DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Rita Calçada Pires e Jónatas Machado (árbitros vogais), designa¬dos, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A..., SA, pessoa coletiva e contribuinte fiscal n.º..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, doravante designada apenas como “Requerente”, requereu, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (adiante RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (adiante CPPT), constituição de tribunal arbitral coletivo, com vista à declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2018..., de 12.07.2018, referente ao período de 2014, no valor de € 87.252,40 (oitenta e sete mil, duzentos e cinquenta e dois euros e quarenta cêntimos) e da decisão de indeferimento do procedimento de Reclamação Graciosa que sustentou o primeiro ato.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite, em 16.07.2019, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 24.09.2019.
3. A fundamentar o presente pedido, a Requerente vem aos autos afirmar, em síntese, o seguinte:
Procedimento tributário
a) Em maio de 2018, a Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, onde se propunha a correção ao lucro tributável da Requerente, no montante de €275.501,20, relativamente à desconsideração da dedução dos encargos financeiros suportados com o financiamento obtido junto de instituições financeiras, tendo exercido o direito de audição;
b) O ato de liquidação em causa, n.º 2018..., notificado a 12.07.2018, teve por base a inspeção tributária conduzida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) através da ordem de serviço n.º OI2018... e que culminou no relatório de inspeção tributária notificado à Requerente através do ofício n.º DFLisboa ..., de 03.07.2018 (adiante designado como “RIT”), através do qual foram propostas correções à matéria coletável e ao subsequente cálculo de imposto, em sede de IRC, do período de tributação de 2014, com fundamento na alegada não aceitação de encargos financeiros suportados (juros) com empréstimos bancários – associados a financiamentos contraídos pela Requerente que a Autoridade Tributária considerou terem sido canalizados para a realização de empréstimos às empresas do grupo – tendo sido propostas correções no valor de €275.501,20, referentes a 2014, por não estarem alegadamente cumpridos os requisitos estabelecidos no artigo 23.º do CIRC, nomeadamente a indispensabilidade;
c) Em 18.10.18, sem renunciar ao direito a reagir, a Reclamante procedeu ao pagamento do imposto liquidado, nesse momento já em fase de cobrança coerciva, tendo apresentado Reclamação Graciosa em 20.11.2018, tendo exercido direito de audição diante do correspondente projeto de decisão em 15.03.2019, sendo notificada, por ofício datado de 12.04.2019, da decisão final;
Argumentação de facto e de direito
d) A Requerente dedica-se à atividade principal de montagem de materiais refratários, isolante e anticorrosivos e construção e projeto de instalações industriais, tendo tomado a decisão de passar a apostar no mercado internacional, devido ao decréscimo da atividade em Portugal, desde o final dos anos 90, o que fez a através da constituição ou aquisição de participações maioritárias das sociedades em cada jurisdição, a saber, a) B... SRL, em Itália; b) C... Limited, no Reino Unido; c) D..., em França; d) E..., no Japão; e) F... Limited, na Índia; f) G..., na Polónia; g) H... Ltda., no Brasil; h) I..., S.A., em Portugal; e i) J..., Lda, em Portugal;
e) Como forma de dotar as sociedades participadas com meios para o desenvolvimento da sua atividade, a Requerente tomou a decisão de as financiar através de empréstimos não remunerados, essencialmente dirigidos a empresas detidas em mais de 60% pela Requerente, entre as quais as C... no Reino Unido, D...em França, a B... e G... na Polónia, tendo como propósito de curto, médio e longo prazos assegurar uma redução de custos operacionais das participadas e, consequentemente, assegurar a sua viabilidade económica e a sua contribuição, por dividendos, para os resultados da Requerente;
f) Na Polónia, a sociedade G... conseguiu à Requerente angariar clientes e cumprir as suas obrigações decorrentes de contratos celebrados na Polónia e reduzir significativamente os custos incorridos nesses projetos, nomeadamente relativamente à mão de obra e transporte de materiais, o mesmo acontecendo em relação aos projetos concluídos no Reino Unido, graças à C... Limited, verificando-se ainda, no que respeita a B..., que, em consequência das operações realizadas, foi, inclusivamente, deliberada a distribuição de dividendos em 2017 (cfr. Documento n.º 4);
g) A concessão destes empréstimos traduziu uma opção estratégica com o intuito de expandir o mercado da Requerente, ganhar representatividade e credibilidade como um todo, e adquirir novos clientes, de forma a gerar proveitos para o grupo, ou seja, teve-se em vista possibilitar, não só a valorização direta do investimento financeiro realizado pela Requerente, como ainda, a expansão do grupo como um todo, o qual em decorrência da política de internacionalização adotada deixou de ser visto como uma grande empresa portuguesa para ser um grande grupo internacional de confiança;
h) Em 2014, a Requerente realizou prestações de serviços às entidades relacionadas num valor global e direto de cerca de 16 milhões de euros e 66 milhões de euros de 2008 a 2014 – rendimentos diretamente tributados em Portugal e resultantes dos investimentos realizados – e auferiu cerca de 32 milhões de euros de rendimentos no mercado externo e tributados em Portugal, incluindo partes relacionadas que resultam da dimensão, visibilidade e reputação que a Requerente como um Grupo Internacional beneficia por assegurar um contacto direto e presente em cada um desses mercados, estimando a Requerente que as suas participadas estrangeiras tenham contribuído para o seu volume de negócios nos seguintes termos:
i) Nos casos em que, mercê do menor sucesso dos projetos de investimento realizados, sobrevenham situações de falência técnica, era necessário de capitalizar as empresas, de forma a que contribuam para a atividade do grupo, globalmente considerada, como sucedeu no caso da sociedade J..., Lda, residente em Portugal, que, à data da concessão do empréstimo, se encontrava na iminência de ser encerrada, sendo que era do interesse do grupo, e em especial da Requerente, manter o cumprimento do contrato de leasing que se encontrava em vigor relativamente a um imóvel detido pela participada – que tem sido significativa fonte de rendimento – de forma a evitar custos maiores, decorrentes do incumprimento do contrato celebrado com a respetiva instituição financeira e a perda do bem;
