Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 419/2019-T
Data da decisão: 2020-02-11  IRC  
Valor do pedido: € 347.222,21
Tema: IRC - Exceção de incompetência em razão do valor; Aplicação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC a perdas decorrentes do método do justo valor em instrumentos financeiros de capital próprio com preço formado em mercado regulamentado.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os Árbitros Fernanda Maçãs (Presidente), Prof. Doutor Jorge Júlio Landeiro de Vaz e Alexandre Andrade (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Colectivo constituído em 30 de Agosto de 2019, decidem o seguinte:

 

I. Relatório

A..., S.A. (adiante designada por Requerente), Pessoa Coletiva n.º..., com sede social na Rua ..., n.º..., ..., ...-... ...,  ..., apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (adiante designada por Requerida).

A Requerente apresentou Pedido de Pronúncia Arbitral para obter declaração de ilegalidade (i) do despacho de Diretor de Finanças de ..., de 18 de março de 2019, que indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra aquele acto tributário, e (ii) da liquidação de IRC n.º 2018..., emitida em 12 de Julho de 2018, que incorpora a liquidação de juros compensatórios no valor de € 404,33, relativa ao exercício de 2014, da qual resultou o valor a pagar de € 3.876,56.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 21 de Junho de 2019 e posteriormente notificado à Requerida.    

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como Árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 9 de Agosto de 2019, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 30 de Agosto de 2019.

No Pedido de Pronúncia Arbitral a Requerente invoca, em síntese, que:

a)            A única questão dos autos se prende com o tratamento fiscal a dar às perdas decorrentes da aplicação do método do justo valor em instrumentos financeiros de capital próprio (acções), com um preço formado em mercado regulamentado (isto é, acções cotadas em bolsa de valores mobiliários), e que não representavam mais do que 5% do respetivo capital social das entidades a que respeitavam.

b)           A AT baseou a sua correcção numa interpretação ilegítima e ilegal do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, nos termos do qual “as perdas relativas a partes de capital, resultantes da aplicação do justo valor concorrem em apenas metade do seu valor (para apuramento do resultado tributável) e no tocante às variações positivas (…) foi considerado para efeitos do cálculo do ajustamento a efetuar, o saldo entre os ganhos e as perdas decorrentes da aplicação do justo valor”, em vez de o ganho que, nos termos da al. f) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRC, concorre na íntegra para a formação do resultado tributável, atribuindo-lhe uma abrangência que o legislador tributário nunca quis;

c)            Tendo a mesma questão da inaplicabilidade da limitação prevista no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, às perdas resultantes da mensuração de instrumentos financeiros de capital próprio através do modelo do justo valor sido já decidida no Proc. n.º 108/2018-T, ainda que por referência ao exercício de 2012, e sendo as Partes as mesmas, deve aplicar-se o caso julgado aí formado.

d)           Também o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido (Acórdãos proferidos nos processos n.º 0582/17, de 6 de Setembro de 2018, e n.º 01401/14, de 17 de Fevereiro de 2016), tal como os tribunais arbitrais (Procs. 155/2018-T, 89/2016-T, 231/2015, 208/2015, 58/2015-T, 776/2014-T e 108/2013-T), que a limitação à dedutibilidade prevista no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, não é aplicável quando estejamos perante ajustamentos de justo valor em instrumentos financeiros que cumpram as condições elencadas na al. a), do n.º 9, do artigo 18.º do Código do IRC.

e)           De resto, os procedimentos adoptados pela Requerente foram os que lhe eram legalmente impostos, pois após a aprovação e entrada em vigor do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), as acções detidas que eram cotadas em bolsa passaram a ser relevadas contabilisticamente pelo justo valor (valor decorrente da sua avaliação em bolsa), ao contrário do anterior normativo contabilístico (POC), no âmbito do qual estas acções eram contabilizadas pelo seu custo histórico (e.g., custo de aquisição).

f)            Sendo o ajustamento de transição relevante para efeitos fiscais de € 204.828,04 (€ 2.307.360,00 - € 2.102.531,96), impõe-se a consideração para o apuramento do resultado fiscal da Requerente e para o Grupo de sociedades por si dominado, para o exercício de 2014, do montante de € 40.965,61 (€ 40.965,61 = € 204.828,04 / 5), correspondente a 1/5 do referido ajustamento, a título de variação patrimonial positiva que deveria ter sido indicada no campo 703 da declaração modelo 22 do IRC, do exercício de 2014.

g)            Tendo em consideração que a Requerente deduziu na Modelo 22 de IRC, individual, o montante de € 96.003,41 (campo 705 do quadro 07), quando, de facto, deveria ter acrescido o montante de € 40.965,61, entende a Requerente que deveria ter-se apurado uma correção somente no valor de € 136.969,02 (€ 40.965,61 + € 96.003,41), em derrogação do acréscimo no montante de € 347.222,21 apurado pelos Serviços da Autoridade Tributária, conforme melhor se detalha seguidamente:

 

h)           A diferença que resulta entre o valor de perdas relevantes apurado pelos Serviços da Autoridade Tributária (€ 1.051.265,98) e o valor que a Requerente entende como correcto (€ 2.102.531,96), decorre do facto de os Serviços da Autoridade Tributária relevarem a variação negativa do justo valor apurada em apenas metade do seu valor, e não a totalidade do seu valor, por aplicação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC (na redacção em vigor à data).

i)             A restrição fiscal de não dedutibilidade prevista no n.º 3, do artigo 45.º, do Código do IRC, que os Serviços da AT consideraram aplicável, não se aplica às perdas apuradas em resultado da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros que cumpram os requisitos do artigo 18.º, n.º 9, al. a), do Código do IRC – como aqueles que eram detidos pela Requerente e estão aqui em causa.

j)             Tomás Cantista Tavares, in “IRC e Contabilidade – da Realização ao Justo Valor”, Almedina, Coimbra, pág. 246, refere que “A regra ínsita no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, restringia-se, inicialmente, à limitação fiscal das perdas económicas em partes de capital. No entanto, por superveniente alteração legal, essa estatuição estendeu-se também às variações patrimoniais negativas de capital próprio (…)”.

