DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 2 de setembro de 2019, a sociedade A..., LDA, com o NIPC ... e sede na ..., n.º ...–..., ...– ... Lisboa (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com o disposto no artigo 99.º e na alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
-
Objeto do pedido:
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI) com o n.º 2017..., no montante de € 685,88, referente ao ano de 2017 e à fração autónoma designada pela letra E do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de ..., do concelho e distrito de Lisboa, sob o artigo ..., emitida em seu nome pela Autoridade Tributária e Aduaneira, bem como da decisão que indeferiu o Recurso Hierárquico interposto da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra o referido ato tributário.
A Requerente peticiona ainda o reembolso do montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
-
Síntese da posição das Partes
-
Da Requerente:
Como fundamentos do pedido, invoca a Requerente, em suma, o seguinte:
-
A Requerente é proprietária da fração autónoma identificada supra, cujo valor patrimonial tributário de € 171 470,00, determinado no ano de 2015, serviu de base ao ato de liquidação de AIMI n.º 2017...;
-
Em 3 de janeiro de 1983, a Requerente havia apresentado junto da Repartição de Finanças do então ... Bairro de Lisboa, uma participação para efeitos do § 1.º do artigo 3.º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, na qual manifestou que aquela fração autónoma se encontrava afeta ao exercício da atividade de serviços prestados a empresas, sujeita a contribuição industrial;
-
A atividade de prestação de serviços por conta própria, não sujeita a imposto profissional, integrava o âmbito de sujeição da Contribuição Industrial, nos termos do § único do artigo 1.º, do respetivo Código, ficando os prédios adstritos ao exercício daquela atividade não sujeitos a Contribuição Predial, nos termos do § 1.º do artigo 3.º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola;
-
Na respetiva caderneta predial, emitida em julho de 2016, na secção “Isenções”, estava averbada a isenção do valor de € 171 470,00, correspondente à totalidade do valor patrimonial tributário da referida fração autónoma, com o motivo “ASSOC SINDIC,...” e com data de início no ano de 1989;
-
A Licença de Utilização do Prédio, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 1996, esclarece que a referida fração autónoma se destina a escritório e, de acordo com a planta que instruiu aquele pedido, não possui cozinha, facto impeditivo de lhe poder ser atribuída a afetação de habitação;
-
Porém, a Administração tributária parte do errado pressuposto de que a fração autónoma em causa se destina a habitação, e não ao exercício da atividade de serviços prestados a empresas, como, aliás, sempre esteve;
-
Inconformada, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa na qual requereu a anulação do mencionado ato tributário, bem como o reembolso do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios;
-
Da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, foi interposto Recurso Hierárquico, também este objeto de indeferimento, cuja decisão foi notificada à Requerente por ofício datado de 30.05.2019;
-
O AIMI, criado pela Lei n.º 42/2016, de 28.12 (OE para 2017), incide apenas sobre o património imobiliário urbano destinado a habitação;
-
O ato de liquidação de AIMI em crise tem por objeto um prédio afeto a serviços, verificando-se a sua ilegalidade, por se sustentar em errados pressupostos de facto, que se materializam numa errada aplicação do direito;
-
Ora, ao abrigo do princípio do inquisitório, deveria a Administração Tributária ter levar a cabo, oficiosamente, as diligências necessárias ao apuramento da verdade material que, no caso concreto, obrigaria à consideração da comunicação da Requerente, quanto à afetação da fração autónoma;
-
O não cumprimento desse poder-dever, traduzido na preterição de formalidade essencial do procedimento, anterior à liquidação, levou ao erro sobre os pressupostos de facto em que o mesmo assentou, determinando a sua ilegalidade;
-
Sendo o ato tributário ilegal, por preterição de uma formalidade essencial e por erro nos pressupostos de facto e de direito, deve o mesmo ser anulado, bem como o despacho do Exmo. Senhor Diretor Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, que determinou o indeferimento do Recurso Hierárquico interposto, com as necessárias consequências legais, designadamente o reembolso do montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
