DECISÃO ARBITRAL
Processo arbitral n.º 17/2012-T
IVA e juros compensatórios (€ 77.635,39 e € 10.031,13)
Anos 2001, 2002, 2003
Requerente
…
Requerida
Autoridade Tributária e Aduaneira (Ministério das Finanças)
1. RELATÓRIO
1.1. Em 24 de Janeiro de 2012, … (“Requerente”), contribuinte fiscal número …, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante referido por Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou pelo acrónimo “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, sucessora da anterior Direcção-Geral dos Impostos.
O pedido de pronúncia arbitral, refere-se à anulação dos actos tributários de liquidação adicional de IVA, com base na aplicação de métodos de avaliação indirectos, referentes aos anos 2001, 2002 e 2003, no valor de € 77.635,39, acrescido de juros compensatórios no valor de € 10.031,13.
Em conformidade com a previsão do n.º 1 do artigo 30.º do RJAT, estes actos haviam sido objecto de impugnação judicial, a qual se encontrava pendente de decisão no Tribunal Tributário de …há mais de dois anos. Neste âmbito, o Requerente circunscreve o pedido de pronúncia arbitral ao fundamento de erro na quantificação da matéria tributável, para o que invoca o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do RJAT1, reduzindo o pedido na jurisdição estadual.
Considera que a quantificação é errónea por se ter baseado em critérios quantitativos que se desviam da “realidade do contribuinte em causa”, designadamente no que se refere à margem bruta média de todos os canalizadores do distrito de …, tratando de forma idêntica realidades distintas, como sejam a de um canalizador “biscateiro”, que incorpora nos seus serviços uma elevada proporção de mão-de-obra, e a da Requerente, que se dedica à instalação de equipamentos de grande valor, com reduzida proporção de mão-de-obra.
Alega, ainda, que deveria ter sido atendida a margem bruta do primeiro quartil da amostra e não a mediana das margens brutas praticadas, ocorrendo excesso na quantificação da matéria tributável. Peticiona a anulação dos actos tributários por vício de violação de lei e a indemnização dos “custos incorridos com a garantia que houver de prestar no respectivo processo de execução”.
1.2. O Requerente optou por não designar árbitro. Nos termos da al. a) do n.º 2, do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o colectivo de árbitros composto por Alexandra Coelho Martins, na qualidade de árbitro presidente, Conceição Gamito e Júlio Tormenta, estes na qualidade de árbitros-adjuntos.
O tribunal arbitral foi constituído no CAAD, em 13 de Março de 2012, conforme acta de constituição do tribunal arbitral.
1.3. Na resposta apresentada pela Requerida, esta deduziu defesa por excepção e invoca a incompetência deste Tribunal Arbitral em razão da matéria, fundada no disposto na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“Portaria de Vinculação”),que determina a exclusão das “pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.
Por impugnação, a Requerida reitera a adequação dos critérios de quantificação utilizados para cômputo da matéria tributável, alegando que o Requerente não logrou provar erro ou manifesto excesso na quantificação, como lhe cabia face ao disposto no n.º 3 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”). Conclui pugnando pela improcedência da acção.
1.4. O Requerente contra-respondeu sustentando a improcedência da excepção dilatória suscitada.
1.5. Em face do exposto, importa delimitar as principais questões decidendas e enquadrar, assim, o objecto do litígio. Atentos os contornos da relação tributária configurada nos articulados, são três as questões essenciais a dilucidar:
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A primeira, suscitada pela Requerida, refere-se à falta de jurisdição do tribunal arbitral, i.é, à incompetência deste tribunal em razão da matéria;
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Se o pressuposto processual relativo à incompetência do tribunal for improcedente, a segunda questão a ser objecto de apreciação, invocada pelo Requerente, respeita à verificação do excesso de quantificação na determinação da matéria tributável efectuada por critérios de avaliação indirecta;
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Por fim, importa aferir o pedido de indemnização deduzido pelo Requerente dos “custos incorridos com a garantia” prestada na execução fiscal.
2. DA EXCEPÇÃO DILATÓRIA DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Suscita a Requerida a questão prévia da incompetência material deste tribunal.
Argumenta, para este efeito, que assentando a causa de pedir no alegado excesso na quantificação da matéria colectável/tributável por métodos indirectos, a Autoridade Tributária e Aduaneira não está vinculada à jurisdição arbitral nesta matéria, conforme expressamente previsto na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março2.Invoca, ainda, ser impossível cindir o erro na quantificação da matéria colectável dos pressupostos que levaram à sua determinação.
