DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., LDA., com o NIF ... e sede na Rua ..., ..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação em IRC, no valor de € 436.571,69, e de liquidação de juros compensatórios, no valor de € 52.783,95, referentes ao ano de 2013, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esses actos, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
O Requerente foi sujeita a um procedimento inspectivo tendo como objectivo averiguar a efectividade das operações de aquisição de bens de investimento, matérias primas e mercadorias realizadas com produtores de países asiáticos mediante a intermediação de uma empresa sediada em Hong Kong (B...), no pressuposto de que a interferência desta entidade tinha em vista empolar os gastos comerciais com essas transacções mediante o pagamento artificial de uma comissão.
Na sequência da ação inspectiva foram determinadas correcções aritméticas, em aplicação do disposto no artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC, com base na não aceitação para efeitos fiscais de gastos com a aquisição de matérias primas, mercadorias e bens de investimento, e, nos termos do artigo 88.º, n.º 8 do mesmo Código, na sujeição a tributação autónoma de pagamentos efectuados a entidades residentes fora do território português com um regime fiscal mais favorável.
Relativamente a gastos fiscalmente não aceites, a Autoridade Tributária baseou-se na seguinte ordem de considerações: (a) a constituição da B... coincidiu com o processo de candidatura ao J..., tendo-se comprovado o empolamento na aquisição do bem de investimento contemplado no projecto; (b) verifica-se uma exclusividade de relações comerciais com empresas detidas por um dos sócios da Requerente (A... e C...), o que indicia que a intermediação visa o empolamento dos gastos com aquisições registadas no território nacional; (c) a suposta margem de 3% para pagamento dos serviços prestados pela B... não ocorre em todas as operações intermediadas, verificando-se uma oscilação percentual entre 2,14% e 8,20%, o que coloca dúvidas quanto à margem efectivamente aplicada; (d) a margem de 3% incidente sobre o volume de negócios da B... consubstancia-se num ganho próximo dos € 30.000,00 anuais o que é insuficiente para cobrir os custos dos serviços de verificação de materiais e equipamentos e dos serviços de grupagem, despesas de deslocação aos fabricantes e produtores, gastos com a remuneração ou subcontratação para controlo de qualidade; (e) a indicação de uma cidadã chinesa, D..., como coordenadora das compras na Ásia não é coerente com a publicidade institucional da B..., que não lhe faz qualquer referência; (f) os alegados serviços de grupagem não se confirmam para a quase totalidade das operações intermediadas pela B...; (g) comprovou-se a existência de sobrevalorização do preço médio por quilo do mesmo tipo de produto fornecido pelo mesmo fabricante asiático quando comparado com a facturação em que há lugar à intermediação da B...
A partir destes dados indiciários, a Administração considerou que os resultados da Requerente se encontravam negativamente influenciados pelo empolamento falseado das facturas emitidas pela B..., concluindo que as operações têm um carácter anormal e envolvem montantes exagerados, o que determinou a não dedutibilidade para a determinação do lucro tributável do montante de € 691.393,00.
A Requerente alega que se relacionou com a sociedade B... porque esta operava no tráfego jurídico internacional, encontrava-se incorporada numa região administrativa da China, dispondo de agentes locais com prática comercial, e, por outro lado, apesar de se encontrar sediada num território com um regime fiscal mais favorável, estava sujeita a um regime de tributação dual (“on-shore” e “off-shore”), ao qual era aplicável a convenção para evitar a dupla tributação. E, assim sendo, competia à Administração Tributária indagar se a sociedade B... estava sujeita a um regime de tributação efectiva e se dessa tributação resulta num montante de imposto pago igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a empresa estivesse sediada em território português.
No que se refere ao programa SI-Inovação financiado pelo J..., o que se constatou é que a Requerente se tinha candidatado inicialmente à aquisição de quatro máquinas “...”, para o fabrico de mangas para mangueiras, pelo valor unitário de € 31.500,00, e apresentou, posteriormente, um comprovativo de aquisição de uma máquina no valor de € 65.000,00, referente ao dispositivo “...”, sendo que a diferença de preço se ficou a dever ao facto de se ter adquirido um equipamento tecnologicamente superior ao que constava da proposta de candidatura.
Por outro lado, a circunstância de as relações comerciais com a B... se reportarem exclusivamente a operações realizadas pela Requerente e uma outra empresa com ela relacionada (C...) explica-se pela necessidade de utilizar um intermediário de confiança para prestar os serviços de controlo de qualidade e de grupagem.
Além disso, não é relevante que não tenha sido aplicada uma margem fixa para pagamento dos serviços à B..., mas uma margem variável, que poderá oscilar entre um mínimo de 2,14% (factura n.º F12CI-14) e um máximo de 4,76% (F12CI-16), porquanto os serviços são cobrados em função da especificidade de cada operação.
A alegada insuficiência da remuneração pelos serviços prestados pela B... é meramente especulativa e, por outro lado, não pode entender-se como anormal que a coordenação das operações realizadas pela B... em território chinês seja atribuída a um colaborador residente em Hong Kong.
No que diz respeito aos serviços de grupagem, a circunstância de terem sido detectados carregamentos em que o fornecedor era uma empresa chinesa e tiveram como destinatários a Requerente e a sociedade B... não permite concluir que a intermediação realizada por esta entidade tenha sido, em todas as operações, artificiosa. Do mesmo modo que a diferença de preços praticados em relação à Requerente nos fornecimentos efectuados directamente por um produtor chinês e naqueles que são intermediados pela B... não demonstra que os serviços de intermediação não tenham sido efectivamente prestados, sendo que é a remuneração paga pela prestação de serviços de intermediação que pode justificar que, neste caso, o custo seja mais elevado.
