DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. No dia 04 de Fevereiro de 2019, A..., S.A., NIPC ..., com sede na ..., ...-... ..., ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2013, no valor de € 93.291,64 (noventa e três mil, duzentos e noventa e um euros e sessenta e quatro cêntimos), bem como da decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa que teve aquele acto de autoliquidação como objecto.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a Requerente tinha, à luz artigo 23.º, n.º 1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, o direito a deduzir à sua colecta de IRC (no montante de € 126.337,11) a totalidade do IRPC pago em Moçambique (no valor de € 93.291,64) e que o apontado erro (a ilegalidade) ínsito no acto de liquidação sob apreciação é imputável aos serviços da AT.
3. No dia 05-02-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 27-03-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 16-04-2019.
7. No dia 22-05-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, prazo esse que foi prorrogado, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente, e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A ora Requerente é uma sociedade anónima, e exerce a actividade de pesca marítima (CAE Principal 03111), estando enquadrada no regime normal mensal de IVA, desde 1986-01-01, e no regime geral de IRC, desde 1989-01-01.
2- A Requerente dispõe de contabilidade organizada, de acordo com o regime legal aplicável, e apura anualmente o seu lucro tributável nos termos normais.
3- Em 2013, a sociedade B..., LDA. – com o NIF ... entregou à Requerente, por serviços que por esta lhe foram prestados, os seguintes montantes:
4- Sobre os referidos montantes incidiu Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas moçambicano (IRPC), o qual foi liquidado e cobrado, através de retenção na fonte a título definitivo.
5- A sociedade B..., na qualidade de substituto tributário, procedeu à retenção na fonte de IRPC, à taxa liberatória de 10%, no valor global de € 93.291,64.
6- A 2014-05-29, a ora Requerente submeteu a declaração de rendimento MOD. 22 n.º..., referente ao exercício de 2013.
7- Na referida declaração Modelo 22 de IRC, a REQUERENTE registou uma matéria colectável não isenta de € 505.348,45 (quinhentos e cinco mil trezentos e quarenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos) e uma colecta de IRC de € 126.337,11 (cento e vinte e seis mil, trezentos e trinta e sete euros e onze cêntimos).
8- Naquela MOD. 22 foi preenchida a linha 351, campo 10 com o montante de € 126.337,11, correspondente à colecta apurada.
9- A Requerente não reflectiu na referida declaração fiscal a dedução de crédito de imposto referente às retenções na fonte de IRPC moçambicano, no montante global de € 93.291,64.
10- Da referida MOD. 22, resultou a liquidação de IRC n.º 2014..., dando origem à nota de cobrança n.º 2014..., com o valor total a pagar de € 263,16 com os devidos acertos.
11- A ora, Requerente procedeu ao pagamento voluntário daquela liquidação em 04-08-2014.
12- A Requerente apresentou, através de correio registado do dia 29 de Maio de 2018, um pedido de revisão oficiosa do acto de autoliquidação de IRC do ano de 2013.
13- No dia 9 de Outubro de 2018, a Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 8 de Outubro de 2018, da Direcção de Finanças de..., do projecto decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e da informação fundamentante.
14- Do referido projecto constava, para além do mais, o seguinte:
15- Por ofício de 12 de Novembro de 2018, a Requerente foi notificada do despacho da Diretora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças de ..., que indeferiu a requerida revisão oficiosa.
16- Do referido despacho constava, para além do mais, o seguinte:
17- A notificação do referido despacho foi efectuada nos seguintes termos:
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
i. Matéria de excepção
Antes de mais, por obstar ao conhecimento do mérito da causa, cumpre apreciar desde logo a questão suscitada pela AT, nas suas alegações (ponto 39) relativa a competência do Tribunal Arbitral.
Tal questão, que é de conhecimento oficioso, assenta na alegação de que a decisão do procedimento de revisão oficiosa não se tenha pronunciado sobre a legalidade da liquidação, mas, meramente, sobre a inadmissiblidade procedimental de tal pedido, concluindo que “não se mostram verificados os pressupostos para efetuar a competente revisão”.
Daqui, conclui a Requerida que, não tendo a decisão do procedimento de revisão oficiosa conhecido da legalidade do acto de liquidação, ocorrerá a incompetência do tribunal arbitral.