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria3, pelo que importa, antes de mais, proceder à sua apreciação.
A competência dos tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa4.
Assim, a incompetência corresponde a uma situação de nexo negativo que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência de uma dada espécie de tribunais não lhe atribuírem a medida de jurisdição suficiente para o efeito.
O recorte Constitucional dos tribunais arbitrais5, a sua naturezafacultativa (para o legislador e para as partes), a circunstância de não serem tribunais comuns, nem dotados de competência residual, torna particularmente relevante a demarcação rationemateriae. Na ausência de norma atributiva de competência haverá de concluir-se, sem mais, pela procedência da excepção.
O âmbito da jurisdição arbitral tributária é delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material. Aí se determina competir a esta “espécie” de tribunaisa apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;
c) A apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior.”
Por seu turno, dado o carácter voluntário da sujeição das partes6 à jurisdição arbitral,o mesmo RJAT, no n.º 1 do seu artigo 4.º, postula que a vinculação daadministração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dosministros das Finanças e da Justiça.
Vinculaçãoesta que veio a materializar-se naPortaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março que, no seu artigo 2.º, sob a epígrafe “Objecto da vinculação”, restringe de forma expressa as pretensões que podem ser cometidas aos tribunais arbitrais tributários. Com relevância para os presentes autos são excluídas as matérias referentes à aplicação de métodos indirectos, conforme infra se transcreve:
“Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam -se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) (…)
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.
Importa, pois, aferir se a matéria em litígio se enquadra nesta hipótese de exclusão. Cabe aqui relembrar que a pretensão do Requerente visa a apreciação dos actos tributários de liquidação de IVA e juros compensatórios inerentes em resultado da aplicação de métodos indirectos de determinação da matéria tributável.
Segundo oRequerente, a invocada falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira não será qualificável como incompetência do tribunal arbitral. Entendimento que, adianta-se desde já, não se perfilha.
Na verdade, a falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao tribunal arbitral traduz-se na imediata impossibilidade da eficácia subjectiva de um julgado que,se fosse proferido por este tribunal nas matérias excluídas, não produziria quaisquer efeitos sobre a parte que haveria de o executar, consubstanciando, portanto, falta de jurisdição, a qual é delimitada em função da matéria e, portanto,consubstancia a incompetência material deste tribunal.
É, pois, para nós, inequívoco, que a falta de jurisdição do tribunal para dirimir o litígio configura efectivamente a excepção dilatória da incompetência e não qualquer outra, fazendo-se, atenta a natureza arbitral do tribunal, uma leitura integrada do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, com o n.º 1 do seu artigo 4.º e, ainda, com o mencionado artigo 2.º da Portaria de Vinculação acima transcritos.
No entanto, mesmo que assim não se entendesse, tratar-se-ia, nesse caso, de uma excepção dilatória inominada, pelo que, a concluir-se pela sua verificação,sempre conduziria a idêntica consequência, i. é, a absolvição da instância arbitral.
Relativamente à matéria da excepção, o Requerente reconhece a exclusão da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente a actos de determinação da matéria tributável ou colectável por métodos indirectos e, bem assim, à decisão do procedimento da revisão.
Porém, considera que esta excepção já não abrangerá os actos de liquidação por métodos indirectos, procedendo a uma distinção entre, por um lado, a decisão do procedimento de revisão e, por outro, o acto tributário de liquidação propriamente dito. A primeira estaria excluída da jurisdição arbitral, a segunda não.
Sustenta que a ressalva que a Portaria faz da decisão do procedimento de revisão, excluindo-o dos tribunais arbitrais, apenas tem sentido útil (presumimos que numa argumentação a contrario) se significar que os actos de liquidação não estão abrangidos por esta exclusão. Acrescenta que os actos de liquidação por métodos indirectos não estão expressamente excepcionados pela Portaria de Vinculação e não constam do elenco da alínea a) do artigo 2.º da mesma.
Não acompanhamos tal construção.
Os actos de liquidação de impostos definem de forma unilateral e autoritária a prestação tributária dos contribuintes, consubstanciando actos administrativos impositivos com efeitos externos.
Enquanto acto administrativo, a liquidação tributária partilha das características dos actos administrativos em geral.
A liquidação, em sentido estrito, é a última fase do procedimento administrativo de liquidação tributária, regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, constituído por uma série de actos destinados a obter um resultado jurídico final, o montante de imposto a entregar nos cofres do Estado7.
