DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1- A..., S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Porto (Requerente ou sociedade incorporante), na qualidade de sucessora, por fusão, de B..., S.A., NIPC ..., (sociedade incorporada), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2017..., referente ao exercício de 2013, bem como da liquidação de juros compensatórios n.º 2017... e consequente demonstração de acertos de contas referente à compensação n.º 2017..., processadas em nome da segunda das referidas sociedades (sociedade incorporada), bem como da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa relativa a tais liquidações.
Pede ainda, na procedência da impugnação, a condenação da AT na obrigação de a indemnizar pelas despesas suportadas em razão da garantia bancária prestada para obter a suspensão do processo de execução fiscal instaurado na sequência do não pagamento voluntário da dívida tributária decorrente das liquidações impugnadas.
2- A matéria coletável subjacente à liquidação de imposto impugnada corresponde à mais-valia (diferença entre o valor contabilístico da sociedade incorporada e valor que lhe foi atribuído) apurada em resultado da fusão por incorporação da segunda das referidas sociedades na primeira, operação a que as partes decidiram não sujeitar ao regime de neutralidade fiscal.
A Requerente considera ilegal tal liquidação, fundamentando o seu pedido no seguinte: (1) Ininteligibilidade da fundamentação das liquidações contestadas, com a consequente impossibilidade de compreensão do iter cognoscitivo seguido pela AT; (2) Existência de fundamentação a posteriori, constante da decisão de indeferimento da reclamação graciosa; (3) Violação das normas sobre repartição do ónus da prova. (4) Ilegalidade das liquidações impugnadas por violação de diversas normas do CIRC; (5) Artificialidade económica e tributária da correção promovida pela AT; (6) Desconsideração dos resultados da sociedade incorporada no contexto do RETGS, em violação dos princípios constitucionais da tributação do lucro real e da neutralidade fiscal.
Mesmo na improcedência do pedido de anulação da liquidação adicional de IRC, a ilegalidade da liquidação de juros compensatórios
Na sua resposta, a Requerida, AT, reafirmou a legalidade das liquidações impugnadas.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo estes designado o árbitro presidente.
O tribunal arbitral coletivo ficou, nesses termos, constituídos pelos signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportunamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.ºs 4 e 5, do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 9 de julho de 2018.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções.
Por despacho arbitral de 26/09/2019, foi dispensada a reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT, por falta de objeto.
As partes apresentaram alegações escritas, por prazo sucessivo, em que reiteraram as suas anteriores posições.
Por despacho arbitral de 07/01/2020 foi, fundamentadamente, prorrogado, por mais dois meses, o prazo para a prolação da decisão arbitral.
Cabe apreciar e decidir.
II -Fundamentação
4. A matéria de facto, relevante para a decisão da causa, dada como provada é a seguinte:
a) A Requerente tem como objeto social: “(...) exercício da actividade laboratorial de análises clínicas, importação, exportação e aluguer de materiais, reagente, equipamentos e outros para o laboratório, representações e a de serviços a laboratórios ou outras empresas a tudo o mais que a sociedade delibere e seja legal”;
b) A Requerente era, desde 2006, sócia única da sociedade B..., S.A.
c) A Requerente era sociedade dominante de um grupo sujeito ao RETGS, do qual a sociedade referida na alínea anterior fazia parte.
d) Em 2013, a Requerente incorporou por fusão tal sociedade, tendo o registo desta operação sido efetuado em 01.08.2013.
e) Do projeto de fusão consta que “Do ponto de vista contabilístico, as operações da Sociedade Incorporada serão consideradas como efetuadas por conta da Sociedade Incorporante a partir de 1 de Janeiro de 2013”, ou seja, desde o início do exercício desta correspondente a tal ano civil.
f) Por opção das partes, a fusão não foi sujeita, ao regime especial de neutralidade fiscal previsto nos art. 73.º e ss do CIRC, sendo a transmissão dos elementos patrimoniais da sociedade incorporada feita pelo seu valor de mercado.
g) O valor atribuído à sociedade incorporada foi de 4,3 Milhões de Euros, pelo que, sendo o seu valor contabilístico de € 3.058.565, em resultado da fusão houve o apuramento de uma mais-valia fiscal de € 1.255.435.
h) A Requerente, por aplicação do previsto no projeto de fusão, tal como referido em f), considerou, no apuramento do seu lucro tributável relativo ao exercício de 2013, todos os ganhos e perdas decorrentes da atividade da sociedade incorporada durante o ano de 2013, até ao registo da fusão, incluindo a mais-valia referida na alínea anterior.
