Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 458/2019-T
Data da decisão: 2020-03-23  IVA  
Valor do pedido: € 9.140,01
Tema: IVA – Cessão da posição contratual em contrato de locação financeira imobiliária.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

 

a) Partes e pedido de pronúncia arbitral

 

1. A..., LDA, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., Lisboa (a seguir, Requerente) apresentou, em 10.07.2019, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.1, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral (a seguir abreviadamente PI), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2018..., que foi apresentada contra as liquidações adicionais n.ºs 2018... e 2018... de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeitantes aos períodos 201409T e 201412T, nos valores de €6.443,59 e de €1.573,10, e das liquidações de juros compensatórios n.º 2018... no valor de €866,44 e de juros de mora n.º 2018... no valor de €256,88, bem como destas mesmas liquidações de IVA e de juros.

 

b) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não deduziram recusa.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 23.09.2019.

 

c) Tramitação

 

4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticiona a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa proferida no processo n.º ...2018... e das liquidações adicionais de IVA n.ºs 2018... e 2018... relativas aos períodos 201409T e 201412T, nos valores de €6.443,59 e de €1.573,10, das liquidações de juros compensatórios de €866,44 e de juros de mora de €256,88, que aquele ato de indeferimento manteve, invocando os seguintes vícios: a) violação do princípio da decisão, porquanto na reclamação graciosa não foram apreciados os fundamentos invocados pela Requerente; b) violação do princípio do inquisitório, por não terem sido realizadas todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material; c) ilegalidade por erro de facto e de direito e contrariedade à Constituição da República Portuguesa (CRP) das liquidações impugnadas, porquanto sendo a locação financeira isenta de IVA nos termos do artigo 9.º, n.º 29, do Código do IVA (CIVA), a cessão da posição do locatário igualmente o é, sendo ainda que, mesmo que assim não se entendesse, não existe fundamento legal para se sustentar que o valor tributável desta cessão corresponde ao valor patrimonial tributário do imóvel.

 

5. A AT apresentou resposta em que, defendendo-se por impugnação, com a convocação das conclusões do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, peticiona que o pedido de pronúncia arbitral seja julgado improcedente por não provado.

 

6. Por despacho de 14.11.2019, o Tribunal Arbitral, ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (arts. 16.º, 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT), dispensou a reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, por não se mostrarem presentes as circunstâncias e finalidades previstas nas diversas alíneas do n.º 1 deste dispositivo.

Mais decidiu, em conformidade com o disposto na al. a) do art. 16.º do RJAT e ao abrigo dos arts. 18.º, n.º 2 e 16.º, als. b) e d) do RJAT, dada a suscitação nos autos de questões sobre eventual reenvio prejudicial e de constitucionalidade e em ordem ao mais completo exercício do contraditório, a notificação das partes para, querendo, produzirem alegações escritas sucessivas, no prazo de quinze dias.

As partes apresentaram alegações escritas, a Requerente em 27.11.2019 e a Requerida em 12.12.2019, em que reiteraram as posições expressas nos seus articulados anteriores, sem qualquer pronúncia autónoma e específica sobre as matérias suscitadas do reenvio prejudicial pretendido e da inconstitucionalidade invocada.

 

7. Nos termos do disposto no art. 18.º, n.º 2 do RJAT e em cumprimento do art. 21.º, n.º 1 do mesmo RJAT, por último por despacho de 21.2.2020 foi fixado como termo do prazo para prolação da decisão arbitral o dia 23.3.2020.

 

II. Saneamento

 

8. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões suscitadas (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.

 

9. Não foram colocadas questões que obstem à apreciação do mérito da causa, pelo que cumpre proferir decisão sobre a substância do litígio.

 

III. Questão a decidir

 

10. O thema decidendum, tal como resulta do pedido e da causa de pedir apresentados pela Requerente na sua PI, prende-se com verificar, em atenção aos vícios invocados acima referenciados (n.º 4), a legalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º  ...2018... bem como das liquidações adicionais de IVA, por ela mantidas, respeitantes aos períodos 201409T e 201412T, em atenção a cessão da posição contratual em contrato de locação financeira de que a Requerente era locatária, reputada prestação de serviços sujeita a IVA com valor tributável correspondente ao valor patrimonial tributário (VPT) do imóvel objeto da locação.

Neste âmbito, competirá também averiguar a necessidade de formulação de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, como é solicitado pela Requerente, sobre o conceito de “locação de imóveis” da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (Diretiva IVA), para efeitos do enquadramento da cessão da posição contratual do locatário em contrato de locação financeira imobiliária.

 

IV. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

11. Examinadas as alegações constantes das peças processuais apresentadas e os documentos constantes do procedimento administrativo junto aos autos (constituído pelos ficheiros “RIT_Parte1”, “RIT_Parte2”, “RG 1 de 2”, “RG 2 de 2”, a seguir PA, onde se inclui o RIT e o despacho de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2018...), o Tribunal Arbitral julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

 

I.  A Requerente é sujeito passivo de IVA desde 12.10.1994, enquadrado no regime normal trimestral, com operações do tipo misto com afetação real de todos os bens (asserção não contraditado consignada no RIT, p. 7).

 

II. Em 19.5.2010, foi celebrado entre o B...,  SA (B...), NIF..., como Primeiro Contraente/Locador, e a Requerente, como Segundo Contraente/Locatário, o contrato de locação financeira imobiliária n.º ..., pelo prazo de 5 anos, tendo por objeto a fração autónoma, destinada a comércio, indústria ou serviços, designada pelas letras “AC”, do prédio denominado Lote 1-B, sito no lugar de ..., freguesia  de  ... e   ..., ..., inscrito  na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ... (factualidade aceite pelas partes e descrita no considerando a) do contrato junto como Anexo I ao RIT).

 

III. Em 20.8.2014, pelo contrato denominado “Contrato de Cessão de Posição Contratual de Locatário e Alteração ao Contrato Locação Financeira Imobiliária nº...”, junto como Anexo I ao RIT, a Requerente, enquanto segundo contraente, locatária ou cedente, celebrou com o B..., enquanto primeiro contraente, locador ou cedido, e com a sociedade C..., Lda, NIF..., como terceiro contraente ou cessionária, a cessão da sua posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária n.º..., cujos considerandos e cláusulas, com direto interesse para a decisão, se transcrevem:

“Considerando que:

(...)

b) O Segundo Contraente deixou de proceder ao pagamento das rendas, nos termos acordados no âmbito do aludido Contrato de Locação Financeira, tendo o mesmo sido considerado resolvido por incumprimento contratual;

c) Todavia, como foi possível estabelecer um acordo tendente a solucionar a situação de incumprimento verificada, o Segundo Contraente solicitou ao Primeiro Contraente a repristinação dos efeitos do Contrato de Locação Financeira então resolvido e a consequente reformulação do mesmo nos termos constantes do Acordo de Repristinação e Aditamento ao Contrato de Locação Financeira, celebrado nesta data;

d) O Segundo e o Terceiro Contraentes solicitaram ao Primeiro Contraente a cessão da posição contratual de Locatário do aludido Contrato de Locação Financeira do Segundo Contraente a favor do Terceiro Contraente, o que o Primeiro Contraente aceitou nos ternos do presente documento;

e) O Primeiro e o Terceiro Contraentes negociaram ainda a alteração do Contrato de Locação Financeira para nomeadamente, alterar o prazo da locação financeira para 87 meses, contados da data da sua celebração, com a consequente alteração do plano financeiro, tudo nos termos e condições constantes deste documento. (...)

