Decisão Arbitral
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Luís Menezes Leitão e Dr. Paulo Lourenço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 08-05-2014, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., NIF ..., com domicílio fiscal na Rua …, Amadora, (doravante designada por "Requerente"), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 alínea a), 5.º, n.º 3 alínea a), 6.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), e do artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT"), apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral para apreciação da legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ("IRS") do ano de 2009, no montante de € 369,651,80, e dos direitos à sua restituição e a juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
A Requerente optou pela não designação de árbitro.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Prof. Doutor Luís Menezes Leitão e Dr. Paulo Lourenço, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 08-05-2014.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a sua absolvição do pedido.
Por despacho de 11-06-2014, foi decidido não realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse com alegações escritas.
A Requerente apresentou alegações em que termina formulando os pedidos já formulados no pedido de constituição do tribunal arbitral.
A Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não se vislumbra qualquer nulidade.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A 27-12-2001, a Requerente constituiu a sociedade unipessoal por quotas "B... Unipessoal Lda", NIPC ..., com o capital de EUR 435.000,00;
b) A sociedade referida na alínea anterior dedicava-se à actividade farmacêutica, sendo a titular de um alvará para o exercício da respectiva actividade;
c) Em Dezembro de 2007 foi celebrado contrato de divisão de quota, passando a sociedade a ter cinco sócios, mantendo a ora Requerente uma quota no valor nominal de EUR 434.600, correspondente a 99,9% do capital da sociedade;
d) Em Dezembro de 2007, a sociedade foi transformada em sociedade anónima — passando a denominar-se C... S.A. - com o mesmo capital social, representado por 87.000 acções, no valor nominal de € 5,00 encontrando-se o capital distribuído da seguinte forma:
i) D...: 20 acções;
ii) E...: 20 acções;
iii) F...: 20 acções;
iv) G...: 20 acções;
v) A...: 86920 acções.
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e) Em 14-12-2007, a gerência da sociedade B... Unipessoal Lda elaborou o documento cuja cópia constitui o documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que indica as razões para a operação de transformação da sociedade de que consta, além do mais, o seguinte:
«2. Neste Contexto, impõe-se que a estrutura jurídico-societária se desenvolva e prepare neste sentido. Assim, entende a gerência que, dado o desenvolvimento que se pretende para sociedade, que o tipo de sociedade por quotas constitui uma restrição que urge ultrapassar. No espaço de seis anos, a sociedade concretizou e ultrapassou os seus objectivos iniciais, encontrando-se perfeitamente consolidaria em termos financeiros e de gestão.
Num contexto económico e empresarial diferente do que presidiu à constituição da sociedade em 26 de Dezembro de 2001, impõe-se o desenvolvimento da actual estrutura jurídico-societária, preparando a sociedade para os novos desafios.
A sociedade de responsabilidade limitada, também designada por sociedade por quotas, está fundamentalmente concebida para uma organização de pequena empresa, ou de cariz familiar, revelando pouca maleabilidade no que diz respeito aos centros de decisão operacional da empresa e à capad2dade de resposta dinâmica, que as sociedades de dimensão relevante devem demonstrar nas solicitações quotidianas.
3. Ao invés, o tipo societário - sociedade anónima — é o que melhor se adapta à estrutura de uma empresa em crescente desenvolvimento, através da concentração dos poderes de gestão no órgão de administração, alem de melhorar a imagem junto das Instituições Financeiras, clientes e demais agentes económicos com os quais a sociedade se relaciona e, consequentemente, permite obter melhores condições junto dos Fornecedores e Bancos, bem como melhorar a penetração junto dos Clientes.
Por outro lado, facilita a mobilidade do capital, o que atrai maior investimento.
4. Face às vantagens referidas neste relatório, a gerência entendeu propor a transformação da sociedade em sociedade anónima, operação que será realizada após a entrada de quatro novos sócios, de modo a perfazer o mínimo legal exigido a uma sociedade anónima (cinco).