Diga-se, desde logo, que neste aspecto nunca assistira razão à Requerida.
De acordo com o que tem sido o entendimento dominante, ou seja, de que apenas poderão ser objecto do processo arbitral os actos de segundo e terceiro grau que conheçam da legalidade da liquidação, e verificando-se que a decisão do procedimento de revisão oficiosa não se tenha pronunciado pela legalidade do acto de autoliquidação, deverá concluir-se pela extemporaneidade (e não pela incompetência) do pedido arbitral, uma vez que o n.º 1, al. a) do art.º 10.º do RJTA, remete para os factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 102.º do CPPT, quanto aos actos susceptíveis de impugnação judicial, e como é jurisprudência assente, os actos de segundo e terceiro grau que não conheçam da legalidade dos actos de liquidação, não são susceptíveis de impugnação judicial, mas de acção administrativa especial, pelo que o concreto acto de decisão do procedimento de revisão oficiosa não é susceptível de servir de termo inicial para o prazo se impugnação arbitral do acto de liquidação em causa.
Deste modo, a questão suscitada deverá ser apreciada sob o prisma da tempestividade da lide, questão, igualmente, de conhecimento oficioso, e matéria relativamente à qual foi cumprido o contraditório.
Posto isto, e conforme se verifica da leitura da decisão do procedimento de revisão oficiosa, constante da matéria de facto, a mesma conclui que não se mostram verificados os pressupostos para efectuar a revisão.
Neste sentido poder-se-ia concluir, nos termos previamente expostos, pela extemporaneidade do pedido arbitral, por claudicar a possibilidade de considerar a decisão do pedido de revisão oficiosa como termo inicial do prazo de impugnabilidade do acto de liquidação objecto da presente acção arbitral.
Não obstante, embora o dispositivo decisório do pedido de revisão expresse que foi considerado não se verificarem os pressupostos para efectuar a revisão peticionada, analisada devidamente a fundamentação da decisão, verifica-se que o pressuposto que a AT considerou não se verificar foi a existência de erro imputável aos serviços e que para chegar a tal conclusão analisou a legalidade da autoliquidação, julgando-a legal e, por isso, não afectada por erro.
Ou seja, no fundo a AT considerou não se verificarem os pressupostos para a revisão, por não existir erro de facto ou de direito, visto a autoliquidação ser, no seu entender legal.
Como se pode ler na decisão do pedido de revisão oficiosa, “atentos os normativos legais supra citados [a liquidação] foi corretamente emitida, não padecendo de qualquer erro de interpretação e aplicação das normas legais. A AT apenas agiu em conformidade com o legalmente estipulado, em estrito cumprimento com a lei, não existindo qualquer erro que seja imputável aos seus serviços.”.
Ora, a ser assim, como é, dever-se-á concluir que no procedimento de revisão a AT conheceu da legalidade da liquidação, nada obstando por isso ao conhecimento do mérito da causa.
Deverá, por isso, improceder a arguida excepção da incompetência do tribunal arbitral, e julgar-se tempestiva a presente lide.
***
ii. Do fundo da causa.
O objecto da presente acção arbitral, tal como devidamente identificado pela Requerente, e em conformidade com o disposto no art.º 2.º/1/a) do RJAT, consiste no acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2013, no valor de € 93.291,64, bem como a decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa que teve aquele acto de liquidação como objecto e que, nos termos acima indicados, conheceu da legalidade daquela.
A Requerente, alega, em suma, que, não obstante o regime interno relativo à atenuação da dupla tributação internacional - dos artigos 68.º e 91.º do Código do IRC - determinar que a importância a deduzir por crédito de imposto não pode exceder a fração de IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos tributados no outro Estado, líquidos dos gastos suportados para a sua obtenção, o artigo 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, impõe uma dedução integral do imposto pago no estrangeiro determinado a partir dos rendimentos brutos ali obtidos (e já não, como determina o regime interno, a partir dos rendimentos líquidos), desde que a importância desse modo deduzida não ultrapasse os limites previstos naquela norma convencional.
