Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 434/2019-T
Data da decisão: 2020-08-11  IRS  
Valor do pedido: € 5.251,33
Tema: IRS – Rendimentos de trabalho dependente; Art.º 15.º da CMOCDE; art.º 16.º da CDT PT-França; Dupla tributação; Residência; Art.º 4.º da CMOCDE; Ónus da prova.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

SUMÁRIO:

1) Não se verificando, no ano a que os rendimentos respeitam, qualquer dos requisitos de que o art.º 16.º do CIRS faz depender a qualificação de Residente das pessoas singulares, não pode a pessoa em causa qualificar como Residente fiscal em Portugal. 2) O conceito de domicílio fiscal constante do art.º 19.º da LGT não se confunde com o conceito de residência fiscal. E é distinto, também, do conceito de domicílio em Direito Internacional Fiscal. 3) Havendo concorrência de pretensões tributárias de dois Estados soberanos - em imposto sobre o rendimento sobre os mesmos rendimentos do trabalho dependente prestado pela mesma pessoa em relação ao mesmo período - ocorre dupla tributação internacional. Que vem a ser excluída pela atribuição Convencional de competência exclusiva de tributação a um dos Estados Contratantes. 4) Sendo França o Estado da Residência (ER) para efeitos da CDT aplicável, e conferindo o Artigo 16.º da CDT PT-França competência exclusiva ao ER, não podia o Estado Português tributar os rendimentos do trabalho dependente de trabalhador Português que qualifica como Residente em França e aí presta o seu trabalho.

 

DECISÃO ARBITRAL

1. Relatório

 

A..., doravante designado por “Requerente”, “Sujeito Passivo” ou simplesmente “SP”, contribuinte fiscal português n.º..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Castro Daire, veio, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

 

Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, mais concretamente de IRS, reportado ao ano de 2014.

À Liquidação em crise, com o n.º 2018..., e data de 13.11.2018, corresponde um valor total a pagar (imposto e juros compensatórios) de € 5.251,33 (cfr. Demonstração de Liquidação de IRS junta pelo SP com o PPA).

 

A Declaração Modelo 3 que deu origem à Demonstração de Liquidação de IRS foi apresentada pelo próprio Requerente, no decurso de Processo Inspectivo que lhe foi instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira e na sequência de, nesse âmbito, lhe ter sido comunicado haver incorrido em irregularidades. Designadamente, por não ter apresentado, antes, Declaração Modelo 3 referente ao ano de 2014.

 

O Requerente não se conforma, contudo, com a liquidação de IRS assim efectuada, e que aqui coloca em crise. Expõe que, apesar de ter submetido a Declaração, apenas o fez por a tal ter sido pressionado no contexto supra, sendo que não era devido apresentá-la. Residia em França, aí tendo vivido e trabalhado ao longo de todo o ano em causa, aí tendo apresentado a sua declaração de rendimentos, e aí tendo sido tributado como residente.

 

Após notificado da Liquidação, o Requerente apresentou, em tempo, Reclamação Graciosa (doravante também “RG”) -  Procedimento de RG com o n.º ...2019... -, onde pugnou pela ilegalidade da liquidação (doravante também “a Liquidação”). A RG foi objecto de despacho de indeferimento, o qual ora também coloca em crise.

 

As posições das Partes são divergentes, no essencial, quanto à qualificação como residente   fiscal em Portugal do SP e, conexamente, quanto à sujeição do mesmo a IRS com referência aos rendimentos do trabalho dependente por si auferidos, em França, no ano de 2014.

 

O Requerente não se conforma com a Liquidação, pelo que vem agora peticionar: a anulação, por ilegais, (i) da decisão de indeferimento da RG e (ii) da Liquidação, (iii) a devolução “dos montantes pagos pelo Requerente e/ou executados pela Requerida”, e (iv) a condenação no pagamento “dos juros indemnizatórios à taxa legal que se mostrarem devidos”.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à AT a 02.07.2019.

 

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.

 

A 14.08.2019 as Partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 03.09.2019.

 

Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta, pugnando pela total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante “PPA”), e pela consequente manutenção da Liquidação em crise na Ordem Jurídica.

 

A Requerida entende, em síntese, que a Liquidação não padece de qualquer vício.

 

Ao abrigo da CDT aplicável foi recebida informação, em matéria de Imposto sobre o Rendimento, da Divisão de Planeamento e Apoio Técnico de fonte francesa. Com vista ao respectivo controlo foi instaurado procedimento inspectivo ao Requerente, tendo por objecto o ano de 2014, aí se tendo detectado irregularidades em IRS. A saber, a não apresentação, pelo mesmo, de Declaração reportando os rendimentos (Categoria A) que obteve, nesse ano, no estrangeiro.

 

Fundamenta-se a Requerida no facto de, em seu entender, o Requerente ter sido, no ano de 2014, residente fiscal em Portugal. Para tanto invoca, por um lado, a informação recebida da administração fiscal francesa, que refere ter sido no sentido de que o Requerente obteve nesse ano rendimentos do trabalho dependente em França na qualidade de (aí) não residente, não tendo o Requerente feito prova em contrário. Por outro, e entre o mais, invoca o facto de a 31.12.2014 o Requerente se encontrar registado no seu (da Requerida) sistema informático - no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes - enquanto residente fiscal.

 

Sendo residente fiscal em Portugal, incide IRS sobre a totalidade dos rendimentos por si auferidos no ano em causa, ainda que fora do território Português, e, assim também, estava obrigado à apresentação da Declaração Modelo 3. Como fez, correctamente, mesmo porque foi considerado, a título de crédito de imposto, o valor de imposto que havia pago em França.

 

Não tendo sido solicitada produção de prova adicional, por despacho de 14.10.2019 decidiu este Tribunal dispensar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas.

 

Nenhuma das Partes apresentou alegações.

 

Por despacho de 03.03.2020 o Tribunal, por motivos de períodos de férias judiciais, prorrogou, por dois meses, o prazo constante do art.º 21.º, n.º 1 do RJAT, cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo legal, determinando-se as demais comunicações devidas. O mesmo voltou a suceder (após suspensão de prazos cfr. Leis n.º 1-A/2020, de 19 de Março, n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, e n.º 16/2020, de 29 de Maio) por despacho de 27.07.2020.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

O Processo não enferma de nulidades e não existe matéria de excepção.

Refira-se que quanto à tempestividade do PPA não se levanta qualquer questão, tendo o mesmo sido apresentado dentro do prazo legal de 90 dias - cfr. al.s jj) e mm) dos factos provados, infra, e ao abrigo do art.º 10.º, n.º 1 al. a), primeira parte, do RJAT (v. art.º 102.º, n.º 1, al. b) do CPPT; v. também art.º 131.º, n.º 1 do CPPT).

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os factos que seguem:

 

a) O Requerente tem o número de contribuinte fiscal português ... e nacionalidade portuguesa (cfr. Liquidação, RIT e Doc. Provisório de Identificação - PA2 pp. 128-129);

 

b) O Requerente tem o número de contribuinte fiscal francês ... (cfr., entre o mais, doc.s 6, 7, 9, 12, 13,15 juntos pelo SP);

 

c) O Requerente tem o número de Segurança Social francês ... (cfr. doc.s 1 a 4 e doc. 5);

 

d) O Requerente estava registado no sistema informático da AT em 2014 com Domicílio Fiscal em Rua..., n.º..., ..., ...-... Castro Daire (cfr. doc. Registo Central de Contribuinte - PA2);

 

e) O Registo Central de Contribuinte e “Documento provisório de Identificação” do Requerente substituía o respectivo cartão de identificação fiscal até 15.10.2019 e a sua submissão/emissão datam de 05.11.1998 (cfr. doc. Registo Central de Contribuinte - PA2);

 

f) O Requerente nasceu a 12.03.1982 (cfr. doc. Registo Central de Contribuinte – PA2);

 

g) Em 2014 o coeficiente conjugal do Requerente, cfr. Declaração Modelo 3 que deu origem à Liquidação, foi 1,00 (cfr. Liquidação, junta pelo SP ao PPA);

h) O Requerente em 2014 era trabalhador por conta de outrem em França e nessa qualidade  aferiu os seus rendimentos (cfr. doc. 2, 3, 4 - pp 3 a 7, doc. 5; PA-1 e PA-2; Liquidação);

 

i) Entre os anos de 2011 e 2015 o Requerente celebrou sucessivos contratos de trabalho escritos como trabalhador ao serviço da empresa “B..., SA” (doravante “B... SA”), com sede em ..., ..., Rue ..., ..., França, N.º SIRET ... e N.º SIRET de estabelecimento secundário 4..., sendo o contrato assinado em 2011 sem termo, os seguintes a termo certo, e o contrato assinado em 2015 sem termo (cfr. doc.s 1 a 3 juntos pelo SP; PPA; PA-2);

