofia Silva e Vasco Rodrigues - Universidade Católica Portuguesa - Centro Regional do Porto, Faculdade de Economia e Gestão, CEGEA – Centro de Estudos em Gestão e Economia Aplicada, disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/3775/1/trab_nac_2010_FEG_1216_Guedes%20de%20Oliveira_Francisca_1.pdf
3.2.6. A questão da imputação das despesas não documentadas a um concreto período de tributação e o n.º 14 do art. 88.º do CIRC
O artigo 88.º do CIRC, no seu n.º 14, que foi o aplicado no caso em apreço, estabelece que «as taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC».
No entender da Requerente, a AT não pode concluir que todas as despesas que estão subjacentes à falta de meios financeiros correspondentes aos saldos das contas 11-Caixa e 21-Clientes em 26-12-2018 tenham ocorrido no ano 2018. Pelo contrário, entende que o facto de aquela conta já apresentar saldos devedores elevados desde 2014, aumentando todos os anos até 2017, aponta no sentido de a falta de meios financeiros ter ocorrido antes deste ano, relativamente ao saldo devedor que já se verificava no final de 2017, na conta 11-Caixa.
Transcrevemos acima passagem jurisprudencial que nos pareceu especialmente feliz, quando sintetiza que “a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa.”
Vejamos como se deve conjugar esta autonomia de natureza das tributações autónomas – como tributo diverso do IRC, ainda que inserto no CIRC, e que incide sobre realidades totalmente distintas do rendimento – com a questão da periodização.
Demos já nota da posição da Requerida AT quanto a esta matéria, que em síntese defende que, para as despesas não documentadas não há cabimento à periodização económica, mas à aplicação do critério de ‘competência de caixa’.
Entendemos que lhe assiste razão.
Desde logo, o intérprete não pode pretender fazer boa aplicação dos regimes e dispositivos do CIRC se olhar para a tributação como espécie de ilha jurídica desconectada de outras ordens normativas, em particular da ordem normativa contabilística.
Como dispõe o art. 17.º, n.º 1, «O lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código. »
Deve, de imediato, notar-se que o objeto do preceito é o lucro tributável. Tão só. Não as despesas que são objeto de tributação autónoma apurada na mesma declaração.
Deve, depois, atentar-se no que dispõe o “Anexo - Sistema de Normalização Contabilística” ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho. Concretamente, determina o respetivo n.º 2.3 - Regime de acréscimo (periodização económica): «2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).»
Parece de meridiana clareza: as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime da periodização económica, ou seja, o regime de acréscimo, exceto para a informação de fluxos de caixa – à qual portanto tal regime expressamente se não aplica. Para movimentações de caixa, o regime que resta é o da sua reflexão com base na saída (ou na entrada).
E assim deveria ter sido, caso a Requerente as tivesse contabilizado. Aplicar-se-ia aquilo que a AT denomina por critério de ‘competência de caixa’.
Não o fez. Não contabilizou saídas. Pode legitimamente deduzir-se, com base na experiência, que utilizou, de facto, o que na literatura técnica sobre ‘economia não registada’ (também dita ‘informal’), se designa por ‘caixa aberta’, vindo depois alegar, sem ensaio sequer de o procurar demonstrar ou provar, a existência de erros e incorreções.
Não o tendo feito, não tendo contabilizado as saídas de caixa, a verificação do facto gerador da tributação autónoma, que são as despesas não documentadas, fica evidenciada na data da contagem física de caixa.
Entender diversamente faz uma interpretação da lei que, salvo o devido respeito, corresponde a desconsiderar o elemento teleológico.
Nem julgamos que esteja em causa a vulneração do regime da caducidade do direito de liquidação, por se poderem fazer incidir tributações autónomas sobre despesas (não documentadas, nem contabilizadas), que podem ter ocorrido há mais de 4 anos. Na ausência de contabilização, só é possível apurar que elas existem quando se faz a contagem de caixa. E a mera ausência na caixa dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidencia, conjugada precisamente com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, a despesa não documentada.
É certo que a lei, além de valores de justiça, pondera outros, como a segurança jurídica, não só do contribuinte como da generalidade do comércio jurídico (os que contratam com a empresa confiando na solidez financeira que aparenta), e que se pode curialmente entender que a segurança jurídica é vulnerada com a possibilidade de impor tributações autónomas ou outras por factos que (se estivessem contabilizados) se apuraria terem ocorrido há mais de 4 anos.
Mas este eventual argumento não subsiste – salvo o devido respeito – perante despesas que precisamente foram omitidas à contabilidade (e, tem que se entender, voluntariamente, por ser prática recorrente ao longo de anos, não sendo plausível a explicação dos erros e incorreções), e sempre seria neutralizado pela tutela do comércio jurídico face à própria infiabilidade da contabilidade quanto à conta 11-Caixa: afinal, o comércio jurídico confia que a empresa tem disponibilidades líquidas (de ativo corrente) espelhadas na Conta 11-Caixa, mas essa confiança já foi frontalmente violada pelo esvaziamento da caixa. Ora, as necessárias segurança, confiança, previsibilidade e calculabilidade no tráfego jurídico e económico são mais bem asseguradas através da garantia da fiabilidade da Conta 11-Caixa, objetivo que as normas sobre tributação autónoma também visam promover, no quadro mais amplo de desincentivo de práticas de erosão da base tributária.