-
Da Requerida
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação e da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:
-
A fração E do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob o artigo ..., foi avaliada no âmbito da avaliação geral dos prédios urbanos (AGPU), em 2012.02.18, tendo sido determinado o VPT de € 171 470,00, sendo classificado na espécie habitacional, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º, do CIMI;
-
O AIMI é um imposto pessoal sobre o património imobiliário, cuja incidência objetiva recai sobre a soma dos VPT dos prédios urbanos situados em território nacional, deles se excluindo apenas os que caibam nas tipologias previstas nas alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 6.º, do CIMI – “comerciais, industriais ou para serviços” e “outros”;
-
O imposto é liquidado anualmente, com base nos VPT e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes a 1 de janeiro do ano respetivo, constituindo as matrizes os registos que contêm, designadamente, a caraterização e localização dos prédios, o seu VPT e a identidade dos proprietários, usufrutuários ou superficiários;
-
O VPT, que serve de base à liquidação, é fixado por avaliação dos imóveis, relativamente a uma massa ainda não determinada de sujeitos passivos e embora a avaliação constitua a determinação da base quantitativa da incidência de imposto, inserindo-se no procedimento de determinação da matéria coletável, o legislador fiscal conferiu-lhe autonomia relativamente ao ato de liquidação;
-
Caso o sujeito passivo não concorde com o VPT determinado no procedimento de avaliação geral, pode, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º-F, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12.11, na redação da Lei n.º 60-A/2011, de 30.11, requerer segunda avaliação e, não concordando com o resultado da segunda avaliação, pode impugnar judicialmente esse ato, conforme disposto no artigo 15.º-G do citado Decreto-Lei e do artigo 77.º, do CIMI, sob pena de não poder ulteriormente impugnar a liquidação com o fundamento em erro na determinação desse valor;
-
Não tendo requerido segunda avaliação do imóvel e subsequente impugnação judicial, não pode a Requerente apresentar uma Reclamação Graciosa, alegando que o VPT foi erroneamente apurado;
-
Por outro lado, os sujeitos passivos podem, a todo o tempo, reclamar das incorreções nas inscrições matriciais, nos termos do n.º 3 do artigo 130.º, do CIMI, exceto se o VPT provier de avaliação direta, e o fundamento da reclamação for a alínea a) do n.º 3 do referido artigo, caso em que a reclamação só poderá ser apresentada decorridos três anos sobre a data do pedido, da promoção oficiosa da inscrição ou da atualização do prédio na matriz, de acordo com o n.º 4 do mesmo artigo;
-
As referidas incorreções também podem ser retificadas a todo o tempo, por iniciativa do chefe do serviço de finanças, exceto se o VPT resultar de avaliação direta, proveniente de pedido fundamentado na alínea a) do n.º 3 do artigo 130.º do CIMI, caso em que a retificação só poderá ocorrer decorridos três anos sobre a data do pedido, da promoção oficiosa da inscrição ou da atualização do prédio na matriz, conforme estabelece o n.º 5 do referido artigo, apenas produzindo efeitos na liquidação referente ao ano em que a reclamação foi apresentada ou a retificação foi promovida, conforme o seu n.º 8;
-
Face ao exposto, nem o despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico nº ...2019... e nem o ato de liquidação do AIMI nº..., referente ao ano de 2017 enfermam dos vícios apontados pela Requerente, devendo ser mantidos;
-
Não se verificando qualquer “erro imputável aos serviços”, dado que a liquidação foi emitida de acordo com o VPT apurado na avaliação geral e notificado à requerente, não são devidos juros indemnizatórios.
Pelo despacho arbitral de 16 de janeiro de 2020, foi determinado que, atendendo à que prova documental junta aos autos, ficaria dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, salvo oposição expressa e devidamente fundamentada de qualquer das Partes, no prazo de 5 dias.
Por requerimento de 24 de janeiro de 2020, veio a Requerente manifestar expressamente oposição à não realização da reunião do tribunal arbitral, por considerar a inquirição das testemunhas por si arroladas imprescindível à descoberta da verdade material, com indicação dos artigos da petição inicial sobre os quais entendia útil a produção da prova testemunhal.