 

j) Entre Maio e Setembro de 2013 o Requerente regressou e permaneceu em Portugal, e no início de Outubro de 2013 voltou para França, onde passou novamente a trabalhar para a empresa “B... SA” ao abrigo de contrato de trabalho escrito (cfr. PPA, 6 e 8; doc.s 1 a 3 juntos pelo SP), aí assim tendo permanecido pelo menos até 2017 inclusive (cfr. doc.s 10 e 11 juntos pelo SP);

 

k) Em 2014 o Requerente encontrava-se a trabalhar para a sua empregadora  - “B... SA” - ao abrigo de contrato de trabalho a termo, de seis meses, celebrado a 04.10.2013, com início de produção de efeitos a 07.10.2013, renovado, por um ano, a 04.04.2014, com início de produção de efeitos a 07.04.2014 e término a 07.04.2015 (cfr. doc.s 2 e 3 juntos pelo SP; PA);

 

l) No ano de 2014 e ao abrigo dos contratos de trabalho, o Requerente prestou o seu trabalho como operário de construção civil, “Monteur” - primeiro com a categoria profissional N1 P2/ OE 2 e, desde 1 de Maio, N2 OP -, tinha como local de trabalho a região de Orleans, em França, que aceitou poder ser alterado pela entidade empregadora tão só dentro do território de França (França Metropolitana), podia ser-lhe solicitado no âmbito das suas funções fazer deslocações profissionais de curta duração para fora da zona geográfica onde habitualmente exercia a sua actividade, tinha como horário de trabalho semanal 35 horas, às quais poderiam acrescer, a solicitação, horas suplementares, e trabalhava em regime de exclusividade  (cfr. doc. 3, p. 1,  doc. 4, pp 3 a 7, juntos pelo SP; PA);

 

m) Em 2014 o Requerente prestou à sua entidade empregadora, ao abrigo dos contratos de trabalho supra, 1.785,04 horas de trabalho, que lhe foram pagas, mais tendo sido feitas as correspondentes contribuições para a Segurança Social Francesa (cfr. doc. 5 junto pelo SP);

 

n) Pelo menos com referência aos anos de 2009, 2010, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 o Requerente apresentou Declarações junto das entidades fiscais francesas (cfr. doc.s 15, 13, 14, 12, 9 e 6, 8 e 16, 11 juntos pelo SP);

 

o) As comunicações das entidades fiscais francesas eram endereçadas ao Requerente para moradas em França (cfr. doc.s 6, 7, 9, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 juntos pelo SP), e no final dos “Avis d’impôt” constava como domicílio fiscal (“Adresse d’impositon”) do Requerente – incluindo no “Avis d’impôt” reportado a 2014 - domicílio sito em França (cfr. doc.s 6, 14 e 15 juntos pelo SP);

 

p) Nos recibos de vencimento do Requerente constava, após o seu nome, "Rua ..., ..., ...-... Castro Daire, Portugal” (cfr. doc. 4, p. 3 e ss.; PA2);

 

q) Nos contratos de trabalho constava, no cabeçalho, após o nome do Requerente, morada em Portugal, no original assim: “Demeurant au Rua ..., ..., Castro Daire (Portugal)” (cfr. docs. 1, 2 e 3 juntos pelo SP);

 

r) Ao Requerente era disponibilizada habitação pela empregadora, ao abrigo do contrato de trabalho, contribuindo o Requerente mensalmente com um valor para o efeito, como constante dos recibos de vencimento do ano de 2014 - “Avantage logement à déduire” (cfr. doc. 4, pp. 3, 4, 6, 7, juntos pelo SP; PA2, p. 115, IV.14);

 

s) Entre 01.11.2017 e 15.12.2017 o Requerente esteve de baixa médica, tendo-lhe a Segurança Social Francesa comunicado, para morada sita em França, comprovativo do valor do subsídio diário a que teve direito nos termos do Plano de Saúde aplicável, emitido a 28.03.2018 (cfr. doc. 17 junto pelo SP);

 

t) O Requerente dispunha em França de conta bancária, na qual era creditada a sua retribuição mensal e de onde, pelo menos em 2016, procedia, entre o mais, a pagamentos em despesas regulares de supermercado, farmácia e outros, serviços de telecomunicações por si contratados e tempos livres (cfr. doc.s 19 e 20 juntos pelo SP);

 

u) A morada constante das comunicações da empresa fornecedora de serviços de telecomunicações ao Requerente, em 2016, era em França (cfr. doc. 20 junto pelo SP);

 

v) Com referência ao ano de 2014, o Requerente apresentou Declaração de rendimentos em França, aí declarando os rendimentos do trabalho dependente que auferiu nesse ano, em França, e aí foi notificado da liquidação - “Avis d’impôt” -, tendo-lhe sido devido pagar, e tendo pago, imposto sobre o rendimento no montante total de € 883,00 (cfr. doc. 6 junto pelo SP; PA);

 

w) Em 2014 o Requerente auferiu, em França, rendimentos do trabalho dependente no montante total de € 25.380,00, dos quais € 1.131,00 pagos por C..., com morada em ..., França, e € 24.249,00 pagos por D..., com morada em ..., França (cfr. Informação da Requerida no Procedimento de RG, PA2);

 

x) O Requerente declarou às autoridades fiscais francesas os rendimentos que auferiu em 2014 em França e não os declarou - até o fazer no decurso do Procedimento Inspectivo de que foi alvo em 2018 - em Portugal;

 

y) A 25 de Setembro de 2018 o Requerente foi notificado pela Requerida de que lhe iria ser instaurado Procedimento de Inspecção relativo ao cumprimento das suas obrigações fiscais em IRS referente a 2014 (cfr. PPA e RIT);

 

z) O Procedimento Inspectivo, de âmbito parcial e incidência temporal 2014, teve origem na OI 2018..., que foi assinada pelo Requerente a 07.11.2018 (cfr. RIT);

 

aa) A 13.11.2018 o Requerente submeteu Declaração Modelo 3 relativa ao ano de 2014 (cfr. PPA, RIT e Liquidação);

 

bb) Na Declaração Modelo 3 submetida pelo Requerente, os rendimentos declarados foram exclusivamente os do trabalho dependente auferidos em França, no montante de € 25.380,00, e o Requerente declarou, ainda, o imposto pago no estrangeiro, no valor de € 883,00, no Anexo J, quadros 4 e 6 (cfr. RIT e Liquidação);

 

cc) Da Declaração Modelo 3 supra, e que foi considerada pela Requerida como correctamente efectuada, veio a resultar a Liquidação de IRS relativa ao ano de 2014 com o n.º 2018..., com o valor a pagar de € 5.251,33 e prazo de pagamento voluntário até 26.12.2018;

 

dd) Pelo Ofício n.º..., remetido a 19.12.2018, a Requerida notificou o Requerente do RIT e no Despacho confirmativo daí constante, de 18.12.2018, pode ler-se, entre o mais: “(...) as irregularidades detetadas e que consubstanciaram correções foram regularizadas voluntariamente durante a ação inspetiva (…).” (cfr. RIT – PA1)

 

ee) Do RIT, que se dá por integralmente reproduzido, consta, entre o mais:

“II.2. MOTIVO (…) A presente acção de inspecção (…) foi motivada pelo facto de o sujeito passivo ser residente em Portugal e ter auferido rendimentos obtidos no estrangeiro (França), sem que tenha apresentado a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS e, consequentemente, ter declarado os rendimentos auferidos.” (...)

 

ff) As Conclusões do RIT são do seguinte teor:

 

gg) Em 03.01.2019 o Requerente interpôs Reclamação Graciosa e aí invocou erro, por a Declaração por si submetida o ter sido na qualidade de não residente em virtude de o sistema não ter permitido submetê-la como não residente, e que apenas submeteu a Declaração por a tal ter sido pressionado (cfr. PA2, p. 26 e ss.);

 

hh) Na RG o Requerente pediu, a final, a anulação da Liquidação e o efeito suspensivo da RG mediante prestação de garantia e, subsidiariamente, o pagamento em prestações do valor liquidado (cfr. PA2, p. 32);

 

ii) Notificado do projecto indeferimento da RG o Requerente exerceu direito de audição, em cujo articulado se lê, entre o mais: “(...) O reclamante requereu a atribuição de efeito suspensivo à reclamação (…) e, no caso (…) o pagamento do valor liquidado em prestações. (…) nem sequer a reclamada proferiu qualquer despacho relativamente aos mesmos, encontrando-se neste momento a decorrer um processo de execução em que o ordenado do reclamante encontra-se a ser penhorado. (…) renova-se o pedido (…).”; “(...) o reclamante não possuía em 2014 qualquer habitação em Portugal (…)”; “(...) ainda que o reclamante tivesse, de facto, uma habitação em Portugal, tal não significava de forma automática que a mesma se integrava na disposição do art.º 16.º, n.º 1, alínea b) do CIRS (…)”; “(...) a alínea b) do art.º 16.º do CIRS exige a verificação cumulativa de três requisitos de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente (…), o reclamante não reúne qualquer um dos pressupostos; (…)”;

 

jj) Por Ofício da Requerida de 07.05.2019 foi o Requerente notificado de Despacho de indeferimento da RG (PA2);