3.2.7. Do ónus e da medida da prova pela AT
À AT cabe o ónus da prova da existência de despesas não documentadas. No caso vertente, a prova está feita pela mera verificação da falta na caixa do valor contabilizado na Conta 11-Caixa.
Não há sequer ensaio de prova pela Requerente da alegação de que o valor contabilizado na Conta 11-Caixa se mostra viciado pelos erros e incorreções que alega existirem, pelo que se tem que entender ser verídico, fazendo prova bastante contra si, o que está na contabilidade, bem como o que decorre da sua prática de retirar fundos de caixa se documentação nem contabilização.
Não tem a AT o ónus de prova de cada concreta despesa, o que, relativamente a despesas não documentadas e não contabilizadas, seria probatio diabolica, de postulado que temos por inadmissível.
Como também não vigora para as tributações autónomas o princípio da especialização dos exercícios, menos ainda se poderia defender a existência de ónus de prova pela AT de quais os exercícios em que cada despesa – não contabilizada – teria sido feita. É, salvo o devido respeito por posições diversas, um raciocínio desconforme com o Direito: não se vê como seja conforme ao Direito uma interpretação que, não sendo a única hermenêuticamente possível, nem, a nosso ver, a mais rigorosa, confere a sujeitos passivos de IRC incumpridores uma via segura para práticas de ‘caixa aberta’, que esvaziam sem nada documentarem nem contabilizarem, com o previsível resultado – deve o julgador recorrer à experiência – de que nem os sócios são tributados sobre dividendos, ou terceiros são tributados sobre recebimentos opacos, nem as sociedades suportam a tributação autónoma que está na lei. Ponto é, para que tais práticas de evasão fiscal sejam bem sucedidas, ficando imunes à aplicação da lei, que as saídas tampouco sejam contabilizadas, assim inviabilizando a aplicação a tais esvaziamentos de caixa do princípio da especialização dos exercícios, caso este fosse entendido como aplicável a mais do que aquilo que está na lei: à periodização do rendimento e portanto do lucro tributável. A posteriori, quase lhes basta venire contra factum proprium e invocar que a sua própria contabilidade não tem rigor no caso específico da conta 11-Caixa, tem incorreções, lacunas, etc. Estaria assim criada, e sancionada pela jurisprudência, uma simples mas eficaz técnica de transferência de rendimento (income shifting technique), incompatível com a teleologia inerente ao instituto das tributações autónomas, de prevenção da erosão da base tributária.
3.2.8. Da hipotética necessidade ex lege de a AT lançar mão dos métodos indiretos
Defende a Requerente o seguinte:
«a A.T., uma vez que esta se limitou presumir que a inexistência do numerário na caixa social (em divergência com o saldo contabilístico da conta 11-Caixa) correspondia a uma despesa (ou despesas) não documentada ocorrida à data da na inspecção tributária realizada, ou seja, em 17-12-2018 e, por isso tributável no exercício de 2018; tal presunção não é legalmente aceite, desde logo, porque não tem qualquer suporte legal e, por outro lado, porque a divergência do saldo de Caixa pode dever-se a muitas outras circunstâncias que a justificam, nomeadamente erro e omissões nos lançamentos contabilísticos nessa conta como acima se deixou bem evidenciado e que em nada se prendem com despesas não documentadas; tais presunções apenas teriam cabimento legal no âmbito do procedimento com recurso a avaliação indirecta nos termos do artigo 87.º e seguintes da lei Geral Tributária»
Assim, mostra-se incontornável que nos pronunciemos sobre o mérito de tal interpretação.
Começamos por reconhecer que a Requerente não está desamparada por alguma auctoritas.
Assim, no Acórdão no processo n.º 7/2011-T, foi exarada a seguinte decisão, sufragada pela maioria dos ilustres Árbitros que o prolataram: “Tudo ponderado, no caso em análise, as irregularidades na contabilidade do sujeito passivo, incluindo a existência de dúvidas, resultantes dessas irregularidades, sobre se certas despesas foram incorridas ou não (se há dúvidas sobre se elas foram incorridas, também não há documentação relevante), não podem cair na categoria de despesas não documentadas, mas são antes pressupostos de aplicação de métodos indiretos nos termos do art.º 87.º al. b) e 88.º da LGT.”
Orientação esta seguida, ipsis verbis, no Acórdão exarado no Proc. n.º 54/2013–T.
Salvo o devido respeito, esta posição assenta no que temos por um equívoco conceptual.
A aplicação de métodos indiretos tem por objetivo apurar o lucro tributável, quando se demonstra que a contabilidade não é feita e mantida com o rigor exigido por lei e pelos princípios contabilísticos. Note-se: apurar o lucro tributável. Vejam-se os artigos 16.º 4, 59.º, 60.º, 61.º, 62.º do CIRC.
A aplicação de métodos indiretos não está prevista na lei para apurar se e quando foram feitas despesas que nem estão documentadas nem estão contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma. Esta mera circunstância, desacompanhada de outras, como a infiabilidade geral da contabilidade – não apenas, como está em equação no caso do presente processo, a falta na caixa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa, e a pontual não reflexão na conta 21-Clientes de um recebimento em numerário que deveria ter anulado o saldo de € 90.000 nesta existente –, ou alguma das situações previstas nas várias alíneas do artigo 87.º da LGT, em particular a alínea b), com o desenvolvimento que desta se faz no artigo 88.º, não tem como corolário normativo que a AT deva recorrer aos métodos indiretos.