A Autoridade Tributária incorreu em fundamentação insuficiente e incongruente, violando o disposto no artigo 77.º, n.º 1, da LGT, e ao desconsiderar o gasto suportado pela Requerente, efectuou uma errónea quantificação e qualificação dos factos tributários, em violação do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC.
A Administração Tributária, por remissão para os pontos III.1.1.1.1. (fls. 18 e 19) do Relatório de Inspecção Tributária, desconsiderou ainda a depreciação sobre activos fixos tangíveis facturados pela B... no que se refere à aquisição da máquina ..., no valor de € 65.000,00, no ano de 2012, e à aquisição de três outras máquinas facturadas em 6 de Fevereiro de 2013 (facturas F12C1-I7 e F12CI-18 e F12CI-19), tendo determinado o acréscimo ao lucro tributável do montante de € 24.468,25.
Quanto a este ponto, a Requerente limita-se a referir que naqueles locais do Relatório de Inspecção não há nenhuma referência à depreciação de activos intangíveis, não sendo possível compreender a razão pela qual foi efectuada a correcção aritmética, pelo que o acto tributário enferma igualmente de vício de falta de fundamentação.
Na sequência das correcções anteriormente consideradas, a Administração Tributária entendeu ainda haver lugar a tributação autónoma, nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 8, da Código do IRC, em relação a gastos realizados com residentes fora do território português e submetidos um regime fiscal privilegiado que são tidos como não dedutíveis para efeitos fiscais, determinando um acréscimo ao lucro tributável no montante de € 189.499,98.
Quanto a este ponto, a Requerente alega que a Autoridade Tributária não demonstrou que a B... se encontre sujeita a um regime de tributação mais favorável e que a decisão está igualmente afectada por fundamentação insuficiente e incongruente.
Conclui que o despacho de indeferimento da reclamação graciosa impugnado viola os princípios da justiça, da legalidade, da boa fé, do inquisitório e da busca pela verdade material (artigos 266.º. n.º 2, 103.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, e incorre em falta de fundamentação (artigos 77.º, n.º 1, da LGT e 268.º, n.º 3, da CRP) e violação de lei (artigos 29.º, 30.º, 31.º e 88.º, n.º 8, do Código do IRC).
A Autoridade Tributária, na sua resposta, considera que as operações intermediadas pela B... não têm qualquer razoabilidade, na medida em que existem fornecimentos directos para a A... realizados pelos mesmos fabricantes/produtores asiáticos e existem outras facturas da mesma proveniência que apresentam preços mais elevados e poderão encobrir comissões retidas no fornecedor para serem distribuídas pelos responsáveis da A... através da empresa intermediária.
Sendo que é a própria lei que impõe que se desconsiderem as importâncias pagas ou devidas a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado (artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC). Não podendo o sujeito passivo invocar, face a essa disposição, a inversão do ónus da prova com base na convenção para evitar a dupla tributação.
O n.º 8 do artigo 88.º do Código do IRC estipula, nos mesmos termos, que as despesas realizadas nessa situação estão sujeitas a tributação autónoma, competindo ao contribuinte a demonstração de que as importâncias pagas à B... não possuem um carácter anormal nem envolvem um montante exagerado.
Por outro lado, o Relatório de Inspecção Tributária evidencia uma fundamentação clara e linear que a Requerente através da petição inicial demonstrou ter compreendido.
Com a resposta, a Autoridade Tributária juntou uma informação adicional ao procedimento inspectivo resultante de uma auditoria informática destinada à recolha de ficheiros relativos à base de dados do programa de facturação e contabilidade da Requerente.
2. No seguimento do processo, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal.
Na reunião, a Impugnante requereu a junção de documentos provenientes da região administrativa de Hong Kong destinados a fazer prova de factos alegados na petição e que não pode obter em momento anterior, bem como o desentranhamento da informação adicional elaborada pela Direcção de Finanças de ... já após a conclusão do procedimento inspectivo por considerar constituir fundamentação a posteriori.
Concedido prazo para se pronunciar sobre os requerimentos ditados para a acta, a Autoridade Tributária respondeu, alegando que os documentos juntos pela Requerente não cumprem o estatuído no artigo 423.º do CPC quanto ao momento da apresentação e, tratando-se de documentos escritos em língua estrangeira e passados em país estrangeiro, carecem de tradução e de legalização nos termos dos artigos 134.º e 440.º do CPC. Quanto ao pedido de desentranhamento, a Autoridade Tributária invoca que a informação da Direcção de Finanças de ... corresponde a facto superveniente, admissível nos termos do artigo 588.º do CPC.
A Requerente, por requerimento de 5 de setembro de 2019, veio entretanto juntar documentação apostilada para efeito de se considerar cumprido o procedimento de legalização e protestou juntar tradução dos documentos.
Por despacho arbitral de 11 de Setembro de 2019, o tribunal, ao abrigo do princípio da autonomia do tribunal na condução do processo, decidiu admitir a junção dos documentos apresentados pela Requerente, que se encontravam já legalizados, e determinar a notificação da parte para juntar a respectiva tradução, nos termos previstos no artigo 134.º do CPC. Quanto ao pedido de desentranhamento da informação junta pela Requerida, o tribunal considerou admissível a junção do documento, ao abrigo do disposto no artigo 423.º, n.º 3, in fine, do CPC, por ter sido emitida na sequência da constituição do tribunal arbitral e junta apenas com a resposta para prova dos factos alegados.
No mesmo despacho, o tribunal determinou o prosseguimento do processo para alegações escritas pelo prazo sucessivo de dez dias, após a junção da tradução dos documentos ou o decurso do respectivo prazo.