 

kk) Da Informação da Requerida no Procedimento de RG, que se dá por reproduzida, consta, entre o mais: “(...) Nos três contratos acima referidos, consta que o reclamante residia em “Rua Principal, (…) (Portugal)”. Esta morada coincide com o domicílio fiscal do reclamante em 2014, comunicado à administração fiscal portuguesa, conforme previsto no artigo 19.º da LGT.”; “(...) É verdade que o reclamante fez prova de alguns indícios: o contrato de trabalho celebrado em França com disponibilização de habitação, faturas de serviços de telecomunicações, bem como liquidações de imposto efectuadas pelas autoridades fiscais francesas. Mas isso não chega para provar que é residente fiscal em França./ IV. 15. Falta a prova de que as autoridades francesas consideraram e trataram o reclamante como residente em França. (…)” (cfr. PA2 p. 110 e ss);

 

ll) Da Informação da Requerida constante do Procedimento de RG reportada ao direito de audição exercido pelo reclamante, que se dá por reproduzida, consta, entre o mais: “(...) o reclamante renova (…) o pedido de atribuição de efeito suspensivo (…). / 5. Relativamente a este pedido, cumpre informar que, em 2019-04-17, foi efectuada comunicação ao Serviço de Finanças de Castro Daire, no sentido de efetuar os procedimentos devidos no âmbito do requerido. (...)” (cfr. PA2 p. 137 e ss);

 

mm) A  27.06.2019 a Requerente deu entrada no sistema do CAAD ao Pedido que dá origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

Não ficou provado que o Reclamante não dispunha de qualquer habitação em Portugal.

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

 

2.3. Fundamentação da matéria de facto

Os factos dados como provados/não provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA e no Processo Administrativo (“PA”) - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, nas posições manifestadas pelas Partes nos articulados.

Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC ), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC ).

Quanto aos factos constantes das al.s s), t) e u) do probatório, refira-se que, não obstante a Requerida, na sua Resposta, impugnar os docs. 19, 20 e 21 juntos pelo SP, o que faz com base em serem os mesmos reportados ao ano de 2016 e não ao de 2014, e sendo que dessa impugnação resulta com mediana clareza não ser questionada a autenticidade dos documentos, nem a sua força probatória, considera o Tribunal não dever entender-se serem os mesmos impertinentes - perspectivando todas as soluções plausíveis para as questões de direito.

De referir, ainda, que o Tribunal considerou desnecessária a formalidade da tradução para a língua portuguesa dos documentos em língua francesa constantes dos autos desde o início, sendo documentos particulares e relativamente aos mesmos nenhuma Parte tendo requerido a respectiva tradução - v. art.º 134.º, n.º 1 do CPC.

 

3. Matéria de Direito

3.1. Questões a decidir

 

As questões a decidir nos presentes autos são de Direito e de facto, reconduzindo-se à fundamental questão seguinte:

                Para efeitos da CDT  celebrada entre Portugal e França, o Requerente deve ser considerado Residente em Portugal ou, ao invés, em França?

 

Dependendo da resposta à questão fundamental (supra), haverá depois que responder ou à questão A), ou à B), que seguem:

                A) Qualificando o Requerente como Residente em Portugal para efeitos da CDT, tinha o Estado Português poderes de tributação no caso? Se sim, em que medida?;

                B) Qualificando o Requerente como Residente em França para efeitos da CDT, tinha o Estado Português poderes de tributação no caso? Se sim, em que medida?

 

E no iter de resposta à questão fundamental supra haverá que percorrer, previamente, a seguinte questão:

Nos termos do Direito interno Português, era o Requerente, no ano em causa, residente em território português (i.e., Residente cfr. art.º 16.º do CIRS)?

 

Por fim, haverá que decidir quanto aos pedidos de reembolso de quantias “pagas e/ou executadas”, e juros indemnizatórios.

 

Como segue.

*

 

Começando por recapitular brevemente.

 

Entende o Requerente que a Declaração de IRS por si submetida em 2018, com referência aos rendimentos que auferiu em 2014, não era devida. Submeteu-a por assim lhe ter transmitido a Requerida, no âmbito de Procedimento Inspectivo em que foi visado, ter o dever de fazer. Mas sem que com a mesma se conforme, desde logo, e entre o mais, por a ter submetido na qualidade de residente (doravante também “R”) e não - como deveria ter sido feito - na de não residente (doravante também “NR”).

 

Encontra-se a autoliquidação, assim, ferida de erro. E daí ter interposto RG e, agora, PPA.

 

O Requerente expõe que emigrou para França em 2006 e aí viveu até 2018. Que ao longo de todo esse período apenas viveu em Portugal entre meados de Maio e inícios de Outubro de 2013. Por todo o tempo em que viveu em França trabalhou ininterruptamente na empresa “B..., SA”, com sede em ..., França, ao abrigo de sucessivos contratos de trabalho, o que só veio a cessar a 01.06.2018. Viveu ininterruptamente em França por todo o referido tempo, aí fazendo a sua vida normal. Vinha a Portugal tão só nas datas festivas e nas férias, como qualquer emigrante.

 

A sua única casa de habitação era em França, e não possuía em Portugal, a qualquer título, qualquer habitação ou imóvel. Em 2014 não teve actividade remunerada em Portugal.

 

Entende que resulta provada nos autos a sua residência em França, desde logo por todo o ano de 2014. Mais que se não encontram preenchidos no caso os requisitos de que o CIRS faz depender a qualificação de alguém como residente – não se encontra preenchido nenhum dos três requisitos constantes do art.º 16.º, n.º 1, al. b) do CIRS. E que ficou também demonstrado que as autoridades fiscais francesas o consideraram como residente em França.

 

A Requerida, por seu turno, defende que o Requerente não logrou contrariar a prova que decorre da comunicação oficial por si recebida das autoridades fiscais francesas no sentido de que foi tributado em França como não residente.

 

Em conjugação com o que, constando o Requerente no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, a 31.12.2014, como residente fiscal em Portugal, e - não obstante alegar ter vivido ininterruptamente em França desde 2006 - nunca tendo feito qualquer alteração no seu cadastro de onde pudesse constar a alteração da residência para França, há que concluir que, de acordo com a informação comunicada pelo Requerente à AT, o mesmo foi, em 2014, residente fiscal em Portugal.

 

Em conformidade os SIT propuseram que os rendimentos auferidos no estrangeiro (França), pelo SP, fossem corrigidos no montante correspondente ao imposto pago nesse Estado, cfr. art.º 65.º do CIRS, daí tendo resultado a entrega pelo SP da Declaração Modelo 3 e a Liquidação em crise.

 

Os recibos de vencimento juntos aos autos, relativos a cinco meses do ano de 2014, tão só indiciam que o Requerente apenas permaneceu em França 150 dias naquele ano.

 

Tendo (em 2018, no decurso do Procedimento Inspectivo) o Requerente apresentado Declaração de rendimentos, e em face da presunção de veracidade de que se revestem as declarações fiscais dos contribuintes, cabia ao Requerente provar que esteve em Portugal menos de 183 dias. O que não logrou fazer e era necessário para preenchimento dos requisitos para poder ser considerado como não residente em Portugal. Acresce que a Declaração como apresentada é coerente com a informação disponibilizada pelas autoridades fiscais francesas ao abrigo do artigo 27.º da CDT aplicável, e com os contratos de trabalho juntos aos autos. E do “Avis d’impôt” referente a 2014 não resulta que o Requerente tenha sido tributado como residente em França, estando o mesmo registado no sistema da Requerida como residente em Portugal.

 

Não há eventual dupla residência fiscal, pelo que não se aplicam os critérios de desempate previstos no n.º 2 do artigo 4.º da CDT PT-França.

 

Sendo Residente em Portugal aplicam-se-lhe as regras respectivas, designadamente o imposto sobre o rendimento incide sobre a totalidade dos rendimentos por si auferidos, incluídos os obtidos fora do território português. Era-lhe devido apresentar a Declaração, a qual não padece de erro pois que foi aplicado o mecanismo do crédito de imposto, previsto no n.º 2 do artigo 24.º daquela mesma CDT, de forma a evitar a dupla tributação. Devendo assim a Liquidação manter-se na Ordem Jurídica.

 

Vejamos.

Em súmula, com referência ao ano de 2014, e tendo por assente (não se questiona nos autos) que o Requerente apenas auferiu, no ano, rendimentos do trabalho dependente, os quais resultaram do trabalho por si prestado em França:

 

- O Requerente entende que provou que era R em França.

                Assim, não era sujeito passivo de IRS.

- A Requerida entende que o Requerente não provou que era NR em Portugal.

Assim, era R e era sujeito passivo de IRS, sujeito a tributação numa base mundial. Sem prejuízo de lhe dever ser reconhecido o crédito de imposto cfr. CDT aplicável.

 

Começando por deixar percorridas - sistematicamente contextualizadas em alguma medida - as normas, de Direito interno, potencialmente aplicáveis .