5. É por isso que consideramos justificado que, desde já, seja deliberada a transformação da "B... Unipessoal Lda", em sociedade anónima. (...)»
f) A 2-1-2009, a Requerente vendeu a D..., contribuinte n.º …, através de contrato de transmissão de acções, as acções que detinha na sociedade C..., pelo preço de EUR 3.696.597,70;
g) Entre 2004 e 2010, a sociedade B... Unipessoal Lda e, depois, C... S.A. teve a actividade, n.º de trabalhadores e despesas com o pessoal indicados no quadro que segue:
h) Na declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2009, a Requerente preencheu o Anexo 01 (mais-valias não tributadas), no qual reportou as mais-valias decorrentes da transmissão das acções acima referida detidas durante mais de 12 meses, nos seguintes termos:
i) Valor de realização: EUR 3.696.597,70
ii) Valor de aquisição: EUR 434.600,00
iii) Mais-valia não tributada: EUR 3.261.997,70
i) Através da ordem de serviço n.º ..., de 23-01-2013, a Direcção de Finanças de Lisboa (doravante “DFL”) determinou a abertura de uma acção de inspecção interna que abrangeu a análise da situação fiscal da ora Requerente no ano de 2009 para efeitos de IRS.
j) No âmbito da referida acção, a qual integrava o procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, a DFL concluiu pela verificação dos pressupostos para aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, no que respeita às mais-valias obtidas pela Requerente no ano de 2009 com a venda da sociedade C...:
k) A 8-02-2013, a DFL notificou a Requerente do Projecto de Aplicação da Cláusula Geral Antiabuso relativamente ao ano de 2009 (cfr. documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
l) Na fundamentação da aplicação da cláusula geral antiabuso a DFL referiu, além do mais, o seguinte:
«Os negócios jurídicos efectuados em 2009 entre a Srª A... e o Sr. D... corresponderam de facto à alienação, pela primeira, e aquisição pelo segundo, da participação social que a primeira detinha na sociedade C....
Em condições normais esta operação implicaria a sujeição a tributação em sede IRS da Srª A..., a título de rendimentos de mais valias, á taxa de 10%, conforme artigos 10º e 72º do CIRS, o que, no caso, corresponderia a um imposto a pagar no montante de € 326.159,77 (€ 3.261.597,70 * 0,10).
A transformação da sociedade em anónima e a entrada de quatro novos sócios/accionistas (sendo que um deles foi o adquirente da sociedade anónima e dois eram familiares próximos da D. …) teve como único objectivo o cumprimento formal dos requisitos mínimos necessários à criação de uma sociedade anónima e permitir que, por isso, o capital fosse denominado em acções e, por essa via, substituir uma operação sujeita a imposto (alienação de partes sociais-quotas) por outra economicamente equivalente, mas não sujeita tributação venda de acções).
Neste particular não deixa de ser relevante referir que, a que a transformação da empresa de sociedade por quotas em sociedade anónima e a consequente alteração da natureza jurídica da empresa não correspondeu a nenhuma necessidade de ajustamento decorrente de qualquer alteração operacional.
G) Conclusão
Resulta da presente informação evidência significativa de que, a transformação da natureza jurídica da entidade empresarial "B..., Unipessoal Lda", de sociedade por quotas em sociedade anónima teve como e único objectivo evitar que o sujeito passivo A... ficasse sujeito a IRS, pela mais valia que, de facto, realizou na transmissão das partes sociais do capital que detinha na sociedade “C..., Lda” que, no caso, corresponderia a um montante de imposto a pagar de € 326.159,77.
Ficou também evidenciado que o negócio jurídico subjacente foi efectuado com carácter artificioso, com o objectivo de evitar a sua tributação em sede de IRS.
Assim, propõe-se a tributação em sede do IRS, categoria G, da mais-valia obtida pelo sujeito passivo, no montante de € 3.261.597,70 = (€3.696.597,70- € 435.000,00), por força do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 10º do CIRS.»
m) A 18-03-2013, a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia ao projecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
n) Através de despacho de 01-08-2013, o Senhor Director Geral da Autoridade Tributária autorizou formalmente a aplicação da cláusula geral antiabuso no caso em apreço (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
o) Na sequência da autorização referida, a DFL determinou a realização de uma correcção à matéria colectável da Requerente no montante de € 3.261.997,70 e o apuramento de imposto em falta no valor de € 326.199,77 relativo ao ano de 2009 (projecto de relatório que consta do documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
p) A Requerente exerceu o seu direito de audição ao projecto de relatório, no qual contestou a correcção proposta, bem como a aplicação da cláusula geral antiabuso (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
q) A 28-10-2013, a Requerente foi notificada do relatório final de inspecção que confirmava a realização de uma correcção ao rendimento tributável do ano de 2009 (cópia do relatório final que consta do documento n º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
r) No relatório final, refere-se, além do mais, o seguinte:
«Não existia nenhum motivo de natureza económica que possa justificar a alteração da natureza jurídica de sociedade por quotas para sociedade anónima porquanto, pelo menos entre 2006 e 2010, o nível de actividade foi semelhante, assim como as sua estrutura de pessoal, devendo face à sua realidade operacional, ser considerada uma pequena empresa.