Isto mesmo é afirmado, com exemplar clareza, no Acórdão do TCA Sul, de 5.8.2019 (Proc.
1119/16.1BELRA):
«Em face do ordenamento jurídico português, cabe distinguir entre a tributação autónoma, incidente sobre gastos detectados, mas não suportados em elementos justificativos e a determinação do rendimento por métodos indirectos, a qual, na falta de credibilidade da contabilidade impossibilitante da avaliação directa, determina, verificados os pressupostos elencados na lei, a necessidade da fixação da matéria colectável através de métodos indirectos (artigos 87.º e 88.º da LGT).
Os pressupostos da avaliação indirecta não estão demonstrados, no que respeita às despesas em causa, porquanto as mesmas não correspondem a rendimento, mas antes a despesa incorrida não documentada, a qual é tributada, enquanto facto tributário instantâneo e autónomo, nos termos do artigo 88.º/1, do CIRC. O que nada tem que ver com a determinação do rendimento, segundo os critérios dos artigos 89.º a 90.º da LGT. É que, recorde-se, «a tributação autónoma consubstancia-se numa obrigação única, pois incide sobre factos tributários instantâneos e autónomos, que se esgotam em actos de realização de determinadas despesas realizadas, sem mais. Factos formados por um único acontecimento (despesa ou encargo), nesse momento dando origem ao imposto, o que não se confunde com o momento em que o imposto é devido».
Por outras palavras, «[n]a tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efectuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efectuadas na determinação da taxa».
Não sofre dúvida que «a tributação das despesas não documentadas pretende compensar o pagamento oculto de rendimentos a outro sujeito passivo, não identificável pela administração tributária». Mais se refere que «[a] tributação autónoma atinge a despesa do sujeito passivo-contribuinte e não o seu rendimento». A norma incide sobre a capacidade contributiva efectiva manifestada através de realização de gastos sem contrapartida, por parte do sujeito passivo e tem em vista prevenir a fraude, a evasão e-ou a elisão fiscais que as despesas não documentadas implicam. Não se trata de uma norma presuntiva, mas antes de uma norma de incidência, cujos pressupostos de aplicação decorrem da previsão legal e que assenta na avaliação directa do facto tributário. Não há presunção, na medida em que a tributação autónoma da despesa oculta implica a demonstração de que o gasto sem contrapartida ocorreu.
Uma vez que se tributam certas categorias de despesas e não o rendimento do sujeito passivo não existe qualquer fungibilidade entre a tributação autónoma de despesas não documentadas e a determinação da matéria colectável por métodos indirectos. A segunda tem em vista apurar o rendimento percebido em certo período, pelo sujeito passivo, com vista à sua tributação. Motivação a que é alheia a primeira, centrada na prevenção de comportamento fiscal abusivo, consistente na afectação de uma parte do património da empresa a fins não empresariais.»
Nem se mostra curial postular que a AT poderia, virtualmente, vir a apurar também um lucro tributável corrigido, objetivo do qual derivaria a habilitação legal para o recurso aos métodos indiretos. Em primeira linha, basta sublinhar que, nos casos – como o sub iudice – em que as despesas não documentadas também não estão contabilizadas, o sujeito passivo não as usou para diminuir o lucro contabilístico. Portanto, nada há a ajustar ou corrigir no lucro tributável, derivado a partir daq1uele. Em segunda linha, caso, embora não documentadas, tais despesas estivessem contabilizadas, teriam diminuído o lucro contabilístico mas não o lucro fiscal, pois o artigo 23.º-A 1 b) veda a respetiva dedutibilidade. Portanto, se o sujeito passivo não as tivesse adicionado no quadro próprio da declaração anual, a correção pela AT seria direta, não por recurso aos métodos indiretos. Seria, pois, para a AT, exercício sem base legal, além de inútil, o de procurar lançar mão dos métodos indiretos no contexto do apuramento da existência de despesas não documentadas a partir da análise dos saldos da Conta 11-Caixa.
No acima parcialmente transcrito Acórdão 197/2016, de 23 de Maio, do Tribunal Constitucional, pode também ler-se: “a tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido”
Por fim, e como decorrência lógica do que antecede, não queremos deixar de fazer notar que, caso a AT optasse por recorrer aos métodos indiretos quando se trata unicamente de apurar se e quando foram feitas certas despesas não documentadas nem contabilizadas, a impugnação por violação do princípio da legalidade passaria a assentar em que estaria a recorrer a tais métodos ilegalmente, pois estes estão previstos por lei exclusivamente para permitir apurar o lucro tributável (dispositivos constantes do próprio CIRC) ou para aplicação em situações que não compreendem a aqui em juízo (dispositivos constantes da LGT).
Não se vê, também, como se deva tomar como boa uma interpretação da lei – de entre as hermenêuticamente sustentáveis, pois que não é a única – cujo resultado confere aos destinatários desta uma tão ampla margem para verem dotadas de previsível segurança jurídica as práticas de recurso a despesas não documentadas e nem mesmo contabilizadas, bastando, para lhes assegurar a fuga à coercividade da lei – na interpretação desta que valorize no devido grau o elemento teleológico – a prática, que se diria básica, e que é evidenciada em estudos sobre economia não registada, da não contabilização, continuada por múltiplos exercícios financeiros, das retiradas de caixa. Ponto é que tenham o “cuidado” de não restringir essa prática a um exercício isolado.