*

No CIRS:

Cap I – Incidência

Secção I – Incidência real

 

Art.º 1.º – Base do imposto

1. O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, (…), depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos:

Categoria A – Rendimentos do trabalho dependente;

(…)

2. Os rendimentos, (…), ficam sujeitos a tributação seja qual for o local onde se obtenham, (…).

 

Art.º 2.º – Rendimentos da categoria A

1. Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:

a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho (…);

(…)

 

Secção II – Incidência pessoal

 

Artigo 13.º – Sujeito passivo

1. Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.

(…)

7. A situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite.

 

Artigo 15.º – Âmbito da sujeição

1. Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2. Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.

 

 

Artigo 16.º – Residência

1. São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a)  Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, em 31 de Dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de Dezembro, sejam tripulantes de (…);

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público (…);

2. (…)

(…)

 

Artigo 18.º – Rendimentos obtidos em território português

1. Consideram-se obtidos em território português:

a) Os rendimentos do trabalho dependente decorrentes de actividades nele exercidas, ou quando tais rendimentos sejam devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento;

(…)

 

Artigo 65.º – Bases para o apuramento, fixação ou alteração dos rendimentos

1. O rendimento colectável de IRS apura-se de harmonia com as regras estabelecidas nas secções precedentes (…), com base na declaração anual de rendimentos apresentada em prazo legal e noutros elementos de que a Direcção-Geral dos impostos disponha.

(…)

 

Artigo 81.º – Eliminação da dupla tributação jurídica internacional

1. (…)

2. Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efectuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela Convenção.

(...)

 

Na LGT :

Artigo 19.º – Domicílio fiscal

1. O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;

b) Para as pessoas colectivas, (…).

2. O domicílio fiscal integra ainda a caixa postal electrónica, nos termos previstos no serviço público de caixa postal electrónica.

3. É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

4. É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.

5. Os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, bem como os que, embora residentes no território nacional, se ausentem deste por período superior a seis meses, bem como as pessoas colectivas (...), devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional.

6 - Independentemente das sanções aplicáveis, depende da designação de representante nos termos do número anterior o exercício dos direitos dos sujeitos passivos nele referidos perante a administração tributária, incluindo os de reclamação, recurso ou impugnação.

7 - O disposto no número anterior não é aplicável, sendo a designação de representante meramente facultativa, em relação a não residentes de, ou a residentes que se ausentem para, Estados membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, (...).

8 - A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.

 

Artigo 74.º – Ónus da prova

1. O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

(…)

 

Artigo 75.º – Declarações e outros elementos dos contribuintes

1. Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei (…).

(…)

 

Artigo 76.º – Valor probatório

1. As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.

(…)

4. São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.

 

*

 

Apreciando.

 

O Requerente vem pedir a anulação do despacho de indeferimento da RG e, bem assim, a anulação da Liquidação, por ilegais. Que assim o pode peticionar, e que o Tribunal é competente para sobre tal decidir, não se colocam dúvidas. Cabe apreciar da legalidade do acto de primeiro grau (Liquidação) e, bem assim, do acto de segundo grau (Indeferimento da RG) que, confirmando a legalidade daquele, o manteve na Ordem Jurídica. Tudo cfr. art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT, e tendo em mente que a impugnação desde logo dos actos de autoliquidação, ali expressamente referidos, depende da prévia interposição de RG , de onde decorre que a anulação do acto de liquidação nestes casos, se o acto de segundo grau for confirmativo, implica a anulação deste último.

 

Adiante.

 

Resultará já claro de tudo o que antecede que somos colocados perante um problema de qualificação. Não só, pois, uma questão de interpretação como, com particular relevância, uma outra, que entendemos subsequente, de qualificação. Desde logo no nosso Direito interno.

 

Como depois também possivelmente assim, a seu tempo o veremos, no âmbito do Direito Internacional Convencional (Tributário). Pois que, como também já claro terá resultado, estamos perante uma situação que, por força de um dos seus elementos, tem potencial ligação com mais do que um Ordenamento Jurídico-Tributário. Estamos a pensar – ressalta à vista – no elemento, de conexão, Residência.

 

Começando pelo princípio. No nosso Direito interno o estatuto de residente fiscal vem estabelecido pelo nosso legislador tributário no art.º 16.º do CIRS. Aí se determina, sob a epígrafe “Residência”, e no que às pessoas físicas respeita, que as mesmas serão consideradas residentes em território português quando no ano a que os rendimentos respeitem, aí hajam permanecido durante mais de 183 dias, seguidos ou interpolados .

 

*

Dito isto, façamos um - necessário - parêntesis.

Refira-se, quanto à incidência real do imposto, IRS, que efectivamente tendo o Requerente auferido, em 2014, rendimentos do trabalho dependente – cfr. factos provados, al.s l), m) e v) - ela verificar-se-ia, à partida - cfr. art.ºs 1.º, n.º 1 e 2.º, n.º 1, al. a) do CIRS (supra). Tendo em conta, também, o disposto no n.º 2 do art.º 1.º do CIRS (supra), nos termos do qual os rendimentos ficam sujeitos a tributação independentemente do local onde sejam obtidos.

Está em causa porém, como se vem de aproximar, a incidência pessoal do imposto.

Que, como é sabido, terá que cumular-se à incidência real para que possa nascer o facto tributário.

Em matéria de incidência pessoal (que não real, incidência subjectiva) diz-nos o CIRS, art.º 15.º (supra), que são sujeitas a IRS, desde logo, as pessoas residentes em território português. E, ainda, as pessoas que, não sendo residentes em território português, neste obtenham rendimentos. Sendo que se consideram obtidos em território português os rendimentos - quando do trabalho dependente - (i) que decorram de actividades exercidas no território português ou (ii) que sejam devidos por entidades que no mesmo tenham residência, sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento (cfr. art.º 18.º, n.º 1, al. a), supra).

Mais, e da maior relevância, sendo a tributação daqueles que sejam residentes (cfr. art.º 16.º) - que qualifiquem como residentes – feita, pelo nosso Direito interno, numa base mundial (world wide income), ao passo que a tributação daqueles que sejam não residentes - que não qualifiquem como residentes (cfr. art.º 16.º, pela negativa) – é feita numa base territorial (no sentido de tributação limitada aos rendimentos auferidos dentro do território português).

No caso dos autos, decorre da matéria de facto consolidada (supra) que o trabalho dependente gerou rendimentos, que foram auferidos pelo Requerente em França, de actividade laboral que aí prestou.

Pelo que acaba de se expôr, há-de concluir-se que poderá, à partida, estar reunida também a incidência pessoal (i.e., subjectiva) no caso. Mas apenas se o Requerente qualificar como Residente (“R”) (cfr. art.º 16.º) (e por força da regra da tributação numa base mundial, cfr. art.º 15.º).

Pois que se tanto não suceder – i.e., se for Não Residente  (“NR”) - só se verificará (verificaria) incidência pessoal ou subjectiva (verificará/verificaria, à partida) caso os rendimentos sejam (tivessem sido) auferidos no território português (cfr. art.º 15.º; e v. art.º 18.º, n.º 1, al. a)). O que não sucedeu. Os rendimentos foram auferidos em França - em decorrência de trabalho aí prestado, pagos por entidades com única morada conhecida nestes autos em França, cfr. supra factos provados, al. w).

A ser considerado NR o Requerente, desde logo inexiste facto tributário.

Estamos a raciocinar, ainda, no âmbito do Direito interno.

 

*

Fechando o parêntesis.

Retornando pois ao elemento Residência.

E continuando a raciocinar no âmbito do Direito interno.

Vejamos, desde já, o que resulta, a este respeito, da matéria considerada assente (factos provados, supra). O Requerente por todo o ano de 2014 prestou trabalho, ao abrigo de contrato individual de trabalho - sucessivos contratos de trabalho, vigentes ininterruptamente - em França, com exclusividade e com um horário de 35 horas de trabalho semanais, às quais poderiam acrescer, a solicitação da empregadora, horas suplementares (v. k) e l), factos provados). O seu local habitual de trabalho situava-se em França na área geográfica de Orleans (v. l), factos provados) e a empregadora disponibilizava-lhe habitação (v. factos provados, r) e kk)). No âmbito das suas funções, que desempenhava na área da construção civil/obras (v. l), factos provados), podia ser-lhe solicitado pela empregadora, “B...SA”, deslocar-se por curta duração para fora da área geográfica de Orleans, mas sempre no território de França (v. l) factos provados). No ano de 2014 o Requerente prestou 1.785,04 horas de trabalho, ao abrigo dos mesmos contratos. Que lhe foram pagas, e os respectivos descontos para a Segurança Social Francesa processados (v. m) factos provados).

Contabilizadas as horas trabalhadas em função de doze meses de trabalho teríamos que o Requerente trabalhara c. 37 horas em cada semana do ano. Considerando um necessário período de férias durante o ano, não podemos senão concluir que o Requerente trabalhou, em França, no ano de 2014, aproximadamente 40 horas por semana. Assim: 37h x 4 semanas (1 mês de férias) = 148h; 148h /11meses (meses de trabalho) = 13.45h; acrescem c. 13h prestadas em cada mês de trabalho efectivo = 148h + 13h = 161h/mês. 161/4 semanas = 40h/semana.