i) A Requerente apurou, também, uma menos-valia, no montante de € 12.326.781, correspondente à diferença entre o valor de mercado da sociedade incorporada (€ 4.314.000) e o valor de aquisição da sua participação na sociedade incorporada, o qual havia sido de € 15.552.132.
j) Em cumprimento do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (na redação vigente à data dos factos), a Requerente apenas relevou fiscalmente a menos-valia realizada com a anulação da participação detida no capital da Sociedade Incorporada em metade do seu valor ‒ i.e., € 6.163.390,62.
k) A sociedade incorporada apresentou a declaração de rendimentos, correspondente ao período decorrido entre 01.01.2013 e 01.08.2013, não mencionando quaisquer valores.
l) A sociedade incorporada foi objeto de uma inspeção tributária, a qual concluiu que a mais-valia fiscal resultante da ficção de transmissão onerosa de elementos patrimoniais em resultado da fusão devia ter sido por ela declarada (e não, como foi feito, pela sociedade incorporante), o que originou a liquidação impugnada.
m) A Requerente foi também objeto de uma inspeção tributária ao IRC de 2013, quer individual quer relativa ao grupo fiscal sujeito ao RETGS de que era sociedade dominante, em resultado da qual foi proposta a desconsideração da referida mais-valia fiscal, declarada na sua Modelo 22 individual de 2013, no montante de € 1.255.435.
n) Não tendo sido feitas, em resultado das referidas inspeções, quaisquer outras correções aos valores declarados com relevância para a situação sub judice.
o) A Requerente apresentou, em 10.05.2018, reclamação graciosa contra as liquidações que ora impugna, a qual foi objeto de indeferimento expresso em 7 de janeiro de 2019.
p) A Requerente, para lograr a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2018..., decorrente do não pagamento voluntário dos valores liquidados adicionalmente, que ora impugna, apresentou garantia bancária emitida pelo Banco C... o n.º..., a qual implicou custos iniciais, continuando a suportar encargos trimestrais com a manutenção da tal garantia.
Os factos dados como provados estão documentalmente provados, havendo sobre eles consenso das partes, não tendo sido requerida a produção de qualquer prova adicional.
Não foram dados como não provados quaisquer factos relevantes para a boa decisão da causa.
III- Decidindo:
5- A Requerente começa por alegar a ininteligibilidade da fundamentação das liquidações contestadas, com a consequente impossibilidade de compreensão do iter cognoscitivo seguido pela AT.
Importa analisar já de tal alegação - falta de fundamentação - pois que a sua procedência resultaria na impossibilidade do tribunal arbitral conhecer as demais questões suscitadas.
É bom de ver que a fundamentação notificada à Requerente contem o mínimo necessário para esta compreender a razão de ser das liquidações que impugna.
Nas próprias palavras da Requerente (n.º 61 a 64 e 74 do pedido inicial): Para fundamentar a sua posição, a AT começa por alegar que a A... [leia-se: Sociedade Incorporante] declarou uma mais-valia fiscal resultante da transmissão de ativos líquidos que na verdade não transmitiu, antes pelo contrário, adquiriu por fusão’ - cf. pág. 4/ 5 do Projeto de Relatório de Inspeção junto como Doc. 8. Mais afirma a AT que, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 e n.º 3 alínea d) do CIRC, a transferência dos elementos patrimoniais realizada pela sociedade fundida no âmbito de uma operação de fusão é considerada como sendo uma transmissão onerosa. Sendo que o valor de realização é o valor de mercado dos bens transmitidos em consequência da fusão - cf. pág. 4/ 5 do Projeto de Relatório de Inspeção junto como Doc. 8. Concluindo (…) que de uma interpretação a contrario do disposto no artigo 74.º, n.º 1, do CIRC resulta que: o resultado que advém da transmissão realizada pela empresa fundida de todos os seus ativos e passivos para a sociedade beneficiária é um resultado da empresa incorporada e não da empresa incorporante, pelo que é de indicar na declaração de rendimentos da empresa incorporada e não da empresa incorporante - cf. pág. 4/ 5 do Projeto de Relatório de Inspeção junto como Doc. 8. Assim, face ao exposto propõe-se uma correção ao resultado fiscal declarado, do valor da mais-valia fiscal igual a € 1.255.435, indevidamente declarado na modelo 22 da sociedade beneficiária, quando por aplicação dos artigos 46º e 74º do CIRC tem que ser declarado na modelo 22 da sociedade fundida.
É manifesto que a AT, na fundamentação da liquidação de imposto impugnada, identificou quais os motivos que determinaram a correção operada e consequente liquidação adicional (considerar que a mais-valia em questão deveria ter sido declarada pela sociedade incorporada e tributada na esfera desta) e qual a norma jurídica que considerou aplicável - n.º 1 do art.º 74.º do CIRC, a contrario.
