DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Dr. Henrique Nogueira Nunes designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 28 de Agosto de 2019, acorda no seguinte:
I – Relatório
1.1. A..., NIF n.°..., doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).
1.2. O pedido de pronúncia arbitral, tal como inicialmente configurado, tem por objecto a anulação do acto de liquidação de Imposto Municipal de Imóveis (“IMI”) n.º 2018..., com referência ao ano de 2018, no valor global de € 1.044,86, referente ao prédio inscrito na matriz predial urbana sob o ..., da freguesia de ... .
1.3. A fundamentar o seu pedido imputa a Requerente, em síntese, os seguintes vícios:
(i) Que desde 2001 que não tem a posse nem é proprietária do Prédio;
(ii) Que o referido Prédio terá sido construído, por iniciativa privada, no ano de 1989, despojado das necessárias licenças camarárias, o que impediu de qualificar esta construção como “legal” e, consequentemente proceder à sua inscrição no Registo Predial.
(iii) Que deixou, desde Outubro de 1997, de ter a posse do Prédio, e no ano 2000 a propriedade do mesmo, desconhecendo em que termos foi concretizado, e que a posse do Prédio foi transferida para sociedade comercial B..., Lda.
(iv) Que nunca mais teve contacto com o Prédio; desconhece quem lá habita ou exerce a sua atividade; não recebe nesse Prédio quaisquer amigos, familiares ou terceiros; como não recebe a sua correspondência; não recebe qualquer contrapartida por eventual uso por terceiros.
(v) Que inexistindo outro instrumento que demonstre a titularidade da propriedade do Prédio em nome da Requerente, existindo, tão-só, uma declaração de Mod. 1 de IMI, e havendo declarações contraditórias entre os documentos existentes (e.g. declaração de IMI e certidão camarária), apenas resta concluir que a Requerente não é proprietária do mesmo.
(vi) Que a prova da titularidade de propriedade do Prédio em nome da Requerente é inexistente e, entre a declaração de Mod. 1 de IMI e a Certidão Camarária, prevalecerá aquele que que à luz do regime jurídico em vigor tenha valor privilegiado, ou seja, a força probatória do documento particular (declaração mod. 1 IMI) circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor, mas daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que aquele documento prove plenamente os factos neles referidos
(vii) Reitera que a Requerente não é proprietária do Prédio cujo imposto é exigido na liquidação impugnada, não sendo sujeito passivo do mesmo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 8.º do CIMI e, bem assim, não é titular de nenhum direito de superfície ou usufruto, para os efeitos previsto no n.º 2 do mesmo normativo legal.
(viii) E que no seu entendimento a interpretação da norma extraída dos artigos 8.º, n.os 1 e 4 e 12.º, n.º 5, ambos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, segundo a qual é sujeito passivo, para efeitos de pagamento do imposto, aquele que figurar enquanto tal na matriz predial urbana, sem que possa ser considerada uma verdadeira presunção e ser afastada nos termos gerais de direito, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 2.º, na dimensão atinente ao princípio da capacidade contributiva, que é corolário do princípio da igualdade, e ainda os artigos 3.º e 13.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
(ix) Pugna pela ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação (n.º 2018 ...) relativo ao IMI do ano 2018 e do Prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... (...) e a Requerida condenada, nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24.º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em nome da Requerente, para futuro, ordenando-se, ainda, a substituição do titular que figura na matriz predial urbana.
1.4. A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, respondeu, em síntese, como segue:
(i) Vem defender-se por excepção e por impugnação.
(ii) Por excepção invoca a incompetência material do Tribunal Arbitral, pois no seu entender a questão central do pedido apresentado pela Requerente prende-se com a posse e propriedade do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... (...) e que da leitura do requerimento inicial, conclui-se que o pedido em apreço se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine que a AT seja “(…) condenada, nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em nome da Requerente, para futuro, ordenando-se, ainda a substituição do titular que figura na matriz predial urbana;(…)”.