Cláusula Primeira (Montante em dívida)

1. O Contrato de Locação Financeira foi celebrado com rendas mensais e antecipadas, sendo o capital em dívida à data de 15 de julho de 2014, antes do vencimento da renda respetiva, de 13.666,42 Euros (...).

Cláusula Segunda (Cedência da posição)

1. Pelo presente contrato, o Segundo Contraente cede a sua posição contratual no aludido Contrato de Locação Financeira a favor do Terceiro Contraente que declara aceitar tal cessão.

2. O Segundo Contraente garante ao Terceiro Contraente a existência da posição contratual agora transmitida e este aceita-a sem reservas e declara ter total conhecimento dos direitos e obrigações para si resultantes desta cessão de posição contratual.

Cláusula Terceira (Aceitação das condições pelo cessionário)

O Terceiro Contraente declara igualmente que tem perfeito e integral conhecimento do citado Contrato de Locação financeira, em todas as suas condições gerais e particulares, bem como do Acordo de Repristinação e Aditamento celebrados no âmbito do mesmo contrato, que o Segundo Contraente lhe entregou, que por as aceitar, obriga-se ao seu integral cumprimento, declarando ainda conhecer e aceitar sem reservas todas as condições impostas pelo Primeiro Contraente para dar o seu acordo e autorizar a presente cessão.

Cláusula Quarta (Do imóvel locado)

1. O Terceiro Contraente declara ainda que já recebeu o imóvel objeto do Contrato de Locação Financeira, o qual lhe foi devidamente entregue pelo Segundo Contraente.

2. O Terceiro Contraente declara também ter perfeito e integral conhecimento da situação física, jurídica, administrativa, fiscal e registral do imóvel locado e que o mesmo corresponde às suas especificidades e exigências por si requeridas pelo que o aceita a título definitivo sem restrições nem reservas no estado em que presentemente se encontra, obrigando-se a cumprir todas as prescrições legais e administrativas aplicáveis, não podendo deduzir contra o Primeiro Contraente qualquer reclamação fundada no estado do imóvel, nem tão pouco exercer qualquer direito ou ação com base em eventuais defeitos ou vícios do mesmo, a aparentes ou ocultos, ainda que limitativos ou impeditivos da sua utilização, nem invocar que não possui, ou por qualquer motivo deixou de possuir as necessárias licenças, autorizações e aptidão para o fim a que se destina, competindo-lhe o exercício de qualquer ação ou direito contra o vendedor ou qualquer terceiro.

Cláusula Quinta (Consentimento)

O Primeiro Contraente declara consentir na transmissão da posição contratual de Locatário do Segundo para o Terceiro Contraente, operada nos termos e condições estabelecidas no presente contrato.

Cláusula Sexta (Contrapartida)

O Segundo e o Terceiro contraentes declaram que não é devida qualquer contrapartida pela cessão da posição contratual ora acordada”.

 

IV. Com base na ordem de serviço n.º OI2017... de 24.8.2917, foi realizado procedimento de inspeção tributária externa à Requerente, de âmbito parcial, em sede de IRC e de IVA, que incidiu sobre o exercício económico de 2014, conforme RIT, pp. 4-5.

 

V. A Requerente, na sequência da notificação para o efeito com a ref. n.º..., de 20.2.2018, exerceu em 12.3.2018 por escrito o seu direito de audição sobre o projeto de relatório de inspeção tributária, conforme documento junto como anexo V ao RIT, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

 

VI. No âmbito da ação de inspeção referida em IV, foi elaborado o RIT, notificado à Requerente pelo Ofício n.º..., de 6.4.2018, para cujo teor se remete, destacando-se, no que aqui diretamente releva, o seguinte:

“Cessão Posição Contratual

•             No dia 19 de maio de 2010 foi celebrado um contrato de Locação Financeira Imobiliária ao qual foi dado o nº ... (sic) (Anexo I) entre o B..., S.A., NIF..., como Primeiro Contraente ou Locador, e a A..., Lda., NIF..., como Segundo Contraente ou Locatário;

•             O referido contrato foi celebrado por um período de 5 anos, tendo por objeto a fração autónoma designada pelas letras “AC”, espaço amplo, sito no ... andar –..., destinado a comércio, indústria ou serviços, composto pela loja 31, do prédio urbano, sito no lugar de ..., Lote 1 da freguesia e concelho de ...;

•             No âmbito do acordado, o Segundo Contraente comprometeu-se a proceder ao pagamento das rendas do citado imóvel;

•             Não tendo o Segundo Contraente cumprido o acordado anteriormente, foi o contrato resolvido por incumprimento do mesmo;

•             Todavia, com o objetivo de resolver a situação de incumprimento, foi solicitado pelo Segundo Contraente ao Primeiro Contraente a revogação do Contrato de Locação Financeira Imobiliária e sua reformulação e um Aditamento ao referido Contrato;

•             Nesse sentido, acresce ao referido contrato um Terceiro Contraente, C..., Lda., NIF..., como Terceiro Contraente ou Concessionário (sic):

•             O Segundo e Terceiro Contraentes solicitaram ao Primeiro Contraente a cessão da posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária a favor do Terceiro Contraente, o qual foi deferido pelo Primeiro Contraente:

•             Foi então negociado a alteração ao contrato de locação financeira imobiliária entre o Primeiro Contraente e o Terceiro Contraente no dia 20 de agosto de 2014;

•             Na sua cláusula segunda, ficou estipulado que o Segundo Contraente cede a sua posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária ao Terceiro Contraente, o qual declarou aceitar a referida cessão, ficando vinculado ao seu integral cumprimento;

•             Entre o Segundo e Terceiro Contraente ficou definido não ser devida qualquer contrapartida pela cessão da posição contratual, conforme cláusula sexta.

Dando seguimento ao acordado e após análise aos registos contabilísticos verificou-se que a A... procede à contabilização da cedência da seguinte forma:

 

De acordo com o referido no contrato assinado entre as partes, a A... cedeu a sua posição contratual sem qualquer contrapartida, no entanto da mesma resultou a contabilização de um gasto de € 30.291.70.

Não se pondo em causa a decisão de gestão que culminou na cedência, uma vez que se trata de uma liberalidade que consiste (sic) aos responsáveis pela gestão da empresa não se pode no entanto aceitar o gasto fiscalmente” (pp. 11-12).

- “Correções em sede de IVA

A cessão de posição num contrato configura-se como a transmissão de um direito, constituindo uma tipicidade na lei.

Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1° do CIVA estão sujeitas a imposto “as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional a título oneroso por um sujeito passivo agindo como tal”, ou seja, qualquer transmissão estará sujeita a imposto.

De acordo com o preceituado no artº 4°. nº 1 do CIVA “São considerados como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso  que  não  constituem  transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens”, o enquadramento referido no citado artigo abrange qualquer operação, onde se insere a cedência da A... à   C...,  pois  estamos  perante  uma  operação  que  não  constitui  uma  transmissão, uma aquisição intracomunitária ou uma importação de bens, mas sim uma operação que se afigura como a transmissão de um direito.