Em alegações, a Requerente refere que o regime de tributação existente em Hong Kong e concretamente aplicável à B... não é um regime fiscal claramente mais favorável para os efeitos do disposto no artigo 63.º-D da Lei Geral Tributária, sendo inaplicáveis ao caso as regras dos artigos 65.º, n.º 1, e 88.º, n.º 8, do Código do IRC. Analisou ainda diversos documentos juntos aos autos em vista a demonstrar que as operações intermediadas pela B... foram efetivamente realizadas apenas sendo possível pôr em causa o valor atribuído ao serviço de intermediação. Concluindo, nesses termos, que deverão ser contabilizados gastos no valor de € 596.630,62 e as depreciações referentes às aquisições documentadas pelas facturas n.ºs F12CI-2, F12CI-17, F12CI18 e F12CI-19 a que se faz referência no Relatório de Inspecção Tributária.
Com a alegação, foi ainda requerida a junção de documentos para contraditar os elementos de facto constantes da informação adicional da Direcção de Finanças de ... .
Contra-alegando, a Autoridade Tributária opôs-se à junção dos documentos apresentados com as alegações, dizendo que os documentos não se encontram traduzidos nem legalizados e não respeitam a factos supervenientes, e, pronunciando-se sobre os resultados probatórios resultantes dos elementos dos autos, considera que a prova testemunhal apresentada é inconsistente e não revela conhecimento directo dos factos e que a prestação de serviços de intermediação não se encontra documentalmente comprovada.
Em resposta ao pedido de desentranhamento dos documentos juntos com a alegação, a Requerente alega que os documentos correspondem a facturas de transacções comerciais internacionais, elaboradas em língua inglesa, dado que os respectivos emitentes estão domiciliados na República Popular da China e na República da Índia e, tratando-se de documentos particulares, a Requerente encontra-se objectivamente impossibilitada de conseguir a legalização desses documentos. E estando em causa facturas que contêm elementos numéricos e dados meramente descritivos da mercadoria, em língua e contexto perfeitamente acessíveis, não é exigível a tradução dos documentos para a sua efectiva percepção.
Face ao exposto pela Requerente, o tribunal entende pela presente decisão ser de admitir os documentos juntos com a alegação.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e dos n.º 1e 2 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, as partes designaram os árbitros e estes designaram o terceiro árbitro, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 24 de Abril de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte:
1. A A..., LDª., nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requereu a constituição de Tribunal arbitral para apreciação da legalidade da decisão de indeferimento de reclamação graciosa deduzida contra o acto de liquidação adicional de IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas) do ano de 2013, no valor de € 436.571,69, e de juros compensatórios no valor de € 52.783,95.
2. A reclamação graciosa a invocar a ilegalidade dos referidos actos tributários de liquidação de IRC e de juros compensatórios foi apresentada em 20.04.2018, dirigida ao Director de Finanças de ..., e deduzida contra a demonstração de liquidação de IRC n.º 2007..., de 09.11.2017, com o número de compensação 2017..., do ano de 2013, no valor de € 436.571,69.
3. Através de comprovativo (Doc. 2/2 – Caixa Direta Empresas) junto ao pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que, em 21.12.2017, a Requerente procedeu ao pagamento do IRC e dos juros compensatórios referentes ao ano de 2013, no valor de €436.571,69.
4. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 12.11.2018 do Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direcção de Finanças de ..., proferido ao abrigo de subdelegação de competências, e notificado à Requerente, na pessoa do seu mandatário, através do ofício n.º..., de 14.11.2018, da Direcção de Finanças de ... .
5. O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto imediato a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e por objecto mediato a apreciação da legalidade dos actos de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios referentes ao período de tributação de 2013, supra identificados.
6. As razões que determinaram a efectivação dos actos de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, do ano de 2013, emergem das conclusões do procedimento de inspecção tributária externo, cujos actos de inspecção foram realizados pelos serviços de inspecção tributária afectos à Direcção de Finanças de ..., notificado em 09.11.2017 à Requerente através do ofício n.º..., da Direcção de Finanças de ...,
7. O procedimento de inspecção tributária teve por finalidade a avaliação e controlo das operações realizadas pela Requerente com entidades não residentes ocorridas no período de tributação de 2013, cujos pagamentos envolveram transferências para países, territórios ou regiões com regime de tributação privilegiado.
8. A Requerente tem por objecto social a actividade de comércio por grosso de máquinas e equipamentos para calçado, malas e afins, fabricação de componentes para calçado, malas e afins, comércio de produtos acabados para uso técnico e industrial, importação, exportação e representações.
9. A Requerente importa matérias primas, máquinas e equipamento do extremo oriente, nomeadamente da República Popular da China, Singapura, República da China (Taiwan) e da Índia.
10. Conforme resulta das conclusões do Relatório do procedimento de inspecção tributária (RIT), as correcções à matéria tributável de IRC do ano de 2013 totalizam o valor de € 743.258,86, tendo implicado a alteração do lucro tributável de IRC do valor € 175.543,17, para o valor € 918.802,03, e consistiram no seguinte:
a) Gastos não aceites – Matérias primas e mercadorias adquiridas à B... . Os Serviços de Inspecção Tributária desconsideraram os gastos decorrentes de transações com paraísos fiscais no valor de € 691.393,03.
b) Gastos não aceites – depreciações de bens adquiridos à B... . Os Serviços de Inspecção Tributária desconsideraram depreciações em bens de investimento decorrentes de transações com paraísos fiscais no valor de € 24.468,25.
c) Tributação autónoma – pagamento a residentes em regime fiscal privilegiado. Estas correções totalizaram o valor de €189.499,88. Este valor decorre da aplicação da taxa de 35% ao valor de € 541.428,30, pago em 2013 pela Requerente à B... .