k)            Tal normativo visou as menos-valias resultantes de transmissão onerosa, tal qual é definida pelo artigo 46.º, ou seja, qualquer que seja o título por que opere, mas não abrange – nem nunca abrangeu – menos-valias potenciais em aplicações financeiras (e.g., instrumentos financeiros), ainda não realizadas.

l)             Ou seja: mesmo após a alteração consagrada na Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, manteve-se como condição que tais menos-valias ou perdas tenham origem numa “transmissão onerosa”.

m)          Atento o disposto no artigo 46.º, n.º 1, al. b), do Código do IRC, o legislador excecionou expressamente do conceito de mais ou menos-valias realizadas os ganhos ou os gastos com instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, al. a), do Código do IRC – como foi o caso.

n)           Na ausência de qualquer alteração ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, concomitante com a adopção, em 2010, do modelo do justo valor, aquela norma não admite nem comporta uma interpretação diferente da que vinha sendo aplicada pelo intérprete até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009.

o)           Aquela norma constante do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, continua a aplicar-se à diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que haja realização e transmissão onerosa, ou seja, que seja gerada uma perda efetiva.

p)           Ora, da leitura atenta dos três normativos do artigo 23.º, n.º 1, artigo 24.º, n.º 1, e artigo 45.º, n.º 3, todos do Código de IRC, resulta claro que os conceitos de gastos e perdas e variações patrimoniais negativas são conceitos distintos e autónomos, que deverão ter, necessariamente, tratamento tributário distinto, e não um tratamento indistinto e uniforme.

q)           O facto de o legislador não ter diferenciado, aquando da introdução do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, norma entretanto revogada, entre perdas e variações patrimoniais realizadas e perdas e variações patrimoniais não realizadas, para o efeito de subtrair estas à restrição consagrada naquela norma, não pode ser logicamente valorado como qualquer manifestação de vontade, ainda que meramente implícita, no sentido de os gastos resultantes da aplicação do justo valor serem abrangidas por essa limitação à dedutibilidade.

r)            A norma do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, não se aplica às perdas apuradas por aplicação do método do justo valor na valorização dos instrumentos financeiros, mormente de instrumentos de capital próprio cujo preço seja formado num mercado regulamentado e relativamente aos quais o detentor não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social, na medida em que nestas situações o sujeito passivo não tem qualquer capacidade de interferência na formação do preço e na escolha do momento da realização/reconhecimento das perdas na transmissão dos respetivos instrumentos financeiros.

s)            Na interpretação adoptada pela AT, avessa ao que resulta da devida interpretação sistemática, histórica e teleológica, o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC padeceria de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP.

t)            Em consequência, pede a Requerente a restituição do montante de imposto indevidamente pago e o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Na Resposta, além da excepção de incompetência do Tribunal em razão do valor, que será considerada adiante em separado, a Requerida veio invocar, em síntese, o seguinte:

a)            O Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, que iniciou vigência em 1 de Janeiro de 2010, procedeu à alteração do referencial contabilístico até aí vigente (POC) pelo Sistema de Normalização Contabilística (SNC).

b)           Tendo em atenção a estreita ligação entre a contabilidade e a fiscalidade, mormente na tributação das sociedades, foi publicado o Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, em cujo Preâmbulo se escrevia que “Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como às partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.”

c)            Por força do artigo 18.º, n.º 9, do CIRC, os ajustamentos que ocorram por aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável, sempre que respeitando a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, i) tenham um preço formado em mercado regulamentado e, ii) o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação de capital superior a 5% do respectivo capital social.

d)           Não obstante a opção de acolher o modelo do justo valor, entendeu o legislador criar mecanismos transitórios que acautelassem o impacto que a alteração no sistema de mensuração provocaria nos capitais próprios das empresas.

e)           A dedução em metade da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas e de outras perdas e variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital abrangidas pelo artigo 45.º, n.º 3, sempre se aplicou tanto aos casos em que aquelas menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas, resultavam de operações realizadas em mercados regulamentados (bolsas de valores) como fora desses mercados.

f)            A desaplicação do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC às situações particulares previstas no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, redundaria numa situação de injustiça, dado que conferiria um tratamento mais desfavorável às situações em que não se aplicasse tal norma, ainda que se tratassem de participações sociais mensuradas ao justo valor nos termos das respectivas normas contabilísticas, dado que a menos-valia verificada nessa alienação efetiva seria tributada em apenas metade, ao passo que a perda verificada nas participações sociais mensuradas ao justo valor, mas contempladas na previsão do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, de acordo com a tese da Requerente, não sofreria qualquer limitação, sendo totalmente considerada para efeitos de apuramento da matéria colectável.

g)            Se o legislador não estabeleceu qualquer diferença entre operações realizadas em mercados regulamentados ou em mercados não regulamentados, com que legitimidade se pode construir uma interpretação do artigo 45.º, n.º 3 que excluísse do respectivo âmbito, as menos-valias, bem como outras perdas e variações patrimoniais negativas apuradas em operações com instrumentos de capital próprio, realizadas em mercados regulamentados?

h)           Este normativo, à semelhança de outros dispersos pelo Código do IRC, tem subjacente o propósito de atenuar os efeitos de práticas de erosão na base tributável, que também se inserem, na actualidade, nos objetivos da política fiscal, não consentindo que o intérprete se arrogue o direito de subtrair do seu âmbito quaisquer menos-valias ou outras perdas ou variações patrimoniais negativas, em função do modo e local de realização das operações concretas que lhe tenham dado origem.

i)             É inegável que subjacente à redação dada ao art.º 45.º, n.º 3, do CIRC estiveram considerações e preocupações relacionadas com a prevenção de práticas evasivas, cujo âmbito foi evoluindo no sentido da sua ampliação, por forma a não excluir operações e situações que, envolvendo igualmente partes de capital ou outras componentes do capital próprio, pudessem produzir os mesmos efeitos das inicialmente contempladas.

j)             O conceito “perdas” ínsito no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC reveste uma formulação aberta, no âmbito da qual se enquadram todo o tipo de perdas relativas a partes de capital, incluindo as perdas potenciais.

k)            A aplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC não depende da circunstância das perdas terem sido, ou não, efetivamente realizadas, mas antes da circunstância de tais perdas constituírem gastos do período.