Conclui a Requerente que, considerando que as normas da CDT entre Portugal e Moçambique se sobrepõem às normas nacionais, terá direito a deduzir à colecta a totalidade do IRPC pago em Moçambique, sendo, por conseguinte, o acto de liquidação de IRC sob apreciação ilegal.
Refere ainda a Requerente que face ao Modelo 22 vigente em 2013 e às instruções constantes do respetivo Manual de preenchimento, se viu impedida de proceder à dedução à colecta por dupla tributação internacional nos termos definidos no artigo 23.º, n.º 1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique.
A Requerida começa por referir que inexiste qualquer erro imputável aos serviços, já que a Requerente a Requerente não deduziu os montantes em causa, porquanto, e tal como afirma no seu pedido de pronúncia arbitral, «..optou...» por preencher como lhe aprouve e não por qualquer indução das instruções de preenchimento.
Mais afirma a Requerida, que a Requerente não alegou nem provou a existência de gastos para a obtenção dos rendimentos, apenas veio mencionar a existência desses gastos em sede de alegações, sem que os provasse.
Acrescenta a Requerida que a dissonância que a Requerente pretende imputar às redacções do art.º 91.º do CIRC e alínea a) do n.º 1 do art.º 23.º da CDT é uma inexistência, porquanto a redacção do artigo do CIRC é igual à do artigo da CDT apenas acrescendo a parte final «...líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção».
Refere, ainda, a Requerida que a Requerente podia alegar, o que não fez, a ilegalidade/inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 91.º do CIRC na parte em que exige “líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.”, por considerar tal redação contrária à letra da CDT.
Refere, por fim, a Requerida que nos termos da CDT, se se tratar de prestação de serviços, Moçambique nem tinha sequer competência para cobrar imposto, porquanto conforme o art.º 7.º da CDT, o Estado competente seria sempre Portugal, a não ser que se tratasse dum estabelecimento estável.
Vejamos, então.
*
Começa a Requerida, como se viu, por alegar, profusamente, a inexistência de erro imputável aos serviços, essencialmente porquanto, na sua tese, a ilegalidade da autoliquidação – que substancialmente não contesta – se deve imputar à Requerente, que teria optado por preencher a declaração Mod. 22, nos termos em que o fez.
Nesta parte, não se pode, ressalvado o respeito devido, atribuir qualquer razão à Requerida.
Efectivamente, nos autos está em causa a autoliquidação de IRC da Requerente, relativa ao exercício de 2013
À data, vigorava o art.º 78.º/2 da LGT, que dispunha que:
“Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação.”.
A referida norma foi revogada pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março. Não obstante, à data do facto tributário em questão nos autos estava em vigor, pelo que se deverá ter por aplicável in casu.
Deste modo, para efeitos do n.º 1 do art.º 78.º, não será discutível se a ilegalidade da autoliquidação é ou não imputável à Autoridade Tributária, cumprindo unicamente apurar se aquela é legal ou não.
*
A questão que concretamente se coloca tem a ver com a aplicação dos artigos 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, e 91.º, n.º 1 alínea b), do CIRC aplicável (redacção de 2013).
Dispõe o primeiro que:
“Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na República de Moçambique, Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago na República de Moçambique. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique”.
Por seu lado, o art.º 91.º, n.º 1, do CIRC aplicável, dispõe que:
“A dedução a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 90.º é apenas aplicável quando na matéria coletável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro e corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos gastos directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção”.
Como a própria Requerida aponta, a distinção entre as duas normas em confronto reconduz-se a que a norma do art.º 91.º/1/b) do CIRC acresce, na parte final, «...líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção».
O sentido deste referido segmento é, crê-se que sem margem para dúvidas, o de limitar o montante do imposto suportado no estrangeiro, passível de ser deduzido nos termos da al. a) do n.º 2 do art.º 90.º.
Já nos termos do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, tal limitação não existe, sendo a única limitação a de que a importância deduzida não poderá exceder a fracção do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique, não se fazendo qualquer menção a que estes hajam de ser considerados líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.
Esta antinomia normativa, deverá ser ultrapassada com base no critério da hierarquia.
Como se explica no parecer da PGR de 21-03-2013 , “Os critérios de resolução de antinomias normativas são a hierarquia, a especialidade e a cronologia”.