É também evidente que a eventual escassez de tal fundamentação em nada prejudicou os direitos de defesa da Requerente, pois que, partindo do que lhe foi notificado, revelou ter todas as condições para contestar cabalmente a legalidade da liquidação impugnada, quer em sede administrativa quer, agora, em sede contenciosa.
Com o STA (proc. 052/17, de 14-03-2018), na esteira de jurisprudência pacífica e numerosa de que a Requerida também dá notícia na sua resposta, diremos: Não devendo, ainda, esquecer-se que as características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico. É que, neste domínio da fundamentação do acto, é relevante a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto. (…)
Conclui-se assim que a liquidação impugnada se mostra formalmente fundamentada, sendo que a questão da suficiência de tal fundamentação para a legitimar a liquidação impugnada e a do erróneo enquadramento legal feito são outras questões (outros vícios), a serem apreciadas no momento próprio, se tal se revelar necessário.
Improcede assim o alegado vício de falta de fundamentação das liquidações contestadas.
6- A questão central que se coloca neste processo, como corretamente a identifica a Requerente no n.º 9 do seu requerimento inicial, é saber se é a sociedade incorporante ou a sociedade incorporada quem deveria declarar os ganhos ou perdas apurados numa fusão à qual as partes tenham atribuído eficácia retroativa desde o início de período de tributação em que tal fusão foi registada. Isto, acrescentamos, numa fusão não sujeita, por opção, ao regime da neutralidade fiscal e à luz do normativo então vigente.
Está em causa o então constante do artigo 74.º do CIRC, em especial dos seus números 7 e 8 (e não no seu n.º 1, norma invocada, a contrario, pela AT na fundamentação da liquidação impugnada), que transcrevemos:
7 — Sempre que, no projecto de fusão ou cisão, seja fixada uma data a partir da qual as operações das sociedades a fundir ou a cindir são consideradas, do ponto de vista contabilístico, como efectuadas por conta da sociedade beneficiária, a mesma data é considerada relevante para efeitos fiscais desde que se situe num período de tributação coincidente com aquele em que se situe a data da produção de efeitos jurídicos da operação em causa.
8 — Quando seja aplicável o disposto no número anterior, os resultados realizados pelas sociedades a fundir ou a cindir durante o período decorrido entre a data fixada no projecto e a data da produção de efeitos jurídicos da operação são transferidos para efeitos de serem incluídos no lucro tributável da sociedade beneficiária respeitante ao mesmo período de tributação em que seriam considerados por aquelas sociedades.
Importa salientar que o art.º 74.º do CIRC continha (e continua a conter) o essencial da disciplina do regime especial aplicável às fusões (neutralidade fiscal), regime que, por opção das partes, não foi adotado na fusão ora em causa.
A Requerente entende que as referidas normas, apesar da sua inserção sistemática “tinham um âmbito de aplicação geral, i.e., tanto se aplicavam às fusões fiscalmente neutras como às fusões que não beneficiavam desse regime especial de neutralidade fiscal” (n.º 235 do pedido inicial).
A AT, na sua resposta (n.º 47 a 49) entende que resultava dos n.ºs 7 e 8 do art.º 74.º do Código do IRC, [que] a possibilidade de atribuir eficácia retroactiva à fusão, para efeitos do IRC, em 2013, apenas estava reservada às operações de fusão abrangidas pelo regime especial pelo que, se a data do registo da operação ocorreu em 01.08.2013, os efeitos da fusão para efeitos fiscais reportam a essa mesma data; é de recordar que o Decreto-Lei n.º 221/2001, de 7 de Agosto, aditou ao artigo 68.º (atual art.º 74.º) do Código do IRC os números 7 e 8, que, além de atribuírem relevância fiscal à data fixada no projecto a partir da qual as operações das sociedades a fundir ou a cindir são do ponto de vista contabilístico consideradas como efetuadas pela sociedade beneficiária, também dispõem sobre a transferência dos resultados gerados na esfera das sociedades que se extinguem, na sequência desses processos; a inserção destas normas no art.º 74.º revela que o legislador apenas acautelou esta possibilidade no quadro do regime especial aplicável às fusões e cisões, situação que só veio a ser alterada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.
Note-se que, não tendo a Requerida invocado como fundamento da liquidação adicional que operou a não aplicabilidade do então disposto nos n.º 7 e 8 do art.º 74.º do CIRC, mas – erroneamente, ao que entendemos – o disposto no seu nº 1, a contrario, não lhe cumpria, ao menos em termos rigorosos, fundamentar a não aplicação daquelas normas, cuja existência parece não ter sequer considerado.