l)             O entendimento da Administração Tributária consta da Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º 39/2011, com despacho de 24-02-2011 do Diretor-Geral, e foi reafirmado através de informação sancionada pela Diretora Geral por despacho de 16-11-2018.

m)          Da norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC retiram-se dois segmentos diversos:

- um relativo ao tratamento a conferir à diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas através da transmissão onerosa de partes de capital e,

- outro relativo a outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital.

n)           No caso em apreço não estamos perante uma situação com cabimento na primeira parte da norma, e por isso sujeita ao tratamento fiscal das mais e menos valias, mas sim da segunda, isto é, perdas resultantes da variação do justo valor, decorrentes da depreciação da cotação das acções detidas.

o)           O artigo 18.º, n.º 9, do CIRC, que a Requerente vê como sede do tratamento fiscal dos ajustamentos positivos ou negativos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos de capital próprio com preço formado num mercado regulamentado, contém apenas a definição dos critérios de imputação temporal das componentes positivas e negativas do lucro tributável, dando concretização ao princípio da especialização dos exercícios, cabendo aos artigos 20.º e seguintes a determinação das regras aplicáveis no apuramento do lucro tributável.

p)           O termo “gastos” utilizado tanto na epígrafe dada ao artigo 23.º, no âmbito das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, como na redação da alínea i) do n.º 1 desse preceito (Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiro), tem necessariamente de ser entendido em sentido amplo, i.e. cobrindo, em substância, os gastos propriamente ditos e as perdas.

q)           A dicotomia entre “gastos” e “perdas” só pode qualificar-se como uma imprecisão terminológica do legislador sem consequências ao nível da interpretação daqueles preceitos, até tendo em consideração o artigo 17.º, n.º 1 do CIRC, já que, no Código de Contas do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a conta 661, onde são registados os ajustamentos negativos decorrentes da utilização do justo valor, sempre foi denominada Perdas por reduções de justo valor em instrumentos financeiros, tendo aquela imprecisão sido corrigida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com a substituição, nesses preceitos, de “gastos” por “perdas”.

r)            André A. Vasconcelos, “O justo valor e o Código do IRC”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, n.º 4, p. 202, refere que “Pela leitura deste preceito [n.º 3 do art. 42.º, actual art. 45.º], e dada a extensa abrangência do mesmo, somos levados a concluir que todas as perdas referentes a partes de capital, onde se incluem os activos financeiros ora em análise [aqueles a que se refere a aliena a) do n.º 9 do art.18.º do CIRC], apenas relevarão para efeitos fiscais em metade do seu valor”, e no mesmo sentido vão A. C. Pires Caiado/Luís C. Viana/Luís P. Ramos, Luísa Anacoreta Correia, e Helena Martins.

s)            Quanto ao facto de a subsunção ao regime de dedução parcial previsto no art.º 45.º, n.º 3, dos gastos/perdas apurados nos termos e condições referidos no art.º 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, não ser acompanhado de um tratamento simétrico para os rendimentos/ganhos, e da potencial injustiça que daí possa resultar, na verdade, inexiste um dispositivo legal que permita a consideração de apenas metade do seu valor no cálculo do lucro tributável.

t)            E se o legislador, nem antes nem depois de 2010, introduziu qualquer disposição a consagrar uma solução simétrica para os rendimentos/ganhos e gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor, nos termos e condições a que se refere o art.º 18.º, n.º 9, alínea a), também não pode o intérprete, seja a AT ou o sujeito passivo, substituir-se-lhe nessa tarefa.

u)           Se fosse intenção do legislador excluir do âmbito de aplicação do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC (renumerado pelo DL n.º 159/2009), as variações patrimoniais negativas apuradas pelos ajustamentos de transição decorrentes da alteração do normativo contabilístico, bem como as perdas aceites fiscalmente decorrentes da redução do justo valor através de resultados, certamente tê-lo-ia deixado claro na lei, promovendo, para o efeito, a devida excepção/ alteração à norma em presença.

v)            A fundamentação que sustenta a conclusão da jurisprudência arbitral invocada pela Requerente:

(i) assenta numa falácia terminológica que envolve “gastos” – utilizado na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º e na alínea j) do n.º 1 do artigo 23.º - e “perdas” – utilizado no artigo 45.º;

(ii) desvaloriza o sentido e alcance da expressão “outras perdas relativas a partes de capital”, que justamente abrange todas e quaisquer perdas associadas a estes ativos financeiros que não cabem no conceito de menos-valias dado pelo n.º 1 do artigo 46.º do Código do IRC; e

(iii) dá prevalência ao elemento teleológico da redação inicial da norma ligado à intenção de combater a evasão fiscal que a dedução das menos-valias com a transmissão onerosa de partes de capital propiciava, em detrimento do elemento literal.

w)          O sentido das Decisões Arbitrais não colheu unanimidade, sendo de destacar os processos n.º 25/2015-T e n.º 90/2016-T, onde o Tribunal se pronunciou pela improcedência dos pedidos.

x)            Não pode aceitar-se o argumento no sentido de que a revogação do artigo 45.° do CIRC e a sua substituição pelo artigo 23º-A, efectivada pela Lei n.º 2/2014, na decorrência da qual as perdas relativas a partes de capital passaram a ser totalmente dedutíveis por opção expressa do legislador, tem um caráter interpretativo.

y)            Com a entrada em vigor da mencionada reforma do IRC, estas perdas passaram a ser totalmente dedutíveis, por opção expressa do legislador (que entendeu dever ser assim depois de 1 de janeiro de 2014, pois que essa reforma se aplica, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, “aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram em ou após 1 de Janeiro de 2014”.

z)            Na linha da jurisprudência dos tribunais superiores e do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, esta norma não conflitua com o princípio da tributação do lucro real consagrado na Constituição, nem com o princípio da proporcionalidade, bem como de idênticos princípios firmados pela jurisprudência do TJUE no que respeita à legitimidade das normas anti-abuso específicas.

aa)         No caso concreto, não obstante o facto da referida norma ter sido introduzida no contexto do POC e não do SNC - no âmbito do qual os ganhos ou perdas que decorressem da variação da cotação das partes de capital não tinham qualquer relevância, ocorrendo a tributação aquando da sua transmissão - o legislador deixou permanecer a referida norma, mesmo quando se operou uma alteração profunda ao CIRC por força da aplicação do SNC, como vem sendo dito.

bb)         Não poderá ser assacada ao acto tributário impugnado qualquer tipo de ilegalidade ou inconstitucionalidade pois a própria Constituição da República Portuguesa legitima a aplicabilidade de regimes especiais, não obrigando a exclusividade da tributação segundo o rendimento real.

cc)          Entendendo-se não enfermar o ato de liquidação de qualquer vício que deva ditar a sua anulação e devendo improceder, portanto, o pedido principal, deve improceder também o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Por despacho de 26 de Outubro de 2019 foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido fixada a data de 28 de Fevereiro de 2020 para a prolação da decisão arbitral.