Na reunião do tribunal arbitral, que teve lugar no dia 12 de março de 2020, foram inquiridas as testemunhas indicadas pela Requerente, o Exm.º Senhor Eng.ºB..., e a Exm.ª Senhora Dr.ª C..., com os sinais dos autos, cujos depoimentos se afiguraram isentos e coerentes.
Foi ainda determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, advertindo-se a Requerente para o pagamento do remanescente da taxa arbitral até ao dia 30 de março de 2020, data previsível para prolação da decisão final.
Foram aceites pelo tribunal arbitral, a requerimento dos mandatários da Requerente, os Exm.ºs Senhor Dr. H... e Senhor Dr. D..., com consentimento da Exm.ª Senhora Dr.ª E..., na qualidade de representante da AT, as declarações de rendas referentes aos anos de 1971 e de 1972 e à fração autónoma da propriedade da Requerente, apresentadas pela primeira testemunha, na qualidade de sócio da empresa construtora, primeira proprietária e locadora do dito imóvel, com prazo de vista à Requerida coincidente com o prazo para alegações escritas.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições inicialmente defendidas.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é materialmente competente e foi regularmente constituído em 22 de novembro de 2019, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. Não foram invocadas exceções que o tribunal deva apreciar e decidir.
4. O processo não padece de vícios que o invalidem.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA), da prova testemunhal produzida e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:
-
Factos Provados:
-
Em 01.01.2017, a Requerente era proprietária da fração autónoma designada pela letra E, correspondente ao 1.º andar esquerdo do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sito no ..., n.ºs ... a ..., com a Av.ª ..., Lote ..., com o VPT de € 171 470,00, determinado em 2015 (cfr. as cadernetas prediais emitidas pelo Serviço de Finanças de Lisboa ..., em 02.08.2017 e em 20.07.2016, juntas ao PPA como Doc. 3 e Doc. 11, que se dão como reproduzidos);
-
A referida fração autónoma foi objeto de avaliação geral de prédios urbanos em 24.03.2012, tendo sido criada a ficha de avaliação nº..., que lhe atribuiu a classificação de “habitação” com a tipologia T5 e o VPT de € 174 470,00 (cfr. cópia da ficha de avaliação junta ao PPA, que se dá como reproduzida);
-
A Requerente foi notificada do resultado da avaliação em 31.03.2012, Via CTT, tendo a inscrição automática na matriz ocorrido em 29.06.2012 (cfr. extrato informático de 24.01.2018, junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
A fração autónoma identificada beneficiou de isenção de IMI até ao ano de 2016, conforme a caderneta predial emitida pelo Serviço de Finanças de Lisboa..., em 20.07.2016, da qual consta: “ISENÇÕES Identificação Fiscal: ... Motivo: ASSOC SINDIC, ... Início: 1989 Valor isento: € 174 470,00” – Cfr. Doc. 11 junto ao PPA, que se dá como reproduzido;
-
Da “Declaração de prédio urbano total ou parcialmente arrendado”, modelo 130 da Contribuição Predial, apresentada na Repartição Central de Finanças de Lisboa em 25.01.1972, pela proprietária do prédio urbano sito na Av.ª..., n.ºs ... a ..., Lisboa, a F..., Ld.ª, por referência ao ano de 1971, foi indicado que a fração autónoma correspondente ao 1.º andar esquerdo se encontrava arrendada à sociedade G..., Ld.ª, desde 31.01.1966, com destino a “comércio” (cfr. cópia da declaração anexa à ata da reunião do tribunal arbitral, que se dá como reproduzida);
-
Em 31.01.1973, foi apresentada idêntica declaração para o mesmo prédio, na Repartição Central de Finanças de Lisboa, na qual foi indicado o arrendamento à Requerente da fração autónoma correspondente ao 1.º andar esquerdo, com destino a “comércio” (cfr. cópia da declaração anexa à ata da reunião do tribunal arbitral, que se dá como reproduzida);
-
Em 03.01.1983, a Requerente, na qualidade de proprietária da fração autónoma correspondente ao 1.º andar esquerdo do referido prédio urbano, ao tempo inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..., entregou na então Repartição de Finanças do ... Bairro Fiscal de Lisboa uma declaração para efeitos do disposto no § 1.º do artigo 3.º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, na qual indico que aquela fração autónoma “se encontra adstrita ao exercício da atividade de serviços prestados a empresas sujeita a Contribuição Industrial” (cfr. a declaração com cópia junta ao PPA – Doc. 4, que se dá como reproduzida);