(iii) E que no seu entender o artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), conjugado com o artigo 18.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e com o artigo 101.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC) estabelecem que a infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia determinam a incompetência absoluta do tribunal.
(iv) E que a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expresso na petição inicial, não dependendo nem da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, constituindo a violação das regras de competência absoluta do tribunal em razão da matéria, exceção dilatória.
(v) E que verificando-se tal exceção fica imediatamente prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Requerente no requerimento inicial o que no seu entender implica a sua absolvição.
(vi) E que se o que se confronta aqui é a determinação da posse e propriedade do prédio pela Requerente.
(vii) E que a Requerente pretende é a alteração do titular que figura na matriz predial urbana referente ao prédio – artigo ... (...), que não se confunde com o ato de fixação da matéria tributável.
(viii) E que no seu entender se está perante um ato da Administração Tributária que não integra os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pelo que, deve o Tribunal Arbitral julgar procedente a exceção invocada de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, em consequência, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo-a da instância.
(ix) Por Impugnação vem dizer que a Requerente assume, que em 2010, a mesma entregou o modelo 1 do IMI destinado à inscrição e atualização de prédios urbano na matriz e que após 2010, passou a figurar na matriz como a proprietária/possuidora do prédio –artigo ... (...).
(x) Se consta na matriz, então, para efeitos fiscais a Requerente assume a qualidade de proprietária, responsável pelo pagamento do IMI.
(xi) E que à Requerente não basta alegar que não é a proprietária /possuidora do bem imóvel, tendo a mesma de fazer prova desse facto, prova essa que terá de ser feita através de documentos autênticos.
(xii) E que apesar de a presunção que consta do n.º 4 do art. 8.º do CIMI pode ser ilidida, a Requerente não o fez, pelo que é a proprietária do prédio e, por isso, é ela que é a responsável pelo pagamento do IMI.
(xiii) Pugna pela total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.
1.5. Entendeu o Tribunal realizar a primeira reunião do Tribunal Arbitral e inquirição de testemunhas arroladas pela Requerente conforme despacho arbitral notificado às partes de acordo com o disposto no artigo 18.º do RJAT.
Ambas as partes foram igualmente notificadas para apresentar Alegações, querendo, tendo ambas optado por fazê-lo, oralmente, na primeira reunião do Tribunal Arbitral, reforçando a sua argumentação. Por ocasião da mesma foi igualmente decidido a ampliação do pedido arbitral tal como requerido pela Requerente em requerimento apresentado em 09-08-2019.
Foi fixado prazo para o efeito de prolação da decisão arbitral no termo do prazo legal.
* * *
1.6. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não foram identificadas nulidades no processo.
2. QUESTÕES A DECIDIR
Vem a Requerente suscitar:
1- A ilegalidade da liquidação de IMI por não ser o sujeito passivo do imposto;
2 – A condenação da Requerida nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24.º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em seu nome, para futuro.
3 – A imposição à AT de que proceda à substituição do titular que figura na matriz predial urbana.
4 - A condenação da Requerida nas custas do processo.
A Requerida por excepção invoca a incompetência material do Tribunal Arbitral, questão que importa apreciar em primeiro lugar.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:
A) A Requerente foi notificada pela AT da liquidação do IMI referente ao ano de 2018 – 1.ª prestação – do Prédio em causa nos autos, inscrito na matriz predial urbana sob o ..., da freguesia de ..., no valor global de € 1.044,86 (cfr. Liquidação n.º 2018..., junta pela Requerente como Documento n.º 1 com a sua petição arbitral.
B) A Requerente figura na matriz predial urbana do Prédio em causa nos autos (cfr. Documento n.º 2 junto aos autos pela Requerente com a sua petição arbitral).
C) A Requerente entregou a declaração de Modelo 1 de IMI em 2010 (cfr. Dado por provado por ambas as partes).