As Partes apresentaram alegações, nas quais mantiveram, de um modo geral, as respectivas posições.

 

II. Saneamento

O Tribunal Arbitral Colectivo foi regularmente constituído.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).

 

A Requerida veio, na resposta, suscitar a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral Colectivo em Razão do Valor. As questões de determinação da competência dos tribunais são de conhecimento prioritário e de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo Tribunais Administrativos (CPTA) e do artigo 578.º do Código de Processo Civil (CPC) por aplicação subsidiária do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributaria (RJAT), pelo que importa assim face ao exposto apreciar a exceção dilatória invocada.

 A Requerida fundamenta a excepção nos termos sumários que passamos a indicar.

“A Requerente indica como valor da ação o montante de € 347.222,21, o qual corresponde à correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) respeitante a um ajustamento de transição do POC para o SNC, com fundamento no disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho e nos artigos 18.º, n.º 9, al. a) e 45.º, n.º 3, ambos do Código do IRC”.

“Esclarecendo a Requerente:

«5 A correção efetuada pelos Serviços corresponde ao acréscimo ao resultado tributável do exercício de 2014, no montante de € 347.222,21, referente a um ajustamento de transição positivo, com fundamento no disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho (“DL 159/2009”) e nos artigos 18.º, n.º 9, al. a) e 45.º, n.º 3, ambos do Código do IRC.

(…)

13 A concretização desta correção por parte dos Serviços fez com que a Requerente, enquanto sociedade dominante do Grupo, passasse de uma situação em que apurava IRC a reembolsar no montante de € 35.030,70, para passar a apurar IRC a reembolsar no montante de € 32.523,83,

14 O que resultou em saldo a pagar, a título de IRC, pela Requerente, a favor da Autoridade Tributária, no montante de € 3.876,56 (doc. n.º 1).

15 Embora a Requerente não se conforme, nem concorde, com as correções levadas a cabo ao seu resultado fiscal do exercício de 2014 e, bem assim, ao cálculo do IRC a recuperar naquele exercício,

16 Ainda assim a Requerente procedeu ao pagamento do imposto que lhe foi adicionalmente liquidado pela Autoridade Tributária, no montante de € 3.876,56 – vide comprovativo de pagamento que adiante se junta como doc. n.º 6.»”

“Sendo que, a final, vem a Requerente peticionar a anulação da «liquidação adicional de imposto de € 3.876,56, com a consequente restituição à Requerente deste valor» acrescido de juros indemnizatórios.” (…)”

A Requerida invoca, a favor da sua tese, doutrina e jurisprudência do CAAD e do Tribunal Central Administrativo Sul.” (…)”.

 Acresce, ainda, “Pelo que o valor da ação arbitral corresponde ao valor da liquidação impugnada e que a Requerente pede que lhe seja restituído, isto é a quantia certa de € 3.876,56, de acordo com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT” e não à correcção efectuada no valor de €347 222,21.”

A Requerida conclui que, “assim sendo, o tribunal arbitral deveria ter sido constituído como árbitro singular e não coletivo, de acordo com o artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do RJAT.”

 

Em exercício do contraditório veio a Requerente argumentar, entre o mais, que se limitou a seguir a jurisprudência anteriormente fixada na Decisão Arbitral n.º 322/2017-T.

Com efeito, em relação ao exercício de 2012, cumpriu o plasmado na al. a), do n.º 1, do artigo 97.º-A do CPPT, indicando como valor da ação arbitral o valor da liquidação  do exercício de 2012 que pretendia anular. O  Tribunal Arbitral Singular, que fora àquela data constituído decidiu que, não obstante a existência de uma liquidação emitida pela Requerida/AT (da qual resultava o valor de € 6.858,91 a pagar), não seria aquele o valor da utilidade económica do pedido, decidindo pela improcedência do pedido, com base na exceção dilatória de incompetência relativa em razão do valor e absolveu a Requerida/AT da instância e fixou como valor da ação o montante de € 817.389,93, que correspondia às correções efetuadas pelos SIT  naquele exercício de 2012 – de entre as quais se encontrava uma correção no montante de € 347.222,21 referente a ajustamentos de transição do POC para o SNC, para o período de 2012 e agora sub iudice quanto ao exercício de 2014.

Ora, o Tribunal Arbitral Singular constituído fundamentou a sua decisão com o facto de se tratar de uma liquidação adicional que, embora se referisse a “IRC”, dela apenas resultava o pagamento de derrama municipal (e juros compensatórios) e não propriamente IRC – à semelhança do que sucede nos presentes autos, motivo pelo qual o valor da ação arbitral deveria corresponder às correções efetuadas pelos SIT, concretamente ao acréscimo à matéria coletável do exercício de 2012 e não ao valor adicionalmente liquidado que se pretendia anular.

A Requerente apresentou novo pedido arbitral “a solicitar a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC e indicou como valor da ação arbitral o valor das correções afetuadas ao exercício de 2012 pelos SIT, no valor de € 817.389,93”, conforme havia decidido o Tribunal Arbitral singular, no processo n.º 322/2017-T, o que foi aceite pelo Tribunal Coletivo, conforme acórdão arbitral proferido no processo n.º 108/2018-T.