j) Por tudo, fica demonstrado à saciedade a existência de um claro propósito comercial nos financiamentos às participadas, visto que a instalação em mercados externos no segmento de negócio em que a Requerente se insere é um investimento com perspetivas de médio e longo prazo em que é fundamental suportar o período de investimento e instalação inicial para que se possam colher posteriormente os resultados esperados;
k) Os empréstimos em referência foram, essencialmente dirigidos a empresas detidas em mais de 60% pela Requerente, entre as quais as C... no Reino Unido, D... em França, a B... Italiana e G... na Polónia, sendo que, embora fossem remunerados, a Requerente, esperava que, em consequência dos mesmos, viesse a obter um benefício económico;
l) Os custos suportados pela Requerente, para dotar as suas participadas de fundos indispensáveis à prossecução dos seus negócios, com o intuito de os rentabilizar e obter benefícios económicos futuros provenientes de tais investimentos, deverão ser considerados como afetos à própria exploração da Requerente, não sendo necessário que os mesmos tenham uma relação com o objeto societário, bastando que seja incorrido no âmbito da atividade ou evidencie um business purpose, sendo este manifestamente o caso em apreço;
m) O artigo 23.º do Código do IRC contém uma cláusula aberta, que carece de interpretação e aplicação ao caso concreto, pois só são fiscalmente aceites os custos indispensáveis para a realização dos proveitos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora;
n) O entendimento da AT segundo o qual os encargos financeiros suportados pela Requerente com os referidos empréstimos não devem ser aceites fiscalmente por não se verificar o requisito da indispensabilidade dos custos, do artigo 23º do CIRC, na redação à data dos factos, não estando os mesmos encargos diretamente relacionados com a atividade da Requerente nem tendo ligação aos rendimentos sujeitos a imposto, reflete a perspetiva mais ortodoxa que a Requerida defendia, de conditio sine qua non, como forma de interpretar a expressão de indispensabilidade das despesas que existiu no Código do IRC até 2013 – contra a doutrina mais autorizada e a jurisprudência – que veio a ser alterada em 2014;
o) A nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a atividade empresarial, independentemente da efetiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto;
p) A noção de atividade empresarial não se reconduz à de mera atividade produtiva, sendo que atividade empresarial que gere custos dedutíveis há-de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito, um intuito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediato) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento;
q) De um ativo espera-se que fluam benefícios económicos futuros, quer se trate de um ativo físico, quer se trate de um ativo financeiro, sendo que um ativo financeiro que se traduza numa participação de capital numa certa entidade terá rendimentos variáveis em função do desempenho das entidades nas quais se investiu, e não a natureza de uma remuneração pré-determinada;
r) Ainda que, na verdade, o nexo de causalidade não seja condição sine qua non para a dedutibilidade dos gastos, esse nexo encontra-se no caso vertente, pois a Requerente aplica capitais alheios na sua exploração, e com esses fundos constitui empréstimos às sociedades por si participadas, como forma de exercício e manutenção da sua atividade e fonte produtora, sendo que o investimento nas participadas veio a originar a obtenção de rendimentos na esfera da participante;
s) Ao permitir que a AT possa pôr em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram diretamente proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a mesma, o entendimento restritivo sustentado pela AT viola, além do mais, a liberdade de iniciativa e de organização empresarial, prevista constitucionalmente na alínea c) do artigo 80.º da CRP;
t) A liquidação impugnada também é violadora do princípio da justiça, tal como previsto no artigo 55.º da LGT, reconhecido como última “ratio” da subordinação da Administração ao Direito, tornando inválidos os atos que, não estando abrangidos pelas condicionantes jurídicas expressas da atividade administrativa, se apresentam uma afronta intolerável aos valores elementares da Ordem Jurídica, mormente os plasmados em preceitos referentes à integridade e dignidade das pessoas, à sua boa – fé e confiança no Direito;
u) Não podem as sociedades que investem nas suas participadas e no crescimento do grupo ser discriminadas face àquelas cujos encargos financeiros são aplicados apenas a financiar a atividade normal ou corrente da própria empresa que se endividou, num conceito de atividade restritivo e que não atende à diversa natureza dos ativos que os capitais alheios podem financiar nem aos tipos de rendimento (operacionais, financeiros) que as empresas podem obter, fundamentos pelos quais a liquidação impugnada incorre em vício de violação do artigo 23º do Código do IRC, sendo consequentemente inválida e devendo ser anulada, assim como a decisão da reclamação graciosa que a sustentou, tudo nos termos e por força conjugada do artigo 163.º do CPA, do artigo 137.º do Código do IRC;
v) Nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do TFUE, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros, sendo a livre circulação de capitais é uma das quatro liberdades fundamentais do mercado único da União Europeia.estando as restrições expressamente previstas no artigo 65.º do TFUE
w) A Diretiva do Conselho n.º 69/335/CEE, de 17 de julho de 1969, que, ao abrigo do princípio da liberdade de circulação de capitais, proibiu no seu artigo 10.º a cobrança de impostos indiretos sobre a reunião de capitais, foi aplicada no célebre acórdão do TJUE Modelo SGPS, de 29.09.1999, Processo n.º C-56/98, no qual se considerou que os emolumentos cobrados pela celebração de escritura pública de uma operação abrangida pela Diretiva (e consequentemente, pelo princípio da liberdade de circulação de capitais) eram proibidos;