7 -Muito embora, como de seguida se dirá, não se mostre necessário para a boa decisão da causa concluir se o então disposto nos referidos n.º 7 e 8 do artigo 74.º do CIRC constituía norma geral (aplicável a todas as fusões) ou norma especial (aplicável apenas às fusões sujeitas ao regime a neutralidade fiscal), sempre se dirá que interpretação sustentada pela Requerida surge contrariada pelo legislador de 2014, o qual terá reconhecido que a inserção sistemática de tais preceitos poderia conduzir à interpretação ora sufragada pela AT, pelo que os “transferiu” (mantendo intacta a sua redação) para o art.º 8º do Código (norma legal relativa ao período de tributação), onde hoje figuram sob os números 11 e 12.
Do Relatório da Comissão de Reforma do IRC de 2014 (trabalho preparatório de tal reforma legislativa, que, enquanto tal, é elemento interpretativo relevante), a pág. 146, consta o seguinte: Por outro lado, a experiência prática nacional demonstra largamente que o Código do IRC se afigura demasiadamente económico ou ambíguo na regulamentação dos efeitos fiscais, em diversos planos, das operações de concentração excluídas do regime de neutralidade, dificuldade que foi também sentida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, em última análise, motivou a intervenção clarificadora da Comissão quanto a esta matéria.
O intuito do legislador, relativamente às operações de concentração excluídas do regime de neutralidade, foi pois, não o de inovar, mas o de clarificar o que já se devia entender como resultante da lei vigente. E entre essas “alterações clarificadoras” haverá que incluir a “passagem” do disposto nos n.º 7 e 8 do art. 74.º para o art.º 8 do Código (apesar de a razão de ser de tal alteração não aparecer expressamente explicitada em tal relatório, ainda que constando do novo articulado normativo proposto pela Comissão, certamente em razão da sua relativa “insignificância”). Ou seja, há que entender tal alteração sistemática como consubstanciando uma afirmação, quase com a natureza de interpretação autêntica, de que tais disposições eram, mesmo antes da reforma, de aplicação geral, incluindo às fusões não sujeitas ao regime da neutralidade fiscal.
8- Porém, como já se adiantou, a decisão do presente litígio não implica uma tomada de posição sobre o carácter geral ou especial do constante dos n.º 7 e 8 do art.º 74º do CIRC até à reforma de 2014.
Admitindo, por mera disciplina de raciocínio, que, como pretende a Requerida, ao tempo só era possível atribuir, para efeitos fiscais, efeitos retroativos às fusões sujeitas ao regime de neutralidade fiscal, então a sociedade incorporada teria que declarar o lucro obtido no seu último período tributário (desde 1 de janeiro de 2013 até à data da sua dissolução em resultado do registo da fusão, ou seja 1 de agosto desse ano), sendo o correspondente imposto liquidado em seu nome.
O que não é legalmente possível é aquilo que a Requerida AT fez: cindir o lucro da sociedade incorporada, relativamente ao intervalo de tempo referido, aceitando a contabilização pela Requerente (e, consequentemente, a sua relevância para o apuramento do lucro fiscal desta, relativamente ao exercício de 2013) de todos os demais rendimentos e de todos os gastos ocorridos na esfera da sociedade incorporada até à data do registo da fusão, mas “isolando” um ganho (a mais-valia apurada em consequência da operação de fusão) e apurando autonomamente o imposto dele decorrente, liquidando-o em nome desta sociedade.
Concretamente, temos que, por um lado, a AT, através da liquidação impugnada, tributou a mais-valia em questão na esfera da sociedade incorporada, e, por outro, aceitou (pois não operou qualquer correção, não obstante ter inspecionado ambas as sociedades envolvidas) que os demais resultados relativos à sociedade incorporada, entre a data de produção de efeitos contabilísticos da fusão (01.01.2013) e a data do seu registo (01.08.2013), fossem tributáveis na esfera da Sociedade Incorporante, aceitando a sua inclusão na declaração na Modelo 22 de 2013 desta última.
Tem razão a Requerente no que afirma nos artigos 247 e ss do seu pedido inicial.
O lucro tributável é uma realidade unitária, que corresponde ao acréscimo líquido do poder económico de um sujeito entre dois momentos temporais (entre o princípio e o fim de um dado exercício), apurado por aplicação das pertinentes normas contabilísticas e fiscais.
Esta conceção, dita de rendimento-acréscimo, foi totalmente acolhida pelo n.º 2 do art.º 3.º do CIRC, segundo o qual o lucro tributável consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código.