11. As correções referentes a gastos não aceites decorrentes de transacções com paraísos fiscais (alínea a) e b) do ponto anterior) ascendem ao valor de € 715,861,28.
12. A totalidade das correções meramente aritméticas ao lucro tributável do período de tributação do ano de 2013 totalizam o valor de € 743.258,86 – (cfr. pág. 60 do RIT).
13. A páginas 11 e 12 do Relatório Final do procedimento de inspecção tributária estão identificadas as contas bancárias em que tiveram origem as transferências bancárias para as entidades não residentes sediadas para países, territórios ou regiões com regime de tributação privilegiado.
14. Os serviços de inspecção tributária consideraram que as contas bancárias estavam associadas à actividade normal desenvolvida pela Requerente e que estavam reflectidas na sua contabilidade, nomeadamente, nas contas SNC 1201, 1209, 1224 e 1255, conforme documentos emitidos pelas instituições financeiras (cfr. anexos 3 e 4 do RIT).
15. Os documentos associados aos fluxos financeiros traduzidos nas transferências para as entidades não residentes comprovam que aquelas tiveram por fim efectuar o pagamento da aquisição de máquinas, de matérias primas e de mercadorias.
16. Os serviços de inspecção validaram a efectividade daquelas operações, conclusão que assentou nos documentos de transporte por navio, fretes aéreos, documentos transitários, documentos alfandegários, documentos de transportadores rodoviários e certificados de origem.
17. Com base na contabilidade da Requerente, os serviços de inspecção tributária confirmaram a efectiva existência das compras de bens de investimento e de inventários, com origem em fabricantes/produtores de países asiáticos (China, Singapura, Taiwan e Índia), mas cuja facturação para a Requerente foi feita pela B..., tendo, outrossim, considerado que o circuito físico dos bens não coincidiu com o circuito documental, visto que as operações materiais referentes às transacções dos bens não ocorrem entre a B... e a Requerente, mas entre esta e os fabricantes/produtores de países asiáticos (China, Singapura, Taiwan e Índia).
18. A B... é uma sociedade sediada na região administrativa especial da República Popular da China, Hong-Kong, com a qual a Requerente tinha relações especiais, porquanto, E..., principal acionista da B..., com 9.999 ações (capital social da B...– 10.000 ações), é também sócia da Requerente (A...) e esposa de F..., sócio-gerente da Requerente.
19. Os serviços de inspecção tributária consideram que a intervenção da B... teve por objectivo modificar o preço normal dos bens adquiridos pela Requerente, que, alegando o pagamento de uma comissão destinada à B..., logrou empolar os gastos com a aquisição dos bens de investimento, das matérias primas e das mercadorias.
20. A Requerente invocou que a intervenção da B... foi necessária por causa das características dos agentes comerciais, com os quais ainda não existia uma relação de confiança e não davam garantias quanto à consistência das operações, tendo se tornado necessário através de um parceiro sediado no local garantir o controlo de qualidade dos produtos e a entrega da mercadoria ao transportador.
21. A Requerente fundamenta que a B... prestou serviços de “grupagem” consubstanciados na concentração de várias encomendas num só contentor, o que implicava ganhos de eficiência, quer em termos de custo do transporte, quer em termos logísticos, bem como os serviços a que se refere o ponto anterior.
22. Todavia, os serviços de inspecção tributária identificaram diversas divergências entre as facturas emitidas pelos fabricantes/produtores e as facturas emitidas pela B... . Não obstante ter sido solicitado esclarecimentos à Requerente e esta ter enviado diversos ficheiros, as irregularidades ou divergências não foram suficientemente esclarecidas, ao que acresce a circunstância dos alegados serviços prestados pela B... não constarem do descritivo das facturas, referindo aquele apenas a transmissão dos bens (cfr. págs. 15 a 17 do RIT), circunstância para a qual a A... não apresentou fundamento justificativo suficiente e adequado (cfr. pág. 31 do RIT).
23. Em face das acções de avaliação e controlo, os serviços de inspecção tributária não só confirmaram os erros e as irregularidades cometidas na emissão das facturas, como também verificaram que as facturas emitidas pela B... só tinham por destinatários a Requerente (A...) e a C..., sendo esta uma empresa detida a 100% pelo sócio-gerente da A... .
24. A Requerente alegou que a margem que a B... cobrava à Requerente era de 3% e que se destinava a cobrir as despesas que a B... suportava em Hong-Kong, com deslocações a território Chinês para verificação dos materiais e equipamentos.
25. Todavia, em face das análises produzidas, os serviços de inspecção tributária não confirmaram a consistência de 3% da margem que seria paga à B..., tendo verificado grande oscilação desta nas diversas operações, com uma variação entre 2,14% e os 8,20%, tendo os serviços de inspecção tributária considerado existir falta de consistência na alegação invocada pela Requerente no sentido de que a margem paga à B... era de 3% (cfr. págs. 27 a 29 do RIT).
26. Tendo por base o n.º 1 do art.º 65.º do Código do IRC, visto que os serviços de inspecção tributária concluíram pela existência de um carácter anormal e montantes exagerados nas operações trianguladas pela B..., que se consubstanciaram no empolamento dos gastos na aquisição de bens de investimento, de matérias primas e de mercadorias, não foram os valores daquelas operações considerados na quantificação do lucro tributável do ano de 2013 – (Cfr. pág. 60 do RIT).