x) Quanto à dedutibilidade de encargos financeiros, que o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou no sentido que são dedutíveis os encargos financeiros suportados por uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”) com empréstimos contraídos para financiamento de prestações acessórias gratuitas efetuadas a empresas suas participadas (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0473/13, de 21 de fevereiro de 2018);
y) Ao decidir efetuar participações acessórias de capital a algumas das empresas participadas sem delas receber quaisquer juros, tendo contraído empréstimos onerosos junto de instituições financeiras para fazer esses financiamentos, os encargos financeiros suportados por estes empréstimos estão conexionados com a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora da empresa participante que contraiu os empréstimos e pagou os encargos financeiros correspondentes;
z) A lógica empresarial e de grupo de empresas frequentemente aconselhará que os empréstimos sejam contratualizados pela empresa dominante, tendencialmente aquela que, pela sua dimensão e prestígio, se encontra melhor posicionada para os obter junto das instituições bancárias com condições mais favoráveis. Nada na lei comercial o impede, competindo a análise desse procedimento às próprias empresas do grupo, sem que a AT se possa imiscuir em tal opção empresarial, por o direito fiscal não impor comportamento diverso;
aa) Se é assim no caso de uma SGPS, não entende a Requerente por que motivo não pode uma sociedade que detém a maioria do capital social de outra, embora constituída sob outra forma que não a de SGPS, proceder à dedução de tais encargos, pois que, para efeitos fiscais, desde a reforma do IRC operada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, a legislação fiscal deixou de distinguir entre as sociedades constituídas sob a forma de Sociedade Gestora de Participações Sociais das restantes;
bb) Antes desta reforma, apenas as SGPS gozavam de diversas prorrogativas no então artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, agora ampliado para o regime de participation exemption previsto nos artigos 51.º a 51.º-D do Código do IRC, sendo que, após a reforma, qualquer sociedade nacional passou a poder beneficiar do regime anteriormente previsto para as sociedades SGPS, sem necessidade de ter forma especial ou ter qualquer menção no objeto social.
cc) Uma interpretação do artigo 21.º do Código do IRC que apenas admita a dedutibilidade dos custos de financiamento restringida a sociedades constituídas sob a forma de SGPS, dificultando o investimento de uma sociedade constituída sob outra forma nas suas participadas, é discriminatória e violadora do princípio da liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE;
dd) 3.1. Em face do exposto, vem a Requerente, não concordando com as correções efetuadas pela AT, pedir que o tribunal arbitral julgue provado e procedente o pedido e proceda à anulação da liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2018..., de 12.07.2018, referente ao período de 2014, no valor de € 87.252,40 (oitenta e sete mil, duzentos e cinquenta e dois euros e quarenta cêntimos), assim como do indeferimento da Reclamação Graciosa, notificada no dia 11.04.2019, no âmbito do processo n.º ...2018..., que sustentou em segundo grau aquela liquidação, tudo com as devidas consequências legais, ou, se tiver dúvidas sobre a conformidade das normas em causa com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE,
4. Na Resposta, a Requerida contestou o pedido, por impugnação, defendendo a sua improcedência com os seguintes fundamentos:
a) A Requerente contraiu diversos empréstimos, e da análise efetuada aos elementos contabilísticos respeitantes ao período de 2014, verificou-se que recorre a financiamento através de capitais alheios, nomeadamente a financiamento bancário, o qual se encontra contabilizado nas diversas subcontas das contas 2511 – Financiamentos obtidos – Empréstimos bancários e 2512 – Descobertos bancários;
b) Os encargos financeiros suportados pela Requerente com os referidos empréstimos não deverão ser aceites fiscalmente por não se verificar o requisito da indispensabilidade dos custos, previsto no artigo 23º do Código do IRC, na redação à data dos factos;
c) Analisadas as contas de gastos, verificou-se que a Requerente suportou os seguintes juros com financiamentos obtidos:
d) A conta 691111114 inclui o montante apurado de € 64.153,42, respeitante a juros suportados com empréstimos bancários contraídos pela “Q...”;
e) Para além dos financiamentos que obteve e relativamente aos quais suportou os juros anteriormente identificados, o sujeito passivo concedeu empréstimos a empresas do grupo, os quais se encontram contabilizados em subcontas da conta 411 – Investimentos em subsidiárias e 412 – Investimentos em associadas, os quais apresentavam os seguintes saldos mensais devedores;
f) A Requerente suportou encargos financeiros, nomeadamente juros, resultantes de financiamentos contraídos junto de entidades bancárias e, simultaneamente, concedeu empréstimos a empresas do grupo, tendo sido apenas remunerado pelo valor do empréstimo concedido à K..., observando-se que parte substancial do financiamento obtido por capital alheio que gerou encargos financeiros para a Requerente foi utilizado na concessão de crédito gratuito às empresas participadas, ou seja, não obtendo rendimentos;
g) A AT não pretende emitir juízos de valor quanto às opções económicas e empresariais levadas a cabo pelas sociedades, pois tal tarefa incumbe aos órgãos de gestão das mesmas, devendo, no entanto, ser observados os princípios, regras e normas estabelecidos na lei societária e na lei tributária, cabendo-lhe verificar se foram cumpridos os requisitos de ordem fiscal e, no caso em apreço, se os encargos de natureza financeira contabilizados pela Requerente cumprem as condições previstas no artigo 23.º CIRC, quanto à sua dedutibilidade fiscal como gasto;
h) Se a Requerente recorre a empréstimos bancários com os quais é suposto financiar a sua atividade e incorre em encargos financeiros que contabilizou como gastos do exercício, mas, por seu turno, concede financiamentos a terceiros, lógico será que a proporção dos encargos financeiros que suporta relativamente aos empréstimos que concede não deva assumir um gasto na sua contabilidade, ou, em alternativa, que esta proporção seja debitada aos mutuários, por forma a obter, a título de compensação, o rendimento financeiro equivalente ao gasto que suportou, mas que respeita a terceiros;