Perante as irregularidades contabilísticas, poderia entender-se que a AT teria fundamento para derrogação do sigilo bancário. Porém, a AT só deve lançar mão de procedimentos previsivelmente eficazes (Código de Procedimento Administrativo, artigo 5.º, n.º 1: «A Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade»). Ora, em situações em que os fundos são retirados da caixa sem documentação nem contabilização – portanto, sem deixar ‘vestígios’ para lá da própria falta dos mesmos – deve ser tido por pouco provável, segundo a experiência comum, que a análise de extratos bancários permita reconstituir quando foi a caixa esvaziada.
3.2.9. Concluindo e decidindo
Relativamente à totalidade dos valores apurados como em falta, mediante contagem de caixa, por referência ao valor que a Conta 11-Caixa apresenta à data em que tal apuramento foi feito, o regime legal conduz ao resultado de que, não se encontrando a quantia referida no seu património e não sendo apresentado qualquer documento que comprove o destino que lhe foi dado, tem que se entender estar-se perante despesa não documentada, a que é aplicável a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC. O mesmo vale para o saldo devedor na conta 21-Clientes, no valor de € 90.000, referente a uma dívida de um cliente que se encontrava já paga.
Assim, não se declara a ilegalidade da liquidação de tributação autónoma sobre despesa não documentada nem contabilizada que é apurada pela AT em ação de inspeção externa para verificação de caixa, afetando a totalidade da despesa ao exercício em que é apurada a inexistência na Requerente do valor contabilizado como saldo da conta 11-Caixa e do valor que tem tratamento idêntico por estar na conta 21-Clientes e se encontrar já pago, em ambos os casos sem que os valores estivessem em caixa.
Não se declara a ilegalidade da liquidação objeto do presente processo por omissão de recurso pela AT a métodos indiretos para determinar quais as despesas que foram feitas, patenteadas pela inexistência na empresa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa e pelo valor na conta 21-Clientes que já se encontrava pago, e a que exercícios deveriam tais despesas não documentadas nem contabilizadas ser imputadas. A imputação integral ao exercício de 2018, com a aplicação do agravamento de taxa estatuído no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, não se mostra desconforme com a lei.
Pelo exposto, conclui-se que improcede totalmente o pedido de pronúncia arbitral.
3.3. Juros compensatórios
A liquidação de juros compensatórios n.º 2020... ( ) tem como fundamento o retardamento da liquidação da tributação autónoma sobre as despesas não documentadas (artigo 35.º, n.ºs 1 e 8, da LGT).
Ora, a autoliquidação da tributação autónoma é uma obrigação dos sujeitos passivos de IRC sempre que apresentam despesas a ela sujeitas [artigos 88.º, n.º 22, e 89.º a) do CIRC]. Não tendo procedido a essa autoliquidação, a Requerente retardou a liquidação do IRC respetivo. Não se identifica vício que afete a liquidação de juros compensatórios n.º 2020... .
4. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em jugar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor indicado pela Requerente, de € 183.328,37.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 20-10-2020
Os Árbitros
(Luís M. S. Oliveira)
(relator)
(Jónatas Machado)
(Jorge Lopes de Sousa)
(vencido, conforme declaração anexa)
Voto de vencido
Votei vencido pelas seguintes razões, que constam, no essencial, de um projecto de acórdão que elaborei, que é parcialmente reproduzido no acórdão:
1. Matéria de facto
Como resulta da matéria de facto, Sujeito Passivo tinha declarado saldos devedores elevados pelo menos desde 31-12-2014 (€ 224.839,52), aumentando em 31-12-2015 (€ 247.960,02) e diminuindo sucessivamente a partir daí, para € 225.209,11 em 31-12-2016, € 213.829,38 em 31-12-2017 e € 210.875,29 em 17-12-2018.
A Administração Tributária entendeu que, não se encontrando na posse do Sujeito Passivo à data de 17-12-2018 a quantia referida, sobre ela deveria incidir tributação a título de despesas não documentadas, no ano de 2018, com agravamento de 10%, nos termos do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC, porque, neste ano, o Sujeito Passivo teve prejuízo fiscal.
2. Regime legal da tributação autónoma por despesas não documentadas
O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A».
O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos» ), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, no acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, que «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.
No entanto, mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:
O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável.
Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.
Na jurisprudência arbitral já havia sido defendido este entendimento, designadamente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T:
«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário.
3. Existência de despesas não documentadas
A Administração Tributária não apurou a que se deve a divergência entre o valor que deveria existir na caixa física e o que existia, relativamente ao saldo da Conta 11-Caixa: não se apurou, designadamente, se se trata de pagamentos sem emissão de documentos efectuados a alguém, se foram lucros distribuídos ou adiantamento por contas de lucros efectuados a sócios, se se trata de apropriações ou furtos, ou, inclusivamente, se trata de erros ou irregularidades contabilísticas, designadamente, como afirma o Sujeito Passivo, «errada emissão de recibos sem que tenha ocorrido o respectivo pagamento ou, noutros casos, a falta ou retardamento na contabilização de documentos relativos a gastos da sociedade e/ou a pagamentos de facturas de fornecedores que não foram contabilisticamente registados ou a pagamentos que aguardam a remessa do respectivo documento de quitação do credor».