27. Os serviços de inspecção tributária decidiram proceder à tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º do Código do IRC, sobre as importâncias no valor de € 541.428,23, pago pela Requerente no ano de 2013 à B..., entidade residente em território com um regime fiscal privilegiado ou claramente mais favorável, o que implicou imposto em falta no valor de € 189.499,88.
28. No decurso do procedimento de inspecção tributária, a Requerente, alegando não ter acesso a tais elementos, recusou apresentar as demonstrações financeiras da B... .
29. Em sede de reclamação graciosa, a matéria controvertida foi analisada e considerando as alegações produzidas pela Requerente e os factos e fundamentos ínsitos no relatório do procedimento de inspecção tributária, a decisão de indeferimento da reclamação teve, em síntese, por base;
a) A circunstância da reclamante não ter logrado, conforme lhe impunha o n.º 1 do artigo 65.º do Código do IRC, provar a normalidade e o montante não exagerado dos encargos com a aquisição dos bens, matérias primas e mercadorias;
b) O RIT não está inquinado de fundamentação insuficiente, opaca e incongruente e foi considerado que a fundamentação é suficiente, clara e congruente, não acarretando falta de fundamentação dos actos de liquidação reclamados;
c) Foi considerado quer as correções não enfermavam de vício de lei.
30. No pedido de constituição de pronúncia arbitral a Requerente indicou como testemunha, G..., contabilista certificado, porém, em Requerimento datado de 09-07.2019, a Requerente solicitou a substituição da testemunha indicada no pedido de constituição do tribunal arbitral por H..., o que lhe foi autorizado por despacho arbitral de 10.07.2019.
31. Em 15.07.2019, data fixada pelo despacho arbitral de 04.07.2019, realizou se a inquirição da testemunha indicada pela Requerente e da testemunha indicada pela Requerida, I..., a cuja inquirição se refere a acta assinada por todos os intervenientes na diligência, a qual ficou a fazer parte integrante do processo arbitral, bem como o tribunal teve em consideração o depoimento produzido pelas testemunhas na sua inquirição.
Factos não provados
1. No decurso da acção de inspecção tributária e no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, a Requerente não apresentou elementos de prova adequados a provar que as operações que beneficiaram da intervenção da B... se revestiram de normalidade, bem como para fazer prova inequívoca da alegada comissão paga à B... .
2. Tendo por base os documentos integrados nos autos, a Requerente não logrou provar por que razão do descritivo das facturas emitidas pela B... não consta o valor e a menção referente à comissão referente à alegada prestação de serviço, prestada pela B... e de relevo fundamental para a garantir a qualidade dos bens, das matérias primas e das mercadorias objecto das transmissões internacionais.
3. Sem prejuízo dos serviços de inspecção tributária terem provado a efectividade das operações, bem como a existência de relações especiais entre a B... e a Requerente, não conseguiu esta provar que as operações referentes à aquisição de bens, de matérias primas e de mercadorias em que a B... teve intervenção não tiveram um carácter anormal ou um montante exagerado.
4. O extracto de conta corrente de fornecedores apresentado pela Requerente em 07.11.2019 ou as facturas emitidas por outras entidades, referentes a operações comerciais internacionais não é prova suficiente para demonstrar cabalmente – como exige o artigo 65.º, n.º 1 do Código do IRC - a não anormalidade e o montante não exagerado das operações tituladas pelas facturas emitidas pela B... e de que consta como entidade adquirente a Requerente.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no decurso do processo, no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e na prova testemunhal realizada em audiência. Nem a prova coligida através do processo administrativo e do relatório de inspecção tributária ou por via dos documentos juntos aos autos, nem a prova testemunhal realizada em audiência, permitiram demonstrar que as operações realizadas e que serviram de base à liquidação não tinham um carácter anormal ou um montante exagerado, sendo que essa é uma prova que incumbia à Requerente produzir à luz do disposto no artigo 65.º, n.º 1, do Código de IRC.
Matéria de direito
Falta de fundamentação
5. A Requerente imputa a qualquer das correcções à matéria tributável efectuadas pela Autoridade Tributária o vício de falta de fundamentação, por insuficiência e incongruência dos fundamentos invocados no Relatório de Inspecção Tributária, que se reflecte no acto de liquidação adicional impugnado. Na petição não se encontra explicitados os motivos que, no entender da impugnante, conduzem à ausência de fundamentação, depreendendo-se que a arguição se baseia na incompletude e inadequação das considerações que determinaram a não aceitação dos gastos e das depreciações ou a sujeição a tributação autónoma.
Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que se decidiu num certo sentido e não de forma diferente. Por outro lado, como requisito da fundamentação, a congruência manifesta-se pela adequação lógica entre a decisão e os motivos invocados pelo autor do acto, assim se compreendendo que a lei torne equivalente à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por contradição, não esclareçam concretamente a motivação do acto (artigo 153.º, n.º 2, do CPA).
No caso vertente, o Relatório de Inspecção Tributária analisa um conjunto de factos relacionados com as transações intermediadas pela B..., que são desenvolvidos destacadamente ao longo do documento (pontos III.1.1.1.1. e seguintes) e se encontram descritos a título conclusivo no ponto III.1.1.1.2. E é com base em todos esses elementos que se entende que os resultados da Requerente se encontram negativamente influenciados pelo empolamento falseado do valor das facturas emitidas pela intermediária, permitindo concluir pela existência de um carácter anormal e montantes exagerados nas operações de intermediação (cfr. o mesmo ponto III.1.1.1.2 do Relatório).
O ponto de vista relevante para avaliar a suficiência do conteúdo do dever de fundamentação é o da compreensibilidade do destinatário médio, colocado na situação concreta, devendo dar-se como cumprido esse dever se a motivação contextualmente externada permitir àquele entender as razões de facto e de direito que determinaram o autor do acto a agir.