D) O Prédio em causa nos autos está inserido no prédio rústico com uma área de 34.938,25m2, denominado «..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ...», descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., da freguesia de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção C, da União de Freguesias de ..., ... e ... (cfr. certidão permanente do Registo Predial com o código PP-...-...-...-..., junta pela Requerente como Documento n.º 3 da sua petição arbitral.
E) No prédio existiu um restaurante instalado no rés-do-chão direito e esquerdo, e a Requerente manifestou o seu interesse em adquiri-lo, o que se concretizou em 1992, embora não tendo feito contrato escrito (cfr. depoimento de C...).
F) A Requerente cedeu a exploração do restaurante (cfr. depoimento de C...).
G) A Requerente em 1997 vendeu a D..., e E..., o referenciado Prédio e o restaurante. (cfr. depoimento de C...).
H) Os compradores pagaram a totalidade do preço da venda à Requerente, embora não tivesse havido qualquer escritura devido ao facto de a construção estar ilegal (cfr. depoimento de C...).
I) A inscrição na matriz em nome da Requerente foi feita a pedido do Senhor F..., e, bem assim, todas as liquidações de IMI eram emitidas em nome da Requerente mas era o Senhor F... quem as pagava porque pretendia legalizar o Prédio (cfr. depoimento de C...).
J) O Senhor D... e a mulher, E..., registaram a propriedade da parte rústica onde está inserido o Prédio em causa nos autos, tendo sido proprietários do mesmo até 2007/04/30, data em que transferiram a propriedade do mesmo para a sociedade «B..., LDA.» (cfr. pág. 22, Ap. 15, da certidão junta como Doc. n.º 3 pela Requerente).
K) Através dos registos públicos do Município de ..., que está a legalizar a zona onde o Prédio em causa nos autos está inserido, consta de informação técnica emitida pelo Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de ... em 11/02/2019 que o proprietário do mesmo, ou seja, do antigo lote ... localizado na Rua ..., inserido no ..., era, desde 2001, um Senhor chamado G... e actualmente a sociedade B..., Lda (cfr. Documento n.º 4, junto pela Requerente com a sua petição arbitral).
4. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem outros factos com relevo para a decisão de mérito dos autos que não se tenham provado.
5. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais (oficiais) juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes.
De referir que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pela Requerente enquanto autor (cfr. artºs.596º, nº.1 e 607º, nºs. 2 a 4, do C.P.Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123.º, nº.2, do CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº. 607º, nº.5, do C.P.Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 41/2013, de 26/6). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na Lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371º, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
6. DO DIREITO
Da matéria de Excepção: Da Incompetência do Tribunal Arbitral
De acordo com o disposto no artigo 608.º, nº 1 do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 29º do RJAT, “(…) a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância (…)”, devendo o juiz “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Apreciemos, então, a matéria de excepção invocada pela Recorrida, apreciando em primeiro lugar a incompetência do Tribunal Arbitral conforme invocado pela Requerida.
Invoca a Requerida que questão central do pedido apresentado pela Requerente prende-se com a posse e propriedade do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... (...) e que da leitura do requerimento inicial, conclui-se que o pedido em apreço se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine que a AT seja “(…) condenada, nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em nome da Requerente, para futuro, ordenando-se, ainda a substituição do titular que figura na matriz predial urbana;(…)”.
E que no seu entender o artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), conjugado com o artigo 18.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e com o artigo 101.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC) estabelecem que a infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia determinam a incompetência absoluta do tribunal.
E que a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expresso na petição inicial, não dependendo nem da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, constituindo a violação das regras de competência absoluta do tribunal em razão da matéria, exceção dilatória, e que verificando-se tal exceção fica imediatamente prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Requerente no requerimento inicial o que no seu entender implica a sua absolvição.