Em direito são admitidas presunções em matéria de prova, que permitem concluir, com fundamento num facto conhecido, pela existência de um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil).
Como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 06-10-2010, proferido no processo n.º 936/08.JAPRT:
«A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais».
«A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção».
«A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção».
«Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido».
«A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros».
Sendo as presunções naturais um meio de prova admitido em direito, podem ser utilizadas no procedimento tributário, como decorre do artigo 72.º da LGT, e também no processo arbitral, por força do disposto no artigo 115.º, n.º 1, do CPPT aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa (e também na conta 21-Clientes) deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respectiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.
Por outro lado, os valores elevados das divergências mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros ou irregularidades contabilísticas numa empresa que é um restaurante, em que as entradas e saídas de meios financeiros serão tendencialmente de reduzido valor pecuniário, pelo que a atribuição da divergência em causa, na sua totalidade, a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente.
Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.
Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.
Há, assim, fundamento factual, para aplicação da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC.
4. Imputação das despesas não documentadas ao período de 2018
A Requerente defende que, a concluir-se pela existência de despesas, elas não poderão ser imputadas na totalidade ao período de 2018, apenas devendo sê-lo as que correspondem à diferença entre o saldo da conta 11-Caixa em 31-12-2017 e 26-12-2018, data em que foi feita a conferência.
A Administração Tributária questiona, além do mais, que seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios e defende que as despesas devem ser imputadas ao exercício em que foi detectada a divergência entre o saldo e a realidade.
Antes de mais, há que esclarecer que, embora o princípio da especialização dos exercícios se reporte especificamente à «periodização do lucro tributável», como decorre do artigo 18.º do CIRC, a aplicação das tributações autónomas também tem de ser efectuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram.
Na verdade, por um lado, às tributações autónomas em sede de IRC aplicam-se todas as normas do CIRC que não sejam incompatíveis, pois elas incluem-se no IRC, como decorre do teor expresso da alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC. Assim, aplicam-se às tributações autónomas em IRC, por exemplo, as regras relativas à apresentação de declarações, autoliquidação, liquidação adicional e todas as outras que sejam necessárias para sua aplicação.
Assim, também quanto às tributações autónomas previstas no CIRC vigora o princípio da anualidade, que se enuncia no artigo 8.º do CIRC, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».
Por isso, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respectiva liquidação reporta-se a cada período fiscal.
Não se tratará daquele princípio de especialização dos exercícios que, com atenuações derivadas do princípio da solidariedade dos exercícios, se aplica à determinação do lucro tributável, mas trata-se de um regra que é aplicável generalizadamente em IRC, inclusivamente quanto às tributações autónomas.
Aliás, foi mesmo este o entendimento adoptado pela Administração Tributária na liquidação impugnada, em que, embora só se tenham liquidado adicionalmente tributações autónomas e os respectivos juros compensatórios, se faz referência ao período de 2018 e se diz que a Requerente fica notificada «da liquidação de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos» (documento n.º 1).
De resto, o próprio artigo 88.º do CIRC, no seu n.º 14, que até foi o aplicado no caso em apreço, revela expressamente a conexão das tributações autónomas com o período de tributação do rendimento em que ocorrem os factos que lhes está subjacentes, ao estabelecer que «as taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC».
Assim, com referência ao exercício de 2018, apenas poderão ser tributadas autonomamente despesas que tenham ocorrido nesse exercício e o agravamento de 10% derivado de nesse período ter havido prejuízo fiscal apenas pode, obviamente, ser aplicado às despesas não documentadas que se prove terem ocorrido nesse período e não também àquelas que foram efectuadas em períodos em que a Requerente teve lucros.
No caso em apreço, a prova produzida não permite concluir que todas as despesas que estão subjacentes à falta de meios financeiros correspondentes aos saldos das contas 11-Caixa e 21-Clientes em 26-12-2018 tenham ocorrido neste ano de 2018 e, pelo contrário, os indícios que resultam do facto de aquela conta já apresentar saldos devedores elevados desde 2014, aumentando até 31-12-2015, em que foi atingido o máximo, apontam no sentido de a falta de meios financeiros ter ocorrido antes deste ano de 2015, relativamente ao saldo devedor que já se verificava no final desse ano, na conta 11-Caixa.
É isso, aliás, que se entende no acórdão, na tese que fez vencimento, ao dizer-se que «também é da experiência comum não ser infrequente em certas atividades que a caixa, no sentido físico, seja esvaziada no final de cada dia, podendo os valores retirados ser depositados em conta bancária da entidade, na manhã seguinte, como seria de boa prática, mas podendo em alternativa, ser simplesmente apropriados, totalmente ou em parte, pelos ‘donos’ da empresa. Nesta segunda hipótese, a eventual consulta aos movimentos bancários da entidade pouco ou nada permite apurar, nem sobre entradas nem sobre saídas. E podem tais valores também não ser depositados nas contas pessoais dos próprios ‘donos’ da empresa».