Sendo este processo semelhante a Requerente indicou como valor da ação que deu causa aos presentes autos o montante de € 347.222,21 (valor das correções efetuadas pelos SIT) e não o valor da liquidação adicional (€ 3.876,56), seguindo assim o entendimento veiculado pela decisão arbitral n.º 322/2017-T e pelo acórdão arbitral n.º 108/2018-T, ambos emitidos à aqui Requerente, e que têm autoridade de caso julgado nos presentes autos.

Conclui a Requerente que não pode “(…)  ser agora prejudicada com a eventual procedência da exceção dilatória de uma alegada incompetência do Tribunal Arbitral Coletivo por ora constituído, o que redundaria numa violação do princípio da proteção da confiança, assente nas legítimas expectativas da Requerente”.

Nas contra-alegações veio a Requerida argumentar que em relação à decisão proferida no processo arbitral n.º 322/2017-T, que absolveu a AT da instância, se trata de decisão de natureza processual, com força de caso julgado formal e não material. Por outro lado, o Tribunal Colectivo constituído para julgar o processo n.º 108/2018-T nada decidiu sobre a questão da sua competência em razão do valor.

Vejamos.

Assiste razão à Requerida quanto ao facto de a Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 322/2017-T, ao declarar-se incompetente em razão do valor da causa, consubstanciar decisão de natureza processual, com força de caso julgado formal, e, por conseguinte, com força obrigatória restrita dentro do processo.

No entanto, a Requerida parte do pressuposto de que a Requerente se limita a pedir a declaração de ilegalidade do despacho do Diretor de Finanças de ..., que indeferiu a reclamação graciosa e a liquidação de IRC n.º 2018..., no valor de € 3.876,56.

Ora, a Requerente termina o Pedido Arbitral pedindo:

a.            “ser declarado ilegal e anulado o despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente;

b.            ser declarada ilegal e anulada a correção efectuada ao resultado fiscal da Requerente, que corresponde ao acréscimo ao resultado tributável do exercício do montante de €347.222,21, referente a um ajustamento de transição positivo, com fundamento no disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, que incorpora um ajustamento de transição negativo apurado nos termos dos artigos 18.º, n.º 9, alínea a) e 45.º, n.º 3, do Código do IRC;

c.            ser declarada ilegal e anulada a liquidação adicional de imposto de € 3.876,56, com a consequente restituição à Requerente deste valor (…)”

 

Temos, assim, que a Requerente impugna, em primeira linha, a correcção efetuada ao resultado fiscal, que corresponde ao acréscimo ao resultado tributável do exercício do montante de €347.222,21, e, é nessa sequência ou enquanto corolário da declaração de ilegalidade dessa correcção, que a Requerente impugna a liquidação adicional, enquanto mero ato consequente.

Assim sendo, ao contrário do sustentado pela Requerida, considerando o sentido global do pedido e da causa de pedir, no contexto do caso dos autos, não é líquido, que, nestas situações o valor económico seja o estritamente resultante da declaração de legalidade da liquidação. Neste sentido, além da mencionada pela Requerente, cfr. a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 636/2017-T. 

Mesmo que assim se não entendesse, sempre seria de considerar competente o presente Tribunal Arbitral, porquanto, nas palavras de CARLA CASTELO TRINDADE, na “medida em que o julgamento arbitral perante tribunal coletivo só trará mais garantias a qualquer uma das partes e atribuirá maior legitimidade à decisão arbitral proferida, ”por aplicação da“ máxima a maiori, ad minus (cfr. Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado, 2016, Almedina, Coimbra, p.281).

Termos em que improcede a alegada excepção de incompetência do Tribunal em razão do valor, considerando-se competente o presente Tribunal Arbitral Colectivo. 

O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III. Matéria de Facto

III.1. Factos Provados

Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, este Tribunal Arbitral considera provados, com relevo para a Decisão, os seguintes factos:

1.            A Requerente é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS) de um grupo de sociedades, conhecido como grupo A..., tributado através do regime especial de tributação de grupos de sociedades “RETGS”, detendo participações em 2014, entre outras, nas seguintes sociedades: B..., S.A.; C..., S.A.; D..., SGPS; E..., S.A.; F..., S.A.; G..., S.A. e H..., SGPS.

2.            As participações, directas e indirectas, da “holding”, Requerente neste processo, são inferiores a 5% nas participadas listadas acima, com excepção da B..., onde a participação global (directa e indirecta) é superior a 5%.

3.            Em 26 de Maio de 2015, a Requerente entregou a declaração individual de rendimentos Modelo 22 de IRC, referente ao exercício de 2014.

4.            Em 1 de Junho de 2015, a Requerente entregou a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC do Grupo de Sociedades, referente ao exercício de 2014.

5.            Após a submissão daquelas declarações de rendimentos, e na sequência de inspeções tributárias levadas a cabo às sociedades suas dominadas, com referência ao IRC do exercício de 2014, foram efectuadas correcções ao resultado tributável apurado por essas sociedades, as quais, na componente em que foram aceites por essas sociedades, vieram a alterar o resultado fiscal do Grupo dominado pela Requerente.

6.            Em 17 de novembro de 2016, a Requerente procedeu à submissão de declaração de rendimentos Modelo 22 de substituição respeitante ao exercício de 2014 e ao Grupo de sociedades por si dominado.

7.            Os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) realizaram, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2018..., um procedimento de inspeção, na esfera individual da Requerente, que incidiu sobre o IRC do período de tributação de 2014, com o objectivo de proceder à análise dos ajustamentos de transição POC/SNC.

8.            A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária em 28 de Junho de 2018.

9.            Os SIT verificaram que a Requerente inscreveu no campo 705 do quadro 07 da declaração modelo 22, relativo a variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no artigo 5.º, n.º 1, 5 e 6 do DL n.º 159/2009, de 13/7) a deduzir ao lucro líquido do período, o montante de € 96.003,41.

10.          Os SIT procederam a correcções à matéria colectável apurado pela Requerente a nível individual, a que correspondeu o acréscimo de valor do resultado tributável declarado pela Requerente no montante de € 347.222,21 (€ 251.218,80 + € 96.003,41).