No caso, as normas que colidem não se situam no mesmo plano hierárquico.
Efectivamente, como se escreveu no Acórdão do STA de 08-07-2009, proferido no processo 0382/09:
“A supremacia das normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas sobre o direito interno nacional, que resulta do art. 8.º, n.º 2, da CRP, impõe que se dê prioridade ao artigo 4.º, n.º 1 da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha para evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o rendimento e sobre o Capital (Lei n.º 12/82, de 3 de Junho) na determinação dos residentes em território nacional e em território alemão.”.
Também aqui se deverá dar prevalência, por força do princípio da hierarquia, à norma de natureza convencional sobre a norma de direito nacional, pelo que a tributação, no caso, há-de operar-se nos termos da norma do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique.
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Posto isto, há então que aplicar o direito aos factos.
No caso, a AT não coloca em causa que a Requerente suportou imposto sobre o rendimento em Moçambique, no montante de € 93.291,64, não contestando, igualmente, que tal montante não foi reflectido na declaração fiscal de 2013, nem que, por conseguinte, tenha ocorrido a dedução do correspondente crédito de imposto.
Não é, igualmente, colocado em causa que aquele valor de € 93.291,64 não excede a fracção do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique.
No mais, como se viu antes, a Requerida, nos autos, afirma que a Requerente não alegou nem provou a existência de gastos para a obtenção dos rendimentos.
Independentemente do juízo a fazer a esse propósito, o certo é que a existência ou não de gastos para a obtenção dos rendimentos apenas relevaria para a apreciação da questão relativa à existência, ou não, de erro imputável aos serviços.
Tal alegação, de resto, no que diz respeito à questão ora em apreço, relativa à verificação ou não dos pressupostos da norma do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, é contrária às pretensões da Requerida. Efectivamente, se a Requerente não tiver suportado gastos para a obtenção dos rendimentos auferidos em Moçambique, o valor daquele seria um valor líquido, porquanto obtido sem gastos, não existindo, por isso e nesse caso, óbice à dedução do imposto nos termos lineares do art.º 91.º/1/b) do CIRC.
Daí que, no que para o que agora interessa, ou a Requerente suportou, como alega, gastos para a obtenção dos rendimentos em Moçambique, que impedem a dedução do imposto ali suportado ao abrigo do art.º 91.º/1/b) do CIRC, mas não ao abrigo do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, ou não suportou tais gastos, e o imposto referido será dedutível, nos termos de ambas aquelas normas.
Daí que, em ambas as hipóteses, de a Requerente ter ou não suportado gastos para a obtenção dos rendimentos em Moçambique, sempre se concluiria pela ilegalidade parcial da autoliquidação objecto da presente acção arbitral, na medida em que não contempla a dedução do imposto suportado em Moçambique pela Requerente, imposta seja pelo art.º 91.º/1/b) do CIRC, seja pelo art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique.
Mais sustenta a Requerida que a Requerente devia alegar a ilegalidade/inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 91.º do CIRC na parte em que exige “líquidos dos gastos direta ou indiretamente suportados para a sua obtenção.”, por considerar tal redação contrária à letra da CDT.
Também aqui não lhe assiste razão. Como acima se viu, a antinomia normativa verificada deve resolver-se por aplicação do princípio da hierarquia, com prevalência da norma convencional, não se tratando, por isso, de uma questão de constitucionalidade.
Alega, por fim, a Requerida que nos termos da CDT, se se tratar de prestação de serviços, Moçambique não teria competência para cobrar imposto, porquanto, conforme o art.º 7.º da CDT, o Estado competente seria sempre Portugal, a não ser que se tratasse dum estabelecimento estável, o que não está provado.
A argumentação da Requerida sustenta-se na norma do art.º 90.º/2 do CIRC aplicável, que refere que “Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efectuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.”.
No mesmo sentido, dispõe o art.º 23.º/1/a) da CDT entre Portugal e Moçambique, invocado pela Requerente, ao dispor:
“Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na República de Moçambique, Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago na República de Moçambique. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na República de Moçambique.” .