-
A licença de utilização n.º ... – Processo n.º .../PGU/95, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em 17.01.1996, descreve a fração autónoma já identificada como sendo “Uma (1) ocupação destinada a escritório com área superior a 100 m2” (cfr. Doc. 12 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
De acordo com as telas finais da planta da fração autónoma, esta é composta por uma entrada/receção, um corredor de distribuição, uma sala de reuniões, uma sala de estar, um espaço de arquivo, um espaço de secretariado, duas instalações sanitárias, um espaço de arrumo e quatro gabinetes de trabalho (cf. Doc. 13 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
A referida fração autónoma destinou-se desde sempre a escritório, não possui quarto de dormir ou cozinha, não possui instalação de água quente, não está equipada com os eletrodomésticos básicos de uma casa de habitação e a banheira foi transformada numa estante para livros (prova testemunhal);
-
Em 30.06.2017, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de Adicional ao IMI (AIMI) n.º 2017..., em nome da Requerente, referente ao ano de 2017 e à fração autónoma identificada (...-E), pelo valor de € 685,88, resultante da aplicação da taxa de 0,40% ao VPT de € 171 470,00, pagável durante o mês de setembro de 2017 (cfr. Doc. 2 junto ao PPA que se dá como reproduzido);
-
A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado, em 27.09.2017 (cfr. Doc. 5 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
A Requerente apresentou reclamação graciosa junto do Serviço de Finanças de Lisboa..., em 22.01.2018, com fundamentação idêntica à do PPA (cfr. Doc. 6 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
O procedimento de reclamação graciosa, instaurado sob o n.º ...2018..., viria a ser indeferido por despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa..., datado de 26.01.2018, notificado à Requerente por ofício daquele Serviço de Finanças, remetido a coberto de carta registada com AR – Registo dos CTT n.º RH...PT, de 21.02.2019 (cfr. Doc. 7 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
Da informação de suporte à decisão de indeferimento da reclamação graciosa, consta designadamente que “(…) a liquidação de AIMI encontra-se corretamente liquidada, de acordo com as normas previstas no n.º 1 do artigo 135.º-C e n.º 1 do artigo 135.º-F do CIMI.
Quanto à classificação do prédio na matriz, a reclamação graciosa não é o meio adequado para promover correções à matriz ou ao Valor Patrimonial Tributário. (…)” (cfr. Doc. 7 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
A Requerente interpôs Recurso Hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, registado sob o n.º ...2019... e cuja decisão de indeferimento, conforme o despacho do Senhor Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, de 29.05.2019, notificada por ofício da Direção de Finanças de Lisboa, de 30.05.2019, expedido Via CTT (cfr. Doc. 1 junto ao PPA, que se dá como reproduzido);
-
Os fundamentos da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico, nos termos da Informação e Pareceres que a antecedem e para os quais remete, foram os seguintes: (i) “em resultado da Avaliação Geral, efetuada ao prédio urbano sob o artigo 621º-E (naquela altura) da freguesia de ... e, foi atribuído o Valor Patrimonial Tributário (VPT) de € 171.470,00, apurado nos termos dos artigos 38º e seguintes do CIMI e do artigo 15-D do DL 287/2003 de 12-11, tendo sido notificado dessa avaliação em 31-03-2012”, (ii) “No caso de não concordar com o resultado da avaliação, poderia requerer uma segunda avaliação no prazo de 30 dias contados da data em que tenha sido notificada, conforme previsto no artigo 15º-F do DL nº 287/2003 de 12-11, de qualquer maneira o recorrente não requereu a segunda avaliação. Na avaliação consta como Coeficiente de Afetação (Ca) “1,00” a que corresponde “Habitação”. Dado que o recorrente concordou com o resultado da avaliação, não tendo requerido uma segunda avaliação, dado que seria esta a altura ideal para alterar o coeficiente de afetação” e (iii) “Caso entenda, poderá apresentar uma declaração mod. 1 do IMI, junto do serviço de finanças, alterando a afetação do imóvel. Tal alteração só produzirá efeitos na liquidação respeitante ao ano do pedido efetuado, nos termos do n.º 8 do artigo 130.º do CIMI.”.
B – Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C – Fundamentação da matéria de facto provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorreram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao PA, dos depoimentos das testemunhas inquiridas, bem como da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.
III.2 DO DIREITO
1. Delimitação das questões a decidir
A principal questão a decidir nos autos é a de saber se, não obstante inscrita na matriz predial respetiva como destinada a habitação, uma fração autónoma comprovadamente afeta à atividade de serviços se encontra abrangida pela norma de incidência objetiva do n.º 1 do artigo 135.º-B do Código do IMI ou se, pelo contrário, beneficia da exclusão de tributação prevista no n.º 2 do mesmo artigo.
Haverá, para tanto, de proceder à apreciação dos vícios que vêm imputados pela Requerente à liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI) que sobre aquela fração autónoma incidiu, a fim de determinar se o ato tributário impugnado padece de ilegalidade que justifique a sua anulação.
Em primeiro lugar, invoca a Requerente a preterição de formalidade essencial em momento anterior ao da prática do ato de liquidação em análise, ou seja, reportada ao momento da inscrição matricial na sequência da avaliação geral determinada pela Lei n.º 60‐A/2011, de 30 de novembro, na qual foi apurado o valor patrimonial tributário do imóvel em causa, pois a AT tinha na sua posse elementos comprovativos da sua real afetação.
A tal argumentação contrapõe a Requerida que, caso a Requerente se não conformasse com o resultado da avaliação geral, que lhe foi regularmente notificado, poderia ter requerido segunda avaliação e, não se conformando com o resultado desta segunda avaliação, dele poderia deduzir impugnação judicial, o que não fez.
Avaliar significa determinar o valor de algo, no caso, o valor patrimonial tributário de um prédio urbano, de acordo com os critérios definidos pelo Código do IMI.
A Lei n.º 60‐A/2011, de 30 de novembro, aditou ao Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, os artigos 15.º-A a 15.º-P, contendo as regras a observar na avaliação geral dos prédios urbanos ainda não avaliados nos termos do Código do IMI, com a remissão expressa de que “Os valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos objeto da avaliação geral são determinados por avaliação direta, nos termos dos artigos 38.º e seguintes do CIMI.” (n.º 1 do artigo 15.º-D).
De entre os coeficientes que concorrem para a determinação do VPT dos prédios urbanos interessa à situação em análise o denominado “coeficiente de afetação – Ca” (artigos 38.º, n.º 1 e 41.º, do Código do IMI), dependente do tipo de utilização dos prédios edificados, atribuindo-se o Ca de 1,10 para os prédios afetos a serviços e o Ca de 1,00 para os afetos a habitação.
A descrição matricial da fração autónoma sobre que incidiu a liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral como destinada a habitação, apenas pode ter resultado de erro dos serviços da administração tributária, que tinham conhecimento da respetiva destinação desde 1983, por via da participação feita pela Requerente, que foram responsáveis pela “administração e gestão operacional da avaliação geral”, por competir “ao[s] chefe[s] de finanças fiscalizar a atuação dos peritos locais”, e que estavam na posse das “plantas de arquitetura das construções correspondentes às telas finais aprovadas” do imóvel, enviadas, “por via electrónica, pelas câmaras municipais aos serviços de finanças da área de situação dos prédios urbanos pela competente câmara municipal” (artigos 15.º-B, n.ºs 1 e 4 e 15.º-C, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, respetivamente).