11.          Em consequência, a Autoridade Tributária efectuou uma correcção ao valor do lucro tributável, a nível individual, no valor de € 347.222,21, passando o lucro tributável de € 833.505,84, para € 1.180.728,05.

12.          Tendo a Autoridade Tributária feito reflectir nas contas consolidadas do grupo as correcções efectuadas a nível individual, passando o resultado fiscal do grupo de sociedades de um prejuízo fiscal declarado de € 366.730,39, para um prejuízo fiscal no montante de € 19.508,18.

13.          Foi então emitida pela Autoridade Tributária em 12/7/2018, a liquidação de IRC n.º 2018..., relativa ao exercício de 2014, de que resultou um valor a pagar de € 3.876,56, numa correcção de IRC a reembolsar da Requerente, sociedade mãe do grupo, que passou de € 35.030,70 para € 32.523,83€.

14.          A Requerente pagou o montante de IRC liquidado € 3.876,56, tendo apresentado reclamação graciosa, à qual foi dado o n.º ...2018... .

15.          A Reclamação Graciosa foi indeferida por despacho do Director de Finanças de ..., de 18 de Março de 2019, decisão que motivou a apresentação do Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

III.2. Factos Não Provados

Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

III.3. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes e nos documentos juntos pelas Partes ao presente Processo Arbitral, incluindo o Processo Administrativo.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos Autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

 

IV. Matéria de Direito

 

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade: (i) do despacho de Diretor de Finanças de Aveiro, de 18 de Março de 2019, que indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra aquele acto tributário, e (ii) da liquidação de IRC n.º 2018..., emitida em 12 de Julho de 2018, que incorpora a liquidação de juros compensatórios no valor de € 404,33, relativa ao exercício de 2014, da qual resultou o valor de € 3.876,56 a pagar.

Tal como resulta do Pedido de Pronúncia Arbitral, a correcção de IRC aqui em análise respeita à tributação em sede IRC referente ao exercício de 2014, correcção essa que corresponde ao acréscimo ao resultado tributável desse exercício, no montante de € 347.222,21, com fundamento no facto de a Requerente ter apurado um ajustamento de transição que tem subjacente a consideração da totalidade da perda relativa à variação patrimonial negativa apurada pela aplicação da mensuração de justo valor aos instrumentos financeiros de capital por si detidos até ao limite de 5% desse capital social – o que é dizer que está em causa a aplicação, ou não, do disposto no então artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC.

Como nota prévia, no Pedido de Pronúncia Arbitral a Requerente invocou a autoridade de caso julgado do processo n.º 108/2018-T (CAAD) face aos presentes autos pela invocada razão de as partes serem as mesmas e ser a mesma a questão essencial a decidir – ainda que referente a IRC de dois diferentes exercícios (2012 e 2014). Ora, atendendo à definição de caso julgado que consta do artigo 581.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), facilmente se constata que há identidade de sujeitos (“as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”) e até pode haver identidade de pedido (porque “numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”), mas não há identidade de causa de pedir: o facto jurídico que foi apreciado no processo n.º 108/2018-T foi um acto de liquidação da AT, o acto de liquidação da AT que está em análise no presente processo é diferente e totalmente alheio ao primeiro.

Diferente da força de caso julgado é a influência dos precedentes, sobretudo quando estes assumem natureza de jurisprudência estabilizada. Como referido pela Requerente, a jurisprudência do STA e a maioria das decisões proferidas no CAAD sobre o dissídio entre as partes sobre a aplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC à variação patrimonial negativa apurada pela aplicação da mensuração de justo valor aos instrumentos financeiros de capital detidos até ao limite de 5% desse capital social, é favorável ao entendimento da Requerente.

 

Na Decisão Arbitral no processo n.º 30/2015-T ficou expressamente referido o seguinte:

 

“No que diz respeito à questão de fundo [...] importa verificar as consequências fiscais da mensuração ao justo valor, em 2011 e 2012, de participações financeiras da Requerente constituídas por acções representativas do capital social da E…, SA, da C…, SA, da D…, SA e da B..., SA, todas elas correspondentes a menos de 5% do capital social dessas sociedades e admitidas à negociação em mercado regulamentado.

 Trata-se aqui de questão que já foi objeto de diversos acórdãos do Centro de Arbitragem Administrativa, nomeadamente, o proferido no processo 108/2013-T, que seguiremos de muito perto.

Como é pacificamente aceite por Requerente e Requerida, a questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber qual o tratamento fiscal a dar às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados.

(…)

Normativamente, o epicentro do dissídio corporizado nos autos situa-se na norma do artigo 45.º/3 do CIRC aplicável  cujo texto refere que:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

Nos autos, cumprirá então apurar se esta norma se aplica ou não ao caso em apreço, como defende a AT na sua resposta ou se, pelo contrário, a situação sub judice não se subsume a tal preceito.

(...)

Sustenta a AT que a norma atrás aludida, ao referir especificamente que “outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio (...), concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”, estará a abranger situações como a dos autos, impondo que a variação patrimonial negativa em questão concorra para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. Louva-se a AT na opinião de André A. Vasconcelos , que se justifica com a extensa abrangência do mesmo.

Refere também a AT, notando a manutenção da redacção do preceito que nos ocupa, face às alterações do CIRC motivadas pelo início da vigência do SNC, que a ausência de alterações verificadas na norma em causa, revela que não se pretendeu que o regime em causa sofresse qualquer alteração, em função das alterações introduzidas no sistema de contabilidade. Por fim, invoca ainda a AT o Acórdão do Tribunal Constitucional 85/2010 , que julgou constitucional a norma em apreço.

(…)

cada uma das normas tidas como relevantes para a apreciação da questão decidenda, deverá ser compreendida no correspondente enquadramento concreto, daí se retirando o seu conteúdo significante.

Assim, antes de mais, haverá que ter presente que o actual artigo 45.º/3 do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º/3, efectuada pelo Decreto-Lei nº 159/2009. Aquele n.º do artigo 42.º em causa, por sua vez, foi introduzido pela Lei 32B/2002, de 30 de Dezembro, com a seguinte redacção: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

De acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por duas prioridades, a saber: o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51). A redacção actual da norma em análise resultou já da alteração implementada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (p.31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “COMBATE À EVASÃO E FRAUDE FISCAIS E OUTRAS MEDIDAS DIRECCIONADAS À CONSOLIDAÇÃO ORÇAMENTAL”.