Portanto, a liquidação hoc sensu é a fase que se traduz na aplicação da taxa de imposto à matéria colectável já determinada, não sendo os actos preparatórios autonomamente impugnáveis, podendo sim ser postos em causa quando da impugnação do acto definitivo, final, em obediência ao princípio da impugnação unitária expresso no artigo 54.º do CPPT8.
No caso da determinação da matéria tributável por métodos indirectos a lei prevê um procedimento próprio, efectuando-se a liquidação de acordo com a decisão do referido procedimento – cfr. n.º 1 do artigo 62.º do CPPT.
Ademais, constitui condição de procedibilidade da acção impugnatória do acto (final) de liquidação de imposto por aplicação de métodos indirectos a prévia submissão de um pedido de revisão da matéria tributável9, que tem efeitos suspensivos da liquidação, cujo procedimento está contido nos artigos 91.º a 94.º do CPPT.
Nestas circunstâncias, constitui condição essencial de impugnação do acto de liquidação que tenha previamente lugar o procedimento de revisão da matéria tributável, despoletado pelo contribuinte, que culminará numa decisão, sendo o acto de liquidação daí decorrente uma mera consequência do mesmo, desempenhando apenas uma função concretizadora. Aliás, a epígrafe do artigo 62.º do CPPT refere-se-lhe como “acto de liquidação consequente”.
Retomando o caso concreto, o legislador exclui ex professo da jurisdição arbitral, pois a ela não se vincula a Autoridade Tributária e Aduaneira, as “pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.
Este procedimento de revisão visa, segundo o artigo 92.º do CPPT, o estabelecimento de um acordo, nos termos da lei, quanto ao valor da matéria tributável a considerar para efeitos de liquidação. Havendo acordo, o tributo será liquidado com base na matéria tributável acordada. Na falta de acordo, a Autoridade Tributária e Aduaneira decide de acordo com o seu prudente juízo.
Ou seja, o acto de liquidação do imposto é a consequência directa da decisão do procedimento de revisão, que constitui seu fundamento e que está excluída desta jurisdição.
Tal acto de liquidação substantivamente nada acrescenta, limitando-se a materializar a decisão do procedimento, a concretizar o valor de imposto que deriva aritmeticamente desta decisão e a externá-la, para que esta possa produzir os efeitos jurídicos da relação jurídico-tributária constituída.
Ora, se está vedada a apreciação de pretensões que se refiram à decisão do procedimento de revisão, cujo objecto é o da determinação da matéria tributável por métodos indirectos10, e se a causa de pedir da presente acção é precisamente o excesso de quantificação dessa matéria (cerne do próprio procedimento de revisão), então dúvidas não restam de que a apreciação do acto de liquidação, com fundamento nesse excesso de quantificação, está excluída da jurisdição deste tribunal.
Aliás, se assim não se entendesse, uma vez que os fundamentos e causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral respeitam precisamente ao excesso de quantificação, perfilhar a posição do Requerente significaria permitir, através da referida apreciação do acto de liquidação, o julgamento de uma pretensão relativa “a actos de determinação da matéria colectável (…) por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão” expressamente vedada pela Portaria de Vinculação, em concreto pelo seu artigo 2.º, alínea b).
A quantificação da matéria tributável por métodos indirectos constitui o objecto da decisão do procedimento de revisão que está excluída da jurisdição arbitral tributária, nos termos da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-B/2011, de 22 de Março.
O acto de liquidação de imposto corporiza tal decisão, concretizando-a, e não pode ser objecto de apreciação individualizada, pois não reveste autonomia relativamente àquela11.
Aliás tal apreciação, a ser admitida (o que, reitera-se, não é o caso), teria de ficar restrita a vícios formais relativos à liquidação, pois quanto à matéria substantiva e à sua fundamentação, na medida em que está vertida integralmente na decisão do procedimento de revisão, cujo conhecimento é subtraído à jurisdição arbitral, estaria a mesma necessariamente fora do âmbito desta jurisdição12.
À face do exposto, conclui-se pela procedência da excepção de incompetência suscitada pela Requerida.
A procedência da excepção dilatória de incompetência do tribunal obsta ao conhecimento do mérito do pedido e conduz à absolvição da Requerida da instância.
3. DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os árbitros que constituem este Tribunal Arbitral em julgar procedente a excepção suscitada de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, em consequência, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo-se a Requerida da instância.
* * *
Custas a cargo do Requerente, fixando-se o respectivo montante em €2.754,00.
Notifique.
Lisboa, 14 de Maio de 2012
(Árbitro-presidente) Alexandra Coelho Martins
(Árbitro-adjunto) Conceição Gamito
(Árbitro-adjunto) Júlio Tormenta
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.