A Requerente, em resposta à excepção invocada, por requerimento apresentado em 01/10/2019, veio se opor dizendo que os pedidos por si formulados não se resumem à «alteração do titular que figura na matriz predial urbana referente ao prédio – artigo ... (...)» pelo que tem este Tribunal Arbitral competência para decidir as questões colocadas, desde logo, porque o primeiro dos referidos pedidos é precisamente apreciar a legalidade da liquidação de um imposto, questão subsumível ao artigo 2º do RJAT.
E que para além disso, vem dizer que tem sido jurisprudência corrente dos Tribunais Arbitrais sob égide do CAAD, a possibilidade de o sujeito passivo pode discutir a legalidade de tributos baseados em presunções legais, que é precisamente o que a Requerente pretende discutir.
Pelo que concluí que não assiste qualquer razão à Requerida ao alegar a incompetência do Tribunal Arbitral, até se considerando que esta invoca a incompetência absoluta apenas e tão só quanto a um dos pedidos formulados pela Requerida, indicado em (ii) da PI, e no trecho «a substituição do titular que figura na matriz predial urbana», e que mesmo nesta parte, não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos, então.
Dúvidas não existem que a Requerente formula três pedidos principais, a saber:
1. A ilegalidade da liquidação de IMI por não ser o sujeito passivo do imposto;
2. A condenação da Requerida nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24.º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em seu nome, para futuro;
3. A emissão de uma instrução por parte do Tribunal endereçado à AT para se ordenar a substituição do titular que figura na matriz predial urbana.
Ora, ao contrário do que pretende a Requerida, entende o Tribunal que a eventual procedência da excepção invocada quanto aos pedidos 2 e 3 supra não dita a incompetência do Tribunal Arbitral de apreciar e decidir o pedido 1. supra.
A competência dos Tribunais Arbitrais Tributários que funcionam no CAAD restringe-se, para o que aqui interessa, à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (cfr. art.º 2.º, n.º 1 do RJAT).
Mesmo relativamente à impugnação de actos praticados no âmbito de procedimentos tributários, a competência destes tribunais arbitrais restringe-se à actividade conexionada com actos de liquidação de tributos, ficando de fora da sua competência, como é sabido, a apreciação de actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação.
O contencioso tributário (onde se insere o arbitral) é um contencioso de mera anulação visando a apreciação, sequencialmente, dos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e dos vícios arguidos que conduzam à sua anulação – art.º 124, n.º 1 do CPPT, ou seja, a impugnação judicial (e nesta sede a arbitral) visa a anulação de actos, é este o seu objecto, até por razões de optimização da tutela jurisdicional dos administrados.
Neste sentido entende o Tribunal que de facto se verifica a excepção invocada pela Requerida da sua incompetência material quanto aos pedidos de a condenar nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24.º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em nome da Requerente, para futuro, e, bem assim, de o Tribunal ordenar à AT para proceder à substituição do titular que figura na matriz predial urbana.
Mas que tal não impossibilita o Tribunal de apreciar e decidir quanto ao 1.º pedido formulado pela Requerente.
Como bem decidiu o STA, no processo proferido sob o n.º 0242/09, de 08-07-2009, e citando-o:
“No que se refere à impossibilidade de cumulação de pedidos de anulação das liquidações de imposto com pedido de anulação do acto de reversão, cumpre dizer que, se fosse esse o caso, dever-se-ia determinar não o indeferimento liminar da petição mas o prosseguimento do processo para conhecimento da ilegalidade da liquidação, por ser esse pedido compatível com a forma de processo utilizada [cfr. o artigo 193.º, n.º 4 do CPC; neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e Comentado, vol. II, 5.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2007, p. 116 (nota 17 ao art. 165.º do CPPT) e o Acórdão deste Tribunal de 11 de Fevereiro de 2008 (rec. 875/08)].”.
Com efeito, nestes casos, em que há uma cumulação ilegal de pedidos não derivada de incompatibilidade subs¬tancial, tem vindo a entender-se uniformemente que o processo deverá prosseguir apenas em relação ao pedido para que a forma processual é adequada ou o tribunal é competente.
Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos:
— da SCT do STA:
— de 11-2-2009, processo n.° 875/08; de 8-7-2009, processo n.9 242/09; de 24-3-2010, processo n.º 956/09. — da SCA do STA:
No mesmo sentido, podem ver-se também:
- ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, volume E, páginas 390-391;
- LOPES CARDOSO, Código de Processo Civil Anotado, página 160; e
- ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil Anotado, 10.° edição, página 356, citando CASTRO MENDES e PAULO CUNHA.
Ora, face à natureza do contencioso arbitral dúvidas não há que o Tribunal não tem competência para apreciar o 2.º e 3.º pedidos formulados pela Requerente, mas tem plena competência para apreciar do 1.º pedido formulado, a saber, o da legalidade da liquidação de IMI por a Requerente não ser o sujeito passivo do imposto com referência ao ano fiscal de 2018.
Convocando o disposto no n.º 8 do artigo 4.º do CPTA, de aplicação subsidiária ao RJAT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c):
“8 - Quando algum dos pedidos cumulados não pertença ao âmbito da competência dos tribunais administrativos, há lugar à absolvição da instância relativamente a esse pedido.”.
Assim, pelo exposto, procede a excepção dilatória invocada pela Requerida quanto ao 2.º e 3.º pedidos formulados pela Requerente, prosseguindo, todavia, o processo para a apreciação do 1.º pedido formulado.
Apreciando agora a questão de mérito.
O cerne da questão controvertida, como bem diz a Recorrida, consiste em determinar quem é o responsável, em termos fiscais, pelo pagamento do IMI.
Para o esclarecimento dessa questão temos de recorrer ao disposto no artigo 8.º do Código do IMI (CIMI), no qual consta que:
“Artigo 8.º
Sujeito Passivo
1 – O imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de dezembro do ano a que o mesmo respeitar.
2 – Nos casos de usufruto ou de direito de superfície, o imposto é devido pelo usufrutuário ou pelo superficiário após o início da construção da obra ou do termo da plantação.
3 – No caso de propriedade resolúvel, o imposto é devido por quem tenha o uso e fruição do prédio.
4 – Presumem-se proprietário, usufrutuário ou superficiário, para efeitos fiscais, quem como tal figure ou deva figurar na matriz, na data referida no n.º 1 ou, na falta de inscrição, quem em tal data tenha a posse do prédio. (…)”.
Negrito nosso.
Se atendermos ao disposto no n.º 4 do art.8.º do CIMI, este dispõe que se presume proprietário, para efeitos fiscais, quem como tal figure ou deva figurar na matriz.
Por outro lado, também o n.º 5 do art. 12.º do CIMI prevê: «As inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade.», constituindo uma norma que admite prova em contrário.
Tratando-se de uma presunção, a mesma pode ser ilidida pela Requerente, no sentido de esta provar que não é a proprietária/possuidora do prédio.
Sobre a natureza probatória das matrizes prediais poder ler-se na decisão arbitral proferida no processo n.º: 205/2013-T, de 7 de Março de 2014:
“No caso em apreço, a afetação do imóvel para habitação consta da matriz predial com base em modelo 1 de IMI entregue em 23.10.2008.
Por outro lado, consta da matéria de facto provada que o imóvel em questão, resultante de emparcelamento, não se encontra, nem nunca se encontrou, apto para habitação, tendo sido objeto, desde Dezembro de 2008, de diversos atos administrativos no sentido da concretização da edificação duma unidade hoteleira.
Provou-se, assim, uma realidade substantiva diversa da constante da matriz predial urbana, não podendo a verdade material deixar de prevalecer.
