Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 452/2019-T
Data da decisão: 2020-03-04  IRC  
Valor do pedido: € 199.014,17
Tema: IRC/2012 – Divergências na determinação da matéria coletável; IRC – Mais-valias e menos-valias; Dedutibilidade; Mensuração de acordo com o justo valor.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Profª Doutora Regina de Almeida Monteiro e Dr. Júlio César Nunes Tormenta (árbitros vogais) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25-09-2018, acordam no seguinte:

 

1.            Relatório

A sociedade comercial A... SGPS, S.A., (doravante designada por Requerente), pessoa coletiva n.º ..., com sede na ..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de

dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração da ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa relativa à autoliquidação de IRC relativa ao ano de 2012, cujo despacho foi notificada à requerente em 13 de abril de 2019 e a declaração da ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC do exercício de 2012, no que respeita ao montante de € 199.014,17, e o reembolso daquela quantia acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 1 de setembro de 2013, até integral reembolso.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 08-07-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29-08-2019, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 18-09-2019.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando a questão da incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido de pronúncia arbitral por ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa e esta não ter sido precedida de reclamação graciosa defendendo a improcedência dos pedidos supra.

Por despacho de 28-10-2019 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.

 

Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes em tempo, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

2.            Exceção da incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa

Importa apreciar prioritariamente a questão de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

Na sua Resposta a Autoridade Tributária defende a incompetência material do presente Tribunal Arbitral formado sob a égide do CAAD para apreciar e decidir os pedidos formulados pela Requerente. A Autoridade Tributária defende que “a competência dos tribunais arbitrais encontra-se circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, bem como da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ex vi artigo 4.º do RJAT, pelos termos em que a Administração Tributaria se vinculou àquela jurisdição.

Acresce que, a vinculação da AT à tutela arbitral pressupõe uma limitação das situações em que esta pode plenamente decidir se deve ou não interpor recurso de uma decisão judicial

desfavorável, ou seja, do poder de optar entre abdicar definitivamente da cobrança do crédito.

Pelo que, salvo melhor opinião, é constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP), no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, uma interpretação que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente.”

 

E mais defendem que “porquanto, tal interpretação implicará a dilatação das situações em que a AT obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno (cf. artigo 124.º, n.º 4, alínea h) da Lei n.º 3-B/2010 e artigos 25.º e 27.º do RJAT, que impõe uma restrição dos recursos da decisão arbitral).

O respeito pela vontade exteriorizada na vinculação à arbitragem em matéria tributária, sendo um factor de certeza e de segurança jurídica representa, também, a efectivação das consequências intencionadas pelo exercício de acção das partes em litígio, a qual não pode ser isolada dos referidos normativos de protecção constitucional, sob pena de tal pressupor um poder (inconstitucional) do intérprete-julgador na delimitação dos poderes do Estado na privatização do exercício da justiça, mormente quando não se admite a possibilidade sistemática de recurso nas arbitragens tributárias. Pelo que, se afigurará inconstitucional uma interpretação que determine que o artigo 2.º do RJAT inclui a apreciação do pedido arbitral aqui formulado pela requerente, quando a letra e o espírito da norma não o permitem.”

 

E continuam defendendo que: “Assim, da simples leitura do art. 2.º, al. a) da Portaria no 112/2011, de 22/03 resulta que a via arbitral para a apreciação do litígio só pode ser aberta, em casos de autoliquidação, após a prévia apresentação de reclamação graciosa, o que não se verifica nos presentes autos, onde se pretende a apreciação de um pedido de revisão oficiosa.” E a AT conclui: “verifica-se a existência de uma excepção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido, e, por isso, deve determinar a absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.”

Ora estes argumentos defendidos pela AT, como consubstanciando uma exceção dilatória respeitante à incompetência material do presente Tribunal neste concreto processo arbitral, já foram analisados e rebatidos pelo Tribunal Constitucional (TC) e em inúmeros Acórdãos do CAAD ao longo dos últimos anos bem assim como em Acórdãos da jurisdição Administrativa e Fiscal que mencionaremos infra.

 

Entendemos que antes de mais não podemos deixar de mencionar o recente Acórdão do TC com n.º 244/2018, de 11 de maio de 2018 proferido no Proc. 636/2017 que julga constitucional a norma do a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, supra mencionada, quando afirma:  “não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2º, da Portaria n.º 112- A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”.

 

Não pode assim, a AT pretender retirar das normas mencionadas, a inconstitucionalidade desta norma, e assim argumentar que “ (…) porquanto, tal interpretação implicará a dilatação das situações em que a AT obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno (cf. artigo 124.º, n.º 4, alínea h) da Lei n.º 3-B/2010 e artigos 25.º e 27.º do RJAT, que impõe uma restrição dos recursos da decisão arbitral).”

 

A verdade é que a AT através da mencionada Portaria, vinculou-se às situações nela abrangidas e que agora pretende desconsiderar as decisões arbitrais com uma clara indicação de preferência pelo recurso jurisdicional pleno e considerar como uma restrição dos recursos da decisão arbitral. E, estas afirmações além de não corresponder às normas legais, e não respeitar a igualdade que no nosso sistema jurídico está atribuído à jurisdição administrativa-fiscal e à do CAAD, vão no sentido de desconsiderar este Tribunal, quando já há um recente pronunciamento sobre esta matéria pelo TC sobre os mesmos argumentos usados pela AT.

 

Este Acórdão do TC pronuncia-se assim pela constitucionalidade da norma constante da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março,  que foi emitida ao abrigo do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária (RJAT), e estabelece a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos e que no seu artigo 2.º determina a vinculação dos serviços e organismos identificados na Portaria “ (…)  à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro”.

 

Neste Acórdão o TC, refere que “ (…) o mesmo preceito elenca, de seguida, um conjunto de exceções a esta regra – ou seja, de situações excluídas do âmbito de jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. A exceção constante da alínea a) abrange as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Note-se, portanto, que a exceção é formulada de forma negativa, excluindo estas pretensões da jurisdição arbitral apenas quando não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa. Assim interpretado o preceito, verifica-se que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD terão jurisdição sobre pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, a norma objecto do pedido de fiscalização é a que resulta da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, no sentido de considerar os casos em que ocorreu um «pedido de revisão oficiosa» equivalentes aos pedidos «precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.”

 

E mais afirma o referido Acórdão do TC: “A Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, foi emitida ao abrigo do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária (RJAT), e estabelece a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos. O seu artigo 2.º determina a vinculação dos serviços e organismos identificados na Portaria «à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro». O mesmo preceito elenca, de seguida, um conjunto de exceções a esta regra – ou seja, de situações excluídas do âmbito de jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. A exceção constante da alínea a) abrange as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário». Note-se, portanto, que a exceção é formulada de forma negativa, excluindo estas pretensões da jurisdição arbitral apenas quando não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa. Assim interpretado o preceito, verifica-se que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD terão jurisdição sobre pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

O recorrente pretende que se julgue a conformidade constitucional do artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, na “interpretação normativa segundo a qual nas “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” se inclui o pedido de revisão oficiosa» - o que, interpretado literalmente, poderia significar que a sua oposição incidia sobre a inclusão do pedido de revisão oficiosa na excepção à jurisdição arbitral. Ora, analisado o pedido na sua integralidade, conclui-se que toda a sua argumentação se baseia na defesa da inconstitucionalidade da norma de sentido contrário, que integra no âmbito da jurisdição arbitral os litígios em que a impugnação da autoliquidação é precedida de um pedido de revisão oficiosa, ao abrigo da parte final da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011.”

