Decisão Arbitral
I. Relatório
A... e B..., doravante designados por "Requerentes", casados, com os Números de Identificação Fiscal ... e ..., respetivamente, residentes em Rua do ..., n.º..., ..., ..., Montalegre, vêm, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante, abreviadamente, "RJAT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a pronúncia sobre a (i)legalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares de Imposto (“IRS”), de 29 de abril de 2019, com o número 2019..., referente ao IRS de 2013, no valor de € 5.670,88.
1.1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23 de agosto de 2019.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.
1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 14 de novembro de 2019.
1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu no prazo legal, pugnando pela improcedência do pedido.
1.6. Não existindo exceções a discutir ou controvérsia sobre a matéria de facto, foi proferido despacho arbitral, no dia 21 de dezembro de 2019, dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, bem assim, a produção de alegações, tendo-se designado o dia 15 de janeiro de 2020 como data de prolação da decisão judicativa arbitral.
2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
II. Fundamentação
4. Matéria de facto
4.1. Factos Provados
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
4.1.1. No dia 22 de março de 2013, foi alienado, pela administradora de insolvência nomeada nos autos de insolvência de pessoas singulares em que eram insolventes os Requerentes, o prédio urbano composto por armazém industrial e logradouro, situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Montalegre, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na conservatória do registo de Montalegre sob o número .../..., pelo valor de € 60.000,00 – cf. Documento 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
4.1.2. Em 6 de junho de 2014, os Requerentes submeteram, via internet, declaração modelo 3 de IRS, na qual declararam, no anexo G – Mais-valias e outros incrementos patrimoniais, a alienação desse prédio urbano, fazendo constar, como valor de realização, o montante de € 60.000,00 e como valor de aquisição o valor de € 75.200,00 – cf. Documento 1, junto ao pedido de pronúncia arbitral.
4.1.3. Por ofício datado de 26 de janeiro de 2016, a Direção de Finanças de ... notificou os Requerentes para procederem ao esclarecimento e/ou regularização da sua situação tributária, imputando como valor de aquisição a declarar o valor de € 7.631,61 e como valor de realização, resultante da avaliação nos termos do Código do IMI, o valor de € 75.200,00 – cf. Documento 3, junto ao pedido de pronúncia arbitral.
4.1.4. Na sequência, os Requerentes submeteram, em 8 de março de 2016, nova declaração de IRS, fazendo constar do anexo G – Mais-valias e outros incrementos patrimoniais – o valor de realização de € 75.200,00 e o valor de aquisição de € 7.631,61, com referência à transmissão do imóvel supra identificado – cf. Documento 4, junto ao pedido de pronúncia arbitral.
4.1.5. Em consequência, foi emitida, em 11 de março de 2016, a liquidação de IRS n.º 2016..., com o valor a pagar de € 8.275,31 – cf. Documento 5, junto ao pedido de pronúncia arbitral.
4.1.6. No dia 24 de janeiro de 2019, os Requerentes apresentaram pedido de revisão oficiosa desse ato de liquidação – cf. Documento 6, junto ao pedido de pronúncia arbitral, aqui considerado integralmente reproduzido.
4.1.7. Por ofício datado de 26 de abril de 2019, foram os Requerentes notificados de que, por despacho da Direção de Finanças de ..., datado de 8 de abril de 2019, o pedido de revisão fora parcialmente deferido, com fundamento em erro imputável aos serviços quanto ao valor de realização a inscrever no Anexo G, o qual, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 4, regra 16.ª, devia ser de € 60.000,00 e não de € 75.200,00, como preteritamente indicado – cf. Documento 7, junto ao pedido de pronúncia arbitral, e fls. 38 e seguintes do P.A., junto pela Requerida.
4.1.8. No dia 29 de abril de 2019, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2019..., com o valor a pagar de € 5.670,88 – cf. Documento 8, junto ao pedido de pronúncia arbitral.
4.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
4.3. Motivação da matéria de facto
Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.
No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, com o Processo Administrativo, organizado nos termos do artigo 111.º do CPPT, e junto com a Resposta da Requerida.
Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida.
5. Matéria de direito
5.1. Enquadramento da questão decidenda e posições das Partes
A quaestio decidendi prende-se com a ilegalidade da liquidação face ao disposto nos artigos 51.º, n.º 1, alínea c), e 268.º, n.º 1, do CIRE.