É certo que o ato de fixação do VPT é um ato destacável para efeitos de impugnação judicial (artigos 77.º, do Código do IMI, artigos 97.º, n.º 1, alínea f) e 134.º, do CPPT e artigos 86.º, n.º 2 e 95.º, n.º 2, alínea b), da Lei Geral Tributária (LGT), não podendo os vícios que o afetam ser invocados na impugnação do ato de liquidação a que serve de base[1].
No entanto, no caso concreto dos autos, coloca-se a questão de saber se a Requerente, à data da notificação do resultado da avaliação geral, tinha interesse em agir, ou seja, se o ato de fixação do VPT era para si um ato lesivo, cuja lesividade determinasse o pedido de segunda avaliação impugnação judicial do resultado dessa segunda avaliação.
Estamos em crer que não, por diversas razões: (i) por um lado, se a fração autónoma de que se trata beneficiou de uma isenção entre 1989 e 2016, inclusive, conforme resulta do probatório, o VPT fixado na avaliação geral não daria origem a qualquer coleta que onerasse o sujeito passivo; (ii) por outro, e contrariamente ao que a Requerida invoca na sua Resposta, a Requerente apenas reflexamente contesta o VPT fixado na avaliação, não o fazendo de uma forma direta.
Concluindo-se que o objeto do pedido de pronúncia arbitral não é a impugnação do VPT na base da liquidação de AIMI, mas sim essa própria liquidação, por erro nos pressupostos de facto e de direito em que assentou, haverá que apurar da existência de tal erro.
Verifica-se o erro sobre os pressupostos de facto sempre que haja “uma divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do ato”; o erro sobre os pressupostos de direito consiste na “errada interpretação ou aplicação das normas legais, como as normas de incidência objetiva ou subjetiva, as que fixam as taxas ou as que conferem isenções ou outros benefícios fiscais ou as que determinam a matéria tributável.”[2].
Na situação em apreço, o erro sobre os pressupostos de facto deriva da errada descrição matricial da fração autónoma, quanto à sua afetação que, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 130.º, do Código do IMI, com fundamento em “erro na descrição dos prédios”, pode ser reclamada a todo o tempo.
Porém, vem a Requerida invocar o n.º 8 do citado artigo 130.º, do Código do IMI, segundo o qual “Os efeitos das reclamações, bem como o das correções promovidas pelo chefe do serviço de finanças competente, efetuadas com qualquer dos fundamentos previstos neste artigo, só se produzem na liquidação respeitante ao ano em que for apresentado o pedido ou promovida a retificação”.
Estamos, no entanto, em crer que, se tal asserção é verdadeira em sede de IMI, poderá não o ser em sede de AIMI, em especial se o erro na descrição do prédio se vier a traduzir numa violação das normas de incidência deste imposto.
O Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI) foi criado pelo artigo 219.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2017 e que deu origem aos artigos 135.º-A a 135.º-K, aditados ao Código do IMI.
O recorte da incidência objetiva deste novo imposto encontra-se delimitado pelo artigo 153.º - B, do Código do IMI, cuja redação inicial, aplicável à data dos factos, é a seguinte:
“Artigo 135.º-B - Incidência objetiva
1 - O adicional ao imposto municipal sobre imóveis incide sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos situados em território português de que o sujeito passivo seja titular.
2 - São excluídos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º deste Código.”.
Por seu turno, o artigo 6.º, do mesmo Código, sob a epígrafe de “Espécies de prédios urbanos”, para que remete o n.º 2 deste artigo 135.º-B, classifica-os da seguinte forma:
“1 - Os prédios urbanos dividem-se em:
a) Habitacionais;
b) Comerciais, industriais ou para serviços;
c) Terrenos para construção;
d) Outros.
2 - Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.
3 - Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos.
4 - Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da exceção do n.º 3.”.