Não parece, aliás, curial entender que as matrizes prediais tenham força probatória plena, quando o próprio CIMI prevê, para efeito deste imposto, a possibilidade do sujeito passivo reclamar a todo o tempo de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, nos termos do artigo 130º, nº 3 deste Código dispondo, na mesma linha, o nº 5 deste artigo que “O chefe do Serviço de Finanças competente pode, a todo o tempo, promover a retificação de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, salvo as que impliquem alteração do valor patrimonial tributário resultante de avaliação direta com o fundamento previsto na al. a) do nº 3 (…)”.
Escrevendo sobre as informações oficiais refere Rui Duarte Morais que “foi abolida a força probatória plena que, antes, era atribuída às informações oficiais prestadas pelas administrações tributária. Estão também sujeitas à livre apreciação pelo juiz (artº 76º, nº 1 da LGT e artº 115º, nº 2 do CPPT), pelo que o seu relevo probatório dependerá da respetiva fundamentação, sendo que bastará ao interessado lograr a contraprova de factos suscetíveis de gerar dúvida razoável quanto à correspondência à verdade do afirmado em tais informações” (MANUAL DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO, Almedina, 2012, pág. 258).
Por sua vez, diz-nos JORGE LOPES DE SOUSA que “A razão de ser da omissão de referência no C.P.T. e neste C.P.P.T. a esta especial força probatória, só susceptível de ser contrariada por prova do contrário, está no facto de estes diplomas não a reconhecerem em alguns casos, que são enquadráveis no seu artigo 121º e 100º, respectivamente.
Na verdade, nestes artigos estabeleceu-se a regra de que, nos processos de impugnação judicial, as dúvidas fundadas sobre a matéria fáctica quanto à existência e quantificação do facto tributário são valoradas a favor do contribuinte, conduzindo à anulação do acto impugnado.
Isto significa que, no processo de impugnação judicial, relativamente às informações oficiais concernentes à existência e quantificação do facto tributário, não é necessário provar o contrário, mas apenas gerar dúvidas fundadas, para que a decisão sobre a respectiva matéria de facto tenha de ser processualmente desfavorável à administração tributária (artigo 346º do Código Civil)
(…)
A força probatória das informações oficiais reporta-se aos factos que nelas forem referidos,pois é apenas relativamente a factos que se coloca a questão da produção da prova.
Relativamente a factos, a sua força probatória existe quanto aos afirmados como sendo praticados pela administração tributária ou com base na percepção dos seus órgãos ou agentes, ou factos determinados a partir dessa percepção com base em critérios objectivos.” (CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO, 4ª edição, Vislis, 2003, pág. 504)
Note-se, de resto, que, mesmo nos termos do artigo 371º, nº 1 do Código Civil “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais documentadores só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Em anotação a esta norma dizem-nos Pires de Lima e Antunes Varela que “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (…), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora” (Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1982, 2ª Ed., pag. 326), posição que é, desde há muito, acolhida pacificamente pela jurisprudência nacional (Cfr. quanto à jurisprudência fiscal o ac. do STA de 1.02.2005 no proc. 066/04, em www.dgsi.pt).
Atento o exposto, não estava a Requerente impedida de demonstrar, como demostrou, que apesar de constar na matriz predial a afetação habitacional do prédio, esta não correspondia à realidade na data do facto tributário.
Assim, no caso em apreço, a Requerente nem sequer se limitou a gerar dúvidas fundadas sobre a realidade da afetação habitacional do prédio, pois provou, de forma positiva, que tal afetação não existia na data do hipotético facto tributário. Ou seja, a Requerente provou o contrário do mencionado na matriz predial.”.