Sendo o trabalho do Requerente prestado no local em que tiver actividade a empregadora, na área da construção civil, e sempre dentro do território de França, desempenhando o Requerente funções como operário, monteur, outra conclusão não poderemos retirar senão a de que foi em França que o mesmo, em 2014, permaneceu, necessariamente, mais do que 183 dias. E, assim, que tanto não pode ter sucedido em Portugal.

Não fica pois preenchida a al. a) do n.º 1 do art.º 16.º do CIRS. Que consagra um critério de verificação puramente objectiva: a presença por um determinado número de dias mínimo no território português (mais de 183 dias). Pelo que, para o efeito e por este critério, o Requerente não qualifica como Residente em território português.

 

Vejamos se qualificaria pelo critério constante da al. b) do mesmo n.º 1.

Para o efeito, diz-nos o nosso legislador fiscal – Direito interno, que o Requerente teria que ter tido à sua disposição, a 31 de Dezembro de 2014, habitação “em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual”.

Critério este, como bem se vê, a exigir uma apreciação não só de natureza objectiva, factos objectivos, como, ainda, uma apreciação de natureza subjectiva – o animus com que, a dispor de habitação em Portugal, a pessoa em causa o faz. A “intenção” é a expressão utilizada pelo legislador, exigindo-se a verificação de condições (reunirem-se condições) que façam supor “a intenção”. Intenção não só de manter, como também intenção de ocupar tal habitação como sua residência habitual. Assim interpretamos a norma. Não será certamente, e como um exemplo apenas, o caso quando alguém mantém uma casa para (com o animus de) a usar nas férias. E sendo também que, por outro lado, a intenção de a ocupar como residência habitual há-de poder contextualizar-se (delimitar-se) num determinado horizonte temporal, mesmo que mais ou menos alargado, consoante as circunstâncias do caso o justifiquem, porém não ad eternum. Sob pena de se esvaziar de sentido o “substracto” da previsão normativa que tem por consequência a qualificação como Residente. Tenha-se presente a possível dimensão dos efeitos decorrentes, para os contribuintes, de tal qualificação . Assim, e novamente a título de mero exemplo, não será esse o caso de uma situação em que alguém que vai trabalhar para outro país, e aí reorganiza a sua vida por período prolongado nos anos, mantém disponível para si uma habitação no país de origem, Portugal, enquanto tanto lhe for possível, mas país ao qual não sabe se, nem quando, regressará para residir de modo habitual.

Em coerência, a prova necessária para efeitos de preenchimento da previsão normativa, e  prova da existência da referida intenção (animus), deverá assentar quer em elementos objectivos, quer subjectivos. Ou, se se quiser, com Alberto Xavier, “a intenção de manter e ocupar a habitação como residência habitual, não é objecto de prova directa, antes resulta de condições objectivas que a façam supor.”

Não bastarão, por exemplo, comprovativos de pagamentos de despesas de manutenção da habitação, carecendo-se de elementos que atestem no sentido de que (que façam supor que) a pessoa está a incorrer nessas despesas por ter uma intenção presente, actual, de algum modo concretizável, de ser ali que passará a habitualmente residir com alguma proximidade temporal. Diremos. Para que, mais uma vez, assim se não permita desvirtuar aquela que deverá ser uma ligação real, “palpável”, entre a pessoa e o território do país, aquela que deverá ser uma sua presença, em alguma medida, aí.

Regressando à matéria de facto assente nos nossos autos.

Por todo o ano de 2014 o Requerente exerceu o seu trabalho em França. Tendo aí prestado cerca de 40 horas de trabalho por semana ao longo de 11 meses - presencialmente como não pode deixar de entender-se (e decorre seja da natureza das suas funções e das características da actividade de construção civil, seja dos contratos de trabalho) - residiu habitualmente em França. Não se provou que não dispunha de qualquer habitação em Portugal, mas igualmente não resulta dos autos que dispunha. E mesmo que tivesse à sua disposição alguma habitação, no dia 31 de Dezembro de 2014 (o que, repita-se, não resulta dos autos, nem a Requerida tal invoca), vimos já, tal não seria suficiente para preencher a previsão da al. b). Teria que resultar também provado não só algum período de permanência, mesmo que mínimo, como ainda, como vimos, o animus, a intenção do Requerente, actual, de manter, e de ocupar, uma tal (hipotética) habitação, que lhe estivesse (hipoteticamente) disponível, como, enquanto, para o efeito de ser, a sua residência habitual. Teria que ter resultado provado que dispunha de habitação em condições que fizessem supor tal intenção.

Ora, nada nos autos aponta nesse sentido. Não só não existe qualquer prova de elementos objectivos relacionados com uma hipotética habitação disponível (e, por consequência, das condições em que dela – hipoteticamente - dispunha) como, tendo o Requerente em 2014 residido habitualmente em França, por todo o ano, aí tendo prestado ininterruptamente o seu trabalho, não se lhe conhecendo quaisquer despesas em Portugal, ou relacionadas com Portugal, sequer deslocações ao país, e tendo o mesmo continuado a residir habitualmente nos anos que se seguiram ao ano em causa nos autos, pelo menos até (inclusive) 2017 (v. factos provados, al.s j), n), s), t) e u)), em França, não se vê como de alguma forma fosse possível considerar verificado um animus do Requerente, em 2014, uma sua intenção actual no ano de 2014 (à qual teria que acrescer a existência, desconhecida repita-se, de habitação disponível em Portugal), de (manter e ocupar uma habitação para) residir habitualmente em Portugal.

Ou seja, não vemos como, à luz do nosso Direito interno, o Requerente pudesse qualificar como Residente em território português – portanto, como Residente para os efeitos do art.º 16.º do CIRS.

Sendo que por nenhuma outra via – cfr. art.º 16.º do CIRS – poderia tal qualificação advir ao Requerente. Os requisitos de qualificação são alternativos e estão contidos no art.º 16.º.

 

*

 

Avançando. Com vista a apreciar como se concluiu (ao arrepio do que antecede) - no Procedimento Inspectivo que subjaz à submissão da Declaração (que por sua vez está na origem da Liquidação) - pela qualificação do Requerente como Residente.

 

Como se refere na Resposta (pontos 14 – 15), a Requerida, em sede de Procedimento de RG, invoca que consultado o seu sistema informático se conclui que o Requerente a 31.12.2014 era residente fiscal em Portugal, e que nunca fez qualquer alteração ao cadastro reveladora de alteração de residência para França, sendo que “Isto significa que de acordo com a informação comunicada pelo Requerente à AT, no ano de 2014 foi residente fiscal em Portugal.”

Por outro lado, no RIT, o ponto III. 1.2., sob a epígrafe Qualidade de Residente, tem o seguinte conteúdo: “De acordo com o nosso sistema informático, o domicílio fiscal do sujeito passivo em 2014, comunicado à administração fiscal portuguesa, conforme previsto no artigo 19.º da LGT, é: R. PRINCIPAL (…) CASTRO DAIRE, pelo que, o sujeito passivo é residente em Portugal.” E o ponto III. 3., sob a epígrafe CONCLUSÕES e artigo 19.º LGT, inicia assim: “1. O sujeito passivo, no exercício de 2014, é residente em Portugal (com domicílio fiscal em Portugal comunicado nos termos do artigo 19.º da LGT, conforme consta no nosso sistema informático) e não demonstrou o contrário.”

 

Temos pois que a Requerida se ateve, antes de mais e para os presentes efeitos (de qualificação como Residente), ao registo constante do Sistema informático, cadastro do contribuinte. O qual se inicia, como é sabido, nos casos mais habituais, com o pedido de número de contribuinte , que é normalmente feito pelo próprio e contra o que é emitido “Documento provisório de Identificação”.

Não só no caso dos autos o mesmo foi requerido quando o Requerente tinha 16 anos de idade , como, decorre do probatório, não foi processada qualquer alteração à morada então (em 1998)  comunicada à Requerida. Que se mantinha pois a mesma a 31.12.2014.

Nos termos do art.º 19.º, n.º 1 da LGT , o domicílio fiscal do sujeito passivo é - para as pessoas singulares - o local da sua residência habitual. A morada que é então, no referido contexto de pedido de número de contribuinte, comunicada à AT, fica pois a constar das informações (informação cadastral) sobre o contribuinte em poder da AT.

Como bem refere a Requerida, e nos termos do mesmo art.º 19.º, é obrigatória a comunicação do domicílio à AT e é ineficaz a respectiva mudança enquanto a mesma não lhe for comunicada.

Retirar porém daí, como consequência, que o contribuinte que não actualizou ou comunicou a alteração do seu domicílio fica por essa razão preso a essa morada inicialmente comunicada para o efeito - como é o caso - de qualificar como Residente fiscal, é ultrapassar o previsto na lei, seja na sua letra, seja no seu espírito.