Os Requerentes alegam, em síntese, que por efeito da declaração de insolvência, não lhes pode ser imputada a venda do imóvel e que o produto da sua venda não integrou o seu património, mas o da massa insolvente, razão pela qual, a existirem mais-valias, estas constituiriam dívida e responsabilidade da massa insolvente. Mais invocam que a redação dessa norma dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, tem natureza interpretativa, esclarecendo as dúvidas quanto à questão de saber se, antes da referida alteração, o benefício fiscal previsto no artigo abrangia, para além dos casos de dação em cumprimento e cessão de bens aos credores, as vendas de bens imóveis. Sustentam, ainda, que os princípios constitucionais da segurança jurídica e da não proibição da retroatividade da lei fiscal mais favorável obrigam à aplicação da nova redação da norma ao caso sub judice.
A Requerida, pugnando por tese diferenciada, salienta que a mais-valia decorrente da venda do prédio constitui um rendimento dos insolventes, sujeito a tributação, porquanto a norma em vigor no momento da transmissão não estabelecia qualquer benefício fiscal consubstanciado na não tributação das mais-valias geradas pela venda de património imobiliário.
5.2. Fundamentos de direito
De acordo com a argumentação jurídica alegada pelos Requerentes, a apreciação da legalidade da liquidação pressupõe o esclarecimento de duas questões. Por um lado, importa saber se o rendimento resultante da venda de um imóvel após a declaração de insolvência altera a relação jurídica tributária no plano sujeição passiva do imposto; por outro lado, se a alteração legislativa promovida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, deve aplicar-se a factos tributários ocorridos antes da sua entrada em vigor, abrangendo, com isso, a alienação subjacente à liquidação circunstancialmente em causa no presente processo arbitral.
5.2.1. No que concerne ao primeiro nódulo problemático, a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo considera que “os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda” e que “a diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respetivo produto fique afeto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente, que está obrigado a declará-lo, enquanto sujeito passivo do imposto” – cf. Pontos I e II do sumário do Acórdão do STA de 29 de novembro de 2019, tirado no processo 01646/13.2BELRA, disponível em www.gde.mj.pt.
A argumentação constante do citado aresto merece a nossa concordância. Com efeito, como ali se refere, importa reter que a declaração de insolvência não provoca, no plano jurídico, qualquer alteração da propriedade do imóvel gerador de mais-valias. O facto de a declaração de insolvência acarretar a apreensão dos bens passíveis de penhora, que passam a integrar um património autónomo e de afetação, a massa insolvente, preordenado à satisfação dos interesses dos credores, não implica o aparecimento de uma nova subjetividade jurídica: “com a declaração de insolvência, a massa insolvente não passa a ser um sujeito passivo de imposto distinto da pessoa insolvente, pois o sujeito passivo do imposto continua a ser apenas um: a pessoa insolvente. Ou seja, no processo de insolvência, tanto o devedor singular como o coletivo, mantêm a sua qualidade de sujeitos passivos da relação jurídica tributária. Por outras palavras, quando sobrevém a declaração de insolvência, apenas ocorre a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência, isto é, os bens não deixam de ser propriedade do insolvente, apenas se operando uma transferência daqueles poderes incidentes sobre os mesmos (cfr.artº. 81, nº.1, do CIRE; Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º13, Julho/Setembro de 2016, pp. 3 a 15; Sara Luís da Silva Veiga Dias, O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Abril de 2012, p.121, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em www.tributarium.net; Ana Prata e Outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pp.716 e seg.)”. Nessa medida, o Tribunal conclui que “o prédio alienado não deixou de ser propriedade dos impugnantes/recorrentes, mesmo após a declaração de insolvência, ou seja, não se verificou qualquer alteração da relação jurídica tributária, continuando os apelantes a ser os proprietários do prédio e sujeitos passivos do imposto até ao momento em que ocorreu a venda do mesmo, mais sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu”. O facto tributário ocorre, consequentemente, por referência à capacidade
Continuando a seguir o excurso da argumentação do STA, importa deixar consignado que a mais-valia gerada pela venda do imóvel constitui uma vantagem patrimonial efetiva abrangida pela previsão do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS. Como se lê na fundamentação do acórdão citado, “o acréscimo de rendimento tributado resulta da diferença entre o valor por que foi adquirido o imóvel e o valor por que foi alienado (tudo conforme declaração fiscal apresentada pelos impugnantes/recorrentes), assim constituindo uma vantagem patrimonial para efeitos da incidência do I.R.S. E tal mais-valia, embora não tenha entrado material e fisicamente na posse dos recorrentes, não deixou de entrar na sua (dos apelantes) esfera jurídica, a qual foi destinada à diminuição do respetivo passivo, pela sua adjudicação aos fins do processo executivo em que foi operada a alienação do imóvel” – no mesmo sentido, cf., o ac.S.T.A-2ª.Secção, 31/05/2017, rec.1410/16; ac.S.T.A-2ª.Secção, 11/10/2017, rec.504/17; ac.S.T.A-2ª.Secção, 30/05/2018, rec.144/17; ac.S.T.A-2ª.Secção, 24/04/2019, rec.260/15.2BEFUN.