Face aos termos em que se encontra elaborado o Relatório de Inspecção Tributária, que serviu de base aos actos tributários de liquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, não pode dizer-se, de nenhum modo, que o interessado se encontrou impossibilitado de discutir as soluções propostas e de rebater a factualidade descrita ou que tenha sequer ficado impedido de aceitar ou reagir processualmente contra o acto. E, por outro lado, não se descortina uma qualquer contradição entre os factos indiciários que a Administração considerou verificados e a sua qualificação no âmbito da medida antiabuso a que se refere o artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC.
Improcede, por conseguinte, o indicado vício de forma por falta de fundamentação.
Questões de fundo
Gastos não aceites relativamente a matérias-primas e mercadorias adquiridas à B...
6. O normativo sob escrutínio in casu é o artigo 65.º do Código do IRC (anteriormente, artigo 59.º e, antes ainda, artigo 57.º-A daquele Código), que tem por epígrafe “Pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado”.
Estabelecia aquele normativo, à data dos factos, que:
“1 — Não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.
2 — Considera-se que uma pessoa singular ou colectiva está submetida a um regime fiscal claramente mais favorável quando o território de residência da mesma constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português.
3 — Para efeitos do disposto no número anterior, os sujeitos passivos devem possuir e, quando solicitado pela Direcção-Geral dos Impostos, fornecer os elementos comprovativos do imposto pago pela entidade não residente e dos cálculos efectuados para o apuramento do imposto que seria devido se a entidade fosse residente em território português, nos casos em que o território de residência da mesma não conste da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.
4 — A prova a que se refere o n.º 1 deve ter lugar após notificação do sujeito passivo, efectuada com a antecedência mínima de 30 dias.
5 - O disposto nos números anteriores é ainda aplicável às importâncias pagas ou devidas indirectamente, a qualquer título, às mesmas pessoas singulares ou colectivas, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento do destino de tais importâncias, presumindo-se esse conhecimento quando existam relações especiais nos termos do n.º 4 do artigo 63.º entre:
a) O sujeito passivo e as pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável; ou
b) O sujeito passivo e o mandatário, fiduciário ou interposta pessoa que procede ao pagamento às pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea anterior.”
Tal dispositivo enquadra-se num conjunto de inovadoras disposições anti-abuso introduzidas no ordenamento nacional pelo Decreto-Lei n.º 37/95, de 14 de fevereiro, e que se destinam a reprimir esquemas de evasão e elisão fiscal.
Na sua estrutura, destacam-se precisamente as duas componentes, funcionando a norma partir de uma presunção – forçosamente ilidível, desde logo por imposição constitucional – segundo a qual as operações realizadas com entidades situadas naquelas jurisdições, e que servem de fundamento aos pagamentos que a elas são dirigidos, são frequentemente simuladas, total ou parcialmente.
Ainda na linha da lei, mais se presume que, a existirem tais operações, as mesmas tendem a corresponder a operações que, segundo critérios objetivos de racionalidade económica e substância, não seriam pura e simplesmente realizadas pelos sujeitos passivos ou, em alternativa, apenas teriam lugar por montantes forçosamente inferiores.
Assim, em simultâneo, o legislador enfrenta os casos de operações fictícias, em que aos pagamentos realizados não corresponde qualquer materialidade (evasão fiscal), e os casos de planeamento fiscal abusivo, em que, não raramente, são realizadas operações de intermediação na venda de bens ou prestação de serviços (ou, até, a simples prestação de serviços por valores inflacionados) desprovidas de uma razão de ser predominantemente económica (elisão fiscal).
Numa e noutra situação, os efeitos ao nível fiscal são idênticos, com a formação de custos fiscais potenciadores de uma erosão da base tributável do sujeito passivo e a subsequente desoneração fiscal. E isto, pese embora as situações não sejam comparáveis ao nível criminal e/ou contraordenacional.
Deparamo-nos, em síntese, com uma formulação legal que transfere integralmente para a esfera do sujeito passivo o ónus de prova associado à dedutibilidade em IRC dos gastos incorridos com tais pagamentos, cabendo àquele demonstrar categoricamente dois factos:
- que as operações em causa são reais (e, portanto, sem natureza evasiva);
- que tais operações não são motivadas por razões predominantes de planeamento fiscal (sem natureza elisiva).
Se, quanto àquelas primeiras situações, o encargo probatório que impende sobre o sujeito passivo se limita à comprovação da efectividade dos bens e serviços e da sua transmissão e prestação - assim demonstrando a sua existência - já o mesmo não se passa quanto a estas (situações elisivas).
O ónus probatório que impende sobre o sujeito passivo a respeito deste facto pode, alternativamente, realizar-se por uma das seguintes duas vias, expressamente abertas pelo legislador, como o recurso à conjugação disjuntiva "ou" logo denuncia: na primeira de tais hipóteses - "não têm um carácter anormal" - a tarefa probatória do sujeito passivo passará por demonstrar cabalmente que existe um rationale económico subjacente à operação geradora dos gastos e que, por conseguinte, a mesma não teve lugar apenas para gerar custos para o sujeito passivo.
Mas, paralelamente a esta prova, e porque a mesma corre por inteiro pelo sujeito passivo - o que significa que em caso de dúvida, e pelas regras gerais de distribuição do ónus de prova, deve o intérprete valorar a prova produzida em desfavor do sujeito passivo - existe um outro facto alternativo cuja demonstração, ainda a exclusivo cargo do sujeito passivo, pode permitir elidir a presunção daquela natureza elisiva das operações. Trata-se de demonstrar que as operações efetivamente realizadas, ainda que anormais, não comportam, quanto à sua contraprestação, "um montante exagerado" (quanto à inversão do ónus da prova resultante do artigo 65.º, n.º 1, do Código do IIRC, cfr. acórdão do TCA SUL de 5 de Novembro de 2015, Processo n.º 07022/13).