Ou seja, quer o CIRC aplicável quer a CDT entre Portugal e Moçambique apenas impõem ao Estado português a obrigação de deduzir ao imposto sobre o rendimento que lhe seja devido, o imposto que, nos termos da Convenção, seja devido ao outro Estado.
O sentido desta norma será o de que se um sujeito passivo a quem uma convenção para eliminar a dupla tributação seja aplicável, apenas possa deduzir o imposto se aquela, tal como interpretada pelo Estado português, legitimar a tributação pelo outro Estado contratante.
Caso o sujeito passivo se confronte com interpretações ou actuações contraditórias dos Estados envolvidos, resultantes em dupla tributação, deverá lançar mão do meio previsto no art.º 25.º da Convenção.
No caso, efectivamente, a Requerente não alegou nem demonstrou que os rendimentos sujeitos a tributação em Moçambique tenham proveniência na actividade de um estabelecimento estável ali situado.
Assim sendo, não é possível, nesta sede, aferir se efectivamente a autoliquidação objecto da presente acção arbitral padece de ilegalidade por violação do art.º 23.º/1/a) da CDT entre Portugal e Moçambique, conforme alegado pela Requerente, dado não ser possível aferir se o pressuposto de que imposto que a Requerente alega que deveria ser deduzido respeita a rendimentos que, de acordo com o disposto na Convenção, deveriam ser tributados em Moçambique.
Daí que, nesta parte, o pedido arbitral deva improceder.
Não obstante, e como se viu anteriormente, o acto de decisão do pedido de revisão oficiosa, integra também o objecto da presente acção arbitral, dado, conforme exposto, ter conhecido da legalidade do acto de autoliquidação.
Como também se viu, aquele acto, atenta a respectiva fundamentação, padece de ilegalidade, na medida em que considerou que inexistia erro imputável aos serviços, com base em argumentos insusceptíveis de acolhimento, designadamente considerando que seria aplicável a restrição consagrada no art.º 91.º/1/b) do CIRC aplicável, na parte em que exige que o imposto a deduzir seja inferior à “Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos gastos directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção”.
Deste modo, atento o erro de direito exposto, deverá a decisão do pedido de revisão ser anulado, por violação do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique.
Face a tal anulação, deverá ser proferida nova decisão relativa ao referido pedido de revisão, que, acolhendo os factos e a aplicação do direito aos mesmos efectuada na presente decisão, designadamente, no que diz respeito à aferição da existência de erro imputável aos serviços, para efeitos do art.º 78.º/1 da LGT, e no que diz respeito à inaplicabilidade, in casu, da restrição prevista no art.º 91.º/1/b) do CIRC aplicável, relativa à exigência de que o imposto a deduzir seja inferior à “Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos gastos directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção”, deverá apurar da verificação dos restantes requisitos para a dedutibilidade à colecta do imposto suportado pela Requerente em Moçambique, designadamente a circunstância de, nos termos do art.º 23.°, n.º1, alínea a), da CDT entre Portugal e Moçambique, tal imposto ser devido àquele país, por os rendimentos sujeitos a tal imposto serem procedentes de estabelecimento estável ali radicado.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular a decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa que teve como objecto o acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2013, da Requerente;
b) Julgar improcedente a restante parte do pedido arbitral;
c) Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimentos, fixando o montante de € 1.377,00 a cargo da Requerente, e de € 1.377,00, a cargo da Requerida.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 93.291,64, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2019
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Olívio Mota Amador)
O Árbitro Vogal
(Henrique Nogueira Nunes)
Vencido conforme declaração de voto
Declaração de Voto
Embora percebendo o itinerário cognoscitivo seguido pelo Tribunal não me posso associar à decisão proferida de anular a decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa que teve como objecto o acto de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do ano de 2013, sem anular igualmente a autoliquidação efectuada pela Requerente pelas razões que sumariamente passo a expor.
A competência dos Tribunais Arbitrais Tributários que funcionam no CAAD restringe-se, para o que aqui interessa, à declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (cfr. art.º 2.º, n.º 1 do RJAT).
Mesmo relativamente à impugnação de actos praticados no âmbito de procedimentos tributários, a competência destes tribunais arbitrais restringe-se à actividade conexionada com actos de liquidação de tributos, ficando de fora da sua competência, como é sabido, a
apreciação de actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação.