 

E a AT no presente Processo Arbitral usa os mesmos argumentos sobre os quais o TC  se pronunciou nesse mencionado Acórdão nos seguintes termos: “A recorrente invoca que a referida interpretação violava os “princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação de poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade (cfr. 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo 266.º, n.º 2, da CRP, no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2, da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT).» (cfr. n.º 3 do requerimento de recurso, fls. 148 e verso). Os argumentos apresentados pela recorrente para sustentar esta inconstitucionalidade são de dois tipos. Por um lado, alega a recorrente que «dos diversos elementos de interpretação (literal, sistemático e histórico) não se alcança outra solução normativa para a situação sub judice que não seja a de que a AT apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido da declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação graciosa» (cfr. conclusão 8.ª das alegações de recurso, fls. 175). Argumenta que «a letra e o espírito» do preceito delimitam a jurisdição do CAAD a casos em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», não permitindo a interpretação feita pois tal norma «está outrossim construída sob a necessária identidade dos mecanismos processuais aí especificamente elencados» (cfr. n.º 2 do requerimento de recurso, fls. 148, e n.º 11 das alegações de recurso, fls. 168). A recorrente entende que esta interpretação «para alargar o âmbito de sujeição da AT a uma opção do sujeito passivo (…) que o legislador pretendeu que fosse (…) delimitada por vontade da própria AT, numa clara reserva de administração em matéria de autovinculação» levaria o «intérprete-julgador [a fazer] tábua rasa da distinção provida pelo legislador», pondo em causa a «certeza e (…) segurança jurídicas» e pressupondo «um poder (inconstitucional) do intérprete-julgador na delimitação dos poderes do Estado na privatização do exercício da justiça» (cfr. conclusões 17.ª, 18.ª e 19.ª das alegações de recurso da recorrente, fls. 176) Ou seja, numa primeira linha de argumentação, coloca-se em causa a constitucionalidade da norma com base na falta de legitimidade constitucional da interpretação do preceito da Portaria em causa, alegando a recorrente que a interpretação efetuada não é permitida nem pela letra nem pelo espírito do artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011 (cfr. conclusão 8.ª das alegações de recurso da recorrente, fls. 175). Ora, como é referido na decisão a quo, «ao contrário do que alega a Impugnante não se trata de ampliar a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, mas antes de interpretar uma norma da portaria que exclui essa vinculação», pelo que «não se verificando uma exclusão expressa, não se poderá dizer que estamos perante uma ampliação da vinculação, mas tão-somente perante interpretação de norma de exclusão de vinculação (…)» (cfr. p. 36 do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27 de Abril de 2017, fls. 136).

 

E o TC, continua afirmando: “Neste contexto, na sua segunda linha de argumentação, a recorrente invoca que a norma em causa viola o «direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP)». A norma objeto do presente processo determina a inclusão dentro do possível âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao abrigo do RJAT, dos litígios em que a impugnação da autoliquidação é precedida de um pedido de revisão oficiosa, ao abrigo do artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011. Efetivamente, o RJAT estabelece no seu artigo 4.º, n.º 1, que a administração tributária fica vinculada à jurisdição dos referidos tribunais arbitrais (com a competência prevista no artigo 2.º), nos termos de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos. Ao abrigo dessa habilitação foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que vinculou à jurisdição do CAAD vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública. As entidades administrativas delimitadas nessa Portaria não podem recusar a constituição de tribunais arbitrais, nas matérias aí previstas, se o administrado o solicitar. É, portanto, uma situação algo distinta da que ocorre na arbitragem voluntária, uma vez que as entidades administrativas estão a priori vinculadas à opção que o administrado tomar neste domínio. A lógica subjacente a um pacto arbitral em que ambas as partes do litígio acordam a sua sujeição a um tribunal arbitral, que justifica certas dimensões do regime da arbitragem voluntária, não pode ser inteiramente tida como aplicável na presente situação. Desta forma, parte do enquadramento constitucional aplicável aos tribunais arbitrais necessários deverá ser considerado aplicável neste caso, em especial no que diz respeito às garantias de independência e imparcialidade dos tribunais e de processo arbitral equitativo. Tal não significa, no entanto, que possa qualificar-se esta situação como uma derrogação face à garantia de acesso à tutela jurisdicional efetiva, neste caso, para tutela dos interesses públicos por parte da administração. Não pode ser esquecido que o artigo 209.º, n.º 2 da Constituição prevê expressamente a existência de tribunais arbitrais na ordem jurídica portuguesa. Os tribunais arbitrais exercem a função jurisdicional na ordem jurídica da República Portuguesa lado a lado com os tribunais estaduais. Da «admissibilidade

constitucional dos tribunais arbitrais», o Tribunal Constitucional tem retirado que «a Constituição não reserva em absoluto a função jurisdicional aos tribunais estaduais, podendo caber aqui uma margem de conformação do legislador no recurso à arbitragem como forma de resolução de conflitos» (cfr. o Acórdão n.º 123/2015, n.º 11.3.1.). É certo que «a criação de tribunais arbitrais não pode deixar de se encontrar preordenada a outros princípios constitucionais e, de entre estes, à garantia de acesso aos tribunais e à garantia de reserva de

jurisdição» (Acórdão n.º 230/2013, ponto 11). Existem, assim, limites constitucionais à criação de tribunais arbitrais, em especial face a tribunais arbitrais necessários, pelo que é possível a fiscalização da sua constitucionalidade. De acordo com o preâmbulo do RJAT, a introdução deste regime foi motivada pela prossecução pelo legislador de «três objetivos principais: por um lado, reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos, por outro lado, imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo e, finalmente, reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais». Tendo em conta a legítima prossecução destes objetivos e o reconhecimento constitucional dos tribunais arbitrais como categoria de tribunal da República Portuguesa, parece não existir uma afetação prima facie pela norma objeto de juízo da garantia de acesso aos tribunais.

Neste âmbito, a recorrente entende que «a vinculação da AT à tutela arbitral necessária, na qual vigora o princípio da irrevogabilidade das decisões, pressupõe uma limitação das situações em que esta pode plenamente decidir se deve ou não interpor recurso de uma decisão judicial desfavorável» (cfr. n.º 42 das alegações de recurso, fls. 171). O que é invocado não é, assim, propriamente a garantia de acesso à justiça e aos tribunais pela sujeição do litígio a um tribunal arbitral, mas a dimensão de acesso a uma via de recurso. Efetivamente, o que a recorrente contesta é o regime «restritivo de recorribilidade das decisões» (cfr. n.º 54 das alegações de recurso, fls. 172, verso) e que, por causa desse regime, ao fixar «a vinculação da AT à tutela arbitral necessária, o legislador está a dispor sobre interesses gerais, delimitando previamente a defesa do interesse público na vertente da indisponibilidade dos créditos tributários» (cfr. n.º 41 das alegações de recurso, fls. 171).”

Ora decorrente do exposto acima, é entendimento do TC ter apenas que se pronunciar, não sobre o regime de recorribilidade das decisões emitidas pelos tribunais arbitrais, mas, sim, sobre a competência dos tribunais arbitrais quando estiver em causa um indeferimento dum “pedido de revisão oficiosa” por parte da AT para efeitos de interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011. Assim, o Tribunal Constitucional decidiu “Não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”,  o que implica que este Tribunal Arbitral tenha de imediato de afastar a exceção da incompetência material do presente Tribunal Arbitral, suscitada pela Requerida, para conhecer do pedido da Requerente.

 

Apesar da clareza deste recente Acórdão do TC relativamente aos fundamentos invocados pela Requerida para fundamentar a incompetência do presente Tribunal Arbitral, ainda podemos mencionar outros fundamentos para legitimar a competência material deste Tribunal Arbitral, para julgar o pedido da Requerida improcedente.

 

Assim, no presente processo em apreço, é pedida a declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação, na sequência do indeferimento de um pedido de revisão de um ato tributário efetuado após o decurso do prazo de dois anos previstos no artigo 132.º do CPPT e que não foi precedida de reclamação graciosa.

 

O que é fundamental no entender deste Tribunal, é que, seja qual for a via administrativa utilizada, tenha sido dada oportunidade à Autoridade Tributária de ser pronunciar antes do recurso à via jurisdicional. Sem essa oportunidade de pronúncia administrativa prévia é que, relativamente aos atos tributários elencados no artigo 2º-a), da Portaria nº 112-A/2011, haverá incompetência material do Tribunal Arbitral, o que não ocorre neste processo.

 

E vamos nesta análise seguir de perto o Acórdão de 29 de novembro de 2018 n.º 335/2018-T do CAAD.

 

Ora entende-se que a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, previstos no artigo 78.º da LGT “A revisão dos atos tributários pela

entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (…)”, incluem-se nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, nos termos do RJAT. O regime da arbitragem em direito tributário foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 10/11, de 20 de janeiro, que regula o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária, no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril (RJAT). Nos termos do artigo 2.º, n.º 1º, a) do RJAT “A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”. Esta competência dos tribunais arbitrais depende ainda dos termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT. Assim, o artigo 4.º do RJAT estabelece que “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”

 

No caso em apreço, a Requerente pede a anulação do ato de autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2012, bem como a anulação do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Consideramos ter de atender ao texto literal do já mencionado no artigo 2.º, n.º 1, a) do RJAT, mas também temos de considerar que essa norma não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato

de um daqueles tipos. Acresce a este entendimento que a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau, que confirme um ato de liquidação (ato de primeiro grau), incorporando a sua ilegalidade.

 

Esta referência expressa ao precedente “recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório através da reclamação graciosa, o meio administrativo previsto nos artigos 131.º a 133.º do CPPT. E, com base na legislação relevante na matéria tributária e na jurisprudência,  pode considerar-se que o legislador consagrou a solução mais acertada no artigo 2.º, n.º 1 a) da Portaria n.º 112-A/2011, de  22 de março e que não pretendeu excluir com esta norma legal a competência dos Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, no caso das autoliquidações precedidas de pedido de revisão oficiosa sem prévia reclamação graciosa, tal como é admissível nos processos judiciais administrativos.