De facto, o legislador parece assumir que, acaso sejam de difícil justificação, tais operações podem ainda assim ser consideradas não elisivas se, porventura, o valor atribuído às mesmas não se revelar desproporcionado face ao valor de mercado de operações equiparáveis praticáveis entre entidades independentes.
Não se trata, como é óbvio, de exigir que os preços praticados sejam preços de mercado - o que não faria sentido, tanto mais que tal exigência não só já resulta do artigo 63.º/n.º 4/alínea h) do Código do IRC, como nem sequer foi alegada in casu; trata-se, antes, de demonstrar que as variações face ao valor de mercado para operações de tal natureza não são notórias e, por isso, o valor pago não é prima facie exagerado.
Temos, em suma, que a medida de prova exigida aos sujeitos passivos que prosseguem atividades que envolvam pagamentos a territórios offshore é, por efeitos da lei, manifestamente exigente e pesada.
Assim, para que sejam dedutíveis ao lucro tributável, e cumprindo com a especial repartição do ónus de prova que dimana da norma em análise, julgamos que tais pagamentos deverão cumprir vários requisitos, a saber:
- constar de documento escrito datado;
- conter a identificação detalhada dos elementos essenciais da relação jurídica, i.e., sujeitos (morada e identificação fiscal), objeto (com identificação detalhada e minuciosa da natureza e composição das transações, serviços e bens/mercadorias envolvidos), preço (global e individual, quando a prestação se defina por quantidade) e data de pagamento (ou confirmativo do pagamento, consoante o caso);
- conter um justificativo quanto à racionalidade da sua realização ou, em alternativa, um demonstrativo da razoabilidade do preço pago (recorde-se que a operação se presume ex lege desnecessária e o respetivo preço desrazoável).
7. Subsumindo agora os factos à hipótese legal da norma, comecemos por sublinhar que, em momento algum, é questionada, sequer pela própria AT, a existência das operações: ocorreram intermediações nas transações de bens e prestações de serviços.
Não nos encontramos, por conseguinte, diante de situações de evasão fiscal: estamos antes, como o legislador exige, diante de "operações efectivamente realizadas" e cuja existência é indisputável.
Por contraste, é quanto à potencial componente elisiva que se nos afigura bem menos congruente a prova feita pelo sujeito passivo.
Reitere-se, a este respeito, que, por efeitos da norma aqui em análise, sempre que tal prova se revele insuficiente, tal implicará a não demonstração do facto (rectius, dos factos) que incumbe ao sujeito passivo demonstrar e a produção do efeito associado à verificação da presunção: a negação da dedução fiscal de custos.
Por um lado, o sujeito passivo não avança com uma explicação convincente para as exigências de intermediação das compras e vendas de bens, assim como das prestações de serviços realizadas.
Desde logo, não se evidencia a razão óbvia de ser para a necessidade de uma intermediação da compra de mercadoria chinesa a partir de Hong-Kong - ao invés da compra directa a partir da China Continental.
Mas, em paralelo, o mesmo se pode dizer da utilidade económica da actividade de serviços acessórios concretamente desenvolvida pela B... (e a coordenadora desta, D...), actividade essa que nem sequer chega a ser devidamente identificada com o exigível detalhe, como se impõe.
E sem estas demonstrações - que devem revelar-se sólidas e devidamente fundamentadas (e que devem, como tal, ser apresentadas pelo sujeito passivo) - julgamos que se mantém válida a presunção de que as operações realizadas são "anormais" e, por isso, de natureza elisiva.
Mas, por outro lado, o sujeito passivo tão pouco parece perceber a dificuldade de demonstrar, cabalmente e para além de quaisquer dúvidas, o facto alternativo suscetível de obstar à presunção legal, a saber, que os valores praticados não são exagerados.
Na verdade, a dificuldade em fazer uma tal prova não é, de todo, surpreendente atentos os factos. Não só resulta muito dificultada da (ao menos aparente) irregularidade fiscal da própria B... - evidenciada pela emissão de uma liquidação oficiosa por parte das autoridades fiscais daquele território asiático -, como se denota aquando da análise das próprias facturas individuais juntas ao processo que, ora se apresentam omissas ora são amiúde incompletas quanto ao detalhe das operações que titulam, abarcando vendas de bens em conjunto com prestações de serviços. Estas falhas estão especialmente associadas à não discriminação, com o absoluto rigor que a lei impõe, das respectivas componentes relativas às prestações de serviços acessórios (de grupagem e controlo de qualidade) e à revenda de bens (e respectiva comissão), bem como os correspondentes valores exigidos ao sujeito passivo e por ele pagos a título de preço.
Recorde-se, em jeito de síntese, que caberia ao sujeito passivo o encargo de apresentar prova cabal susceptível de atestar que quer a actividade de intermediação quer as prestações de serviços contratadas são normais e se situam dentro de valores razoavelmente aproximados daqueles que, em circunstâncias paralelas, entidades independentes praticariam, assim demonstrando que os valores pagos pelo sujeito passivo a título de preço não são desproporcionados face ao mercado e, em consequência, ultrapassando a dita presunção. À Administração Fiscal, por seu turno, incumbiria apenas lançar dúvidas sobre a veracidade daquela prova - o que fez com sucesso - limitando-se a expor casos em que os valores ora se situam ora claramente acima ora claramente abaixo do expectável para um tal género de operações.