O contencioso tributário (onde se insere o arbitral) é um contencioso de mera anulação visando a apreciação, sequencialmente, dos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e dos vícios arguidos que conduzam à sua anulação – art.º 124, n.º 1 do CPPT, ou seja, a impugnação judicial (e nesta sede a arbitral) visa a anulação de actos, é este o seu objecto, até por razões de optimização da tutela jurisdicional dos administrados.
In casu, o Tribunal declara (e bem) que existiu um erro imputável aos serviços, designadamente considerando ser incompatível a restrição consagrada no art.º 91.º/1/b) do Código do IRC aplicável, na parte em que exige que o imposto a deduzir seja inferior à “Fração do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos gastos directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção” com o artigo 23.º, n.º 1, alínea a) da CDT entre Portugal e Moçambique, considerando estar-se perante um erro de direito, mas por outro lado não anula a autoliquidação de IRC quando é esse o único vício imputado pela Requerente e que a AT tentou (sem sucesso, no entendimento deste Tribunal) demonstrar não se verificar.
Numa situação de autoliquidação, caso a declaração fiscal esteja organizada nos termos da lei, o contribuinte goza de uma presunção de verdade relativamente aos factos declarados nos mesmos documentos. Neste sentido, para afastar a presunção de verdade relativamente aos factos declarados, a AT terá de provar os factos previstos no artigo 75.º, n.º 2 da LGT, nomeadamente que a contabilidade apresenta vícios e omissões que tornem impossível o conhecimento da matéria colectável, ou, quanto muito, alegue que determinado facto ou factos não são verídicos ou não cumprem com o disposto na legislação fiscal.
É certo, e não se ignora, que no caso dos autos a situação é diversa: estando em causa uma autoliquidação é o contribuinte que vem discordar da sua própria declaração, impugnando-a, mas assacando à mesma um único vício, um erro de direito - bem delimitado - e que o Tribunal reconhece ser imputável à AT.
Por outro lado, tal como afirmado no Acórdão de 11.09.2013, recurso 1138/12 do Supremo Tribunal Administrativo entende-se «de que, constituindo embora o despacho administrativo de indeferimento o objecto imediato da impugnação, é, contudo, o acto tributário de liquidação – seu objecto mediato - que verdadeiramente se controverte na impugnação».
Entendo que a procedência do vício imputado à autoliquidação, com fundamento num juízo de ilegalidade invocado pela Requerente e admitido na decisão arbitral - por ter sido dado como provado - projecta os seus efeitos na autoliquidação impugnada, e não unicamente no pedido de revisão, e tem mesmo a virtualidade de anular a autoliquidação impugnada, na exacta medida daquela ilegalidade.
Pelo que ao contrário do que decide o presente Tribunal não considero que nesta sede tenha a Requerente que alegar e demonstrar que os rendimentos sujeitos a tributação em Moçambique tenham proveniência na actividade de um estabelecimento estável ali situado, pois essa situação não foi sequer alvitrada pela AT em sede de apreciação do pedido de revisão do acto tributário que o contribuinte requereu em tempo e que, como se provou nos autos, analisou a legalidade da autoliquidação, sendo apenas suscitada em fase de alegações e na parte final das mesmas. Se o acto secundário (pedido de revisão) é de deferir por vício de erro imputável aos serviços a consequência só poderá ser a ilegalidade do próprio acto tributário primário tal como peticionado pela Requerente.
Se posteriormente, fora do âmbito do presente litígio, entende a autoridade administrativa dever iniciar novo procedimento administrativo ou reagir contra a autoliquidação do contribuinte, poderá fazê-lo, mas entendo que tal não se insere no objecto do presente litígio.
Em face do exposto teria anulado a autoliquidação de IRC pois a mesma tem por base um erro imputável aos serviços - que se provou – sendo esse o único vício imputado pelo Requerente à sua autoliquidação, o que conduz à ilegalidade da mesma sem necessidade de averiguações posteriores na composição do actual litígio que nem sequer foram suscitadas pela autoridade tributária em sede administrativa.
Pelo que decidiria pela procedência total do pedido arbitral.
Henrique Nogueira Nunes