 

A alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT  faz referência ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos no artigo 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do

 

Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Assim,  se o texto do artigo 2.º, n.º 1 a)  do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, e por outro lado abrange  os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, até porque nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa.

Entende-se que a referência expressa ao artigo 131.º do CPPT feita pelo artigo 2.º a) da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação.

Assim, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária no presente processo também, não pode ser aceite porque na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis estabelecidos no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, e o artigo 9.º n.º 1.º, LGT, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei”, devendo, antes, “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. A interpretação extensiva, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, considerado no artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil como um critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

Ora o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para iniciar a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir

 

uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de atos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os atos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos atos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Também é inequívoco que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que “sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º”. Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Daí que, casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de ato de autoliquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa.

Por esta análise entende-se que se a lei expressamente aceita que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de atos de autoliquidação e sendo o pedido de

 

revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa é um caso perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não se consubstanciando em qualquer proibição em aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa nos casos de autoliquidação de impostos.

Também é assegurando a revisão do ato tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de atos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão. E, por ser a solução mais consentânea com a plenitude lógica e teleológica do sistema jurídico-tributário português de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes». Na verdade, neste artigo 2.º do RJAT  não se faz qualquer referência expressa a estes atos - pedidos de revisão oficiosa -, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os “pedidos de revisão de actos tributários” e “os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”

Por outro lado, a criação de tribunais arbitrais não pode deixar de se encontrar preordenada a outros princípios constitucionais e, de entre estes, à garantia de acesso aos tribunais e à garantia de reserva de jurisdição e assim de acordo com o preâmbulo do RJAT, a introdução deste regime foi motivada pela prossecução pelo legislador de “três objetivos principais: por um lado, reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos, por outro lado, imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito passivo e, finalmente, reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais”.

Recentemente decidido de acordo com o mesmo entendimento, podemos mencionar, ainda, os seguintes acórdãos do TCAS:

 - “Não se verifica o fundamento “pronúncia indevida”, previsto na 1.ª parte da alínea c) do art. 28.º, n.º 1 do RJAT quando o tribunal arbitral conhece da legalidade de acto de autoliquidação que tenha sido precedido de pedido de revisão oficiosa, verificando-se a sua competência em razão da matéria” – Cfr. Acórdão de 25 de Junho de 2019, proferido no processo n.º 44/18.6BCLSB,

 - “Tendo a Impugnante previamente ao pedido de pronúncia arbitral recorrido à via administrativa para corrigir a autoliquidação, por via da interposição de revisão do ato tributário, a questão não é inarbitrável podendo/devendo o Tribunal Arbitral dela conhecer.” – Cfr. o acórdão de 11/07/2019, proferido no processo nº 147/17.4BCLSB.

Adicionalmente, no âmbito da jurisprudência do CAAD, entre outros podemos consultar Acórdãos que se pronunciaram no sentido da competência material dos Tribunais Arbitrais constituídos no âmbito do CAAD:

 - No processo n.º 51/2012-T, refere-se que “o contribuinte que não tenha apresentado tempestiva reclamação graciosa não esteja, ípso facto, impedido de pedir a revisão do acto de retenção ao abrigo do artigo 78.º da LGT, dentro do condicionalismo aí previsto, e impugnar judicialmente a decisão que indefira o pedido de revisão (cf. artigo 95.º, n.º 2, alínea d), da LGT), também não parece questionável afirmar que a AT apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de acto de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação graciosa”.

 

Pelas razões supra, é convicção deste Tribunal Arbitral que a Requerida não tem razão, sendo improcedente a exceção de incompetência material deste Tribunal Arbitral arguida pela Requerida.

 

3.            Matéria de facto

 

3.1.        Factos Provados

 

3.1.1.     A Requerente iniciou a sua atividade em 01-04-2006, com o CAE 64202 – “Atividades das Sociedades Gestoras de Participações Sociais não Financeiras”, para efeitos de IRC enquadra-se no regime geral de tributação e adota o período de tributação coincidente com o ano civil.

3.1.2.     A Requerente detinha, no período de tributação de 2012, uma carteira de títulos, em concreto, partes de capital de entidades cotadas em bolsa de valores, as quais lhe conferiam uma participação inferior a 5% do respetivo capital social, conforme abaixo se detalham:

                                               B..., S.A. (“B...”); 


                                               C..., S.A. (“C...”); 


                                               D..., S.A.; 


                                               E..., S.A.; 


                                               F..., SGPS, S.A.; 


                                               G..., SGPS, S.A.; 


                                               H..., S.A.; 


                                               I..., S.A.; 


                                               J..., S.A.; 


                                               K..., S.A.; 


                                               L..., S.A.; 


                                               M..., S.A.; 


                                               N..., SGPS, S.A.; 


                                               O... Inc; 


                                               P..., S.A.; 


                                               Q..., S.A.; 


                                               R... PLC; 


                                               S…Ltd; 


                                               T…; 


                                               U… Ltd; 


                                               V…; 


                                               W...; 


                                               X…; 


                                               Y…; 


                                               Z…Ltd; 


                                               AA...; 


                                               BB..., SGPS, S.A.; 


                                               CC... Inc; 


                                               DD… Inc; 


                                               EE… .

3.1.3.     A Requerente em 2009 registou nas suas demonstrações financeiras:

 

3.1.4.     A Requerente no período de tributação de 2010, em resultado da transição para o SNC, passou a mensurar aqueles investimentos ao método do justo valor através de resultados tendo procedido “naquele exercício à reversão dos ajustamentos elencados na tabela supra, por contrapartida de um rendimento refletido na demonstração de resultados, tendo em simultâneo, registado as respetivas perdas de justo valor na exata medida da evolução negativa das cotações face ao valor de mercado daqueles instrumentos (i.é. pelo valor equivalente aos ajustamentos revertidos”).

 

3.1.5.     Títulos que conferiam à Requerente participações representativas de menos de 5% do capital social dessas entidades sendo que a Requerente, não detinha direta ou indiretamente participações nessas entidades iguais ou superiores a 5%.

 

3.1.6.     Para efeitos contabilísticos e fiscais, anteriormente a 2010, mais concretamente até 31 de dezembro de 2009, as participações sociais em apreço encontravam-se mensuradas nas demonstrações financeiras da Requerente ao respetivo custo de aquisição (e não ao justo valor), nos termos dos princípios contabilísticos geralmente aceites, definidos no Plano Oficial de Contas (“POC”) português então em vigor.

               

3.1.7.     A partir de 1 de janeiro de 2010 a Requerente passou a mensurar as participações sociais detidas nas entidades supra enunciadas, nas suas demonstrações financeiras, pelo respetivo justo valor, nos termos da Sistema de Normalização Contabilística (SNC).

 

3.1.8.     A Requerente iniciou a sua atividade em 01-04-2006, com o CAE 64202 – “Atividades das Sociedades Gestoras de Participações Sociais não Financeiras”, para efeitos de IRC enquadra-se no regime geral de tributação e adota o período de tributação coincidente com o ano civil.

 

3.1.9.     A Requerente já se encontrava a refletir nas suas demonstrações 
financeiras as variações (positivas ou negativas) verificadas na carteira de títulos em apreço, as quais não tiveram relevância fiscal e, consequentemente, os ajustamentos apurados por referência àquelas participações foram incluídos nas declarações de rendimentos Modelo 22 dos períodos de tributação de 2007, 2008 e 2009.

 

3.1.10.  As alterações no justo valor das participações em apreço – o qual traduz a respetiva cotação de mercado – correspondem aos montantes que a Requerente havia reconhecido nas suas demonstrações financeiras entre 31.12.2007 e 31.12.2009 relativos às variações nas carteiras de títulos, os quais, conforme referido supra, não foram relevantes para efeitos fiscais.

 

3.1.11.  E havia ainda que lidar com o acumulado no passado, i.e., com o acumulado por relevar fiscalmente até 31 de Dezembro de 2009, em termos de diferença do resultado da mensuração dada pelo justo valor (novo método legal agora aplicado)

 

até àquela data, face à mensuração cristalizada, até então, no custo de aquisição (cfr. NCRF 3, em especial o parágrafo 1, alínea d), do seu Apêndice).