Desta forma, a situação em análise enquadra-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 1º, estando sujeito a imposto sobre o valor acrescentado as prestações de serviços efetuadas no território nacional por um sujeito passivo agindo como tal, e no n.° 1 do artigo 4°, ambos do CIVA, configurando-se a cedência a uma prestação de serviços sujeita a IVA.

Na documentação apresentada pela A... e procedida de análise, não se vislumbra qualquer referência à liquidação do IVA, nem na consulta ao contrato de locação financeira imobiliária, que se encontra em anexo, nem nas declarações periódicas apresentadas pelo sujeito passivo nem nos documentos contabilísticos (...).

Conclui-se assim pela falta de liquidação e pagamento do imposto devido pela operação em análise.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 16º do CIVA o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente

A contraprestação resultante do estipulado no contrato de cessão de posição contratual, segundo a sua cláusula sexta é de 0,00€, “O segundo e terceiro contraentes declaram que não é devida qualquer contrapartida pela cessão de posição contratual ora acordada”.

Assim, a base tributável a considerar para efeitos de IVA, segundo o artº 16.º n.º 4:

Para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, entende-se por valor normal de um bem ou serviço:

a) O preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar;

b) Na falta de bem similar, o valor normal não pode ser inferior ao preço de aquisição do bem ou, na sua falta, ao preço de custo, reportados ao momento em que a transmissão de bens se realiza;

c) Na falta de serviço similar, o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviço”.

Assim, no caso em apreço, e dado que o valor da contraprestação é nulo, o valor a considerar será o do Valor Patrimonial Tributário (VPT) do imóvel, considerado como o valor de mercado.

Por consulta à aplicação da AT, “Avaliação - Ficha de avaliação”, verifica-se que o VPT do imóvel em 2014 era de €35.190,00 correspondendo atualmente ao artº ... com a fração “AC” da freguesia de ... e ... (Anexo IV)

E, tendo em conta o disposto na alínea c) do n.º 1 e o nº 9 do artigo 18º do CIVA, à data do contrato de cessão de posição contratual, a taxa a aplicar à prestação de serviços é de 23%.

Assim, de acordo com o exposto, foi apurado um valor a corrigir, de acordo com o quadro infra:

 

Assim, pelo exposto, propõe-se que seja corrigido o IVA apurado no período 2014/09, considerando-se o valor de €8.093,70, resultante da seguinte operação: 35.190,00 € x 0,23 após cessão da posição contratual do imóvel com o artigo ..., da freguesia de ... e ..., concelho de ..., a que corresponde a fração "AC"” (pp. 13-14).

 

VII. Com base nas conclusões do RIT descritas no ponto antecedente, foram promovidas as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 2018..., respeitante ao período 201409T, no valor de €6.443,59, com a seguinte fundamentação: “Liquidação efetuada com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária”, e n.º 2018..., respeitante ao período 201412T, no valor de €1.573,10, com a seguinte fundamentação: “Liquidação efetuada nos termos do art. 87º do Código do IVA, em resultado do processamento da declaração corretiva, enviada para um período de imposto para o qual já tinha sido enviada declaração periódica”, bem como as liquidações de juros compensatórios n.º 2018 ... no valor de €866,44 e de juros de mora n.º 2018 ... no valor de €256,88 (cfr. as cópias das indicadas liquidações juntas aos autos).

 

VIII. A Requerente deduziu em 20.9.2018 reclamação graciosa das indicadas liquidações de IVA, a que foi atribuído o n.º ...2018..., conforme fls. 2 e segs. do PA (ficheiro “RG 1 de 2”), cujo teor aqui se dá por reproduzido, na qual requer “a anulação das liquidações de IVA, juros compensatórios e juros de mora efetuadas, com todas as consequências legais”, para tanto alegando, no essencial, o seguinte: i) que o TJ no acórdão Lubbock Fine & Co., “que decidiu que a renúncia pelo locatário ao arrendamento, colocando o bem à disposição de quem lhe cedeu os direitos, se inclui ainda no conceito de locação de bens imóveis isentos a que se refere a Diretiva do IVA” (n.º 11), e “o mesmo entendimento terá de vigorar no quadro de uma cessão de posição contratual de um contrato de locação financeira, porque a cessão emerge dos direitos do locatário e o regime da locação também não pode ser cindível” (n.º 16), e, assim, como a “locação era isenta de IVA nos termos do artigo 9º, nº 29, do respetivo Código, pelo que a cessão da posição do locatário terá inevitavelmente de o ser” (n.º 18); ii) que “não existe fundamento legal para se sustentar que o valor tributável desta cessão corresponde ao valor patrimonial tributário” (n.º 19), porquanto “não sendo aplicáveis as disposições dos nºs 2 e 10 do artigo 16º do CIVA, a lei determina, [de] forma incontornável, [no n.º 1 do art. 16.º do CIVA] que o valor tributável é o valor da contraprestação obtida ou a obter”, pelo que: “Resultando dos factos que esse valor é nulo, tem de concluir-se inevitavelmente que a aplicação da taxa de imposto a esse valor nulo redunda no apuramento de um valor de imposto igualmente nulo” (n.ºs 24 e 25); iii) “ainda que por hipótese extrema, se rejeitasse a violação do artigo 9º, nº 29, do CIVA e se admitisse a aplicação ao caso das regras do nº 4 do artigo 16º do CIVA, as mesmas não permitiriam, em qualquer circunstância, chegar ao valor patrimonial tributário com[o] base de incidência do IVA” (n.º 37), sendo que concluir “que o valor de mercado do serviço corresponderia ao valor patrimonial tributário”, “mais não é do que uma ficção, feita ao arrepio da lei”, que fere o art. 103.º, n.º 3 da CRP.

 

IX. A Requerente foi notificada, por ofício de 7.2.2019, para exercer o direito de audição prévia relativamente ao projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o que não foi concretizado (cfr. fls. 51 e 54 do PA - ficheiro “RG 2 de 2”).

 

X. Pelo ofício n.º..., datado de 17.04.2019 (a fls. 58 do PA - ficheiro “RG 2 de 2”), a Requerente foi notificada do despacho, proferido pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, ao abrigo de subdelegação de competências, de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, segundo o qual “de acordo com os fundamentos constantes da presente informação, respetivo parecer que antecede e com os demais elementos integrantes dos autos, é de indeferir o pedido do reclamante nos termos e com os fundamentos propostos” (cfr. despacho a fls. 54 do PA - ficheiro “RG 2 de 2”), considerando-se, na informação em que se sustentou tal despacho, no essencial, o seguinte (cfr. informação n.º REC .../18 a fls. 54v e segs. do PA - ficheiro “RG 2 de 2”):

“3.          Antes de nos referirmos à cessão da posição contratual do locatário, impõe-se uma alusão ao contrato de locação financeira imobiliária que a antecede para dizer que:

- o mesmo beneficia da isenção de IVA, prevista no artigo 9.º, nº 29 do Código do IVA;

- a sua anulação, também, não é tributada, a menos que o locatário receba uma importância para anuir a essa rescisão, caso em que, sendo sujeito passivo, esta rescisão será considerada uma prestação de serviços, sujeita a IVA, nos termos dos artigos 1.º, nº 1, alínea a), e 4.º, nº 1, ambos do Código do IVA.