É consabido que na interpretação das normas fiscais se seguem os mesmos cânones hermenêuticos aplicáveis na interpretação da generalidade das normas jurídicas (artigos 11.º, n.º 1, da LGT e 9.º, do Código Civil) e que, embora a interpretação se não deva cingir à letra da lei, esta é “não só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”, o que quer dizer que “o texto funciona também como limite da busca do espírito”[3], dada a presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Da análise comparativa do texto das normas do n.º 2 do artigo 135.º-B e do artigo 6.º, ambos do Código do IMI, resulta claramente que se encontram excluídos do âmbito de incidência do AIMI os prédios urbanos classificados como “Comerciais, industriais ou para serviços” e como “outros”.
Igualmente resulta claro da letra do n.º 2 do artigo 6.º, do Código do IMI que os prédios urbanos a que se refere a alínea b) do seu n.º 1, são “(…) os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins”.
Decorrendo da factualidade dada como provada que a fração autónoma sobre que incidiu a liquidação de AIMI objeto do pedido de pronúncia arbitral não só se encontra licenciada para serviços pela Câmara Municipal competente, como se destina efetivamente, desde há várias décadas até ao presente, à atividade de prestação de serviços, irrelevante se torna o erro dos serviços na sua descrição na matriz, face à norma de exclusão de incidência do n.º 2 do artigo 135.º- B, do Código do IMI.
Efetivamente, a constituição da relação jurídica de imposto pressupõe a existência de um facto tributário que o legislador erige como base da incidência, e que, no seu aspeto material, contempla uma dada realidade geralmente associada a uma manifestação de capacidade económica[4], assim como a existência de uma norma de delimitação negativa da incidência impede a produção do facto tributário relativamente à realidade por ela abrangida.
A norma de incidência objetiva do AIMI não abrange, por dela se encontrarem excluídos, os prédios urbanos classificados como “comerciais, industriais ou para serviços” e “outros”, independentemente da sua descrição matricial, pois quanto ao aspeto material do facto tributário, tendo em conta o princípio da capacidade contributiva, a substância prevalece sobre a forma.
Concluindo-se, deste modo, que o erro na descrição matricial da fração autónoma foi determinante do erro sobre os pressupostos de facto e, consequentemente, do erro na aplicação da norma de incidência, que inquinam de ilegalidade a liquidação de AIMI n.º 2017..., fica justificada a sua anulação, bem como a dos atos de segundo e de terceiro graus que a confirmaram.
2. Do pedido de juros indemnizatórios
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 43.º, da LGT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.
Tendo o processo arbitral tributário sido concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), deve entender-se que se compreende na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD o poder de apreciar o erro imputável aos serviços, considerando-se como tal o que não tenha sido motivado por errada declaração do contribuinte[5].
No caso presente, afigura-se manifesto que, declarada a ilegalidade e determinada a consequente anulação da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, por erro imputável aos serviços, terá de reconhecer-se o direito da Requerente a juros indemnizatórios sobre o valor indevidamente pago, desde a data do respetivo pagamento, conforme se estatui no n.º 5 do artigo 61.º, do CPPT.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos enunciados supra, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:
a. Declarar a ilegalidade da liquidação de AIMI n.º 2017..., no montante de € 685,88, referente ao ano de 2017, determinando a sua anulação;
b. Condenar a AT na restituição da quantia indevidamente paga pela Requerente, acrescida de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 685,88 (seiscentos e oitenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 23 de março de 2020.
O Árbitro,
Mariana Vargas
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Cfr. neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado”, Vol. II, 6.ª Ed., 2011, Áreas Editora, pág. 433 e Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, “Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada”, 4.ª Ed. 2012, Encontro da Escrita, pág. 744.
[2] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, obra citada, pág. 115.
[3] José de Oliveira Ascensão, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 13.ª Edição refundida, Almedina, Coimbra, pág. 396.
[4] Cfr. Manuel Henrique de Freitas Pereira, “Fiscalidade”, 2014, 5.ª Ed. Almedina, págs. 31 e ss.
[5] Neste sentido, Cfr, Diogo Leite de Campos e Outros, “Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada”, 4.ª Ed. 2012, Encontro da Escrita, pág. 342.