 

3.1.12.  A A... apurou duas variações patrimoniais refletidas diretamente nos capitais próprios: (i) uma positiva, relativa à desconsideração das variações positivas e negativas verificadas até 31 de dezembro de 2009 na carteira de títulos no montante de € 21.385.113,47, e que não relevaram para efeitos fiscais até esta data e (ii) uma variação patrimonial negativa no mesmo exato montante (€21.385.113,47) associada à mensuração das participações detidas pela requerente de acordo com o justo valor, que representa precisamente a concretização do montante das variações líquidas negativas que vinham sendo registadas até 31 de dezembro de 2009, correspondentes à diferença entre o custo de aquisição das participações e o seu justo valor na referida data, que era menor no referido montante.

 

3.1.13.  Aquela variação patrimonial negativa deveria concorrer para a formação do lucro tributável em € 4.277.022,69 (€ 21.385.113,47 /5) em cada um dos referidos 5 anos (entre 2010 e 2014), conforme regime transitório previsto no artigo 5.º do DL 159/2009, de 13/07, salvo qualquer impedimento legal.

 

3.1.14.  Assim, entende a Requerente que no ano de 2012, aquela variação patrimonial negativa deveria contribuir em 1/5 para a formação do lucro tributável, i.e., em € 4.277.022,69.

 

3.1.15.  A Requerente apurou com respeito a 2012 perdas de justo valor relativas às participações mencionadas no montante de € 25.986,19.

 

3.1.16.  A Requerente tomou conhecimento do entendimento da AT sobre esta matéria, designadamente sobre a desconsideração de metade (50%) de eventuais desvalorizações bolsistas que a AT entende ser de fazer ao abrigo do artigo 45.º n.º3 do CIRC  e da  publicação, no Portal das Finanças, da Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º 39/2011, por Despacho do Diretor-Geral de 24 de fevereiro de 2011(doravante designada por Ficha Doutrinária n.º 39/2011). Assim, ao abrigo da Ficha Doutrinária n.º39/201, a alteração da política contabilística (do modelo do custo para o modelo do justo valor) decorrente da entrada em vigor do SNC, com efeitos retrospetivos, determina, neste caso, uma perda reconhecida em Resultados Transitados a qual, para efeitos fiscais, de acordo com o artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, concorre em 50 % do seu valor para a formação do lucro tributável dos períodos de tributação de 2010 e dos quatro períodos seguintes.

 

3.1.17.  Face a este entendimento proferido pela AT, a Requerente considerou para

 efeitos fiscais, na sua autoliquidação de IRC de 2012 aqui em causa, em apenas 50% a variação patrimonial negativa respeitante às participações referidas supra decorrente da transição para o novo referencial contabilístico em matéria de reconhecimento do justo valor (de forma diferida por cinco períodos de tributação) de € 2.138.511,35, em cada um dos anos em causa, em vez dos € € 4.277.022,69.

 

3.1.18.  Considerou ainda a Requerente em apenas 50% a perda de justo valor apurada no próprio período de tributação de 2012, decorrente da aplicação do critério do justo valor às participações sociais detidas nas referidas sociedades - a linha 737 do Quadro 7 da declaração Modelo 22 do exercício de 2012, onde consta apenas 50% daquele ajustamento negativo, no montante, recorda-se, de € 12.993,10 (50%@ € 25.986,19).

 

3.1.19.  Com referência ao período de tributação de 2012, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos Mod. 22, em 27-05-2013 identificada com o n.º ... a que corresponde a nota de demonstração de liquidação com o n.º 2013... . Indicou no Quadro 07 - campo 705 - Variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no art.° 5.°, n.º s 1, 5 e 6 do DL 159/2009, de 13/07)  o montante de € 3.094.575,69, no campo 737 do mesmo quadro - 50% de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio (art.°45.°, n.°3, parte final), inscreveu o montante de € 612.993,10 e no campo 759 - ajustamentos não tributáveis decorrentes da aplicação do justo valor (artigo 18.º, n.º 9) a importância de € 6.230.487,25.

 

3.1.20.  De acordo com a demonstração de liquidação mencionada, foi apurado um montante de imposto a recuperar de € 371.074,26, montante que resulta do apuramento de IRC no montante de € 55.000,37, e de tributações autónomas, no montante de € 765,10 a cujo somatório foram abatidos € 421.589,79, de retenções na fonte suportadas e de € 5.250,00 correspondentes ao pagamento especial por conta efetuado no período de tributação de 2012.

 

3.1.21.  O campo 705 (€ 3.094.575,69) da declaração inclui as seguintes importâncias:

- € 2.138.511,34, correspondente a 50% de 1/5 das variações patrimoniais negativas resultantes das reduções de justo valor verificadas à data de 31 de dezembro de 2009, ao abrigo do regime transitório previsto no art.° 5.º do DL 159/2009 de 13/07 conjugado com a aplicação do artigo 45.º n.º3 do CIRC e da Ficha Doutrinária n.º 39/2011  (1/5 de €21.385.113,41 x 50%); e

- € 956.064,35, correspondente a 1/5 dos encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do artigo 32 n.º2 do EBF entre 2006 a 2009.

 

3.1.22.  Na referida declaração de rendimentos a ora recorrente apurou um lucro tributável no montante de € 880.005,88.

 

3.1.23.  Posteriormente, com referência ao período de 2012 a requerente foi objeto de um procedimento inspetivo em cumprimento da ordem de serviço Ol2015..., dai resultando a anulação da dedução efetuada pela requerente no montante de € 6.230.487. 25 (campo 759 do quadro 07 da declaração).

 

3.1.24.  A Requerente viria a ser notificada da demonstração de liquidação identificada com o n.º 2016..., e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2016 ... refletindo um estorno do montante de € 371.074,26, reembolsado à Requerente com base no acto de auto liquidação e determinando o montante de € 190,755,46 de imposto a pagar em resultado das correções promovidas no âmbito da Inspeção, bem como da respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios, na qual se apurou o montante a pagar a este título de € 55.356,02.

 

3.1.25.  A Requerente apresentou em 2016-03-22, o pedido de Revisão Oficiosa que veio a ter o n.º ...2016..., relativo ao ato tributário de autoliquidação de IRC, referente ao período de 2012, pedindo a consideração na declaração Mod. 22 de 2012 das seguintes correções:

 

1)            montante € 5.233.087,04 a inscrever no campo 705 (variações patrimoniais negativas - Regime Transitório) o qual corresponde ao somatório de € 4.277.022,69 (1/5 do valor total - € 21.385.113,41 das variações patrimoniais negativas resultantes das reduções de justo valor verificadas à data de 31 de dezembro de 2009) e de € 956.064,35 correspondente a 1/5 dos encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do artigo 32.º n.º2 do EBF durante os anos de 2006 a 2009,

2)            a não inscrição de qualquer valor no campo 737 (50% de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio),

3)            a não inscrição de qualquer valor no campo 759 (ajustamentos não tributáveis decorrentes da aplicação do justo valor) por não considerar aplicável à situação tributária vertida no pedido de revisão oficiosa o artigo 45.º n.º 3 do CIRC e a doutrina plasmada na Ficha Doutrinária n.º 39/201, mas sim, o artigo 18.º n.º9 do CIRC ao abrigo do qual poderia deduzir em 2012 na Mod.22 a totalidade de 1/5 das variações patrimoniais negativas correspondentes ao exercício de 2012 - € 4.277.022,69 - e não apenas 50% desse montante - € 2.138.511,34, como o fez na declaração Mod.22 de 2012. A Requerente igualmente pediu o reembolso de imposto, IRC, no montante de € 199.014,17 acrescido dos respetivos juros.

 

3.1.26.  No dia 13 -04 - 2019 a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por despacho proferido em 3 de abril de 2019 pela Exma. Senhora Subdiretora-Geral.

 

3.2.        Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

4.            Do Direito

A matéria decidir nos presentes autos diz respeito à repercussão fiscal das variações patrimoniais negativas, alegadamente apuradas em resultado da aplicação do regime transitório previsto nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 5 do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho nos ajustamentos fiscais decorrentes da aplicação do modelo do justo valor e no enquadramento tributário de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

Há que apreciar a questão relativa a determinar se pode ser aceite que as perdas resultantes da mensuração ao justo valor dos instrumentos de capital previstos na alínea a), n.º 9, do artigo 18º do CIRC concorrem em 50% para determinação do lucro tributável, perdas de valores de ativos valorizados ao justo valor e cuja variação de valor deve ser reconhecida em

resultados, como acontece no caso concreto nos termos da norma do n.º 3 do art.º 45.º do CIRC, na redação à data ou devem concorrer pela totalidade.

 

Antes de mais, importa referir que há um amplo consenso na jurisprudência no sentido da inaplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redação e numeração em vigor até 2013, aos ajustamentos de justo valor, como de seguida mencionaremos.

 

No presente processo há unanimidade das partes quanto à sujeição das partes de capital, ações, aqui em causa ao sistema do justo valor previsto na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC.