Desde logo da letra decorre (art.º 19.º, n.º 3 da LGT), note-se, que a comunicação do domicílio é uma obrigação que impende sobre o sujeito passivo. O que - diremos - não se aplica, bem vistas as coisas e em rigor, a quem não seja sujeito passivo. Como será o caso do Requerente se se demonstrar que não reunia em si os requisitos de incidência de IRS (nem de qualquer outro imposto) . Expressão que não consta, é certo, na letra da lei quando impõe a comunicação da alteração do domicílio (art.º 19.º, n.º 4 da LGT), sem porém daí ser legítimo extrair que, alguém que, tendo a seu tempo comunicado o domicílio por ser (ou por ir passar a ser) sujeito passivo, e mais tarde já não o sendo (por emigrar para o estrangeiro, pense-se, e deixar de ter quaisquer ligações com Portugal) não tenha comunicado alteração de domicílio, seja por isso tido como Residente e sujeito passivo.

Ainda na letra da lei, veja-se como o legislador obriga a que sujeitos passivos que não residam no território português, e sujeitos passivos que residindo se ausentem para fora do mesmo por mais de seis meses, designem um representante com residência em território nacional. (O que, até, deixou de ser obrigatório para quem passe a residir - ou se ausente para - desde logo país da União Europeia).

E veja-se como a caixa postal electrónica integra o (é também ela) domicílio fiscal (cfr. n.º 2).

Tudo para retirar que, desde logo da própria letra da lei, decorre que o conceito de domicílio fiscal não pode ser entendido como sinónimo de Residência, ou sequer, sem mais, de residência habitual. Quanto a nós. Não obstante o teor da parte final da al. a) (art.º 19.º/1 LGT). Pense-se não só no que fica percorrido, mas por ex. no caso de alguém que é profissional liberal e que escolhe indicar como domicílio fiscal o do seu escritório de trabalho. Torna-se por isso o seu escritório a sua residência habitual?

Adiante. E sobretudo.

Não pode pretender fundar-se a residência (o estatuto de Residente), sem mais, numa outra realidade, que lhe é distinta. E que é o domicílio fiscal. Sendo certo, e evidente, que o nosso legislador não utiliza os dois conceitos com o rigor que seria exigível dada a relavância da matéria .

Sem maiores desenvolvimentos, quanto à letra da lei, note-se apenas, em coerência com o que se expôs, como na reforma de 2014, e assim na redacção do art.º 19.º da LGT em vigor desde 01.01.2015 , o legislador veio acrescentar, após o n.º 4 onde se lê “É inefizaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária”, um novo n.º 5 assim: “Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária”. Realidades distintas, pois. Domicílio fiscal / estatuto de Residente.

Mais, e apartando-nos agora da mera análise da letra da lei. O conceito de Domicílio fiscal é reconhecidamente um conceito de cariz sobretudo formal, reportado a comunicações, notificações e formalidades procedimentais e/ou processuais , bem como a determinação de competências territoriais de entidades, organismos e Tribunais com referência à relação jurídico-tributária, contrariamente ao conceito de Residência, que se reveste, antes de mais, de um cariz substantivo. É sabido como o Domicílio fiscal serve o propósito de se darem com facilidade, e organização, as comunicações entre AT e contribuintes . A bem do Sistema e de todos. À noção de Domicílio tributário no nosso Direito interno se referia Alberto Xavier assim: “(...) é um domicílio especial pelo qual a lei se refere a um lugar bem determinado, o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres estabelecidos pelas normas tributárias, localizando o sujeito passivo com vista a fixar a circunscrição territorial em cuja área se situem os serviços de administração competentes para a prática de actos relativos à situação fiscal do contribuinte.”

Com Rui Duarte Morais, “A questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Aquele que efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal (mesmo que por omissão dele, sujeito passivo, em promover a necessária alteração).”

É também certo que, consoante os Ordenamentos Jurídico-Tributários, assim os matizes próprios do conceito em causa. Bem como a sua relação com o conceito de Residência e de residência habitual. Com variações de assinalar. Porém sendo o nosso Direito aquele que ora nos ocupa.

 

Em conclusão, quanto ao Domicílio fiscal. E se dúvidas houvesse.

Se é certo que as mais das vezes coincidirá com a residência habitual, não poderá deixar de se contextualizar na linha do que antecede e concluir que não é legítimo retirar, como consequência do registo cadastral do contribuinte, a sua qualificação como Residente fiscal em Portugal. (Ademais tendo também desde já presente, como adiante melhor se verá, que - em Direito Tributário Internacional - residência e domicílio são conceitos que se não confundem com o conceito de Direito interno “Domicílio fiscal”).   

E mesmo que a esse lugar se esteja a pretender chegar com base também em que as declarações dos contribuintes à AT se devem presumir verdadeiras. (Se bem que as declarações a que o legislador se refere no art.º 75.º da LGT sejam em rigor as Declarações de rendimentos, mas ainda assim se o diga e uma vez que a Requerida faz de alguma forma apelo, se bem entendemos, também a este raciocínio; v. III.3. do RIT, 1. “(...) é residente (…)  (com domicílio em Portugal comunicado nos termos do art.º 19.º da LGT (…) ) e não demonstrou o contrário;”).

Com efeito, mesmo que assim fosse, sempre a presunção será ilidível.

Devendo sempre prevalecer a verdade material. Cfr. Princípio da legalidade, e demais princípios pelos quais a AT na sua actuação está obrigada a pautar-se.  Sendo que resulta dos autos, como acima percorrido, que a residência habitual do Requerente era em França, por todo o ano de 2014.

*

A Requerida argumenta também que não tendo o Requerente provado em contrário do que resulta da comunicação recebida das autoridades fiscais Francesas no sentido de que foi tributado em França como não residente. E tendo submetido Declaração Modelo 3 na qualidade de Residente. Deve entender-se, mais uma vez por apelo às presunções  aplicáveis , que é Residente.

Sempre se refira que, por um lado, a presunção de veracidade das Declarações dos contribuintes foi consagrada pelo legislador em benefício destes últimos. E é aplicável quando as mesmas tenham sido apresentadas nos termos da lei. Nos prazos devidos também, portanto. No caso, não só a Declaração foi apresentada para lá do prazo legal, nas circunstâncias supra já referidas, como, a ser de considerar operar ainda assim a presunção, ela existiria então para obstar a que o contribuinte corresse o risco das consequências do não cumprimento do ónus da prova. Da prova, no caso, do facto de ser Residente. Que foi o que colocou na Declaração. Ou seja, para proteger o contribuinte de correr o risco de, na falta de prova, se considerar como líquido o facto contrário - ser considerado Não Residente. 

Sem maiores desenvolvimentos, não cremos que do Princípio da presunção de veracidade das Declarações dos contribuintes, a aplicar-se, pudesse, aqui, retirar-se a consequência de que o Requerente não pode senão ser considerado Residente (como fez constar da Declaração) uma vez que (alegadamente) não fez prova do facto contrário. Tanto mais tendo em conta a natureza de ónus da prova objectivo, no nosso contexto, e a suprema missão, que é também da AT, da busca da verdade material/Princípio do Inquisitório.

Como quer que seja, a prova do facto contrário foi feita e resulta dos autos. Como supra.

 

Por outro lado, e para além da mesma linha de raciocínio de busca da verdade material dever aqui ser aplicável (inclusive quanto a alegadamente não ter o Requerente feito prova do contrário do que possa decorrer da informação obtida das autoridades fiscais Francesas), não seria por as autoridades fiscais Francesas poderem ter tributado o Requerente como não residente, que daí decorreria para o Estado Português reaver o poder de tributação que lhe houvesse sido retirado ab initio (se for o caso, onde já iremos) pela CDT aplicável.  Desde logo, não será pela existência de algum erro na aplicação devida da CDT pelo outro Estado contratante que, por tal via, e em consequência, seria de admitir derrogar normas, de Direito Internacional, da mesma constantes, vigentes directamente na Ordem Jurídica interna  – cfr. art.º 8.º, n.º 2 da CRP .

Refira-se, ainda a este respeito, fazer a Requerida notar que do “Avis d’impôts” não resulta que o Requerente tenha sido tributado na qualidade de Residente.

Note-se, de todo o modo, que, como provado, consta deste documento a morada do Requerente em França, aí identificada como “Adresse d’impositon”

Aqui regressaremos.

*

Regressando por ora ao art.º 16.º do CIRS.

Não se verifica dúvida sobre a realidade seja do primeiro facto previsto (permanência em Portugal por mais de 183 dias – conclui-se que não se verificou, por impossibilidade em face de resultar dos autos, a partir da matéria de facto assente, outro incompatível com ele, a permanência em França por mais de 183 dias em 2014), seja do segundo facto previsto (dispor o Requerente em Portugal a 31 de Dezembro de 2014 de habitação em condições que façam supor a intenção  actual de a manter e ocupar como residência habitual – não se provou que não dispunha de uma habitação em Portugal, mas o que é certo é que resulta dos autos quer que o Requerente dispunha de habitação em França, quer que o mesmo intencionava, em 2014, manter e ocupar como residência habitual a sua habitação em França). Factos que, a verificarem-se (fosse um, fosse outro), conduziriam ao preenchimento pois das previsões normativas constantes das al.s a) / b) do n.º 1 do art.º 16.º e, assim também, à qualificação do Requerente como Residente em Portugal. Ficaram provados os factos contrários. Não há non liquet. Não há lugar a aplicar regras sobre a distribuição do ónus da prova (v. art.º 414.º do CPC e art.º 74.º da LGT).