De acordo com o relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade por quotas em sociedade anónima, a transformação em sociedade anónima e justificada pela necessidade de adequação da sua estrutura jurídica - societária às necessidades reais da empresa ,sendo aí referido que, o tipo de "sociedade por quotas", se encontra especialmente vocacionado para a organização da pequena empresa, ou de cariz familiar.
Ora dos factos descritos é bem evidente que a C... sempre foi uma pequena empresa de cariz familiar (veja-se quem foram os sócios/accionistas) e, assim sendo, teria que se concluir que a formula jurídica mais adequada seria a de sociedade por quotas e não a de sociedade anónima.
Por outro lado merece destaque o facto de, nem no processo de divisão da quota única, nem no processo de transformação em sociedade anónima se ter verificado a reforço do capital ou a entrada de novos accionistas, relevantes para a gestão, que pudessem contribuir para a criação de uma outra estrutura empresarial que não a existente, de cariz marcadamente familiar.
Merece ainda destaque, neste domínio, o facto do adquirente das acções, em 2009, ter começado a fazer parte da estrutura societária/accionista exactamente na altura das alterações jurídicas da sociedade verificadas no final de 2007.
O acto ou negócio jurídico da transformação da sociedade "B..., Unipessoal Lda" em sociedade anónima não resultou, conforme os factos descritos comprovam, da necessidade de ajustar a sua natureza jurídica a qualquer alteração na sua estrutura operacional; no entanto, teve como consequência possibilitar à Srª A... efectuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, após a transformação em sociedade anónima e redenominação do capital em acções, pelo valor de € 3.696.597,70 com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida – € 3.261.997,70 – (€ 3.696.597,70-€ 434.600,00), por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS e, por esta via, evitar o pagamento de IRS no montante de € 326.199,77”.
“(....) no decurso do presente procedimento de inspecção, foram apurados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meros, que constituíram fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT."
"(...) em consequência da aplicação da referida cláusula, foi apurado rendimento da categoria G, qualificado como mais valia fiscal, no montante de € 3.261.997, 70 conforme artigos 9º e 10º do CIRS, tributada à taxa especial de 10% de acordo com o n.º 4 do artigo 72º do já referido CIRS pelo que, em conformidade com o descrito, se propõe alteração dos valores declarados pelo contribuinte em sede de IRS no ano de 2009, e o apuramento do IRS em falta tendo em conta o disposto no artigo 65º n.º 4 do CIRS e artigos 81.º a 84.º da LGT.»;
s) A 31-10-2013, a Requerente foi notificada da nota de liquidação n.º …, no valor de € 373.071,97, bem como da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2013 ..., no valor de € 43.625,05 (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
t) A 04-11-2013 foi notificada à Requerente a demonstração de acerto de contas, a qual incorporava o aviso de cobrança no valor final de € 369.651,80, cujo prazo de pagamento voluntário terminava a 04-12-2013 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
u) A 22-11-2013, o referido D..., NIF …, apresentou junto do Serviço de Finanças Amadora 2 pedido de pagamento com sub-rogação da liquidação acima referida, em que se refere, para fundamentar o interesse na sub-rogação, o seguinte:
«6. Por outro lado, importa referir que o processo de aquisição da sociedade C... (titular de um alvará de farmácia) por parte do ora Requerente, se destinou a formalizar juridicamente a detenção da referida farmácia – a C... detinha como principal ativo uma farmácia – por parte deste ao abrigo do regime consignado no DL n.º 307/2007, de 31.08.
7. Dito de outra forma: não estando o senhor H... habilitado — face à legislação anteriormente vigente — a possuir um estabelecimento farmacêutico, a operação de entrada no capital e aquisição da C... não foi mais que a forma jurídica utilizada para permitir regularizar a propriedade jurídica da farmácia, o que lhe estava anteriormente vedado.