Por sua vez, o n.º 9 do artigo 18.º do CIRC, aplicável, obtém directamente a sua justificação no preâmbulo do DL 159/2009, de 13 de Julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5% do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados. (...).

No mesmo sentido, identificam-se como activos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com excepção daqueles em que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação.”

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do número 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de “proveitos” e “ganhos” (artigo 20.º), passou-se a falar de “rendimentos”, e onde antes se utilizava a expressão “custos” ou “perdas” (artigo 23.º), aquela foi substituída pela de “gastos”.

A aplicação do justo valor como critério de valoração contabilístico com relevância fiscal, corresponde a uma alteração coperniciana no regime da tributação dos rendimentos ou gastos resultantes da aquisição de instrumentos financeiros. Com efeito, previamente à adopção do justo valor, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º/1/b) do CIRC. Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

Este enquadramento fiscal tinha (como tem na parte em que se mantém) três características bem vincadas, a saber:

1. Era uma tributação única, ou seja, que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros;

2. Estava dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo, na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo assim o quisesse;

3. A valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária.

A conjugação destas três características que se vêm de apontar propiciavam, desde logo, um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia optar por desencadear a relevância tributária no momento e termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º/3 do CIRC, que precede o actual artigo 45.º/3 do mesmo.

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5% do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5% do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

Em consonância, o artigo 18.º/9 do CIRC aplicável, veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados.” Trata-se aqui de um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, nos seguintes termos: “excepto quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social;”

Ou seja, e igualmente conforme assumido pela entidade legislante, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor” “concorrem para a formação do lucro tributável” “desde que”:

a. Sejam reconhecidos “através de resultados”;

b. Se tratem “de instrumentos do capital próprio”;

c. “Tenham um preço formado num mercado regulamentado” e

d. “O sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social.”

Cumpridas estas condições:

a. consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 20.º/1/f) do CIRC); e

b. consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 23.º/1/i).

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única (one-off), aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º/1/f) e 23.º/1/i) do CIRC) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º/9 do CIRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º/1/b) do CIRC). Neste quadro cessam, manifestamente, de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada.

Contra o exposto, não se argumente, entre o mais, que o mercado regulamentado é sempre manipulável, tal como os preços nele fixados, e que o limite de 5% permite, em qualquer situação, ter influência significativa nos impostos a pagar.

Se é verdade que não se pode afirmar, em tese geral, que nenhum mercado está isento de manipulação, daqui também não se pode inferir que, em abstracto, um detentor de 5% de participações seja susceptível de influenciar por si só o mercado. Trata-se de uma conclusão despropositada, porque assente no pressuposto de um mercado pouco activo, com fraca liquidez, onde actuam poucos “players” e, por isso, susceptível de ser influenciado por actores individuais. Pelo contrário, cada agente, isoladamente considerado, tem, em regra, uma influência marginal, se a referência para o justo valor for o preço praticado num mercado activo, com níveis de liquidez significativos, caracterizado por uma pluralidade de agentes, quer do lado da procura, quer da oferta, e com preços regularmente divulgados. Acresce que o poder de influência significativa ou relevante do preço de mercado depende da convergência de vários actores e de múltiplos factores, tais como do activo específico em causa e da estrutura do capital da sociedade associada.

Perante o exposto, afigura-se carecer de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

Não obstante todas as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º/3 do CIRC, renumerado para artigo 45.º/3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º/9/a) do CIRC.

Prima facie, a resposta a tal questão seria afirmativa, como defende a AT, atenta a abrangência de previsão em questão, apontada já pelo Autor citado por aquela na sua resposta.

Uma leitura atenta e coordenada dos normativos relevantes para a análise da causa, e que já se foram indicando, permitirá, todavia, concluir de outra forma.

Senão vejamos.

O artigo 45.º/3 do CIRC, já transcrito, refere que:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

A análise do texto normativo revela com clareza que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, em função da presunção de boa técnica legislativa, por distintas, a saber:

a. “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

b. “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

c. “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

 A situação aludida sob a alínea a) supra, não é aplicável ao caso concreto em apreço, uma vez que o artigo 46.º/1/b) do CIRC exclui as situações descritas no artigo 18.º/9/a) do conceito de mais-valias realizadas, ou seja, exclui expressamente do conceito de mais-valias a alienação de instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social.

Por outro lado, a aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa, poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada se se atentar que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas”, serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Dezembro.

Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

“Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

“Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção actual do artigo 45.º/3 do CIRC, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

a) Custos;

b) Perdas;

c) Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

 A previsão do artigo 42.º/3, predecessor do actual 45.º/3, dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º. Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no actual artigo 45.º/3 do CIRC não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigos 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregue a mesma distinção.

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa, não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável.

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, não terá modificado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei 158/2009 de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º/3 do CIRC aplicável, se reportará a:

a. diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

b. outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

c. outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 22” , a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”. Sucede que o artigo 23.º/1/i) do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Dezembro, pretendesse abranger as situações elencadas no artigo 18.º/9/a) do CIRC, no âmbito do artigo 45.º/3 do mesmo, teria:

- incluído os “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC ; ou

- referido tais situações como “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e não como “gastos”.

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

Esta circunstância não é, face à redacção actual do CIRC, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º/1/f) e h), 23.º/1/i) e l) e, em especial, o 46.º/1/b), face aos quais se evidencia de uma forma clara a intenção do legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais e menos-valias.

Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º/3 e 46.º do CIRS, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização. Estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela. Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º/3, a realização de menos-valias e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo.

Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico quer de um ponto de vista jurídico.

É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepcionação ao regime do princípio da realização das situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a) do CIRC aplicável. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º/9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa, ou até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário. É a excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, que justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável instituído.