A primeira parte destas considerações tem alguma consistência, essencialmente pelo facto de o saldo ser elevadíssimo (mais de 200.000,00 na conta 11-Caixa de um restaurante de reduzida dimensão, segundo se infere da declaração de rendimentos que consta do processo administrativo) e não haver qualquer quantia na posse da empresa (auto de fls. 3 e 4 do processo administrativo), o que é um indício consistente de que haveria uma prática de esvaziamento físico da caixa.
Mas, se é assim, a mesma invocada «experiência comum» que serve de base a uma presunção de que haveria uma prática de quotidiano sistemático esvaziamento físico da caixa imporá a conclusão que esse esvaziamento quotidiano já vinha ocorrendo, pelo menos, antes de 31-12-2015, quando foi atingido o valor máximo de saldo devedor da conta 11-Caixa, de € 247.960,02.
Desta perspectiva, presumindo que em 31-12-2015 estava esvaziada fisicamente a caixa, havendo já apropriação daquela quantia, o facto de, a partir do final do ano de 2015, o saldo devedor de caixa ter vindo a baixar e não a agravar-se será indício de que, em vez de haver novas apropriações em 2016, 2017 e 2018 (que, a verificarem-se, agravariam o saldo devedor da conta 11-Caixa em relação ao que se verificava no final de 2015), até terá havido devoluções à caixa física de valores antes presumivelmente apropriados, ou, pelo menos, as devoluções foram de montantes superiores às hipotéticas novas apropriações.
Isto significa que a mesma presunção de apropriação sistemática de valores da caixa física que resulta da constatação do seu esvaziamento em 2018, conduz à conclusão que a diferença entre o saldo da conta 11-Caixa constatada em 2018 e a realidade não corresponde a apropriações (despesas) ocorridas em 2018, mas, antes em anos anteriores a 2016, pelo menos na sua maior parte.
De qualquer modo, quanto a esta quantificação do facto tributário, está-se, pelo menos, perante uma fundada dúvida, resultante da forte presunção que nem todas as despesas evidenciadas pelo saldo devedor da conta 11-Caixa ocorreram em 2018 e, pelo contrário, ocorreram antes de 2016, o que justifica a anulação da liquidação, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.
No entanto, relativamente à falta de meios financeiros correspondentes referentes à conta 21-Clientes, deve considerar-se provado que a quantia de € 45.000,00 foi recebida pela empresa em 2018, como foi declarado pelo gerente da empresa, pelo que, não se encontrado a quantia referida no seu património e não sendo apresentado qualquer documento que comprove o destino que lhe foi dado, está-se perante despesas não documentadas, a que é aplicável a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC. Quanto à parte restante, ou outros € 45.000,00 recebidos do mesmo cliente, o gerente da Requerente confessa que os recebeu em € 45.000,00 e não os declarou à contabilidade, o que permite concluir que se apropriou dessa quantia nessa ano de 2017 e, por isso, a aplicação de tributação autónoma deveria fazer-se com referência a esse período de tributação e sem o agravamento invocado na liquidação por ter ocorrido prejuízo fiscal em 2018.
Assim, a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ao imputar ao exercício de 2018 despesas não documentadas no valor de € 210.875,29, vício este que justifica a anulação da liquidação, na parte respectiva, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Pelo exposto, é de concluir que
– as despesas não documentadas que podem ser tributadas relativamente ao período de 2018, com o agravamento derivado da existência de prejuízo fiscal nesse período que se prevê no n.º 14 do artigo 88.º do CIRC, são apenas as que foram realizadas nesse ano;
– deveria proceder parcialmente o pedido de pronúncia arbitral quanto às despesas correspondentes ao montante de € 210.875,29 da conta 11-Caixa e ao montante de € 45.000,00 da conta 21-Clientes recebido em 2017, no montante global de € 255.875,29; a este montante de€ 255.875,29 que corresponde o montante de imposto de € 153.525,17 de tributação autónoma, à taxa de 60% prevista nos n.ºs 1 e 14 do artigo 88.º do CIRC, pelo que o pedido de pronúncia arbitral procede na percentagem de (procedência de 85,04%, uma vez que o montante das tributações autónomas liquidadas é de € 180.525,17 );
– deveria improcede o pedido de pronúncia arbitral quanto às despesas não documentadas no montante de € 45.000,00, a que corresponde a tributação autónoma de € 27.000,00, à taxa de 60% prevista naqueles n.ºs 1 e 14 do artigo 88.º do CIRC (improcedência de 14,96%).
5. A prova do momento da ocorrência das despesas e o facto tributário
São, obviamente, coisas diferentes a existência de despesas e o momento em que ocorrem, e a prova da sua existência e o momento em que a prova é obtida.
O facto tributário, que justifica a tributação, é a existência de despesas, que não se confunde com a prova da sua ocorrência.
Na tese que fez vencimento, o momento da ocorrência do facto tributário acaba por ser aquele em que se fez a contagem física da caixa, o que se reconduz à possibilidade de multiplicação ilimitada dos factos tributários, pois sempre que fosse efectuada uma contagem e fosse detectada uma falta de valores na caixa física estar-se-ia perante um novo facto tributário: isto é, houve um facto tributário no dia 17-12-2018, porque foi feita uma contagem, mas, se fosse feita nova contagem no dia seguinte, haveria aí um novo facto tributário, pois ainda não haveria os valores em caixa. E assim sucessivamente, a mesma apropriação de quantias seria suporte de multiplicação de tributações autónomas todas as vezes (duas, três, cinco, dez ou mais) que fosse efectuada uma contagem física e se verificasse que continuava a faltar aquele valor em caxa física.