Negrito do Tribunal
Por seu turno, sobre a natureza da presunção contida no n.º 4 do artigo 8.º do CIMI, podemos, entre outros, consultar o aresto proferido pelo Acórdão do TCA NORTE, no processo n.º 01779/09.0BEPRT, de 19-06-2019 e citando-o:
“Não tendo o Impugnante, ora Recorrente logrado fazer a prova que sobre si impendia, no sentido de que que a devedora originária não era a proprietária do imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo ..., na data de 31 de dezembro de 2003, o recurso interposto não pode merecer provimento, pois que não foi minimamente abalada a presunção legal decorrente do artigo 8.° do CIMI, no sentido de que o imposto é devido pelo titular inscrito, e de que se presume a respetiva titularidade, para efeitos fiscais, em nome de quem se encontra inscrito o prédio até 31 de dezembro do ano a que respeita o imposto, pois que o Impugnante, ora Recorrente não ilidiu tal presunção e o montante de imposto devido foi liquidado com base nos elementos constantes da matriz predial, visando quem nela se encontrava inscrito, pelo que, assim tendo julgado com acerto o Tribunal a quo, a Sentença proferida não merece qualquer censura, devendo manter-se.
Sintetizando, o Tribunal recorrido decidiu em conformidade com a factualidade apurada, e consequentemente com a lei aplicável, improcedendo por isso as Conclusões de recurso apresentadas pelo Recorrente.”.
A boa decisão do presente processo passa, assim, por determinar se a presunção de propriedade/posse do Prédio em causa nos autos foi ou não ilidida pela Requerente, pois que, ao considerar-se ilidida, a única conclusão possível é a de que inexiste incidência subjectiva da Requerente para ser responsável pelo pagamento do imposto.
E desde já se diga que é convicção do Tribunal que essa presunção foi ilidida com referência ao ano fiscal em causa nos autos, se é certo que a Requerente figura na matriz como proprietária, resulta da prova testemunhal produzida (e que em momento algum foi contrariada pela Requerida no que se refere aos factos relatados) que a mesma de facto não é a proprietária nem tem a posse do Prédio em causa nos autos e, por outro lado e como elemento decisivo para a formação da convicção do Tribunal (novamente não contrariado pela Requerida) o Documento n.º 4 junto pela Requerente, a saber, a informação técnica emitida pelo Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de ... em 11/02/2019, município onde se insere o Prédio em causa nos autos, declarando que o proprietário do mesmo, ou seja, do antigo lote ... localizado na Rua ..., inserido no ..., era, desde 2001, um Senhor chamado G... e actualmente a sociedade B..., Lda, documento esse que não pode este Tribunal ignorar, porquanto se trata de informação de carácter oficial emitido por uma entidade independente à Requerente e que atesta que esta, de facto, não é a proprietária do imóvel.
Por outro lado, se subtrairmos a existência da declaração na matriz feita pela Requerente em 2010, mas num contexto particular que igualmente se determinou, rigorosamente mais nenhuma prova existe ou foi produzida de que o Prédio pertence à Requerente ou que esta tem a sua posse.
Assim, considera o Tribunal que a Requerente gerou uma fundada dúvida sobre a realidade da inscrição matricial, pois provou, no entender deste Tribunal, que não tem a sua propriedade nem a sua posse para efeitos fiscais com referência ao ano fiscal de 2018, padecendo, assim, de ilegalidade a liquidação de que foi alvo.
7. DECISÃO
Em face do exposto, acorda este Tribunal Arbitral Singular em:
1. Julgar procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal quanto aos pedidos de condenação da Requerida nos termos da alínea c), do n.º 1 do art.24.º do RJAT, a abster-se de liquidar o IMI do Prédio em nome da Requerente, para futuro, e, bem assim, quanto à emissão de uma instrução por parte do Tribunal endereçado à AT para ordenar a substituição do titular que figura na matriz predial urbana, absolvendo a Requerida da instância quanto a estes pedidos.
2. Julgar procedente o pedido arbitral quanto ao pedido de ilegalidade da liquidação de IMI pela Requerente não ser o sujeito passivo do imposto com referência ao ano fiscal de 2018.
* * *
Fixa-se o valor do processo em Euro 1.044,86, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
Condena-se a Requerida em custas no montante de Euro 306,00 ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2020.
O Árbitro,
(Henrique Nogueira Nunes)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.