Evidência de tudo o que vem de se dizer, apresenta-se no quadro elaborado de seguida, o qual demonstra a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º/3 às situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a):

Ano       Valor Inv. Financeiro      Variação Patrimonial      Aplicação do artigo 45.º/ 3 do CIRC

0             Valor de aquisição

(V.A.)    0             0

1             V.A. +40               +40        +40

2             V.A. +20               -20         -10

3             V.A.       -20          -10

4             V.A. -40 -40          -20

5             V.A.       +40         +40

6             V.A. -20 -20          -10

A não aplicação da norma do artigo 45.º/3 do CIRC aos gastos e, concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda. Se se aplicasse a norma do artigo 45.º/3 do CIRC, como pretende a AT, a partir do momento em que se verifique uma alteração patrimonial negativa, haveria uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se ao fim do segundo ano o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização) teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pago imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização, consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10)!

 Parece claro que tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável.

É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º/3, leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) pela opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º/9/a), deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas relevarão fiscalmente independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes. Em suma, como se havia adiantado, não se verificam as razões de combate à fraude e evasão fiscal nem as razões de consolidação orçamental, que demonstradamente estiveram na génese da norma do artigo 45.º/3 do CIRC.

 Finalmente, segundo o artigo 9.º do Código Civil, o intérprete não deve cingir-se à letra da lei, “mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e, na fixação do sentido e alcance da lei, deve o mesmo presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (n.º 3)].

Por tudo o que vai exposto, a interpretação do artigo 45.º/3 do CIRC, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, aponta no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável, nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC.

Considerando-se que o artigo 18.º/9/a) do CIRC impõe a concorrência “para a formação do lucro tributável”, sem reservas ou limitações, dos “rendimentos ou gastos” que:

 a. Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor, desde que sejam reconhecidos através de resultados;

b. se tratem de instrumentos do capital próprio;

c. tenham um preço formado num mercado regulamentado e;

d. o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social,

não se aplica, nestes casos, o artigo 45.º/3 do referido Código, na medida em que não estão abrangidos pela previsão normativa do mesmo.

Termos em que, deve merecer provimento o pedido.”

 

Este Tribunal Arbitral Coletivo reitera este entendimento, que, como referido na decisão transcrita, tinha sido primeiramente exposto na decisão do Proc. 108/2013-T, e voltou a sê-lo na decisão do Proc. 108/2018-T, invocada pela Requerente, onde se acrescentou o seguinte:

 

“Aliás, recentemente, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se neste sentido, no acórdão de 06-06-2018, processo n.º 058/17, em que concluiu que «a norma do artigo 45.º, n.º 3 do CIRC não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos activos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo».

Na mesma linha, sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3, o CIRC, a propósito de outra questão, pronunciou-se também o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-02-2016, proferido no processo n.º 01401/14.

Pelo exposto, em sintonia com esta jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, conclui-se que a liquidação enferma de vício de violação de lei, por errada interpretação do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, pelo que se justifica declaração da sua ilegalidade, na parte respectiva.”

 

Assim, entende este Tribunal Arbitral Coletivo que a correcção efectuada pela Autoridade Tributária, na parte em que, para efeitos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 159/2009, considera um ajustamento de transição negativo no montante de € 210.253,20, valor este que resulta da consideração de apenas 50% das variações patrimoniais negativas apuradas pela Requerente e que são decorrentes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros de capital próprio (€ 210.253,20 = [€ 2.102.531,96 x 50%] / 5) é ilegal, por indevida aplicação da limitação prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC.

Mais entende este Tribunal Arbitral que a Autoridade Tributária deveria ter considerado a totalidade das perdas registadas pela Requerente com os referidos instrumentos financeiros, perdas essas no montante de € 2.102.531,96, com base no qual se apuraria um ajustamento de transição negativo no valor de € 420.506,39 (€ 420.506,39 = € 2.102.531,96 / 5), ao invés de um ajustamento de transição no valor de apenas € 210.253,20.

Pelo exposto, entende este Tribunal Arbitral que o acto tributário de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentada pela Requerente e a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., datada de 12-07-2018, respeitante ao exercício de 2014, notificados à Requerente, são anuláveis, por vício de violação de lei, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável por remissão da alínea d) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

À face do exposto fica prejudicado o conhecimento das demais questões.

 

V. Pedido de restituição da quantia paga e juros indemnizatórios

A Requerente formula pedido de restituição da quantia arrecadada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

Sendo de julgar procedente o Pedido de Pronúncia Arbitral, concluiu-se pela existência de pagamento indevido e, consequentemente, justifica-se a restituição da quantia paga em excesso pela Requerente, no montante de € 3.876,56 e o pagamento de juros indemnizatórios, sobre esse montante, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

Assim, nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a Requerente tem direito aos juros indemnizatórios, juros estes que devem ser contabilizados desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito, cujo prazo para pagamento se conta da data de início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (n.º 4 e 5 do artigo 61.º do CPPT), à taxa referida no n.º 4.º do artigo 43.º da LGT.

 

VI. Decisão Arbitral

Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral o seguinte:

a)            Julgar improcede a alegada excepção de incompetência do Tribunal em razão do valor, considerando-se competente o presente Tribunal Arbitral Coletivo.

b)           Julgar procedente, por provado, o Pedido de Pronúncia Arbitral, declarando ilegal a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentada pela Requerente, bem como a correção efetuada ao resultado fiscal no montante de € 347.222,21.

c)            Julgar ilegal a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., datada de 12-07-2018, respeitante ao exercício de 2014 e, em consequência,

d)           Anular a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentada pela Requerente e a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., datada de 12-07-2018, respeitante ao exercício de 2014.

e)           Condenar a Requerida a restituir à Requerente o valor de € 3.876,56, acrescido de juros indemnizatórios.

f)            Condenar a Requerida a restabelecer a situação que existiria se o acto tributário impugnado e objecto desta Decisão Arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

g)            Condenar a Requerida nas custas do processo, conforme ponto VIII (Custas) da presente Decisão Arbitral.

 

VII. Valor do processo

Entende este Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos do n.º 2 do artigo 306.º do CPC, alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixar o valor do processo em € 347.222,21.

 

VIII. Custas

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.814,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

*****

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de fevereiro de 2020

 

Os Árbitros,

 

(Maria Fernanda dos Santos Maçãs)

(Jorge Júlio Landeiro de Vaz)

(Alexandre Andrade)