8. Por outro lado, para efeito da aplicação do regime de inversão do ónus da prova que resulta do artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC não tem qualquer relevo a questão de saber – como vem alegado pela Requerente - se a B... se encontrava sujeita, em Hong Kong, a uma tributação efectiva e se dessa tributação resulta num montante de imposto pago igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a empresa estivesse sediada em território português.
De facto, nos termos do artigo 65.º, n.º 2, “considera-se que uma pessoa singular ou colectiva está submetida a um regime fiscal claramente mais favorável quando o território de residência da mesma constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português.
Para a caracterização de um regime fiscal claramente mais favorável estabelecem-se, por conseguinte, diversos critérios alternativos, o primeiro dos quais consiste na circunstância de o território em causa constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças. Ora, Hong Kong faz parte da enumeração de territórios com regime fiscal claramente mais favorável, como resulta da Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro (entretanto, alterada pela Portaria n.º 292/20011, de 8 de Novembro), e preenche, por isso mesmo, a condição necessária e suficiente para que as entidades aí residentes se encontrem submetidas ao regime do artigo 65.º, n.º 1, do Código do IRC, sendo irrelevante, como tal, qualquer indagação que tenha em vista determinar o regime específico de tributação que é aplicável no território de residência.
Gastos não aceites relativamente à depreciação de bens adquiridos a B... e tributação autónoma.
9. A Requerente impugna ainda as liquidações adicionais relativas a gastos não aceites por depreciação de bens adquiridos a B... e a título de tributação autónoma.
Como resulta, com evidência, do relatório de inspecção tributária, as correcções aritméticas efectuadas nesse âmbito são meramente consequenciais da solução adoptada quanto aos gastos com a aquisição de matérias-primas e mercadorias à B..., e, no caso da tributação autónoma, resulta directamente do disposto no artigo 88.º, n.º 8, do Código de IRC (cfr. pontos III. 1.1.3.e III. 1.2.1.).
Sendo improcedente o pedido arbitral no que se refere a gastos com aquisição de matérias-primas e mercadorias, improcede também, como necessária decorrência, a impugnação referente a liquidações adicionais que se encontram numa relação de prejudicialidade ou dependência.
Violação dos princípios da justiça, da legalidade, da boa fé, do inquisitório e da busca pela verdade material
10. A Requerente invoca ainda, num único artigo da petição (artigo 127.º), a violação dos princípios da justiça, da legalidade, da boa fé, do inquisitório e da busca pela verdade material, sem uma qualquer mínima fundamentação.
O tribunal desconhece, por conseguinte, quais as circunstâncias de facto ou as considerações jurídicas que possam determinar, na situação do caso, a inobservância de qualquer desses princípios da actividade administrativa.
Em todo o caso, sempre se dirá o seguinte.
O princípio da legalidade tributária, que decorre essencialmente do disposto no artigo 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, pressupõe a exigência formal da reserva de lei parlamentar em matéria fiscal e a exigência de tipicidade e determinabilidade da lei do imposto, de onde resulta que deve ser limitada a discricionariedade da administração na concretização dos elementos essenciais dos impostos, assim como o uso de conceitos indeterminados.
Significa isto que a lei não é apenas o limite, mas o pressuposto e o fundamento da actividade administrativa, pelo que não existe exercício da função administrativa sem norma legal que a fundamente.
O princípio da justiça tem sido ensaiado pela jurisprudência por referência ao princípio da especialização dos exercícios, permitindo que possa entender-se que um gasto comprovadamente realizado para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto seja relevado, não no exercício em que foi suportado, mas num exercício posterior, por lapso de contabilização que não afecte significativamente a matéria tributável a ser considerada para efeito de tributação.
O princípio da verdade material encontra-se associado ao princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT, que confere à Administração o dever de, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade, não estando subordinada, para esse efeito, à iniciativa do autor do pedido. Tratando-se de um princípio do procedimento tributário, a finalidade última é alcançar uma tributação que, no caso concreto, corresponda à situação real do contribuinte.
No entanto, o princípio da verdade material não pode ter o sentido de prevalência absoluta sobre a legalidade e constitui antes um meio instrumental de averiguação da realidade de modo a atingir a solução justa dentro do quadro legal aplicável. A averiguação da realidade dos factos destina-se, de todo o modo, a efectuar a adequada qualificação jurídica, e, nesse domínio, a Administração não pode deixar de se encontrar subordinada ao princípio da legalidade.
O princípio da boa fé corresponde a um dever recíproco na relação entre a Administração e os particulares, tendo em vista que nas circunstâncias do caso se pondere, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa e o objectivo a alcançar com a actuação empreendida (artigo 10.º do CPA).
Ora, tendo a Autoridade Tributária operado uma liquidação adicional em IRC de forma fundamentada e, com base nas disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 65.º do Código de IRC, tendo realizado ainda múltiplas diligências de prova e dado oportunidade à Requerente, ainda no âmbito do procedimento inspectivo, de efectuar a prova de que as operações em causa não tinham um carácter anormal ou montante exagerado (cfr. ponto II.3.7.3. do relatório de inspecção tributária), não se vê – nem a Requerente explica – em que termos é que a dita liquidação adicional violou os invocados princípios da actividade administrativa.
O pedido mostra-se assim ser improcedente, ficando necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de condenação em juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar improcedente o pedido arbitral e manter a liquidação adicional em IRC e de juros compensatórios que vem impugnada e manter a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra os actos de liquidação.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 489.555,64, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Notifique.
Lisboa, 15 de Janeiro de 2019
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Jesuíno Alcântara Martins
O Árbitro vogal
Gustavo Courinha