8. Equivale isto a dizer que todos os negócios jurídicos titulados em nome do sujeito passivo A... foram efectuados no interesse exclusivo do ora Requerente, uma vez que o proprietário efectivo da sociedade sempre foi o senhor H..., assim se evidenciando o interesse legítimo na sub-rogação do pagamento do ato tributário referente a IRS de 2009». (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).
v) Através de despacho de 28-11-2013, o Serviço de Finanças deferiu o pedido de pagamento com sub-rogação da liquidação de IRS de 2009, tendo sido dada ao sujeito passivo a possibilidade de beneficiar do Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Fiscais, com dispensa de pagamento dos juros, caso efectuasse o pagamento da quantia de imposto no valor de € 326.026,75 até 20-12-2013 (cfr. documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
w) A 04-12-2013 o D... efectuou o pagamento da liquidação de IRS de 2009 ora sindicada pelo montante acima melhor identificado no ponto precedente (cópia dos comprovativos junto ao pedido de pronúncia arbitral como documento n º 12, cujos teores se dão como reproduzidos);
x) Em 28-02-2014, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.1. Factos não provados
2.1.1. Não se provou que a transformação da sociedade B... Unipessoal Lda em sociedade anónima tivesse como único ou primordial objectivo possibilitar à Requerente efectuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, após a transformação em sociedade anónima e redenominação do capital em acções, pelo valor de € 3.696.597,70 com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida.
Apesar de nenhuma prova positiva se ter produzido nesse sentido, é admissível nesta matéria fazer apelo a presunções naturais.
Conforme frisa Courinha ( [1] ), «a prova da motivação fiscal nestas Cláusulas Gerais é feita, como vimos, com recurso a factos ou elementos de prova que permitam ao intérprete (v.g. julgador) extrair, com razoável segurança e segundo critérios de razoabilidade e normalidade, a conclusão de que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um preponderante fim fiscal. (...) Os dados objectivos recolhidos e presentes ao intérprete devem pois permitir-lhe retirar, de modo directo ou se necessário por recurso a ilações ou presunções judiciais, a conclusão sobre a verificação ou não do elemento motivacional, ainda que com possibilidade, sempre salvaguardada, de demonstração pelo contribuinte da existência de uma decisiva motivação não fiscal no quadro do ato ou negócio».
No entanto, no caso em apreço não há elementos que permitam formular uma presunção natural no sentido de a motivação predominante ou exclusiva da transformação da sociedade fosse a obtenção de vantagem fiscal.
Por um lado, o único facto em que a Autoridade Tributária e Aduaneira assenta a presunção de que o único objectivo da transformação foi a obtenção da exclusão da tributação de mais-valias, é o de a sociedade, depois de transformada, manter, entre 2006 e 2010, um tipo de actividade semelhante com uma estrutura de pessoal semelhante, própria de uma pequena empresa, facto este que contrariaria a motivação invocada pela gerência da sociedade por quotas para justificar a transformação, pois o tipo de sociedade por quotas encontra-se vocacionado para uma pequena empresa de cariz familiar.
Na motivação invocada para a transformação refere-se, em suma, que o tipo de sociedade por quotas, adequado a uma pequena empresa de cariz familiar, constitui uma restrição a uma empresa em desenvolvimento e que a natureza de sociedade anónima melhora a imagem junto de instituições financeiras, clientes e demais agentes económicos, permite obter melhores condições junto de fornecedores e bancos e a penetração junto de clientes, para além de facilitar a mobilidade de capital, atraindo maior investimento.
Como se vê, perante este conjunto de factores justificativos, a Autoridade Tributária e Aduaneira apenas se baseia na invocada manutenção do tipo de actividade e tipo de empresas entre 2006 e 2010, apesar de a primeira versão do Relatório da inspecção, que esteve subjacente à aplicação da cláusula geral antiabuso, ter sido efectuado em Outubro de 2013, dois anos e 10 meses depois do período considerado para avaliar a evolução da nova sociedade.
Para além disso, do facto de a estrutura e actividade da empresa não se ter alterado significativamente entre 2006 e 2010, não se pode concluir que seja falso o primeiro motivo invocado para a transformação, pois, como se sabe pela experiência comum, nem sempre se tem êxito naquilo que se pretende realizar e os resultados obtidos nem sempre correspondem ao planeado e pretendido. Por outro lado, é facto notório que a rentabilidade das farmácias tem vindo a ser fortemente afectada desde 2008 o que permite concluir que haja restrições a novos investimentos no sector.
Ainda por outro lado, a Autoridade Tributária e Aduaneira não invoca sequer que não correspondam à realidade os outros fundamentos invocados, designadamente as maiores potencialidades de uma sociedade anónima nas relações com os bancos, fornecedores e clientes e a maior facilidade de obtenção de investimento.
Por isso, tem de se concluir que a Autoridade Tributária e Aduaneira não demonstrou que não corresponda à realidade qualquer dos objectivos invocados para a transformação.
2.1.2. Não se provou que a transformação da sociedade visasse regularizar a propriedade jurídica da farmácia referida nos autos.
Nenhuma prova foi feita deste alegado desígnio, nem ele é aventado no relatório justificativo da transformação.