4.            Posto isto, reportando-nos agora à cessão da posição contratual do locatário, importa trazer à colação, porque pertinente, o teor de parte de uma Informação Vinculativa (processo nº 4506, despacho de 7/03/2013, do Subdiretor Geral do IVA, por delegação do Diretor Geral - cf. fls. 44 dos autos):

"3. De acordo com o disposto no nº 1 do art. 4° do citado diploma, o conceito de «prestação de serviços» tem um carater residual, abrangendo todas as operações decorrentes da atividade económica que não sejam definidas como transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.

4.            Quando ocorre uma cedência de posição contratual durante a vigência do contrato de locação financeira, ou seja, antes de efetuada a opção de compra, verifica-se uma perda voluntária de um direito que o locatário demite de si, atribuindo-o ou cedendo-o a outrem.

5.            Tal operação consubstancia uma prestação de serviços tributada nos termos dos citados normativos (...)".

5.            Trata-se da posição que vem sido adotada pela AT, como de resto sucedeu na ação inspetiva em causa, cujos fundamentos merecem a nossa concordância.

6.            A reclamante vem alegar que o que houve da sua parte foi uma renúncia à sua posição de locatária, devendo, por isso, beneficiar de isenção, tal como sucedeu aquando da celebração do contrato de locação financeira.

7.            De facto, (...) a anulação ou rescisão deste contrato não é tributada, por se encontrar isenta do imposto, já que o contrato que a antecedeu também estava isento.

8.            O que sucedeu, no caso, é que a reclamante cedeu a sua posição de locatária, e se a cedeu obviamente que não chegou a haver a dita anulação ou rescisão, conforme defende.

9.            Como e bem se dá conta no relatório inspetivo, o facto de o contrato ter sido resolvido não impossibilitou um acordo com a locadora, mediante o qual a reclamante, ali locatária, solicitou a repristinação dos efeitos do contrato e a sua reformulação, de forma a que a sua posição passasse a ser assumida por um terceiro.

10. Se houvesse tão só uma rescisão do contrato, em que a força negocial da reclamante, enquanto locatária, se perdesse totalmente, a cessão não se poderia ter realizado nunca. Veja-se, desde logo, que foi a reclamante que escolheu a entidade a quem cedeu a sua posição, o que contraria a tese que preconiza na sua petição.

11.          Relativamente ao valor tributável, segunda questão que importa analisar, entenderam os SIT que o valor a considerar era, como vimos, o VPT do imóvel à data da cessão.

12. Legalmente, basearam-se, para o efeito, no artigo 16.º, nº 4 do Código do IVA, isto porque verificaram que a reclamante, cedente, e o cessionário não fixaram qualquer contrapartida por esse ato.

13.          Cremos não merecer censura tal posicionamento.

14.          Do nº 4 do artigo 16.º do Código do IVA e da alínea a) desse mesmo  número,  resulta  que quando não se teve que pagar por um bem ou serviço um determinado valor (preço), é aplicável enquanto valor tributável, para efeitos de IVA, o "valor normal" desse bem ou serviço.

15.          Veja-se que na referida alínea a) consta a expressão "teria de pagar", o que significa/pressupõe que não houve fixação de um preço para o negócio, sendo por isso aplicável o conceito de "valor normal”.

16.          Valor este que prevalece sobre aquele que as partes decidiram não fixar (ou seja, 0,00€), pois se assim não fosse não se estabelecia esta determinação legal para os casos em que não se definiu uma contraprestação.

17.          Aqui chegados, importa aferir se o "valor normal" que os SIT apuraram é o correto.

18.          Como vimos, o valor apurado para o caso foi o VPT, e, quanto a isso, não se vislumbra motivo para discordar.

19.          Estando em causa um direito de natureza obrigacional e de conteúdo económico, que se traduz na transferência do direito de adquirir o imóvel, uma vez pagas as rendas, o "valor normal" não pode deixar de estar associado ao próprio valor do imóvel à data em que o direito à sua aquisição mudou da reclamante, cedente, para a cessionária.

20. Esse valor não podia deixar de ser o VPT do imóvel à data da cessão - 35.190,00€ (cf. fls. 45 dos autos) por ser o único que se conhecia que, de forma mais fidedigna e rigorosa, podia representar, nessa data, o valor que o mercado atribui ao bem, e daí a expressão constante do relatório "o valor a considerar será o Valor Patrimonial Tributário (VPT), considerado como valor de mercado"”.

 

12. Não se descortinam enunciados de facto relativamente aos quais assuma relevância para a decisão de mérito em atenção às possíveis soluções de direito a sua consideração como não provados.

13. A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada resultou do exame dos documentos não impugnados juntos aos autos e constantes do PA, conforme especificado nos pontos do probatório acima enunciados.

 

V. Fundamentação de Direito

 

14. Incide o presente litígio, em termos imediatos, sobre o ato indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... (acima descrita no ponto X da factualidade provada) que manteve as liquidações adicionais de IVA respeitantes aos períodos 201409T e 201412T (acima indicadas no ponto VII da factualidade provada), alegando a Requerente (cfr. n.º 6 da contestação) que esse indeferimento padece dos vícios de: “a) Violação do princípio da decisão: em que a AT escuda-se no seu poder para decidir em vez de apreciar e de se pronunciar sobre os fundamentos invocados pela Requerente na sua reclamação graciosa e, sendo caso disso, apresentar contra­argumentação devidamente fundada para não (sic) justificar a não adesão aos mesmos; b) Violação do princípio do inquisitório que a deveria ter levado a realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material; c) A manutenção de atos tributários que padecem de ilegalidade por de erro de facto e de direito; d) A manutenção de atos tributários contrários à Constituição da República Portuguesa”.

 

15. Nos termos do art. 124.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT, “Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação” (n.º 1), sendo que: “Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte: a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos; b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior” (n.º 2).

 

16. Tendo em conta que os vícios arguidos pela Requerente, os quais se dirigem à anulação dos atos impugnados, são apresentados de forma a indicar uma ordem sequencial de exame, recorrendo, aliás, a Requerente à locução “por cautela de patrocínio e sem conceder” (n.º 28 da contestação) que é expressiva de uma relação de subsidiariedade quanto ao conhecimento dos vícios invocados, cabe aqui respeitar, por força da primeira parte da al. b) do n.º 2 do citado art. 124.º do CPPT, e na medida em que isso não seja afetado pela própria lógica ou substância dos termos da apreciação da questão, a ordenação estabelecida pela Requerente (vd. supra n.ºs 4 e 14), pois, como se escreveu no acórdão do STA de 18.6.2014, proc. n.º 01942/13, “sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida”.

 

a) Violação do princípio da decisão

 

17. Principie-se, pois, pelo exame do vício imputado ao próprio ato de indeferimento da reclamação graciosa de violação do princípio da decisão.

Segundo a Requerente, como, nos termos do artigo 56.º da Lei Geral Tributária (LGT), a AT está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência designadamente dos que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, ao “decidir como decidiu, pelo indeferimento total da reclamação apresentada, a AT incorreu no vício de omissão de pronúncia quanto à: a) Argumentação apresentada pela Requerente assente na jurisprudência [do TJUE, mormente no Acordão Lubbock Fine & Co.]: não se pode tomar como pronúncia a mera transcrição de uma posição administrativa naturalmente genérica, sobretudo por não atender às especificidades da situação em causa: cessão de posição pelo locatário no quadro de uma locação financeira imobiliária isenta de IVA; b) Ausência de suporte legal para considerar como valor tributável dessa cessão, admitindo, por absurdo, que a mesma seria incidente de IVA, o VPT do imóvel” (n.ºs 7 a 12 da PI; cfr. igualmente n.ºs 6 a 11 das alegações).