Questão diversa, mas que não carece de ser aqui equacionada, prende-se com a responsabilidade pela dívida resultante da liquidação controvertida, ou seja, com o facto de saber quem é que responde pelo imposto resultante da mais-valia gerada pela venda de imóvel da massa insolvente. Essa questão, relativa ao âmbito de exigibilidade da dívida do imposto, exorbita manifestamente dos poderes de cognição deste Tribunal a qual cabe apreciar tout court a legalidade do ato de liquidação.
Por estes fundamentos, aqui reiterados, considera-se improcedente a argumentação dos Requerentes expressa nos pontos 13 a 20 do requerimento de pronúncia arbitral.
5.2.2. Estando, assim, assente que os Requerentes são sujeitos passivos do imposto (artigo 13.º do CIRS), e, como tal, obtiveram uma mais-valia tributável nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, importa agora se, por mor da aplicação da isenção prevista no artigo 268.º, n.º 1, do CIRE, esse rendimento deve considerar-se isento de imposto, não concorrendo para a determinação da matéria tributável dos Requerentes.
No momento em que o facto tributário ocorreu, dispunha o artigo 268.º, n.º 1, do CIRE, que “as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor”.
Em matéria tributária, o cânone metodológico do legislador estabelece uma impossibilidade de integração analógica de lacunas resultantes de normas abrangidas pela reserva de lei da Assembleia da República, aí se incluindo, por força do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da norma normarum, as relativas aos benefícios fiscais. Tal resulta dos artigos 11.º, n.º 4, da LGT e, mais especificamente, do artigo 10.º do EBF. Esse regime não impede que o intérprete considere o pensamento legislativo na determinação do sentido jurídico-normativo do preceito legal e procure harmonizar os elementos da interpretação jurídica num resultado interpretativo que imponha uma extensão da dimensão filológico-gramatical da norma.
Nessa medida, admitindo-se que o legislador minus dixit quam volit, mas considerando igualmente o sentido objetivista portado pela norma, pode o intérprete chegar a um resultado interpretativo que implique a abrangência de situações não imediatamente percetíveis pela letra da norma. Essa interpretação extensiva, radicaria, então, na conclusão de que o pensamento legislativo teria sido indevidamente expresso, por defeito, na dimensão literal da lei, pelo que se justificaria a reposição do equilíbrio “letra-espírito” por extensão gramatical, dentro dos limites dispostos pelo legislador no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil.
In casu, poderia concretizar-se esse esforço metodológico na hipótese de se entender que o legislador, ao isentar de imposto as mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou da cessão de bens aos credores, pretendia também, sem o ter dito, abranger no âmbito delimitador dessa isenção os caos em que as mais-valias resultassem da venda de bens a terceiros, pelo menos na parte em que o valor fosse mobilizado para pagamento aos credores.
Essa hipótese, porém, constituiria uma distorção do pensamento legislativo, estando, qua tale, vedada ao intérprete. Efetivamente, como se deixou consignado, entre outros, no Acórdão do STA de 10 de maio de 2017, tirado no processo n.º 669/15, “não pode (…) sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência direta de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente”, acrescendo ainda que a previsão, no artigo 270.º, relativa ao benefício quanto ao imposto municipal sobre transmissões onerosas de imóveis, sem distinção quanto à sua causa, mais adensa a intencionalidade concretizadora com que foi delimitada a hipótese prevista na redação do artigo 268.º, n.º 1, do CIRE.