 

E assim, em relação à  questão que havia que percorrer-se previamente, a saber:

 

Nos termos do Direito interno Português, era o Requerente, no ano em causa, residente em território português (i.e., Residente cfr. art.º 16.º do CIRS)?

 

Há que responder que não, o Requerente não era Residente em território Português.

E somos reconduzidos à questão fundamental:

 

                Para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e França, o Requerente deve ser considerado Residente em Portugal ou, ao invés, em França?

 

Antes de mais somos deparados com uma questão metodológica.

Sendo o Requerente Não Residente em Portugal, por força do nosso Ordenamento Jurídico interno (como vem de se concluir), e sendo também, por outro lado, que não auferiu em 2014 rendimentos de fonte portuguesa, caberia ainda ir considerar esta questão? (Sendo que sempre terá que haver uma lei interna com base na qual se dá a tributação. O acto de Liquidação terá que ter fundamento, sempre, na lei interna.)

 

Entendemos que sim.

Mesmo que brevemente.

Pelas seguintes razões.

Desde logo, estamos perante uma situação da vida, tributária, com (aparente) potencial ligação a mais do que um Ordenamento Jurídico soberano, Jurídico-tributário. Situação potencialmente plurilocalizada, por força do elemento de conexão Residência. Vimo-lo.

O Direito Internacional, Convencional, Direito dos Tratados, prevalece sobre o Direito interno (infra-Constitucional). Sendo a situação regulada por uma norma interna e por uma norma de Direito Internacional, esta última é-lhe aplicável . Aquela tendo que conformar-se com eventuais limites à sua eficácia decorrentes da norma Convencional.

No nosso caso.

Estamos em fase de litígio, pós exercício efectivo de uma pretensão tributária por parte do Estado Português , que entende ter poder de tributação sobre a situação de facto em presença. O Requerente havia sido tributado, em imposto sobre o rendimento, sobre os mesmos rendimentos - a totalidade dos rendimentos auferidos em 2014 - em França. E, posteriormente, o Estado Português vem considerar-se competente para igualmente tributar – o mesmo sujeito passivo, sobre a mesma manifetação de riqueza, em imposto sobre o rendimento, relativamente ao mesmo período de tributação. Estão presentes os elementos da regra das quatro identidades, que nos diz que assim está em causa uma situação de dupla tributação – dupla tributação internacional, uma vez que se está perante um concurso (aparente, na verdade, como já se antecipou pelo percorrido acima) de normas pertencentes a Ordenamentos Jurídicos de diferentes Estados.

Para efeitos de evitar o que – o Estado Português é signatário de uma CDT aplicável ao caso.

 

*

 

Parêntesis.

Estamos perante rendimentos, do trabalho dependente. Existe CDT entre os dois Estados assim conflituantes na pretensão de tributação. Na mesma CDT estabelece o Artigo 16.º a distribuição de competências de tributação – entre os dois Estados contratantes – quando se trate de rendimentos do trabalho dependente. O Artigo 16.º da CDT em causa corresponde ao Artigo 15.º da CMOCDE, sem alterações . Nos termos deste artigo, é atribuída, com exclusividade, competência de tributação ao Estado da Residência. É essa a regra geral que ali se consagra. Regra que só será afastada, assim impõe a CDT, caso o trabalho dependente seja executado no outro Estado contratante, no Estado que não o da Residência. Neste último caso - a actividade ser desenvolvida, o trabalho ser prestado – no outro Estado contratante, que não o Estado da Residência (este último doravante também “ER”), passa a haver competência cumulativa de tributação. Ou seja, o segundo Estado – o Estado da Fonte-Actividade , o Estado do local da actividade – passa a ter, também ele, competência de tributação.

Embora não incondicionalmente. Pois que, a verificarem-se determinadas circunstâncias, circunstâncias que, na prática, revelam uma, ainda assim (não obstante o trabalho ser desenvolvido em outro Estado), forte ligação ao Estado da Residência, então volta a aplicar-se a regra geral. A regra da competência exclusiva do Estado da Residência.

A regra geral, seguida da excepção à regra geral, constam do n.º 1 do Artigo. Da primeira parte da primeira frase versus da parte final da primeira frase e da segunda frase do n.º 1, respectivamente.

E a excepção à excepção à regra geral, consta do n.º 2 do Artigo. Reunidas as três condições aí elencadas, elencadas nas alíneas do n.º 2, regressar-se-à à regra geral (que consta, repita-se, da primeira parte da primeira frase do n.º 1). E que é, repita-se, a regra da exclusividade da competência do Estado da Residência.

Como quer que seja, no nosso caso, e em face da factualidade assente (supra), sendo em França que é prestado o trabalho (do qual derivam os rendimentos ), já se vê que a única possibilidade – também pela CDT – de ao Estado Português assistir poder de tributação será a de o trabalhador em causa – o Requerente - ser Residente em Portugal. Portugal ser, pois, o ER.

Sendo que, a ser esse o caso, Portugal, enquanto ER, exerceria o seu poder de tributação em concorrência com a França, o Estado da Fonte-Actividade. Competência cumulativa dos dois Estados contratantes, nessa hipótese, pois. (A menos que se reunissem cumulativamente as três circunstâncias constantes das alíneas do n.º 2 do Artigo, caso em que o ER teria afinal – devolvida – a competência exclusiva. O que, porém, em face do probatório, supra, logo fica afastado). França a exercer primariamente a tributação (como sucedeu, em todo o caso) e Portugal, depois, a ter (também) poder de tributação, embora nos limites impostos pela mesma CDT através do mecanismo do crédito de imposto (cfr. Artigo 24.º da CDT aplicável).

 

Sem supresa, estamos novamente perante a questão fundamental da qualificação como Residente. Agora, no âmbito, e para os efeitos, da CDT PT-França.

 

*

Fechando o parêntesis.

E regressando ainda a razões, se delas se carecesse após o que fica dito, para irmos aferir a situação à luz da CDT.

Vejamos.

Ocorre uma pretensão de tributação por parte dos dois Estados em apreço. Cumprida que está a regra das quatro identidades.

O Estado da Fonte-Actividade tributou em primeiro lugar, e o Estado Português exerceu depois o seu poder de tributação (através da Liquidação em crise). É certo, vimos acima, que em rigor a posição assumida pelo Estado Português não tem sustentação na nossa Lei interna. Ainda assim, certo também é que, tendo o mesmo entendido em sentido diferente – que estava devidamente fundamentado na Lei – exerceu o seu poder de tributação soberano. Ou seja, embora “por virtude da [sua] legislação” - em rigor - não se estivesse perante “uma pessoa sujeita a imposto por razão de ser aí Residente” , o Estado Português, em erro, entendeu que o Requerente era, sim, Residente em Portugal.

Há uma – efectiva – pretensão de exercício do seu poder tributário. Traduzida na Liquidação em crise. Assim, conflito de pretensões tributárias. Que se origina afinal, como frequentemente também sucede na prática das relações fiscais internacionais, em o elemento de conexão utilizado, mesmo sendo o mesmo – a Residência, no caso – poder ter diferentes conteúdos concretizadores numa e na outra das legislações internas implicadas. Com particular relevância no caso do pressuposto de aplicação das normas Convencionais que é a Residência.

A Requerida defende que Portugal é o ER e que não há dupla residência - em França o SP não terá sido tributado como Residente -  e que, por isso, não chegam a ter que se aplicar as regras de desempate (tie breaker rules) da CDT.

Vejamos então o que decorre para o nosso caso da CDT.

 

No Artigo 16.º da CDT, a que agora voltamos, lê-se, no que aos autos releva:

“1. Com ressalva do (…), os salários, ordenados e remunerações similares obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado.”

 

De onde, assim, somos remetidos para o conceito de “residente de um Estado Contratante”.

 

A que chegaremos por via da aplicação do Artigo 4.º da CDT. Conceito de “residente de um Estado Contratante” que - caso a  previsão do respectivo n.º 1 fique preenchida duplamente - só num segundo momento nos fará chegar ao conceito de Residente para efeitos da CDT, não deixará de se sublinhar.

 

Na mesma CDT temos então o Artigo 4.º, que replica o Artigo 4.º da CMOCDE, este último sob a epígrafe “Residente”, e onde se lê:

“1. Para efeitos desta Convenção, a expressão “residente de um Estado Contratante” significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar.

2. Quando, por virtude do disposto no n.º 1, uma pessoa for residente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida de acordo com as seguintes regras:

a) Será considerada residente do Estado Contratante em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados Contratantes, será considerada residente do Estado Contratante com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais);

b) Se o Estado Contratante em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado, ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados Contratantes, será considerada residente do Estado Contratante em que permanece habitualmente;

c) Se permanecer habitualmente em ambos os Estados Contratantes ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles, será considerada residente do Estado Contratante de que for nacional;

d) (…).”