 

18. Nos termos do n.º 1 do art. 56.º da LGT, “A administração tributária está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, recursos, representações, exposições, queixas ou quaisquer outros meios previstos na lei pelos sujeitos passivos ou quem tiver interesse legítimo”.

Esse dever de pronúncia, por estar em causa uma reclamação graciosa (cfr. facto provado VIII), procedimento de iniciativa particular que visa a anulação total ou parcial dos atos tributários (art. 68.º, n.º 1 do CPPT), consubstancia-se num dever de decisão (cfr. arts. 73.º, n.º 2 e 75.º, n.º 1 da LGT) da pretensão anulatória formulada pelo reclamante, decisão essa que pode consistir num indeferimento ou num diferimento, total ou parcial (cfr. art. 76.º, n.º 1 do CPPT). Como se observa no recente acórdão do TCA Sul de 13.12.2019, proc. n.º 385/19.5BELLE: “O dever de pronúncia traduz-se numa vinculação da Administração a tomar posição em resposta a qualquer petição apresentada pelo sujeito passivo no procedimento tributário, e bem assim num verdadeiro dever de decisão procedimental. Com efeito, resulta do citado normativo que o dever de pronúncia se torna num dever de decisão nas situações em que o assunto apresentado se torna uma questão a resolver através de um ato administrativo, desde que não se verifique nenhuma das situações contempladas no (...) nº 2”.

 

19. Pois bem, a questão a resolver a que respeita este dever legal de decisão em sede da reclamação graciosa deduzida, ou seja, a questão especificamente colocada à Administração Tributária que lhe incumbia decidir, foi, no caso, o pedido concretamente formulado naquela reclamação de “anulação das liquidações de IVA, juros compensatórios e juros de mora efetuadas” pelos fundamentos de facto e de direito alegados (cfr. facto provado n.º VIII), os quais não se confundem com os meros argumentos ou considerandos aduzidos em sustentação do peticionado.

 

20. Ora, o exame da informação em que se sustenta o indeferimento da reclamação graciosa (vd. facto provado n.º X) revela que foram analisadas as questões suscitadas pela Requerente, embora não no sentido por esta pretendido, quanto à aplicação de IVA e ao respetivo valor tributável à operação de cessão da posição contratual em contrato de locação financeira que foi realizada, dado que i) se afastou a sua qualificação como renúncia a posição de locatária e, logicamente, a pertinência direta do acórdão Lubbock Fine & Co. (“O que sucedeu, no caso, é que a reclamante cedeu a sua posição de locatária, e se a cedeu obviamente que não chegou a haver a dita anulação ou rescisão, conforme defende”; “Se houvesse tão só uma rescisão do contrato, em que a força negocial da reclamante, enquanto locatária, se perdesse totalmente, a cessão não se poderia ter realizado nunca. Veja-se, desde logo, que foi a reclamante que escolheu a entidade a quem cedeu a sua posição, o que contraria a tese que preconiza na sua petição” – cfr. o referido facto provado n.º X), e ii) se considerou que o VPT do imóvel à data da cessão deveria ser o valor tributável por força do art. 16.º, n.º 4 do CIVA (“Estando em causa um direito de natureza obrigacional e de conteúdo económico, que se traduz na transferência do direito de adquirir o imóvel, uma vez pagas as rendas, o "valor normal" não pode deixar de estar associado ao próprio valor do imóvel à data em que o direito à sua aquisição mudou da reclamante, cedente, para a cessionária”; “Esse valor não podia deixar de ser o VPT do imóvel à data da cessão” – cfr. o referido facto provado n.º X).

 

21. Assim, tendo em consideração que foi prolatada decisão de indeferimento expresso “do pedido do reclamante nos termos e com os fundamentos propostos” (vd. facto provado n.º X), está fácil de ver, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, que não ocorreu qualquer violação do princípio da decisão consagrado no art. 56.º da LGT, porquanto, precisamente, foi indeferida, com exame dos fundamentos alegados, a pretensão anulatória das liquidações reclamadas formulada pela Requerente, o que vale por dizer que não se descortina uma recusa de apreciação administrativa consubstanciadora de omissão juridicamente relevante.

 

22. Improcede, pois, o vício imputado ao ato de indeferimento da reclamação graciosa de violação do princípio da decisão objeto do art. 56.º, n.º 1 da LGT.

 

b) Violação do princípio do inquisitório

 

23. No que concerne à violação do princípio do inquisitório, também imputada especificamente à decisão de indeferimento da reclamação graciosa (vd. supra n.ºs 4 e 14), sustenta a Requerente que, mesmo que “por absurdo se consinta na incidência de IVA sobre a presente cessão, sempre caberia à AT o dever de realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, nos termos do artigo 58º da LGT”, pelo que: “Haveria (...) que diligenciar sobre qual seria o "valor normal” da prestação de serviços, padecendo de erro grosseiro as considerações que fez em torno de que esse valor só poderia ser o VPT do imóvel objeto de locação financeira”, o que implica “o vício de violação de lei (artigo 58° da LGT) na decisão de indeferimento da reclamação graciosa” (n.ºs 13 a 15 da PI e 12 e 13 das alegações).

 

24. Determina o art. 58.º da LGT, subordinado à epígrafe “Princípio do inquisitório”, o seguinte: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. Por força deste princípio, a Administração Tributária deve desenvolver, sem subordinação à iniciativa do sujeito passivo, todas as diligências relevantes para a averiguação da realidade factual que é pertinente para a decisão administrativa em atenção às normas tributárias aplicáveis e à realização do interesse público em consideração.

 

25. Em decorrência do princípio do inquisitório, deve, em particular, a Administração Tributária recolher e considerar as provas que lhe sejam apresentadas ou solicitadas pelos interessados quando as mesmas apresentem um mínimo de pertinência em atenção à factualidade relevante. Deve, no entanto, ter-se por excluído que, em atenção ao princípio do inquisitório, caiba à AT proceder oficiosamente a diligências instrutórias não requeridas que não assumem, em termos conjeturáveis, relevância para a decisão procedimental. Para além disso, como se nota no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.02.2013, proc. n.º 01764/08.9BEPRT, do “princípio do inquisitório não resulta que a administração tributária tem o dever de ir tão longe quanto possível na instrução do procedimento e esgotar as diligências cuja relevância não possa ser a priori excluída” pois “a demanda pela completude instrutória implicaria um esforço moroso, oneroso, concentrado e desproporcionado, submetendo os contribuintes visados a um calvário sem fim de investigações e impedindo a alocação de recursos a outros contribuintes nas mesmas circunstâncias, o que acabaria por comprometer a eficiência da ação inspetiva, mas também introduzir desequilíbrios acentuados no tratamento dispensado a uns e a outros. Para além do mais, seria sempre um objetivo irrealizável: seria sempre possível idealizar mais alguma coisa que poderia ser feita para despistar erros na leitura ou avaliação dos factos”.