Esta seria uma hipotética solução legislativa tão desacertada e desproporcionada, por razões que suponho serem óbvias, que tem de se presumir não ter sido legislativamente adoptada, por força da presunção que impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.
E, da mesma forma, as mesmas despesas não documentadas que, pelo menos parcialmente, mas na sua maior parte terão ocorrido antes de 2014 ( ) poderiam ser repetidamente tributadas, tanto antes da data em foi feita a contagem como posteriormente, ad eternum, sempre que se fizer uma nova contagem que confirme que continua a falta de valores na caixa física.
Esta tese, para além de contrariar o texto do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, que identifica as despesas e não a contagem física da caixa como o facto tributário sujeito a tributação autónoma, é também incompatível também com o n.º 14 do mesmo artigo que impõe a conexão das despesas com determinado período de tributação.
Para além disso, esta tese, que prescinde do momento da realização das despesas para efeitos da sua tributação autónoma, é incompatível com o regime da caducidade do direito de liquidação, que, em sede tributações autónomas de IRC, impõe a irrelevância fiscal de factos ocorridos em períodos fiscais há mais quatro anos em relação àquele em que se emite a liquidação.
E esta tese, ao permitir tributar com tributações autónomas despesas ocorridas em qualquer momento do passado, desde que a contagem se faça dentro do prazo de caducidade, é também incompatível com a proibição da retroactividade das leis fiscais (artigo 103.º, n.º 3, da CRP), pois, em última análise, permite, por essa via, tributar, inclusivamente, despesas realizadas antes da introdução no nosso sistema jurídico das tributações autónomas (há 20, 30 ou mais anos) e aplicar as taxas actuais a despesas que foram realizadas quando as taxas eram menores.
6. A utilização de métodos indirectos
Há também um erro de interpretação da lei na tese que fez vencimento e sobre o alcance da utilização de métodos indirectos, ao reduzi-lo à determinação do lucro tributável (erro que será comum ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que cita, se for essa a interpretação adequada deste aresto).
Na verdade, como resulta do teor expresso da alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT, que é diploma de aplicação generalizada, os métodos indirectos são utilizáveis em caso de «impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto».
A «determinação da matéria tributável» não se restringe ao «determinação do lucro tributável», como evidencia, para além do teor literal desta norma, o facto de se prever a sua utilização relativamente a «qualquer imposto» e não apenas os que incidem sobre o lucro.
Aliás, esta referência a «qualquer imposto» não constava da redacção inicial deste alínea b), que constava do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), nem na introduzida pela Lei n.º 100/99, de 26 de Julho, só vindo a ser aditada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, com evidente intuito de esclarecimento do seu âmbito de aplicação generalizado, apesar de já antes ser inequívoco que não se restringia aos impostos sobre o rendimento e muito menos apenas aos que incidem sobre lucros, pois já desde o Decreto-Lei n.º 472/99, de 8 de Novembro, já estava esclarecida a sua aplicação em sede de IVA, através da redacção que deu ao artigo 84.º do CIVA (actual artigo 90.º).
Esta previsão expressa da utilização de métodos indirectos em sede de IVA consta ainda hoje da incontornável remissão que para eles se faz no actual artigo 90.º, n.º 1, do CIVA: «a liquidação do imposto com base em presunções ou métodos indirectos efectua-se nos casos e condições previstos nos artigos 87.º e 89.º da lei geral tributária, seguindo os termos do artigo 90.º da referida lei».
Reafirmando essa possibilidade de utilização de métodos indirectos o n.º 2 do mesmo artigo até esclarece quem cabe a competência para a sua utilização.
Na mesma linha, o artigo 9.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo prevê a utilização de métodos indirectos para determinar o valor tributável «quando se verificarem os casos e condições previstos nos artigos 87.º e 89.º da Lei Geral Tributária (LGT)», apesar de o Imposto do Selo incidir sobre o lucro, mas sim sobre «todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens» (artigo 1.º do CIS).
Ainda na mesma linha o artigo 89.º-A da LGT, conjugado com a alínea d) do n.º 1 do artigo 87.º da mesma Lei, prevê a utilização dos métodos indiretos aí arrolados para determinação do rendimento de IRS, independentemente de se tratar ou não de rendimentos empresariais.
Aliás, nem poderiam deixar de ser utilizáveis métodos indirectos em relação a quaisquer impostos, pois esses métodos são a forma possível de tributar em situações que não há possibilidade de utilização de métodos directos e a proibição da sua utilização reconduzir-se-ia a favorecimento injustificado dos contribuintes que não cumprissem as obrigações fiscais que permitem a determinação directa da matéria tributável. Por isso, a possibilidade de aplicação generalizada de métodos indirectos, e uma solução reclamada pelo princípio constitucional da igualdade e da tributação com base na capacidade contrbutiva.