i) Não foram cumpridas as normas relativas a preços de transferência, no âmbito das quais são calculados juros relativamente aos empréstimos concedidos, estabelecidos em conformidade com os valores praticados no mercado, isto é, em condições substancialmente idênticas aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis. Para alcançar tal objetivo, bastaria aplicar a jusante as mesmas taxas que as instituições bancárias lhe aplicaram a montante, por forma a operar a devida compensação;
j) Serão de excluir da dedutibilidade fiscal os gastos que não estejam ligados à atividade empresarial ou que não tenham um interesse económico ou que ultrapassam nitidamente as necessidades e capacidades objetivas da empresa;
k) O conceito de gastos não indispensáveis à atividade está essencialmente associado à necessidade de evitar abusos que possam decorrer da existência de encargos cuja relação com os encargos operacionais de uma determinada entidade que os suporta possam ser dúbios, e, como tal, possam não ser considerados como comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora;
l) O critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da atividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios;
m) Quando uma empresa contrai um empréstimo cujos fundos cedeu, no todo ou em parte, a terceiros, sem estipular remuneração não poderá deduzir, em princípio, a totalidade dos encargos financeiros correspondentes a tais empréstimos na medida em que se pode considerar que os juros nem são suportados para obter proveitos ou ganhos sujeitos a imposto nem para manter a fonte produtora;
n) Nos termos do artigo 23.º do CIRC apenas são dedutíveis os gastos que respeitem à atividade desenvolvida pelo próprio sujeito passivo, sustentando o STA que, mesmo quando exista uma relação de dependência ou domínio, as sociedades têm personalidade e capacidade tributárias distintas e que, a não ser desta forma, como poderia ser imputada a uma sociedade o exercício da atividade de outra com a qual ela tivesse alguma relação;
o) Não pode uma sociedade só porque tem sócios comuns, ou pertence ao mesmo grupo económico ou participa numa outra sociedade, substituir-se a esta na assunção de passivos, resultando daí efeitos fiscais diferentes dos que se obteriam caso o financiamento estivesse alocado à sociedade que dele necessita, para o exercício da sua atividade;
p) Os encargos suportados pela Requerente, na parte correspondente à utilização do capital alheio para financiamento gratuito das empresas participadas, não cumprem o requisito da indispensabilidade previsto na al. c) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, pelo que foram desconsiderados como gasto para efeitos de determinação do resultado tributável parte desses juros de empréstimos bancários suportados pela Requerente;
q) A exclusão da menção, «comprovadamente sejam indispensáveis», na atual redação da al. c) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, aplicável desde janeiro de 2014, não significa uma alteração radical nas regras da dedutibilidade, sustentando-se, de forma consistente, que o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que se inscrevem no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios;
r) A relevância fiscal de um gasto depende da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou da produção do resultado, sendo que a falta dessas características poderá gerar a dúvida sobre se a causa é ou não empresarial, se é um gasto efetivamente incorrido no interesse da empresa ou se respeita a um qualquer outro interesse, ou seja, se estamos perante um gasto aceite fiscalmente ou não;
s) Sendo certo que a administração fiscal não se deve intrometer na autonomia e na liberdade de gestão dos contribuintes, não se pode aceitar que esse princípio possa impedir a administração fiscal de questionar fundadamente a indispensabilidade de um determinado custo/gasto à luz do direito fiscal vigente;
t) No que respeita à qualificação das verbas contabilizadas como custos dedutíveis, cabe ao contribuinte o ónus da prova da sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtora, se a AT questionar essa indispensabilidade, sendo que tal encargo da prova deve recair sobre quem, alegando o facto correspondente, com mais facilidade, pode documentar e esclarecer as operações e a sua conexão com os proveitos;
u) A dedutibilidade dos custos, para efeitos do art.º 23.º do CIRC, exige a conexão real e efetiva com a atividade societária, delimitada pelo seu objeto societário, considerando-se, por exemplo, que o reforço de capital da sociedade participada através de prestações suplementares não é exercício da atividade empresarial, pelo que os custos que incorram com essas ou por causa da realização de tais prestações não são dedutíveis;
v) Para que determinada verba seja considerada como custo fiscal tem de respeitar desde logo, à própria sociedade contribuinte e que a atividade respetiva seja por ela própria desenvolvida e não por outras sociedades;
w) O facto de a presença das sociedades participadas no mercado internacional ter originado um aumento das prestações dos seus serviços e dos rendimentos obtidos com referência ao mercado externo, tributados em Portugal, não justifica a assunção pela Requerente de juros de capitais alheios cujo financiamento foi imediata e inequivocamente utilizado no desenvolvimento da atividade empresarial das sociedades participadas, sociedades juridicamente distintas e autónomas da Requerente;
x) Ao suportar juros referentes ao elevado financiamento bancário que posteriormente cede gratuitamente ás sociedades participadas ( nove não residentes e uma residente), apenas está a afectar negativamente o resultado contabilístico fiscal da requerente, procedimento que, além de contrário aos interesses da sociedade, menospreza as regras de apuramento do lucro tributável, nos termos gerais, designadamente da imprescindível imputação dos custos/gastos efectivamente incorridos no interesse da empresa e não de outro qualquer interesse, como resulta demonstrado no caso sub judice
4.1. Em face do acima exposto, a Requerida conclui que o presente pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente por não provado e, assim, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
5. Por despacho arbitral de 06.02.2020, foi designado, ao abrigo do artigo 18.º do RJAT, o dia 06.03.2020 para efeitos de realização da audiência de julgamento.