O que impõe a conclusão de que, na redação em vigor no momento em que o rendimento se considera obtido, o artigo 268.º, n.º 1, do CIRE, não estabelecia qualquer isenção de IRS no caso de serem auferidas mais-valias com a venda de imóveis.
Sucede, porém, que, em janeiro de 2018, o citado artigo passou a dispor que os “rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido, verificadas por efeito da dação em cumprimento de bens e direitos do devedor, da cessão de bens e direitos dos credores e da venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação, estão isentos de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor”. Destarte, por força da redação dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, o legislador ampliou o âmbito da isenção para incluir também a “venda de bens e direitos” na norma de isenção fiscal.
No entendimento dos Requerentes, a alteração legislativa consubstancia-se numa norma de natureza interpretativa, a qual, passando a integrar o sentido da norma interpretanda, seria aplicável ao caso sub judicio sem desrespeito pelos princípios de aplicação da lei fiscal no tempo.
No entanto, como se verá de seguida não nos encontramos perante uma norma à qual possa ser atribuída natureza interpretativa.
Com efeito, subscrevendo a lição de Batista Machado, deve reconhecer-se que para que uma lei possa considerar-se realmente interpretativa é necessário que, para além da existência de uma solução jurídica incerta ou controvertida, a “nova” solução seja admissível sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação jurídica, sendo que, se o intérprete não estivesse autorizado a adotar a solução que consagrada pela lei nova, esta deve considerar-se decisivamente inovadora (in Introdução ao direito e ao discurso legitimador, pp. 246-247). Como também se deixou consignado no Acórdão deste CAAD, tirado no processo n.º 362/2019-T, subscrito pelo signatário, deve entender-se que a lei interpretativa não poderá extravasar, restritiva ou extensivamente, o teor literal da norma interpretanda, caso contrário, como referem Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Lopes de Sousa, “estar-se-á, a coberto de uma pseudo-interpretação, a criar uma norma com carácter retroativo” (in Lei Geral Tributária Anotada, 4.ª edição, 2012, p. 132).
Ora, como se deixou consignado no ponto anterior, dúvidas não existem que a redação da norma até à alteração legislativa, a que o legislador não conferiu, sublinhe-se, natureza interpretativa, não comportava, sem que fossem ultrapassados os limites de uma interpretação válida, a extensão da letra ao ponto de ver abrangidos pelo sentido jurídico-normativo da norma os casos de venda de imóveis. A jurisprudência uniforme e reiterada do Supremo Tribunal Administrativo avaliza, de resto, esta conclusão.
Sendo assim, não pode reconhecer-se natureza interpretativa ao artigo 287.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro, que alterou a redação do disposto no artigo 268.º, n.º 1, do CIRE.
5.2.3. Em consequência do exposto, não se verifica a imputada ilegalidade da liquidação em crise.
Não obstante a mesma ter ocorrido em 2019, a mesma fez aplicação do regime legal que estava em vigor no momento em que o facto tributário ocorreu, sendo que, como se estabelece no artigo 12.º da LGT, “as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos”.
Como é óbvio, a raiz axiológica do princípio da proibição de normas fiscais retroativas não impede que o legislador atribua natureza retroativa a normas que comportem um desagravamento do imposto: as razões decorrentes do princípio do Estado de direito, na sua dimensão de segurança jurídica e de tutela das legítimas expetativas dos cidadãos, não constituem obstáculo intencional à verificação das assinaladas situações. Todavia, a não existência desse obstáculo de princípio não pode confundir-se com um cânone de aplicação da lei fiscal mais favorável em termos de obrigar à aplicação retroativa de uma lei a factos tributários passados, fora do âmbito da discricionariedade constitutiva do legislador para recortar os critérios de aplicação da lei no tempo.
6. Decisão
Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da liquidação de IRS, de 29 de abril de 2019, com o número 2019..., referente ao IRS de 2013, no valor de € 5.670,88, com as devidas consequências.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 5.760,88.
8. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.
Lisboa, 14 de janeiro de 2020,
O Árbitro,
(João Pedro Rodrigues)