No computo de tal lucro há que considerar todos os ganhos - os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma ação normal ou ocasional, básica ou meramente acessória (art.º 20º) -, as variações patrimoniais positivas e negativas não refletidas no resultado líquido do período de tributação (art.º 21º e 24.º) bem como todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (art.º 23.º), salvo o excetuado pelas normas do Código.
É inquestionável que a liquidação impugnada (admitindo, por mera hipótese, que poderia haver lugar uma liquidação em nome da sociedade incorporada relativa ao ano de 2013) não obedeceu a estes comandos legais.
A AT liquidou imposto como se no período em causa a referida sociedade só tivesse tido o ganho correspondente à mais-valia apurada quando da transmissão do seu património em resultado da fusão (o que necessariamente não corresponde à realidade pois a sociedade manteve-se ativa até à data da fusão), bem como não considerou quaisquer gastos.
A matéria coletável assim apurada não tem, pois, qualquer correspondência com o rendimento real obtido pelo sujeito passivo no período em causa, em clara violação do princípio da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real das empresas.
Não é de aceitar a justificação (para mais extemporânea, pois que deveria ter constado da fundamentação da liquidação) apresentada pela AT para tal “cisão do lucro” da sociedade incorporada.
Transcrevemos dos n.º 15 e 16 das suas contra-alegações: Quanto à não correcção, pela AT, dos eventuais rendimentos e gastos, ganhos e perdas, de qualquer natureza, realizados pela Sociedade Incorporada, entre 01.01.2013 e 31.07.2013, como já referido na Resposta (artigos 61.º a 67.º), a existirem tais resultados, os mesmos não estão quantificados nem foram inscritos no Quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 da Sociedade Incorporante ou na da Sociedade Incorporada, impedindo, deste modo, que fossem objecto de análise. Não se tratou, pois, como se pretende fazer crer, de uma “escolha”, por parte da AT de quais os “ganhos que pretendia ver tributados isoladamente na esfera da Sociedade Incorporada”, tanto mais que não estando os mesmos identificados desconhece-se a sua magnitude e se, em termos globais, são positivos ou negativos.
É bom de ver que, caso a AT estivesse consciente da obrigação legal de a liquidação impugnada corresponder ao rendimento acréscimo total da sociedade incorporada relativo ao período temporal em causa, deveria ter tentado obter os necessários dados junto da Requerente, invocando o dever de colaboração desta, e, caso esta os não fornecesse, realizar uma inspeção externa à sua contabilidade.
O afirmado pela AT não é justificação aceitável para o erro de direito de que enferma a liquidação de imposto impugnada, antes é como que uma confissão de não ter cumprido com o dever de investigação que a lei sobre ela faz impender.
Assim, há que concluir, sem mais, pela ilegalidade da liquidação de imposto impugnada e pela sua anulação, bem como das liquidações e operações dela consequentes.
Pelo exposto, fica prejudicada, por desnecessária, a apreciação dos demais vícios que a Requerente imputou às liquidações impugnadas.
6- Pede ainda a Requerente, na procedência da impugnação, a condenação da AT na obrigação de a indemnizar pelas despesas suportadas em razão da garantia bancária prestada para obter a suspensão do processo de execução fiscal instaurado na sequência do não pagamento voluntário da dívida tributária decorrente das liquidações impugnadas.
O artigo 171.º do CPPT estabelece que a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda e que a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.
O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
No caso em apreço, o erro subjacente às liquidações de impugnadas que determinou a sua anulação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois tais liquidações foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro, que é de direito, acontecesse.
Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, nos termos do artigo 52.º da LGT.
No entanto, o montante total suportado pela Requerente com a prestação da garantia em causa não está ainda totalmente determinado, uma vez que existem encargos periódicos, devidos até á sua extinção, pelo que a fixação do montante indemnizatório terá, necessariamente, que ser relegado para execução de sentença.
IV - Decisão
Pelos fundamentos expostos:
a) Anulam-se, na totalidade, as liquidações impugnadas.
b) Consequentemente, anula-se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada.
c) Condena-se a Requerida no pagamento à Requerente de uma indemnização, em valor correspondente às despesas por esta suportadas com a constituição e manutenção de garantia bancária por esta prestada para lograr a suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2018..., em valor a determinar em execução de sentença.
Valor do processo: € 388.545,78
Lisboa, 30 de janeiro de 2020
O Árbitro Presidente
Carlos Cadilha
O Árbitro Vogal
Rui Duarte Morais
O Árbitro Vogal
Nuno Maldonado Sousa