6. Na referida data de 06.03.2020 teve lugar, no CAAD, a inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, L..., tendo o representante daquela prescindido da inquirição da testemunha M... . O depoimento confirmou no essencial a importância dos empréstimos não remunerados às empresas participadas e afirmou a inexistência de um plano de preços de transferência no grupo.
7. Naquela mesma data, e não tendo as partes optado por alegações orais, o Tribunal notificou a ora Requerente e a Requerida para, por esta ordem e de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas simultâneas no prazo de 20 dias. Em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, o Tribunal prorrogou o prazo previsto no nº1 do mesmo artigo por dois meses, dando disso informação ao Conselho Dentológico do CAAD, por força do n.º 3 do artigo 11.º do Código Deontológico, tendo designado o dia 20.04.2020 para a prolação da decisão.
8. As partes não apresentaram as suas alegações escritas no prazo determinado.
II. Saneamento
9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
10. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), tendo o advogado N..., da Sociedade de Advogados O..., subestabelecido no Advogado P..., no dia 03.02.2020, os poderes que lhe haviam sido conferidos pela Requerente.
11. O processo não enferma de nulidades e não há, em face do exposto, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
III. Do Mérito
III.1. Factos provados
12. Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente dedica-se à atividade principal de montagem de materiais refratários, isolante e anticorrosivos e construção e projeto de instalações industriais. – cfr. certidão permanente passível de consulta através do código ... .
b) árias das sociedades em cada jurisdição, a saber, a) B...SRL, em Itália; b) C... Limited, no Reino Unido; c) D..., em França; d) E..., no Japão; e) F..., na Índia; f) G..., na Polónia; g) H... Ltda., no Brasil; h) I..., S.A., em Portugal; e i) J..., Lda, em Portugal; (RIT)
c) A Requerente contraiu diversos empréstimos e, da análise efetuada aos elementos contabilísticos respeitantes ao período de 2014, verificou-se que recorre a financiamento através de capitais alheios, nomeadamente a financiamento bancário, o qual se encontra contabilizado nas diversas subcontas das contas 2511 – Financiamentos obtidos – Empréstimos bancários e 2512 – Descobertos bancários Cfr RIT, no processo administrativo instrutor);
d) Analisadas as contas de gastos, verificou-se que a Requerente suportou os seguintes juros com financiamentos obtidos;
e) A Requerente suportou os seguintes juros com financiamentos obtidos:
f) A conta 691111114 inclui o montante apurado de € 64.153,42, respeitante a juros suportados com empréstimos bancários contraídos pela “Q...”;
g) A B... deliberou a distribuição de dividendos em 2017 (cfr. Documento n.º 4);
h) A Requerente revelou, na sessão do artigo 18.º do RJAT, a regularidade das operações de financiamento e a ausência de decisão formal do Conselho de Administração sobre as mesmas;
i) A Requerente não tinha dossier estratégico contendo as decisões de financiamento do grupo, incluindo a ratio do financiamento das participadas, tal como não tinha nenhum projeto estratégico de ação integrada entre a Requerente e as participadas (Sessão do artigo 18.º do RJAT);
j) A Requerente assume a relação especial com as empresas participadas, às quais concede o empréstimo, revelando que a escolha pela criação ou pela aquisição de participações de capital geradoras de empresas participadas foi a forma assumida como a necessária para a integração plena nos mercados locais e capaz de potenciar ganhos logísticos (Sessão do artigo 18.º do RJAT);
k) Tanto as participadas estrangeiras como as participadas nacionais tiveram acesso aos empréstimos não remunerados fornecidos pela Requerente (Sessão do artigo 18.º do RJAT);
l) A Requerente não dispunha de um plano definido de preços de transferência (Sessão do artigo 18.º do RJAT);
m) No âmbito dos empréstimos não remunerados, Requerente não detinha nem detém nenhuma garantia das participadas (Sessão do artigo 18.º do RJAT).
III.2. Factos não provados
13. Apesar de questionada, em face da não apresentação de prova concreta durante a sessão do artigo 18.º do RJAT, consideram-se não provados:
a) Impacto significativo positivo da presença internacional nos resultados da Requerente;
b) Dificuldade de acesso às instituições financeiras locais por parte das associadas estrangeiras;
c) Justificação para financiamento das afiliadas nacionais pela mesma via de financiamento das afiliadas estrangeiras em face da argumentação de que seria difícil o acesso às instituições financeiras locais por parte das associadas estrangeiras.