 

A divergência entre as partes recai sobre uma outra norma: sobre o exato âmbito material do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

Cremos que temos de deixar expresso que o tema a decidir neste processo é muito semelhante ao tema de processos já objeto de decisão no CAAD e no STA, como de seguida mencionaremos.

Entende-se que embora no sistema jurídico português não exista a questão do precedente judicial, não podemos deixar de considerar essas decisões, e analisar esta questão de direito atendendo a todas essas decisões, inclusive os poucos processos que decidiram de modo diferente.

 

Assim, na exposição do modo como entendemos esta questão de direito aplicável ao presente processo, vamos acompanhar de perto os argumentos usados anteriormente nos processos que foram decididos com relevo para os mais recentes. E a decisão que tomaremos baseia-se antes de tudo na nossa análise, que atende à fundamentação de decisões anteriores sobre esta mesma matéria de direito.

 

Desde logo, queremos mencionar que a referida unanimidade sobre este tema foi quebrada pela decisão arbitral proferida no processo n.º 25/2015-T e no processo n.º 87/2016-T, e pelo Acórdão arbitral proferido no processo n.º 90/2016-T.

 

No processo em apreço temos de decidir sobre as variações patrimoniais negativas decorrentes da variação no justo valor dos instrumentos de capital próprio que correspondem às partes de capital acima referenciadas, no âmbito do ajustamento de transição (referente ao acumulado até 2009), que concorreram para a formação do lucro tributável do período de tributação de 2012 em apenas metade (50%) de 1/5 do seu valor total (€ 2.138.511,35 em cada um desses exercícios), quando deviam ter concorrido no referido 1/5 (€ 4.277.022,69 em cada um desses exercícios) na integra (100%), por inaplicabilidade da restrição constante do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

 

E quanto ao mesmo período de tributação de 2012 estão também em causa ajustamentos de justo valor ocorridos no próprio exercício de 2012, relativos às partes de capital acima mencionadas, considerados pela requerente como dedutíveis em metade (50%) do seu valor (€ 12.993,10), quando deveriam na verdade ter sido integralmente dedutíveis (€ 25.986,19), ou

seja, na integra (100%), por inaplicabilidade da restrição constante do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.

 

Um dos Processos mais recentes decididos num tribunal Arbitral constituído sob a égide CAAD, é o Proc. 94/2019-T de 25-06-2019, que em grande medida vamos seguir a sua fundamentação de perto, dada a similitude com o tema que nos ocupa.

 

Na data dos factos agora em análise, o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, dispunha:

 

“3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

 

O artigo 17.º do CIRC dispõe sobre a determinação do lucro tributável de IRC:

 

“1 – O lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”

 

Relativamente aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, dispunha o n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código que:

 

“9 - Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, exceto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou tal se encontre expressamente previsto neste Código.”

 

E continuando a seguir o disposto no CIRC, é de mencionar o artigo 20.º, n.º 1, que concretiza o conceito de “rendimentos” estabelecendo, para o que neste caso é relevante:

“Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma ação normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:

 (...) 

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

 (...)

h) Mais-valias realizadas;”.

                 

O artigo 23.º, n.º 1, do CIRC define o conceito de “gastos”, estabelecendo o seguinte: 

 

“1 – Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: 

(...) 

i)             Gastas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;

(...)

l) Menos-valias realizadas;”.

 

Relativamente às variações patrimoniais positivas, dispõe o artigo 21.º, n.º 1, do CIRC: 

“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido do período de tributação, exceto:

 (...)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;”.

 

No que concerne às variações patrimoniais negativas, o artigo 24.º, n.º 1 do CIRC refere que:

 

“Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do período de tributação, exceto: 

(...)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;”.

 

Relativamente às mais e menos-valias, dispõe o artigo 46.º, n.º 1 do mesmo Código que:

 

“1-Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afetação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:

(...)

b) Instrumentos financeiros, com exceção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.;”

 

4.1.        Das sucessivas alterações legislativas e o seu impacto nas normas em análise

O referido artigo 45.º, n.º 3 do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º, n.º 3, efetuada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho.

 

O n.º 3 do artigo 42.º, foi introduzido pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, com a seguinte redação:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

 

Refere-se no Acórdão 94/2019-T, que “de acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por duas prioridades, a saber, o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável”, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51).

 

A redação final da norma em análise resultou já da alteração implementada pela Lei n.º 60A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (página 31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “Combate À Evasão E Fraude Fiscais E Outras Medidas Direcionadas À Consolidação Orçamental”.

 

Considera-se que o artigo 18.º, n.º 9 do CIRC tem a sua justificação direta no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo

valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, mantivesse a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados. (...)

No mesmo sentido, identificam-se como ativos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os ativos fixos tangíveis, os ativos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com exceção daqueles em que os ajustamentos

decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação (…).”  

 

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do n.º 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

 

Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de proveitos e ganhos (artigo 20.º), passou-se a falar de rendimentos, e onde antes se falava de custos ou perdas (artigo 23.º), passou-se a falar de gastos.

 

De referir que “ (...) previamente à adoção do critério do justo valor para participações sociais, ações, com as características do caso sub judice, por efeito do início de vigência do SNC, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, que estabelecia que não concorriam para a formação do lucro tributável «as mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reabilitação legalmente autorizadas». Era no momento da realização da mais ou menos-valia que era assumida a sua relevância fiscal a variação patrimonial verificada.”

 E continua o Acórdão do CAAD  a mencionar que “Este enquadramento fiscal, que reconduzia a uma tributação única (que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros), dependente de uma atuação voluntária do sujeito passivo (na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo alienasse os activos) e em que a valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária propiciavam um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia procurar desencadear a relevância tributária no momento e nos termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

 

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º, n.º 3 do CIRC que precede o então artigo 45.º, n.º 3, do mesmo.

 

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

 

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

 

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

 

No que se refere a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

 

Em consonância com esta intenção legislativa, o artigo 18.º, n.º 9 do CIRC veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, o que consubstancia um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

 

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a exceção a este regime, “quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num

mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

 

Ou seja, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, tais “concorrem para a formação do lucro tributável”, “desde que”:

             Sejam reconhecidos “através de resultados”;

             Se trate “de instrumentos do capital próprio”;

             “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

             “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”.

 

Cumpridas estas condições:

             consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), do CIRC]; e

             consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros [artigo 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC].

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única, aquando da transação daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor passam a relevar diretamente para a formação do lucro tributável [artigo 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC] do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas as condições atrás referidas a propósito do artigo 18.º, n.º 9, do CIRC.

 

E concorda-se com a afirmação de que neste quadro normativo, “deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a

relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada, havendo espaço para a concretização do comando constitucional da tributação empresarial fundamentalmente pelo seu lucro real”.

 

Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, renumerado então para artigo 45.º, n.º 3, manteve a respetiva vigência, com a sua redação inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC.

 

4.2.        A função e o valor da interpretação: da importância da hermenêutica, da interpretação sistemática e da interpretação teleológica das normas fiscais em análise

 

Atendendo ao conteúdo do artigo 45.º n.º 3 do CIRC, que menciona: 

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor."

 

E continuando a seguir a fundamentação do mencionado Acórdão 94/2019-T do CAAD, com a qual este Tribunal Arbitral está de acordo e assim também se considera que: “A análise do texto normativo revela com clareza, em função da presunção de boa técnica legislativa, que o

 

legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, por distintas, a saber:

 

a) A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital; 

b) outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; 

c) outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

 

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das situações acima referidas.

 

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, mas também porque o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do CIRC exclui as situações descritas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do conceito de mais-valias realizadas.

 

Deste modo, restam as possibilidades de integração da situação dos autos em alguma das supra situações referidas nas alíneas b) e c).

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada atentando que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho.

Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respetivamente, que:

- “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

 

- “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”. 

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC vigente em 2013, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a)            Custos;

b)           Perdas;

c)            Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

 

A previsão do artigo então 42.º, n.º 3 do CIRC (predecessor do artigo 45.º, n.º 3, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redações anteriores a este Decreto-Lei. 

 

Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se

ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes. 

 

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas”

utilizada no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redação vigente em 2012, não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigos 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregado a mesma distinção.

 

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respetivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável e, consequentemente, trata-se de uma interpretação a rejeitar, por força da regra do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, que impõe que se presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. 

 

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC, inclusivamente na sua versão atual, continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 12 de julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

 

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC se reportará a:

 

a)            diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b)           outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c)            outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

Sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

Atendendo a este retrato fiel das normas e sua evolução, não se incluirão, deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

 

A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22” (   ), a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”. Não surge a invocação da expressão “gastos”. E atenda-se que o artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorreta a sua inscrição no campo em causa. 