 

26. Noutra vertente, cabe sublinhar que as diligências instrutórias exigíveis por força do princípio do inquisitório previsto no art. 58.º da LGT respeitam, evidentemente, a acontecimentos ou factos concretos, portanto, a asserções sobre a realidade material, não compreendendo conceitos jurídicos, proposições normativas ou juízos de feição valorativa ou conclusiva – são alheias, na verdade, ao apuramento da situação de facto e à descoberta da verdade material a que se dirige o princípio do inquisitório as apreciações e ponderações de direito, as valorações na interpretação e aplicação do direito, bem como as afirmações de teor genérico ou conclusivo.

 

27. Tendo estes pressupostos em enquadramento, importa, para efeitos da verificação do cumprimento do princípio do inquisitório na situação sub judice, considerar o próprio teor da reclamação graciosa e os elementos nele invocados, pois, para citar novamente o acórdão do TCA Norte de 15.2.2013, “[a] iniciativa da reclamação graciosa (...) cabe ao contribuinte, pelo que o objeto necessário do procedimento é condicionado pelo pedido formulado nos requerimentos respetivos e pelos seus fundamentos, como decorre do artigo 56.º da Lei Geral Tributária”, o que envolve que o dever de realizar diligências instrutórias não se pode deslaçar do pedido formulado pelo contribuinte.

 

28. Ora, conforme se retira da descrição constante do ponto n.º VIII dos factos provados, no que concerne ao “valor normal” do serviço, a propósito do qual a Requerente invoca omissão de diligências por parte da AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa (vd. supra n.º 23), é manifesto que, em termos globais, a Requerente se limita a discutir a interpretação e aplicação ao caso do disposto no artigo 16.º do CIVA, sem serem apresentadas quaisquer provas ou requeridas quaisquer diligências instrutórias para apuramento da verdade material, cabendo, a este propósito, não obnubilar que o princípio do inquisitório deve operar em articulação com o princípio da colaboração e cooperação consagrado no art. 59.º, n.º 1 da LGT.

 

29. O único elemento em que se poderia descortinar uma incidência fáctica, e a propósito do qual a Requerente aponta, na sua reclamação, a ausência de “esforço de descoberta material”, respeita aos “custos que a ora Reclamante tivesse suportado com a negociação da cessão da posição contratual que é o serviço para o qual caberia encontrar o respetivo valor tributável” (n.º 42 da reclamação), o que, porém, é logo anulado ou desatendido pela própria Requerente, dado que esta imediatamente adita que “não há qualquer evidência destes custos, porque tenderão a ser imateriais no sentido em que representaram tempo de contatos, reuniões, negociações, etc., tendentes ao fecho do contrato, pelo que esta regra não seria suscetível de aplicação ao caso por redundar inevitavelmente num valor nulo” (n.º 43 da reclamação), assim rejeitando o desenvolvimento de qualquer atividade instrutória neste âmbito.

 

30. Pelo seu lado, na perspetiva da AT, atenta a posição interpretativa adotada (cfr. facto provado n.º X) de que o “valor normal” do serviço corresponde ao valor patrimonial tributário (posição esta cuja correção ou incorreção é assunto que releva da questão, abaixo examinada, do erro sobre os pressupostos de facto e de direito das liquidações impugnadas), em termos de diligências instrutórias foi realizada aquela que se mostrava indispensável: a consulta da aplicação “Avaliação - Ficha de avaliação” e da caderneta predial urbana, conforme Anexo IV ao RIT, para verificação de que o VPT do imóvel em 2014 era de €35.190,00 (cfr. facto provado n.º VI).

 

31. Deste modo, por não se mostrarem consubstanciadas quaisquer diligências probatórias omitidas relevantes para a decisão procedimental, impõe-se julgar que não se mostra violado pelo ato de indeferimento sindicado o princípio do inquisitório inscrito no art. 58.º da LGT.

 

c) Erro de facto e de direito

 

32. Apreciem-se, agora, os vícios que são imputados não apenas ao ato de indeferimento da reclamação graciosa, mas igualmente às próprias liquidações tributárias objeto da reclamação graciosa (cfr. facto provado n.º VII), cumprindo, aliás, recordar que uma impugnação contenciosa instaurada na sequência e por causa do indeferimento expresso de uma reclamação graciosa tem por objeto imediato esse mesmo indeferimento e por objeto mediato o ato de liquidação cuja anulação é visada a final (vd., por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16.11.2011, proc. n.º 0723/11 e de 12.10.2016, proc. n.º 0427/16).

 

33. No que concerne às próprias liquidações impugnadas que a decisão da reclamação graciosa manteve, são dois os pontos essenciais invocados na impugnação da Requerente para fundar a sua ilegalidade (n.ºs 16 e seguintes da PI e n.ºs 15 e seguintes das alegações):

a) não se discutindo, face ao conceito de prestação de serviços plasmado no Código do IVA, que a cessão da posição contratual é uma operação sujeita a IVA, deve, todavia, considerar-se, no caso concreto, que estando em causa uma locação financeira isenta de IVA nos termos do art. 9.º, n.º 29 do CIVA, a cessão da posição contratual nessa locação beneficiará ainda dessa isenção prevista no artigo 9º, nº 29, do CIVA, como se conclui da jurisprudência do Tribunal de Justiça no acórdão Lubbock Fine & Co., datado de 15.12.1993, dado que a cessão da posição contratual se equipara, como alteração do contrato de locação, a uma renúncia ao arrendamento;

b) verifica-se erro na determinação do valor tributável, pois, assentando o RIT na aplicação do n.º 1 do art. 4.º do CIVA, a determinação da base tributável resulta do n.º 1 do art. 16.º do mesmo CIVA, pelo que, sendo o valor da contraprestação nulo, isso redunda no apuramento de um valor de imposto igualmente nulo; e mesmo que “se aceitasse que poderiam ser aplicados ao caso as regras de determinação do valor tributável plasmadas nos nºs 2 ou 10 do citado artigo 16° do Código IVA, sempre se concluiria que esse valor não poderia ser em circunstância alguma o VPT do imóvel objeto de locação”, o mesmo sucedendo se se admitisse a aplicação ao caso das regras do n.º 4 do art. 16.º do CIVA, pois o “preço que aqui está em causa é o preço da cessão do direito que, em condições normais, seria pago por um serviço similar”, sendo que “considerar "serviço similar" o valor patrimonial do imóvel que é um montante cotejado, no plano dos impostos sobre o património e sobre o rendimento, com o preço da transação do imóvel para aferir da razoabilidade do preço dessa transação só por erro grosseiro de interpretação da norma poderia ser admitido”.

 

34. Está, assim, em julgamento neste âmbito o enquadramento em termos de IVA da operação negocial de cessão da posição contratual do locatário no contrato de locação financeira imobiliária que foi realizada nos termos descritos no ponto n.º III dos factos provados.

 

35. No que concerne à qualificação para efeitos de IVA da operação de cessão da posição contratual do locatário em contrato de locação imobiliária como prestação de serviços não existe dissídio entre as partes, não se questionando, pois, nos autos este enquadramento – fundadamente, já que como, de acordo com o n.º 1 do art. 3.º do CIVA, “Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade” e, de acordo com o n.º 1 do art. 4.º do mesmo CIVA, “São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens”, a cessão da posição contratual do locatário – que se analisa na transmissão do complexo de direitos e obrigações e das demais situações ativas e passivas,  que decorrem para essa parte da relação contratual estabelecida com o locador, operando a sua substituição no contrato base, que passa a vigorar e a operar os seus efeitos entre a cedida e a cessionária (cfr arts. 424.º e seguintes do Código Civil) – não se reconduz a uma transmissão da propriedade de um bem corpóreo, que permanece na titularidade da entidade locadora, pelo que se subsume ao conceito residual de prestação de serviços para efeitos de IVA, em conformidade com os arts. 4.º, n.º 1, e 1.º, n.º 1, al. a) do CIVA.