III.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
14. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
15. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio à luz do direito aplicável [vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
16. A convicção do Tribunal relativamente ao sobredito quadro factual, resulta da análise crítica das posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, em conjugação com os documentos juntos aos autos e não impugnados, incluindo o processo administrativo instrutor da AT e depoimento prestado em audiência pela testemunha L..., diretora financeira da demandante, que depôs com conhecimento do funcionamento da demandante.
III.4. Matéria de direito
III.4.1. Delimitação exata da questão de direito: gastos vs preços de transferência
17. A questão decidenda, tal como colocada pelos autos, está conectada com a admissibilidade, para efeitos do artigo 23.º do CIRC, da dedução de juros pagos pela Requerente no âmbito do recurso ao crédito junto de instituições financeiras para em seguida conceder empréstimos não remunerados a um conjunto de sociedades por aquela participada em Estados-Membros da União Europeia (UE). Atenda-se que os empréstimos concedidos pela requerente são mais dos que os apenas aqui referidos, efetuados a empresas participadas localizadas fora da UE. Contudo, a questão suscitada pela requerente é apenas respeitante aos valores implicados nos empréstimos efetuados às participadas localizadas no território europeu.
18. Em primeira linha, a temática em causa é abordada, como evidenciado ponto anterior, sob o prisma do artigo 23.º do CIRC – gastos e perdas -, na redação aplicável ao ano de 2014, período de tributação aqui em causa: “Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”. E, especificamente, o n.º 2, alínea c), do mesmo artigo: “[gastos] de natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado”.
19. É certo existir um conjunto de decisões prévias nos tribunais superiores, que analisam a temática em apreço, por via do artigo 23.º do CIRC. Porém, julga-se essencial não as adotar, apenas por serem prévias e refletir sobre o presente caso de forma própria. E ao fazê-lo, urge ter em atenção estar-se perante aspetos que inegavelmente se enquadram no domínio do regime dos preços de transferência. São operações financeiras ocorridas dentro de um grupo empresarial, suscitando, a ativação do regime legal especial, cujo objetivo primordial assenta na edificação de um quadro de neutralidade fiscal, garante de equidade fiscal e bloqueador da possibilidade de os interesses económicos prosseguidos nas operações internas a um grupo de empresas potenciarem abuso, permitindo transferências de resultados entre as sociedades envolvidas, sem respeito do princípio da plena concorrência. Tenha-se em atenção que o artigo 63.º, n.º 1 do CIRC inclui, para o período de tributação em causa, não apenas as operações comerciais, mas também as operações financeiras.
20. Assim, ao se delimitar a questão decidenda e determinar a(s) norma(s) aplicáveis, urge considerar um reajuste no domínio concreto, convolando os regimes atendíveis. Ou seja, se é certo que o ponto de partida em causa dirige o olhar para a temática da não consideração fiscal de um gasto, no âmbito do artigo 23.º do CIRC, o facto de a operação ocorrer entre empresas participadas implica, necessariamente, a ativação da norma especial anti-abuso do artigo 63.º do CIRC, sobretudo no âmbito daquilo que a sua ratio pretende garantir: o não aproveitamento indevido do grupo ou das suas estruturas para desequilibrar, injustificavelmente, os resultados tributáveis e efetivamente tributados. Significa que a operação entre as partes relacionadas deve atender aos valores da operação de acordo com as condições que seriam obtidas entre empresas independentes em transações comparáveis e em condições comparáveis.
21. A questão dos empréstimos entre membros do grupo, e consequente dedução de juros obtidos, com criação de benefícios no montante do imposto devido, é uma das temáticas mais tratadas internacionalmente neste domínio, tendo a OCDE, no âmbito do projecto BEPS, criado uma ação específica para o tema (BEPS Action 4: Limiting Base Erosion Involving Interest Deductions).
22. Perante este cenário, defende-se que norma especial se sobrepõe a norma geral, pelo que a análise efetuada é-o nos termos do regime dos preços de transferência, por esse ser um regime especial que prevalece o regime geral do artigo 23.º do CIRC.
23. Atenda-se ainda que, para tal opção, contribui também:
23.1. O facto de a requerente enfatizar, de forma persistente, a relação especial com as empresas participadas às quais concede o empréstimo, sendo a escolha pela criação ou pela aquisição de participações de capital geradoras de empresas participadas a forma assumida como a necessária para a integração plena nos mercados locais e potenciadora de ganhos logísticos;
23.2. Em sede de prova testemunhal, ficou patente a regularidade, a ausência de decisão formal do Conselho de Administração e a existência de um dossier estratégico de decisões de financiamento do grupo, incluindo o das participadas. Ou seja, verifica-se que a opção de financiamento da requerente às suas afiliadas foi uma opção regular, efetuada ao longo de vários períodos tributários, assumida como o mecanismo de gestão regular de sustentação empresarial das várias partes integradoras do grupo, não se demonstrando o envolvimento da requerente, como sociedade dominante, no desenvolvimento de projetos funcionais, comerciais e de investimento das afiliadas. Este facto é relevante, pois, demonstra a inexistência de uma opção de financiamento excecional e conjuntural, por período limitado, integrado num desenho ativo e ponderado de gestão estratégica, revelado por documentação e por decisões do Conselho de Administração, fator que poderia sustentar a decisão de financiamento e o seu regime de forma muito diferente.