 

A Residência é determinante para o acesso à CDT, como bem se sabe e decorre desde logo do Artigo 1.º da CMOCDE , que determina que a Convenção só será aplicável aos Residentes. A quem seja Residente de um ou dos dois Estados Contratantes. Só assim alguém se poderá, pois, fazer valer dos respectivos mecanismos para eliminação da dupla tributação.

 

E é por isso que as CDTs têm um Artigo destinado à determinação de quem é Residente - em cada caso – para o efeito precisamente da aplicação das suas normas. Para assim se poderem desde logo aplicar, bem se vê, as normas de distribuição de competências. Sendo que tal implica que, em cada caso, apenas em um dos dois Estados se possa considerar, a pessoa em causa, ser Residente.

 

A Residência não é propriamente definida pela CDT, que faz apelo às legislações internas dos Estados Contratantes sobre o tema. Quem por força dessa legislação interna seja Residente, será tido pela CDT como “residente de um Estado Contratante”, desde que o critério utilizado para o efeito da qualificação nessa legislação seja algum dos critérios enumerados no n.º 1 do Artigo 4.º, ou outro de natureza similar.

 

O que, logo se vê, levará a que em muitas situações se verifique a ocorrência de dupla residência, ambos os Estados Contratantes se considerarem, por aplicação da sua lei interna, como sendo o Estado da Residência do sujeito passivo. Pois que é generalizada a opção das legislações pelos mesmos tipos de critérios e considerações nesta matéria. E, muitas das vezes, com especificidades as mais diversas na concretização dos conceitos implicados nesses critérios. Dada a probabilidade, então, de pretensões concorrentes neste ponto, e a complexidade que pode surgir, estabelece o n.º 2 do Artigo 4.º regras a aplicar no caso de, aplicado o n.º 1, se verificar que ambos os Estados se consideram ER. Ou seja, se pelo n.º 1 se concluir que a pessoa qualifica como Residente, nos termos aí referidos, em ambos os Estados, passarão a aplicar-se as regras do n.º 2 (sucessivamente) para assim se decidir qual é o Estado que vence.

As tie breaker rules.

 

Fazendo o exercício de aplicação da norma no nosso caso.

Tomemos em consideração o Direito interno Francês , tributário, procurando aferir se à sua luz o Requerente seria considerado Residente em França. A consulta do Art.º 4.º A do Code Générale des Impôts  indica no sentido afirmativo. O critério utilizado pelo legislador Francês consta nos identificados no n.º 1 do Artigo 4.º da CDT (“domicile fiscale”) e, mais, por aí se confere competência ao Estado Francês para tributar numa base mundial (“sont passibles de l’impôt en raison de l'ensemble de leurs revenus”) quem assim qualifica. Tudo a indicar no sentido de ficar preenchido – do lado da França – o n.º 1 do art.º 4.º da CDT no caso do  Requerente. E, em conexão, recorde-se, dos Avis d’impôts constava a identificação do Adresse d’imposition do Requerente, em França .

Conduzidos ao Art.º 4.º B do mesmo Diploma chegaremos à certeza. De que o Requerente qualificava como Residente pela lei interna de França. No confronto entre a matéria de facto consolidada nos autos, supra, e a norma legal em causa, é essa a conclusão que se retira . Preenchidas que ficam, quanto a nós, inclusivamente as três alíneas do n.º 1 dessa norma (al. a) - lar/casa sitos em França e local de presença/estadia principal em França; al. b) – local de exercício da actividade profissional em França; al. c) - centro de interesses económicos em França): os requisitos, alternativos, para o Requerente qualificar como Residente em França.

 

Conjecturando agora que se verificaria (também) Residência em Portugal por aplicação da nossa lei interna - como em defesa da Liquidação em crise se sustenta nos autos. (E note-se aqui, o uso do termo “domicílio” no n.º 1 do Artigo 4.º da Convenção poderá, não o devendo justificar, ser um factor a dificultar a clareza devida na matéria. Termo que, como já se deixou dito, não se identifica com o mesmo termo quando utilizado no nosso Direito interno, incluindo no art.º 19.º da LGT. E termo que é efectivamente utilizado em outras legislações tributárias com um sentido diverso daquele que lhe confere o nosso – e outros – legislador(es) interno(s) ). Haveria, assim, dupla residência. E veríamos depois, por aplicação das regras de desempate, que iríamos ser conduzidos à mesma solução final: o Estado da França é o ER para os efeitos da CDT.

 

Basta lembrar: o Requerente trabalhou ininterruptamente em França durante todo o ano, cerca de 40 horas por semana. Habitava no local que para o efeito lhe era disponibilizado pela empregadora ao abrigo do contrato de trabalho. Recebia o seu rendimento do trabalho em França e não auferia outros rendimentos. Seja em França seja em Portugal. Em França fazia a sua vida diária, e não lhe são conhecidos nos autos elos familiares de ligação relevante a Portugal, inclusive não sendo então casado ou unido de facto  – cfr. coeficiente conjugal na Declaração Modelo 3 que apresentou.

Nos termos da primeira regra de desempate – a al. a) do n.º 2 – considerar-se-á apenas Residente do Estado em que tinha habitação permanente à sua disposição.

Ora, dos factos assentes, a regra situa-nos em França. Sem necessidade de nos repetirmos.

Com particular expressividade se referiu, a seu tempo, o Bundesfinanzhof a este requisito da al. a), assim: habitação permanente significa um tipo especial de domicílio (no sentido de casa, lar) no qual a pessoa permanece mais do que ocasionalmente e por período maior do que um curto período.  Fica quanto a nós preenchida a al. a), no nosso caso, logo pela sua primeira parte. E, mesmo que se quisesse ponderar a segunda parte da mesma al. a), o que não era necessário nem devido, ainda assim se diga, o mesmo sucederia. Pelo que também já se deixou dito.

Não haveria pois que aplicar mais nenhum critério de desempate. Ficando-nos pela primeira alínea, primeira parte, do n.º 2, temos a França como o ER do Requerente. Não Portugal.

Confirma-se, numa adesão efectiva à realidade - como no critério Convencionalmente consagrado de sobremaneira se pretendeu  - o mesmo que pela nossa lei interna se já tinha apurado. Ali (lei interna) para efeitos que só seriam aplicáveis após a competência do Estado Português lhe ser reconhecida , aqui (CDT) para efeitos de determinar se o Estado Português era ou não competente para tributar.

 

 Fica pois dada, no que antecede, a resposta à questão fundamental:

 

                Para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e França, o Requerente deve ser considerado Residente em Portugal ou, ao invés, em França?

 

Em França.

 

E latente deixámos já também a resposta à questão, neste caso, B):

 

B) Qualificando o Requerente como Residente em França para efeitos da CDT, tinha o Estado Português poderes de tributação no caso? Se sim, em que medida?

 

Novamente remetidos para o Artigo 16.º da CDT, recorde-se, o ER tem, quando de rendimentos de trabalho dependente se trate, competência exclusiva. Competência exclusiva que só poderia ficar afastada se o trabalho fosse desenvolvido no outro Estado contratante – Portugal.

Ora, sem mais desenvolvimento, a competência é reconhecida pela CDT a França, com exclusividade. Fica pois excluída - logo por esta via – a competência de tributação do Estado Português.

Ao Requerente assistia o direito de se ver tributado apenas pelo Estado Francês.

 

De onde se retira, antecipando a decisão, que a Liquidação em crise se encontra ferida de vício de violação de lei. Por erro de aplicação da lei e erro sobre os pressupostos de facto, e consequente erro de qualificação. 

*

 

Quanto aos pedidos de reembolso de quantias “pagas e/ou executadas” e juros indemnizatórios.

 

O Requerente não alega o pagamento do montante que resultava devido de acordo com a Liquidação. Nem nada esclarece nestes autos a esse respeito. Ademais, não consta dos autos prova de que tal pagamento tenha tido lugar. Assim, inexistem condições de procedência deste pedido.

 

Relativamente ao pedido de juros indemnizatórios e por maioria de razão, já que se não verificam os requisitos da respectiva condenação cfr. constante do art.º 43.º, n.º 1 da LGT - desconhecendo-se ter havido pagamento - terá o mesmo que igualmente improceder.

 

Tudo sem prejuízo dos deveres para a Requerida decorrentes do disposto no art.º 24.º, n.º 1 do RJAT.

*

 

4. Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar procedente o PPA, e assim:

a)            Declarar ilegal e consequentemente anular a liquidação de IRS melhor identificada nos autos;

b)           Anular o despacho de indeferimento da RG, melhor identificado nos autos e que manteve a Liquidação na Ordem Jurídica;

c) Absolver a Requerida dos pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios.

 

5. Valor do processo

Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 5.251,33.

 

6. Custas

Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 612,00, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 11 de Agosto de 2020

 

O Árbitro,

(Sofia Ricardo Borges)