 

36. Já se verifica divergência entre as partes sobre se esta operação de cessão da posição contratual, embora sujeita à incidência do imposto, se pode considerar isenta de IVA nos termos do art. 9.º, n.º 29 do CIVA, respeitante à “locação de bens imóveis”, portanto, ao “acordo pelo qual o proprietário de um imóvel cede ao locatário, contra uma renda e por um prazo convencionado, o direito de ocupar o seu bem e de dele excluir outras pessoas” (para recorrer à caracterização, de acordo com o Direito da União, fixada pelo Tribunal de Justiça, por exemplo, nos acórdãos de 9.10.2001, Mirror Group, C‑409/98, n.º 31, de 8.5.2003, Seeling, C‑269/00, n.º 49 e de 12.6.2003, Sinclair Collis, C‑275/01, n.º 25).

 

37. Sustenta, como se viu, a Requerente, com base no acórdão do Tribunal de Justiça de 15.12.1997, Lubbock Fine & Co., C-63/92, n.ºs 9 e 10, que reconheceu que a isenção da locação de imóveis abrange “uma modificação desse contrato, como uma revogação mediante compensação” e que “o facto de um locatário, que renuncia ao arrendamento, colocar o bem imóvel à disposição de quem lhe cedeu os direitos se inclui no conceito de «locação de bens imóveis», utilizado pelo artigo 13.°, parte B, alínea b), da Sexta Diretiva para descrever uma operação isenta”, que a mesma solução deve valer para a cessão da posição contratual do locatário em contrato de locação imobiliária.

 

38. Sem razão, porém, porquanto, no seu acórdão posterior de 9.10.2001, Cantor Fitzgerald International, C-108/99, n.ºs 21 a 24, o Tribunal de Justiça esclareceu que a cessão do contrato de arrendamento feita pelo anterior locatário a um novo locatário não beneficia da isenção da locação de imóveis, sendo, assim, este o precedente jurisprudencial a convocar para a situação dos autos, na qual não se depara com uma prestação entre o proprietário e o locatário, em que um atribui ao outro, seja por qual forma for, o direito de gozo de um imóvel, mas sim com a cessão da posição contratual do locatário cedente a novo locatário cessionário (cfr. facto provado n.º III).

 

39. Com efeito, este acórdão Cantor Fitzgerald afastou inteiramente a ideia de que a isenção da locação de bens imóveis compreende não apenas a locação original do bem imóvel, mas todas e quaisquer operações posteriores ou acessórias baseadas nessa locação, como sejam modificações subjetivas no contrato – como se refere no n.º 24 deste acórdão: “o artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Diretiva aplica-se ao arrendamento de imóveis, mas não a operações que nele apenas se baseiam ou que lhe são acessórias, sem que sejam efetuadas pelo próprio proprietário”.

 

40. Aliás, o Tribunal de Justiça explicitou bem os termos da exata aplicação da orientação fixada no acórdão Lubbock Fine: “o acórdão Lubbock Fine foi proferido a respeito de um locatário que tinha colocado o bem imóvel arrendado à disposição do proprietário e, em consequência, no plano fiscal, tinha retrocedido o direito de o ocupar, renunciando a esse direito. Foi por essa razão que o Tribunal de Justiça julgou, nos n.ºs 9 e 12 do referido acórdão, que a renúncia do locatário à prestação de serviços efectuada pelo proprietário, que representa uma alteração do contrato de locação, deve ficar isenta quando a própria prestação estiver também ela isenta” (vd. n.º 34 do referido acórdão Mirror Group e n.º 28 do referido acórdão Cantor Fitzgerald).

 

41. Precisamente, na situação dos autos, em que foi dada sem efeito a resolução por incumprimento contratual com a repristinação dos efeitos do Contrato de Locação Financeira e se celebrou, consequentemente, a cessão da posição contratual de locatária da Requerente a favor da cessionária C..., Lda (facto provado n.º III), cessão esta que constitui a operação tributável aqui em juízo, é manifesto que a Requerente como cedente não renunciou ao direito de ocupar o imóvel em benefício do proprietário, mas antes cedeu a sua posição contratual a um novo locatário.

 

42. Há, pois, que aplicar in casu a orientação estabelecida pelo Tribunal de Justiça no acórdão Cantor Fitzgerald de que a cessão do contrato de arrendamento feita pelo anterior locatário a um novo locatário não beneficia da isenção relativa à “locação de bens imóveis” prevista atualmente no art. 135.º, n.º 1, al. l) da Diretiva IVA e consagrada internamente no art 9.º, n.º 29 do CIVA, pelo que improcede o vício de violação de lei a este respeito suscitado pela Requerente.

 

43. Isto posto, pode-se imediatamente afirmar que não se revela necessário, como pretendido pela Requerente, a formulação de reenvio prejudicial, já que, em face da orientação jurisprudencial estabelecida no referido acórdão Cantor Fitzgerald, estamos perante o circunstancialismo em que já existe jurisprudência europeia na matéria, cuja aplicação ao caso concreto não suscita nenhuma dúvida real (acórdão do Tribunal de Justiça de 6.10.1982, Cilfit, 283/81, n.ºs 13 e 14), razão pela qual se procedeu, nos termos acima expostos, à sua concretização na  situação factual sub judice.

 

44. Constituindo a operação de cessão da posição contratual em apreço uma prestação de serviços, nos termos do n.º 1 do art. 4.º do CIVA, sujeita e não isenta de IVA, o valor tributável é determinado pela contraprestação obtida ou a obter, caso exista, nos termos do n.º 1 do art. 16.º do CIVA (“Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”), ou se a operação for realizada a título gratuito, conforme previsto na al. b) do n.º 2 do art. 4.º do CIVA (“Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso: b) As prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma”), é apurado por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, que estabelece que: “Para as operações referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º, o valor normal do serviço, definido no n.º 4 do presente artigo”.

 

45. Pois bem, o outro vício de violação de lei imputado aos atos impugnados (vd. supra n.º 33) prende-se com a determinação do valor tributável que, como resulta do RIT e da fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa (vd. factos provados n.ºs VI e X), a AT reputou ser o VPT do imóvel locado com base no disposto no art. 16.º, n.º 4 do CIVA, o que a Requerente alega carecer de sustentação legal, primus, porque a lei estabelece, no n.º 1 do art. 16.º do CIVA, que o valor tributável é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, secundus, porque mesmo a aplicação do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA não permite concluir que o valor de mercado do serviço em causa corresponde ao valor patrimonial tributário do imóvel.

 

46. A este respeito, principie-se por dizer que, em face dos factos dados como provados (vd. n.º III), tem que se excluir a relevância, para efeitos da determinação do valor tributável da operação de cessão da posição contratual em apreço, da disposição geral do n.º 1 do art. 16.º do CIVA, pela qual, como se observou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.09.2018, proc. n.º 0570/17, o valor tributável é “o valor estabelecido entre as partes, pago ou a pagar pelo adquirente da posição de locatário no contrato de locação financeira, na cedência de posição no contrato”.