24. A opção pela ativação do regime do artigo 63.º do CIRC, em detrimento do artigo 23.º do CIRC, sobretudo na questão dos juros nulos, é igualmente opção já anteriormente assumida no processo arbitral 695/2015-T.
III.4.2. Implicações da aplicação do artigo 63.º do CIRC: Apelo à doutrina do Business Purpose e concretização do princípio da substância sobre a forma (Economic Substance Doctrine)
25. A aplicação do regime decorrente do artigo 63.º do CIRC determina a necessidade de cumprimento do princípio da plena concorrência às operações intra-grupo. Ou seja, no caso em apreço, significa que as transações financeiras ocorridas entre os membros do grupo empresarial decorrem com respeito pelas regras de mercado ou equiparadas, não se utilizando essas operações internas como mecanismo de aproveitamento fiscal ilegítimo.
26. Tradicionalmente, a análise do artigo 63.º do CIRC tendia a estar condicionada apenas à verificação da plena concorrência. Porém, defende-se posição ampliada quanto ao conteúdo e âmbito do normativo. A análise do artigo 63.º do CIRC, por conectado com a substância das operações, implica igualmente o escrutínio do propósito da operação. E isto porque o regime dos preços de transferência não significa a desconsideração completa da existência de ganhos e vantagens inegáveis atinentes a um grupo empresarial. Essas são reconhecidas e admitidas. Porém, exigem-se regras especiais para garantir o máximo de neutralidade, entendida esta, não como neutralidade absoluta, mas antes como neutralidade relativa. Este exercício implica que as decisões internas tenham por base substância efetiva e não sejam fundadas em vantagens essencialmente fiscais, i.e., essencialmente formais.
27. O exposto revela implicar o artigo 63.º do CIRC não apenas a exigência da prática de um preço de mercado ou equiparado ao de mercado, nos termos dos métodos legalmente permitidos. O normativo reconhece igualmente a presença e a necessidade de validação de opções que materialmente revelem aproveitamento da gestão integrada de um grupo empresarial. Porém, fá-lo desde que tais opções, concretizadas em operações, sejam justificadas por razões comerciais e financeiras substantivas atinentes a um grupo empresarial. Ou seja, o artigo 63.º do CIRC implica igualmente a demonstração da substância das decisões e subsequente afastamento do desenho considerado legalmente como ilegítimo, por ser essencialmente formal. O artigo 63.º do CIRC implica demonstração concreta de que a decisão, e subsequente operação económica, é robusta e justificada, estando revelada em elementos de prova económicos concretos, reportáveis e analisáveis.
28. Os elementos reveladores desta exigência económica substantiva são encontrados através do evidenciado pela doutrina já internacional do Business Purpose, entendida como construção reveladora da substância sobre a forma.
29. De acordo com esta construção, o tribunal analisa a(s) operação(ões) com dupla perspetiva: ora assumindo uma perspetiva de zoom out ora assumindo uma perspetiva de zoom in. A perspetiva de zoom out significa análise da(s) operação(ões) de forma agregada, atendendo ao cômputo das várias operações e da atividade desenvolvida pelo grupo empresarial. A perspetiva de zoom in significa análise desagregada dos vários elementos da(s) operação(ões), por forma a apurar os objetivos e as condicionantes concretas da(s) operação(ões). É desta análise integrada e integral que se permite delimitar os efeitos objetivos da(s) operação(ões) e os efeitos/motivos subjetivos da(s) operação(ões) – Economic Substance Doctrine.
30. Salienta-se a necessidade de análise casuística dos dados, adaptada ao caso concreto e à realidade subjacente ao caso em análise.
III.4.3. Aplicação da doutrina do Business Purpose e concretização do princípio da substância sobre a forma (Economic Substance Doctrine)
31. Não está em causa o tribunal interferir na decisão empresarial quanto ao formato do financiamento do grupo. Esse é tópico do domínio da liberdade de gestão empresarial. Assim, não devem as afirmações do tribunal ser interpretadas como condicionando a decisão do sujeito passivo. Antes, o objetivo é o de apurar somente da possibilidade de a Requerente poder ativar o benefício de dedução dos encargos com os juros de empréstimos por si regularmente efetuados em entidades financeiras, com o objetivo de financiamento não remunerado das participadas, no espaço da UE. Para tal, segue-se a análise em termos de perspetiva de zoom out e de zoom in e enfatiza-se ser, nestes domínios, nos termos da lei, o ónus da prova do contribuinte, baseando-se o tribunal nos dados partilhados documentalmente e testemunhalmente.
32. Em termos de perspetiva de zoom out, o tribunal não encontrou dados, quer na prova documental quer na prova testemunhal, capazes de demonstrar o caráter sistemático e estratégico nas decisões do financiamento intra-grupo. Ou seja, não se demonstra a existência de decisão estratégica da(s) operação(ões) de financiamento, inexistindo um formato agregado e sistemático, capaz de revelar o cômputo das várias operações e da atividade desenvolvida pelo grupo empresarial unitariamente.
32.1. A um nível mais imediato, verifica-se a inexistência de activação do regime fiscal do grupo de sociedades. A Requerente e as suas associadas residentes em território nacional não ativaram o regime especial previsto no CIRC para os grupos. Tal indica, já de si, ausência de caracter sistemático e de estratégia definitiva de grupo.