Assim, como afirma, com a autoridade generalizadamente reconhecida, a Senhora Professora Doutora Ana Paula Dourado, relatora do processo arbitral n.º 7/2011, de 20-09-2012 ( ), «as irregularidades na contabilidade do sujeito passivo, incluindo a existência de dúvidas, resultantes dessas irregularidades, sobre se certas despesas foram incorridas ou não (se há dúvidas sobre se elas foram incorridas, também não há documentação relevante), não podem cair na categoria de despesas não documentadas, mas são antes pressupostos de aplicação de métodos indiretos nos termos do art.º 87.º al. b) e 88.º da LGT».
O que não afasta a possibilidade de, através de presunções judiciais ,se poder formular um juízo seguro sobre a existência de despesas e, na medida dessa «certeza» jurídica, mas apenas nessa medida, se ter de afastar a utilização de métodos indirectos, por estes terem natureza subsidiária dos métodos directos (artigo 85.º, n.º 1, da LGT) (o que, no caso em apreço se verifica em relação aos € 45.000,00 recebidos em 2017, a que se refere a conta 21-Clientes).
Por outro lado, como resulta do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º, os métodos indirectos são utilizáveis em todos os casos em não sejam quantificáveis directa e exactamente os «elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto», e entre esse elementos, em face da necessidade de determinação do período em que ocorreram as despesas que emana do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC, quando estiver em causa a aplicação da taxa agravada, inclui-se incontornavelmente a determinação do período fiscal em que as despesas ocorreram, essencial para a determinação da taxa a aplicar.
De qualquer modo, o que a meu ver mais releva quando se está a aplicar a justiça é que, quaisquer que sejam os métodos que se utilizem, com presunções ou sem elas, num juízo objectivo e imparcial inerente a uma decisão jurisdicional, não há qualquer fundamento para crer que uma empresa com a dimensão da Requerente dispusesse de mais de € 200.000 em caixa física no início de 2018 e os tivesse utilizado integralmente durante esse ano para pagamentos ou apropriações não documentadas. E, pelo contrário, todos os inícios referidos apontam no sentido de pelo menos parte das quantias em falta já não estarem na caixa física muito antes de 2018.
7. Quanto à repressão das práticas irregulares
A tese que fez vencimento é perceptivelmente influenciada por preocupações de protecção da eficácia da Administração Tributária, pretendendo afastar uma interpretação que entende que «confere a sujeitos passivos de IRC incumpridores uma via segura para práticas de ‘caixa aberta’, que esvaziam sem nada documentarem nem contabilizarem, com o previsível resultado» e «para que tais práticas de evasão fiscal sejam bem sucedidas, ficando imunes à aplicação da lei, que as saídas tampouco sejam contabilizadas, assim inviabilizando a aplicação a tais esvaziamentos de caixa do princípio da especialização dos exercícios, caso este fosse entendido como aplicável a mais do que aquilo que está na lei».
Não são indicadas as normas jurídicas ou princípios hermenêuticos de que decorra que as normas fiscais devam ser interpretadas de forma a favorecer a Administração Tributária e contra os contribuintes.
Antes pelo contrário, o entendimento legislativo sobre a ponderação dos valores conflituantes a nível probatório quando se confrontam a Administração Tributária e dos contribuintes é no sentido de que, na dúvida sobre a realidade factual, se favorecem os contribuintes (artigo 100.º , n.º 1 do CPPT) e não a Administração Tributária.
Para além disso, é o legislador que, fixando prazos de caducidade de prescrição para a generalidade dos impostos, demonstra que é preferível, na perspectiva legislativa, prescindir da receita fiscal em favor da segurança jurídica, mesmo nos casos de evasão fiscal, inclusivamente nos casos de factos relacionados com práticas evasivas de omissões de declarações e territórios usualmente conexionados com evasão fiscal (operações com off-shores), como mostram os artigos 45.º, n.º 7, e 48.º, n. 4, da LGT.
Nestes casos, os prazos são alargados, mas há prazos, apesar da praticamente certa existência de práticas de evasão fiscal.
Da mesma forma, mesmo em relação aos agentes dos crimes mais graves, fiscais e não fiscais, há prazos de prescrição.
É esta a opção do nosso Estado de Direito.
Desta perspectiva, o prazo eterno e inesgotável para liquidar tributações autónomas por despesas não documentadas em situações deste tipo, que resulta, na tese que fez vencimento, da transposição do facto tributário para o momento da contagem, independentemente de poderem ter decorrido dezenas de anos sobre o momento da realização das despesas, não é, seguramente, uma opção legislativa no nosso Estado de Direito, em que a lei deve ser interpretada «tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil) e de forma a garantir a coerência valorativa e axiológica, que é corolário daquela unidade.
No nosso Estado de Direito, mesmo estes cidadãos que presumivelmente têm estas práticas evasivas e criminosas (muitas vezes com valores gigantescos, como vem sendo cada vez mais do domínio público) têm direito a serem julgados por órgãos independentes e imparciais, que com objectividade e rigor apliquem as leis, respeitando os critérios axiológicos e valorativos definidos legislativamente e não lhes sobrepondo os próprios critérios pessoais dos julgadores sobre o que deve ser a correcta aplicação da justiça e a prossecução do interesse público, mesmo que esses critérios sejam bem intencionados e correspondam ao que os julgadores entendem pessoalmente que devia ser a lei, se fosse a eles próprios e não ao legislador que a lei atribui poder legislativo.
(Jorge Lopes de Sousa)