 

47. É que, conforme consta da cláusula sexta do contrato celebrado, cedente e cessionário declararam expressamente “que não é devida qualquer contrapartida pela cessão da posição contratual ora acordada”, o que significa que não foi convencionada entre as partes qualquer contraprestação obtida ou a obter do adquirente, estando, ab ovo, fora de cogitação ultrapassar esta realidade, como intenta a Requerente, com formulações de cariz meramente lexical como seja que o “valor da contraprestação [é] nulo”, o que redundaria “no apuramento de um valor de imposto igualmente nulo”.

 

48. Nesta sequência, na ausência, para além do descrito no facto provado n.º III, de quaisquer outros elementos, que não são alegados nem se observam nos autos, a operação de cessão da posição contratual de locatário sub judice, efetivada gratuitamente a favor da cessionária, por não envolver qualquer contrapartida nem se destinar a qualquer fim comercial ou de realização do objeto social da empresa, enquadra-se no disposto na al. b) do n.º 2 do art. 4.º do CIVA, segundo a qual são consideradas prestações de serviços a título oneroso as prestações de serviços a título gratuito efetuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma, consubstanciando-se, assim, um caso do denominado autoconsumo externo de prestações de serviços, do que decorre, por força da citada al. c) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, que o valor tributável é “o valor normal do serviço”, definido no n.º 4 do mesmo art. 16.º do CIVA.

 

49.  O art. 16.º, n.º 4 do CIVA, que é, assim, decisivo para a determinação do “valor normal do serviço”, prevê o seguinte:

 “Para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, entende-se por valor normal de um bem ou serviço:

a) O preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar;

b) Na falta de bem similar, o valor normal não pode ser inferior ao preço de aquisição do bem ou, na sua falta, ao preço de custo, reportados ao momento em que a transmissão de bens se realiza;

c) Na falta de serviço similar, o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços”.

 

50. Nestes termos, deixando de lado os segmentos normativos que apenas valem para a transmissão de bens (como sucede, desde logo, com a al. b) do referido n.º 4 do art. 16.º), o valor normal do serviço corresponde, em termos gerais, ao preço que um destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar ou então, em última análise, na falta de serviço similar, ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.

 

51. Pois bem, e tendo em consideração que a sindicância da legalidade do ato impugnado se tem que desenvolver em função da fundamentação exposta para o mesmo, cabe notar que no RIT (facto provado n.º VI) a fixação como valor tributável do VPT do imóvel resulta de o VPT ser considerado como “valor de mercado”, o que é acompanhado em sede de decisão de indeferimento da reclamação graciosa (vd. facto provado n.º XI) pela consideração de que “o "valor normal" não pode deixar de estar associado ao próprio valor do imóvel à data em que o direito à sua aquisição mudou da reclamante, cedente, para a cessionária” e “[e]sse valor não podia deixar de ser o VPT do imóvel à data da cessão - 35.190,00€ (...) por ser o único que se conhecia que, de forma mais fidedigna e rigorosa, podia representar, nessa data, o valor que o mercado atribui ao bem”.

 

52. Há que constatar que este entendimento não se adequa ao que resulta do n.º 4 do art. 16.º do CIVA, pelo que cumpre reconhecer que padece de erro sobre os pressupostos a determinação do valor tributável da operação de cessão da posição contratual de locatário sub judice que foi operada pelos atos de liquidação sindicados e mantida pela decisão de indeferimento da reclamação.

 

53. Na verdade, o que a al. a) do n.º 4 do art. 16.º do CIVA, em que a AT  enquadrou a cessão da posição contratual em causa, impõe considerar como “valor normal do serviço” é, como se viu, o preço que um destinatário, em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar.

 

54. Ora, o “serviço” (para efeitos do IVA) aqui em jogo é a própria cessão da posição contratual de locatário, portanto a cedência da situação negocial complexa de que era titular o cedente no contrato de locação financeira imobiliária, cujo valor económico suscetível de ser encarado como um bem é a “síntese das vantagens e sacrifícios económicos que o contrato encerra” (MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, Coimbra, 1982, p. 397).

 

55. Assim, o que assoma, em termos jurídico-económicos, na cessão da posição contratual em juízo não é a direta transmissão do imóvel, que permanece, como já se disse, na titularidade da entidade locadora, mas sim o complexo de direitos e obrigações associado à posição de locatário no contrato de locação financeira, no qual se destaca, é certo, o direito de adquirir o imóvel no termo do contrato pelo valor residual estabelecido, mas uma vez pagas as prestações convencionadas reportadas ao momento da transmissão da posição contratual e cumpridos os demais deveres contratuais fixados (como, aliás, o reconhece a AT, ao declarar em sede de decisão de indeferimento da reclamação – cfr. facto provado n.º X – que está em causa “um direito de natureza obrigacional e de conteúdo económico, que se traduz na transferência do direito de adquirir o imóvel, uma vez pagas as rendas”), o que implica, desde logo, ter em consideração, para a valoração exigida, fatores como o montante do capital em dívida à data da cessão.

 

56. Por isso, o “valor normal do serviço” tido como o preço que um destinatário, em condições normais de concorrência, teria de pagar a um prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o serviço ou um serviço similar, relativamente a uma operação de cessão da posição contratual como a realizada nos termos descritos no n.º III do probatório, não pode equivaler, sem mais, ao VPT do imóvel locado com a mera consideração de que é esse o valor de mercado “por ser o único que se conhecia que, de forma mais fidedigna e rigorosa, podia representar, nessa data, o valor que o mercado atribui ao bem”, o que confunde indevidamente, dado o disposto no art. 16.º, n.º 4, al. a) do CIVA, quanto ao  “valor normal do serviço”, o VPT do imóvel com o valor da posição contratual de locatário na locação financeira.

 

57. Dado que o Tribunal, na formulação do juízo de legalidade dos atos sindicados tem que atender, sem mais, aos termos como eles ocorreram, apreciando essa legalidade em função da respetiva fundamentação contextual, procede, pois, neste âmbito, o erro na determinação do valor tributável em IVA da operação em juízo de cessão da posição contratual da Requerente no contrato de locação financeira (facto provado n.º III), o que implica que as liquidações impugnadas, e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que as manteve, padecem de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por aplicação indevida do art. 16.º, n.º 4 do CIVA, o que implica a sua anulação em conformidade com o art. 163.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do artigo 2.º, alínea c), da LGT, o que se decide.

 

VI. Decisão

 

Termos em que se decide:

a) julgar procedente o pedido objeto da presente pronúncia arbitral e, em consequência, anular as liquidações de IVA com os n.ºs 2018... e 2018...) respeitantes aos períodos 201409T e 201412T, nos valores de €6.443,59 e de €1.573,10, e as liquidações de juros compensatórios n.º 2018... no valor de €866,44 e de juros de mora n.º 2018... no valor de €256,88, daquelas consequentes, bem como o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., que as manteve;

b) condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VII. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €9.140,01, que constitui o montante das liquidações impugnadas.

 

VIII. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência do pedido de pronúncia arbitral objeto dos presentes autos.

 

 Notifique-se.

 

 Lisboa, 23 de março de 2020.

 

O Árbitro

(João Menezes Leitão)