32.2. Por outro lado, a prova no processo revelou ser o financiamento obtido e aplicado nas associadas um financiamento com finalidade meramente genérica, surgindo apenas para apoio de tesouraria. Ora, uma tal opção revela inexistência de domínio e decisão estratégicos, não se identificando visão integrada nem ótica de design estratégico de grupo. Antes identifica-se, no caso, individualidade das decisões de financiamento, uma vez que a decisão ocorre consoante as necessidades de tesouraria das associadas, não sendo encontrada uma decisão de financiamento global e integrada das várias associadas, conectadas com projetos concretos e objetivos específicos. Apenas existe a ideia de necessidade de tesouraria e o eventual reembolso, se a situação económica futura o permitir. O facto de, na PI, se afirmar que a partir de 1990 houve a decisão de internacionalização, garantindo a presença em territórios estrangeiros através da criação ou da participação dominante em veículos locais, não é suficiente para demonstrar a sistematização e a estratégia na política de financiamento do grupo. Relevante é a ausência de decisão formal e pormenorizada do Conselho de Administração com decisão estratégica de estrutura financeira, acumulado ao facto de não existir dossier de financiamentos de associadas.
32.3. O facto referido no número anterior é enfatizado pelo facto de, em prova testemunhal, se ter revelado que as associadas estrangeiras, além de não serem financeiramente autónomas, serviam igualmente para garantir sub-contratualização de serviços à Requerente, sociedade dominante. Mesmo num cenário como este não se verificou a apresentação de dados sistemáticos e estratégicos ao nível da política de financiamento do grupo. Os dados partilhados são elementos aleatórios, afirmações de lugar comum, sem decisão formal estratégica delineada e revelada.
32.4. Por outro lado, existindo várias operações financeiras e comerciais intra-grupo, verifica-se igualmente a ausência de um dossier de preços transferência, contendo o desenho estratégico, a seleção do método e justificando as decisões assentes em elementos comparativos com o acesso ao mercado fora da relação especial.
33. Em termos de perspetiva de zoom in, igualmente o tribunal não encontra dados suficientemente robustos capazes de demonstrar, por operação em causa, a existência dos elementos estratégicos e sistemáticos. Esta análise é fundamental também, por forma a revelar a necessidade, a adequação e a proporcionalidade das decisões. Revelando a qualidade, quantidade, duração e adequação ao objeto em causa.
33.1. De forma imediata, evidencia-se a inexistência de dados que demonstrem ter sido efetuado estudo de comparabilidade entre preços do empréstimo se efetuado no mercado local e os preços do financiamento indireto efetuado pela sociedade dominante. Tal é crucial para averiguar da necessidade da opção e, igualmente, da sua adequação e proporcionalidade. Igualmente, tais dados permitiriam, eventualmente, justificar a opção por empréstimos não remunerados.
33.2. De outro lado, não foi evidenciada a análise do risco efetuada. Tal análise auxiliaria a revelar os elementos evidenciados: necessidade, adequação e proporcionalidade das decisões. Assim, os riscos económicos, tal como os riscos contabilísticos e financeiros, teriam de ser ponderados e evidenciados. Não é suficiente a justificação de necessidade de tesouraria. Haveria necessidade de demonstrar que muito mais elementos teriam de ser provados. Qual o ganho quantitativamente conseguido? Qual o retorno expetável? E qual o retorno efetivamente concretizado? Quais as obrigações concretas das associadas para com a sociedade dominante – a Requerente – pelo empréstimo obtido? Estes são dados não apresentados, o que não permite justificar as operações, nem justificar a vantagem fiscal comparativa, algo crucial para o cumprimento da neutralidade fiscal e garantia de não distorção da concorrência.
33.3. Atende-se ainda à inexistência de acordo prévio com AT sobre os preços de transferência, nem tal tendo sido ponderado. Tal como não foi acautelado pedido de informação vinculativa quanto à interpretação do caso concreto, por forma a salvaguardar a posição concreta das operações de financiamento do grupo.
34. Em face do exposto, compreende-se que o legislador não atenda à legitimidade do gasto, estando impedida a dedução dos encargos com os juros de empréstimos efetuados, com o objetivo de financiamento não remunerado das participadas.
III.4.4. Igualdade do resultado obtido por via da argumentação no seio do artigo 23.º do CIRC
35. Os resultados obtidos, por via do regime dos preços de transferência, são os mesmos dos que seriam obtidos por via da aplicação do artigo 23.º do CIRC. A distinção encontra-se na fundamentação e no tipo de raciocínio desenvolvido. Porém, o resultado obtido é o mesmo. Da análise do conteúdo de algumas decisões dos tribunais superiores sobre a matéria, e.g., Acórdãos do STA de 04-06-2014, proferido no processo 01763/13; de 19-04-2017, proferido no processo 0925/16; de 28-02-2018, proferido no processo 01206/17, a dedução não é permitida.
36. Assim, apesar de, na presente decisão, se seguir um caminho de argumentação diferente do exposto na decisão contida no Processo n.º 212/2019-T , sobre os mesmos factos e a mesma Requerente, ainda que de diferente período de tributação, o resultado final é o mesmo. Estando, por tal, garantida a unidade/uniformidade de tratamento e de solução do caso concreto equiparável.
IV. DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Absolver a Requerida do pedido; e
b) Condenar a Requerente nas custas do processo, no momento abaixo fixado.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 87.252,40 (oitenta e sete mil duzentos e cinquenta e dois euros e quarenta cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2 754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
• Notifique-se.
Lisboa, 4 de Junho de 2020
Árbitro Presidente
(José Poças Falcão)
Árbitro Vogal
(Rita Calçada Pires)
Árbitro Vogal
(Jónatas Machado)