 

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, pretendesse incluir, no âmbito do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, as situações referidas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, teria tido o cuidado de incluir expressamente a terminologia “gastos”, i.e., teria introduzido uma alínea específica, contendo “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC (   ). 

 

Tenha-se ainda em consideração que, caso o legislador pretendendo assumir que tais situações seriam perdas e não gastos, teria referido expressamente nos artigos 18.º, n.º 9 e 23.º, n.º 1, alínea i), ambos do CIRC, tais situações como sendo “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não as qualificando como “gastos”, o que aconteceu.

 

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objetividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

 

Esta circunstância não é, face à redação do CIRC resultante do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, suscetível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redação dos artigos 20.º, n.º 1, alíneas f) e h), 23.º, n.º 1, alíneas i) e l), e, em especial 46.º, n.º 1, alínea b), todos do CIRC. Esses artigos evidenciam, de uma forma clara, a intenção de o legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais-valias e menos-valias.

 

Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º, n.º 3, e 46.º do CIRC, apenas faz sentido na perspetiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização. É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transação, haverá sempre um fator voluntário em relação àquela.

 

Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma atuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma atuação suscetível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objetivamente, a condicionar as atuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

 

Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objetivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

 

Contudo, aqueles aspetos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objetivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão, ou não, independentemente da atuação e da vontade do sujeito passivo, passando a ser relevantes fiscalmente no momento em que realmente ocorrem.

 

Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.

 

É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente injustificada, só se daria por força da exceção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC ao regime do princípio da realização. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º, n.º 9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário Público. 

 

4.3.        Da necessidade da análise do impacto efetivo das normas no exercício da interpretação. O dever de exigir a qualidade da norma fiscal

 

O juiz, em nome da efetiva proteção dos interesses trazidos a juízo, não se pode limitar a uma interpretação meramente literal, desprendida do elemento sistemático e, muito relevante, igualmente, o teleológico. Ou seja, é competência do juiz, através do seu olhar e da sua análise, garantir uma análise completa da situação. Garantindo a proteção prática e efetiva do direito de propriedade individual, não assumindo tal proteção uma componente meramente teórica e ilusória.

 

Por forma a conseguir este tipo de proteção, equilibrada e efetiva dos dois interesses em presença, é fundamental o juiz atender a interpretação e a aplicação integradas. Ou seja, há que ter em consideração a interpretação sistemática e a teleológica. Tal implica que as questões devem ser analisadas em todas as suas vertentes, por forma a garantir que o impacto real da aplicação da norma fiscal é considerado, tanto para o contribuinte como para a Administração Tributária. A consistência da intervenção pública é exigida e essa é devida, tanto pela via administrativa como pela via judicial.

 

A este propósito, tenha-se em atenção que a qualidade da norma fiscal é exigência determinante para garantir quer uma proteção adequada do contribuinte quer uma aplicação correta da norma. Por isso, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em múltipla jurisprudência persistente ao longo do tempo ( ), a propósito da análise da legalidade das normas fiscais, afirma a necessidade de a norma fiscal ter qualidade. Este conceito é aferido, no TEDH, considerando a acessibilidade, a precisão e a previsibilidade, promovendo a inexistência de inconsistências. O objetivo é não resultar da norma fiscal a possibilidade de interpretação ambígua, mas antes gerar-se interpretação una. 

 

Com base nesta construção, o tribunal deve ter em consideração que o legislador buscou a qualidade da norma fiscal. Ou seja, o tribunal tem de ter em consideração que a letra da lei é efetivamente o que o legislador pretendeu, promovendo uma interacção equilibrada entre a letra da lei e o seu espírito. 

Importante forma de concretizar tal desígnio, após leitura integrada dos normativos em causa é a averiguar qual o impacto da aplicação da norma na esfera dos envolvidos na aplicação. 

Este exercício necessário e garante da adequada proteção jurídica é ainda mais necessário no caso de serem invocadas divergências interpretativas pelos sujeitos envolvidos na relação jurídica fiscal, como no caso em apreço. Deve, então, o Tribunal proceder a análise comparada entre a aplicação da norma do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) isoladamente e a aplicação da norma do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) em conjugação com o artigo 45.º, n.º 3, por forma a apurar, em termos de resultado, se ocorre algum dado novo que possa fazer modificar a construção interpretativa até agora apresentada.

 

Tenha-se em atenção os dados apresentados no quadro seguinte - e que tem sido recorrentemente utilizado pela jurisprudência do CAAD nesta matéria:

 

Ano        Valor Inv. Financeiro      Variação anual de justo valor     Aplicação do artigo 45.º/3 do

CIRC

0             Valor de aquisição

(V.A.)    0             0

1             V.A.+ 40               + 40       +40

2             V.A.+ 20               -20         -10

3             V.A         -20         -10

4             V.A.-40 -40         -20

5             V.A.       +40        +40

6             V.A. -20                -20         -10

 

Vejamos

 

A não aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, - valores contidos na coluna intermédia “variação anual do justo valor” - leva a uma coerência da tributação, qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de alienação.

 

Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, como pretende a Autoridade Tributária e Aduaneira - exposto nos valores obtidos na última coluna -, a partir do momento em que se verificasse uma alteração patrimonial negativa, haveria uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objetiva e independente da atuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se, ao fim do segundo ano, o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pagado imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efetiva de -20 (menos 20), que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria dedutível , ainda que em apenas 50% do respetivo valor (-10). Ora, tais resultados, além de injustos afastar-se-iam do imperativo constitucional do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, que promove a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

 

Do exposto resulta a irrazoabilidade ou irracionalidade/desproporcionalidade da aplicação da norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC às situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do mesmo Código.

 

Nos termos do exposto, o desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa

 

interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico, como aliás determina o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil.

 

Para além disso, o Direito Tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida terá de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT). Ora, no caso em apreço, mesmo que se afirmasse existirem dúvidas quanto ao alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC - como algumas decisões arbitrais minoritárias o fazem quanto a este aspeto – esta regra interpretativa teria de ser atendida. Veja-se que, nas situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, o artigo 11.º, n.º 3 da LGT conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento. Atenda-se ainda a que o Direito Tributário é marcado por uma abordagem principialista que justifica igualmente esta solução. 

 

O agora apresentado justifica a afirmação de que os Tribunais, ao analisarem os casos, também têm de atender ao impacto efetivo das normas que aplicam, pelo menos, na seguinte dupla acepção:

- não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil; 

 - nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes. 

Este elemento é essencial, tendo em atenção, como visto, as diretrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3  da LGT, mas principalmente porque é decorrência inevitável dos princípios que lhe estão subjacentes, i.e., da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), todos princípios com suporte constitucional, concretizadores dos princípios

basilares do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP). Ou seja, a matriz principialista atrás mencionada.

É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra apresentado, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) de opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas terão relevância fiscal, independentemente da sua efetiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objetivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes. 

 

4.4.        Referência suplementar aos aspetos teleológicos 

 

A ausência de margem significativa para manipulações fiscalmente convenientes agora invocada é deveras relevante. Aliás, como já foi defendido na presente decisão e já o havia sido na citada decisão arbitral no âmbito do Processo n.º 108/2013-T, de 25-11-2013, base da argumentação aqui apresentada. Mas merece ainda uma suplementar reflexão. 

 

Pode ser afirmado que “a certeza e objetividade do valor encontrado no mercado, ainda que regulado, não é de todo imune a manipulações, como é comprovado por episódios de que a imprensa internacional tem feito eco”( ). Porém, tal argumento não vinga. É relevante reconhecer que, não apenas o justo valor é um referencial de valorização internacional e nacionalmente aceite como adequado e desejado, revelador de um critério de justiça e de realismo económico, como também a ligação a um mercado regulado é aquilo que hoje se assume como referência pacificadora de equilíbrio de interesses públicos, coletivos e individuais. O facto de o funcionamento do mercado ser marcado pela volatilidade e constantes alterações na mensuração dos ativos e passivos é fruto do tipo de sociedade e de organização económica dominantes que, independentemente da concordância ou de juízos de valor, é a base da construção do sistema fiscal existente. Ou seja, o sistema fiscal contemporâneo é desenhado e aplicado para as realidades existentes.  Caso haja discordância da base organizativa e funcional do mercado, tal deve ser burilado pelos poderes públicos, de forma a reorientarem os mecanismos existentes, tendo de ser revelada na legislação de forma adequada. Ora, mesmo com as potenciais críticas existentes, a base atual de ação e regulamentação pública é a da regulação dos mercados, não havendo nenhuma indicação, até ao momento, de alterações genéricas ou de alterações que estejam refletidas no quadro fiscal. Por tal, assumindo-se legalmente como relevante a determinação do valor nos termos do mercado regulado, tendo essa regra sido também absorvida pela norma fiscal, é por essa regra que o aplicador do Direito se deve nortear, independentemente de dela concordar ou discordar. Está-se no domínio do ser e não do dever ser.

 

Tendo por base este contexto, compreende-se que, como se havia adiantado já, não se verificam como válidas para uma posição contrária, as razões de combate à fraude e evasão fiscal que, efetivamente , estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC. 

 

Enfatiza-se que no caso em apreço, a vontade do sujeito passivo não é relevante, não podendo planear hipotéticas e indevidas reduções de imposto a pagar. As alterações ao valor

dos instrumentos financeiros em causa não dependem de um ato de vontade, mas do funcionamento livre e regulado do mercado, onde múltiplos e dispersos são os agentes e os fatores a serem considerados. Acrescente-se ainda que em causa estão participações iguais ou inferiores a 5% do capital social. Tal demonstra que a influência económica na decisão da entidade valorada tende a ser muito reduzida, não constituindo, sem mais, influência dominante. E acrescente-se. Não se está seguro que o objetivo do legislador tenha sido o de apenas proteger os muito pequenos investimentos. Mesmo que a percentagem até aos 5% do capital social possam representar, em casos de grandes sociedades, quantias significativas, tal não é elemento relevante. O que se julga estar em causa na opção do legislador é a ausência de influência nas alterações de valor dos instrumentos financeiros, o que tende a acontecer quando a participação no capital social é de reduzida.

 

Outro aspeto que merece igualmente nota para a ausência de justificação de uma posição diferente da defendida na presente decisão arbitral, são as razões de consolidação orçamental, que também estiveram na génese da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC.  

 

Ainda que tal necessidade de consolidação das finanças públicas tenha sido, como visto, parte da justificação para as alterações efetuadas ao CIRC, note-se que, em nenhum momento, tal objetivo pode condicionar a letra da lei e o que dela resulta. Colocando-o de forma mais clara. 

 

Ainda que o espírito do legislador tenha de enformar a interpretação da norma, não bastando à interpretação o elemento literal (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), note-se que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.  Como visto, em face da diversidade de conceitos utilizados, em face das sucessivas alterações legislativas e seu reflexo conceptual, bem como em face da análise comparativa resultante da aplicação diferenciada das normas em questão, tal não acontece. 

Em face do exposto, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”. (   ). A necessidade de equilíbrio entre a letra da lei e o espírito do legislador criador é imprescindível e deve ocorrer de forma adequada e motivada por uma aplicação racional e objetiva da norma. Por isso, há muito se afirmou que “o método teleológico tem-se vindo a deslocar cada vez mais para um primeiro plano em relação à interpretação literal. Segundo o princípio de há longa data conhecido: cessante ratione legis, cessat lex ipsa, deve importar mais o fim e a razão de ser que o respetivo sentido literal. A ratio deve impor-se, não apenas dentro dos limites de um teor literal muitas vezes equívoco, mas ainda rompendo as amarras desse teor literal ou restringindo uma fórmula legal com alcance demasiado amplo”. (   ) Não pode ser olvidado que o sistema fiscal e, consequentemente, as normas que também o compõem, é assente em princípios norteadores que têm de ser considerados na interpretação, tendo a unidade desse sistema de ser salvaguardada. 

 

4.5.        A não aplicação ao caso do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 85/2010 

 

O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar julgando constitucional a norma do n.º 3 do art.º 42.º do CIRC (norma que precedeu o n.º 3 do art.º 45.º resultante da renumeração efetuada pelo art.7.º do Decreto-Lei n.º 159/2009 de 13 de Julho), na redação

modificada pelo n.º 1 do artigo 44º da Lei n.º 60- A/2005, de 30 de Dezembro quando esta passou a estabelecer que a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

 

Efetivamente, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 85/2010, de 3 de março de 2010, no âmbito do Processo n.º 653/09, declarou não violar a Constituição “um regime fiscal que se traduza numa menor ponderação, para efeitos tributários, de determinadas menos valias contabilizadas pelas empresas. Aliás, a impossibilidade de dedução integral de alguns custos ou perdas, como tal contabilizados pelos contribuintes, para efeitos de determinação da base tributável, não só resulta de diversos números do atual artigo 45.º do CIRC, como já tem sido objeto de recurso para este Tribunal, nomeadamente nos processos decididos pelos Acórdãos n.ºs 418/2000 e 451/2002 (disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/), os quais não julgaram inconstitucional a solução encontrada. Jurisprudência que se entende dever agora igualmente reiterar.” 

 

Salvo o devido respeito, tal caso não tem valia para a situação em análise. Não está em causa, como visto, a negação da aplicação do artigo 45.º do CIRC, mas antes saber se, à luz da letra da lei e atendendo aos elementos teleológicos e sistemáticos, deve a regra estabelecida no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do mesmo Código ser complementada com o previsto no então artigo 45.º n.º 3.º do CIRC. Ou seja, não está em causa nenhum problema de constitucionalidade, tão só um problema de interpretação conforme a letra e o espírito da lei.

Ao se assumir que deve o Tribunal atender ao impacto efetivo da aplicação da norma – cfr. ponto 4.3 da presente decisão – não se está, com tal, a proceder a nenhuma correcção da norma, nem a extravasar as competências judiciais. Antes está-se a atender a que a realidade de uma norma fiscal está integrada no sistema fiscal, gerando a necessidade de equilíbrio dos interesses em presença. A garantia desse equilíbrio tem de passar também pelo apuramento do quadro normativo existente e aplicável. E para tal é devida a utilização de instrumentos interpretativos, sejam os existentes em termos gerais (Código Civil, via artigo 11.º, n.º 1 da LGT) sejam os específicos fiscais (artigo 11.º, n.º 3 da LGT). Ou seja, não está

em causa um problema de constitucionalidade nem de desconsideração indevida de opção expressa pelo legislador.

 

4.6.        Conclusão

 

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código

Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”(n.º 3), é de interpretar o artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável, nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º.

 

Equivale a considerar-se que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, impõe a concorrência “para a formação do lucro tributável”, sem reservas ou limitações, dos “rendimentos ou gastos” que “(...) respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “desde que” sejam reconhecidos “através de resultados”; se tratem “de instrumentos do capital próprio”; “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”, não se aplicando, nestes casos, o artigo 45.º, n.º 3, do referido Código, na medida em que não estão abrangidos pela previsão normativa do mesmo. 

 

Em face do acima exposto, entende-se que merece provimento o pedido efetuado pela Requerente e consequentemente, as correções efetuadas quanto aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor são ilegais.

 

Adicionalmente, decorrente do exposto acima, a decisão de indeferimento da revisão oficiosa relativa à autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2012, enferma do mesmo vício material – violação de lei - pelo que se justifica também a sua anulação, de harmonia com o artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

Adicionalmente há que chamar à colação alguns aspetos estruturantes do nosso ordenamento jurídico-tributário com vista a reforçar a convicção deste Tribunal Arbitral da procedência do pedido por parte da Requerente.

 

Assim 

4.7.        Aplicação Uniforme do Direito

Não existe em Portugal a regra do precedente. Contudo, merece ser tido em consideração o exposto pelo legislador no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil. Aí é expresso que “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. Assim, em nome da certeza e da segurança jurídicas, bem como em nome da unidade do sistema jurídico e, igualmente, e não de menos importância, em nome da equidade fiscal, devem ser consideradas as decisões existentes sobre os factos em causa, a sua argumentação e a fundamentação.

Neste domínio, tenha-se em atenção que, desde a já citada Decisão Arbitral de 25-11-2013, proferida no Processo n.º 108/2013-T, a jurisprudência desenvolvida no CAAD, sobre casos equiparados, tem dado origem a uma linha jurisprudencial maioritária. Como o Supremo Tribunal Administrativo (STA) afirma, existe jurisprudência arbitral firme quanto a esta matéria.(  ) A título de exemplo refiram-se as seguintes decisões arbitrais: 25-9-2015, Processo n.º 208/2015-T; 5-10-2015, Processo n.º 59/2015-T; 9-12-2015, Processo n.º 231/2015; 11-12016, Processo n.º 396/2015-T; 1-2-2016 Processo n.º 126/2015-T
; 22-4-2016, Processo n.º 563/2015-T; 17-6-2016, Processo n.º 738/2015-T; 14-10-2016, Processo n.º 89/2016-T; 14-122016, Processo n.º 393/2016-T; 8-3-2017, Processo n.º 556/2016-T; 20-3-2017, Processo n.º 437/2016-T; 12-1-2018, Processo n.º 155/2017-T. Não sendo unitária, é largamente maioritária.

 

Por outro lado, considerando a posição do sujeito passivo em questão neste caso em análise, deve ser referido que, a propósito da mesma realidade económica, mas sobre o ano fiscal diferente – o de 2011 -, já houve decisão arbitral – em 28-10-2016, no âmbito do Processo n.º 77/2016-T - cuja orientação segue o sentido da decisão expressa por este tribunal arbitral.

 

Refira-se ainda que também o STA expressamente se pronunciou sobre a matéria.  Assume o

Tribunal Superior que “a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos activos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo” (Acórdão de 06-06-2018, Processo n.º 0582/17).

 

No mesmo sentido, sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC, ainda que a propósito de outra questão, pronunciou-se ainda o acórdão do STA de 17-02-2016, proferido no Processo n.º 01401/14.

 

Pelo exposto, em sintonia com a jurisprudência maioritária, quer do STA quer de vários tribunais arbitrais fiscais, reforça-se que a autoliquidação de IRC do exercício d 2012 enferma de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, pelo que se justifica declaração da sua ilegalidade.

 

4.8.        O Justo Valor como método de mensuração a nível dos instrumentos financeiros e o IRC no quadro da Normalização Contabilística em vigor a partir de 1/1/2009

 

Vejamos agora em que medida a mensuração dos ativos -instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados- ao Justo Valor pode ser compatibilizada com esta norma do CIRC (não se fará agora um estudo exaustivo sobre as normas contabilísticas e o Justo Valor, nomeadamente a sua contraposição ao custo histórico, nem a distinção entre instrumentos financeiros e activos fixos tangíveis, apenas os primeiros nos interessam e, por isso, apenas se abordará a matéria naquilo que seja estritamente indispensável para a resolução do litigio).

 

O conceito de Justo Valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística – SNC, Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho), quer internacionais (NIC), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na “quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes”.

 

Refere José de Campos Amorim que, “As IAS/IFRS e o SNC, com as alterações das normas de relato financeiro, introduziram uma maior justiça na valorização dos bens da sociedade com vista aos utentes da situação económica, financeira e patrimonial da sociedade. Esta abertura da contabilidade ao justo valor vai ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir na empresa.

 

Não é uma informação que pode condicionar determinadas operações económicas ou financeiras, como, por exemplo, o aumento ou a diminuição de capital, mas que é de uma grande relevância para o investidor que pretende ter uma noção real e atual dos ativos da empresa. É por esse motivo que a contabilidade está orientada não para o custo histórico mas para o valor atual dos ativos.”, cfr. O Justo valor e as suas implicações fiscais, IV Congresso de Direito Fiscal, Vida Económica, pág. 168.

 

Portanto, a consideração do Justo Valor, no que aqui nos interessa (a introdução do modelo do Justo Valor no âmbito do IRC quando estejam em causa instrumentos financeiros, operou-se pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do CIRC se encontra diretamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos -realização das mais ou menos valias- passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de acções de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.

 

“Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo Justo Valor são meramente potenciais ou provisórias -o valor dos activos consubstancia-se numa posição financeira-, porque não há uma efetiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do CSC.

 

Não há, assim, qualquer dúvida que o Justo Valor negativo, à posição financeira negativa resultante do Justo Valor, não lhe… subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo…”, cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 1144.

 

Portanto, o legislador com a norma do artigo 18º, n.º 9, al. a), para casos como o dos autos, afastou o princípio da realização e aproximou, ainda mais, a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do Justo Valor, cfr. artigos 20.º, n.º 1, alínea f) e 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC.

 

Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação - ao Justo Valor- do valor dos ativos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos ativos –a posição financeira- acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respetivo ativo.

Ora, precisamente tendo em conta, tudo o que foi exposto acima, a Requerente usa como fundamentos da procedência do pedido, o seguinte:

 

 a) os artigos 45.º n.º 3 e art.º 18.º n.º 9, ambos do IRC, apareceram em contexto e timings diferentes.

 

 Vejamos

 

a.1 - Quanto ao contexto

 

O artigo 45.º n.º3 apareceu numa ótica de combate à evasão e fraude fiscal com a limitação da dedutibilidade de 50% das menos valia fiscal e das variações de justo valor nalguns ativos financeiros. É preciso não esquecer que as variações de justo valor em instrumentos financeiros apareceram pela 1ª vez no setor financeiro, mais especificamente, na banca como é referido nos autos. Por outro lado, o artigo 45.º n.º 3 aplica-se a um ambiente fiscal onde predomina o principio da realização (venda de ativos) ao contrário do artigo 18.º n.º9 em que o regime aí previsto é uma exceção ao principio da realização (daí poder-se chamar de norma excecional como a Requerente faz), isto é, há resultados fiscais sem haver realização de ativos, o que existe são resultados potenciais (decorrente da mera detenção desses ativos) devido à oscilação de valor dos ativos e daí a exigência de haver mercados regulamentados (bolsa)

onde a informação tem que ser o mais transparente possível para não haver manipulação de resultados fiscais.

Quanto a isto a AT limita-se a dizer que devido a ter "reservas" quanto à adoção do justo valor, prefere adotar uma postura prudente, mas, numa ótica de ambiente de realização e daí através da ficha doutrinária n.º 39/2011 adotar o entendimento da dedutibilidade

de 50% das variações de valor do ativo.

 

a.2 - Quanto ao timing

 

 A aceitação de efeitos fiscais da adoção do justo valor ao abrigo do artigo 18.º n.º 9 deve-se a uma evolução dum ramo do Direito - Direito Contabilístico - com a adoção das normas internacionais de contabilidade que introduziram no espaço jurídico europeu o paradigma do justo valor através da adoção de normas jurídicas que pertencem à "hard law" e isso aconteceu com o Regulamento da UE 1606/2002 e que no caso português só teve impacto em 2010 com a adoção do SNC através do DL 158/2009 e DL 159/2010. Ora, o regime do artigo 45.º n.º 3 é de 2003 enquanto o do artigo 18.º n.º9 é de 2010 naquilo que interessa a este Processo.

 

Também é interessante o fundamento que a Requerente utiliza com a teoria do "equilíbrio" a propósito do n.º 3 do artigo 45.º do CIRC quando se está perante rendimentos relativos a partes de capital ou perdas, conforme está plasmado na PI a partir dos artigos 77.º e seguintes quando refere a posição defendida por Tomás Castro Tavares.

 

 b) Interpretação de normas tributárias

 

 Também para reforçar a convicção deste Tribunal pela procedência do pedido arbitral, convém referir que na Decisão Arbitral  94/2019-T em que se fundamentou a presente Decisão Arbitral, faz-se um apelo às regras de interpretação das normas tributárias previstas no artigo 11.º da LGT e artigo 9.º do C.Civil para se chegar à conclusão que, devido ao principio da plenitude lógica do sistema tributário e outros princípios, o regime dos artigos 45.º n.º 3 e artigo 18.º n.º9, ambos do CIRC, têm âmbitos materiais diferentes e no caso

controvertido do presente Processo, os fundamentos apresentados pela Requerente estão em

conformidade com o estatuído nos referidos artigos 11.º e 9.º atrás referidos.

 

5.            Juros indemnizatórios

 

No que concerne ao pedido de juros indemnizatórios, temos de atender ao disposto no artigo 24º  n.º 1 b) do RJAT que estabelece que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.

 

Esta norma está em plena sintonia com o disposto no artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), que é aplicável neste caso por força do disposto no artigo 29º, no n.º 1, a) do RJAT, que dispõe:  “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 

Temos de atender ainda ao artigo 43.º nº 1 da LGT que estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

Analisando o caso subjudice é patente que a Requerente, ao proceder à autoliquidação aqui questionada, e que a Requerida indeferindo o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, a Requerida incorreu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, erro que lhe é imputável.

 

Considerando o disposto no artigo 61.º do CPPT e que se encontram preenchidos os pressupostos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do artigo 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre a quantias que pagou, a contar da data em que o fez, até ao seu integral reembolso.

 

6.            Decisão 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em considerar que os atos objeto de pronúncia arbitral são anuláveis por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT e assim:

 

a) Julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b) Anula-se o sobredito despacho de que indeferiu o pedido de revisão oficiosa;

c)  Declara-se a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC do exercício de 2012, no que respeita ao montante de € 199.014,17 e

d)  Condena-se a Requerida no reembolso à Requerente daquela quantia (€ 199 014,17) acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 1 de setembro de 2013, até integral reembolso.

 

7.            Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 199.014,17.

 

8.            Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3 672.00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira (Requerida). 

 

Lisboa, 4 de março de 2020

 

 Os Árbitros

 

(José Poças Falcão)

(Regina de Almeida Monteiro)

(Júlio César Nunes Tormenta)