2.2. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
A decisão da matéria de facto baseou-se nos documentos juntos pelas partes e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles, a não ser quanto à realidade ou não da motivação invocada para a transformação das sociedades referida nos autos, ponto em que a decisão da matéria de facto assenta no que se refere no ponto anterior.
3. Matéria de direito
A questão essencial que é objecto do presente processo é a da verificação ou não dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso.
A Requerente invoca também falta de fundamentação do acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, designadamente por não terem sido levados em conta os elementos que forneceu no exercício do direito de audição.
3.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo
Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ( [2] ): o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».
Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.
Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ( [3] ) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.
A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal» ( [4] ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema» ( [5] ). Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»( [6] ).
Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem ( [7] ).
Sub iudice, sucintamente, a Requerente contesta que configure planeamento fiscal abusivo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, por considerar que o negócio jurídico se insere numa estrutura de actos e negócios jurídicos tendentes à expansão da sua actividade, por entender que a estrutura de capital e organizativa das sociedades anónimas se afigura mais adequada para o potenciar o crescimento da sociedade; comportamento que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende constituir um planeamento fiscal abusivo, na medida em que, através daquela transformação em sociedade anónima, que considera desnecessária e fiscalmente motivada, e subsequente venda de acções (em vez de quotas), a Requerente evita a tributação de mais valias em sede de IRS.
Assim sendo, a questão colocada a este tribunal, na sequência do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso — um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo —, reside em saber se a actuação do sujeito passivo se situa intra ou extra legem, ou seja, se o planeamento fiscal que adoptou é legítimo ou ilegítimo, se é não abusivo ou abusivo.
3.2. Elementos da cláusula geral antiabuso
Sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.
A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:
«São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».
Esta norma é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ( [8] ).
Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:
– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal ( [9] );
– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente ( [10] );
– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» ( [11] );
– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »( [12] );
– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).
Apesar desta descontrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente» ( [13] ).
Apreciemos, tendo este aspecto em consideração, os elementos da cláusula geral antiabuso tendo em atenção a fundamentação da decisão, os factos provados, e a argumentação jurídica das partes.
Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do acto que decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio acto e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os actos que são objecto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.
A Autoridade Tributária e Aduaneira fundamentou a sua decisão, alegando, em síntese, que:
i) Não existia nenhum motivo de natureza económica que possa justificar a alteração da natureza jurídica de sociedade por quotas para sociedade anónima porquanto, pelo menos entre 2006 e 2010, o nível de actividade foi semelhante, assim como as sua estrutura de pessoal, devendo face à sua realidade operacional, ser considerada uma pequena empresa;
ii) De acordo com o relatório justificativo da transformação jurídica da sociedade por quotas em sociedade anónima, a transformação em sociedade anónima e justificada pela necessidade de adequação da sua estrutura jurídica - societária às necessidades reais da empresa ,sendo aí referido que, o tipo de "sociedade por quotas", se encontra especialmente vocacionado para a organização da pequena empresa, ou de cariz familiar;
iii) Dos factos descritos é bem evidente que a C... sempre foi uma pequena empresa de cariz familiar (veja-se quem foram os sócios/accionistas) e, assim sendo, teria que se concluir que a formula jurídica mais adequada seria a de sociedade por quotas e não a de sociedade anónima.
iv) Nem no processo de divisão da quota única, nem no processo de transformação em sociedade anónima se ter verificado a reforço do capital ou a entrada de novos accionistas, relevantes para a gestão, que pudessem contribuir para a criação de uma outra estrutura empresarial que não a existente, de cariz marcadamente familiar;
v) O facto do adquirente das acções, em 2009, ter começado a fazer parte da estrutura societária/accionista exactamente na altura das alterações jurídicas da sociedade verificadas no final de 2007;
vi) O acto ou negócio jurídico da transformação da sociedade "B..., Unipessoal Lda" em sociedade anónima não resultou, conforme os factos descritos comprovam, da necessidade de ajustar a sua natureza jurídica a qualquer alteração na sua estrutura operacional; no entanto, teve como consequência possibilitar à Sr.ª A... efectuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, após a transformação em sociedade anónima e redenominação do capital em acções, pelo valor de € 3.696.597,70 com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida – € 3.261.997,70 – (€ 3.696.597,70-€ 434.600,00), por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS e, por esta via, evitar o pagamento de IRS no montante de € 326.199,77”.
A Requerente alega, em síntese, que:
i) A operação de transformação dá sociedade B… em sociedade anónima destinou-se a regularizar a propriedade jurídica da farmácia ao abrigo do D.L. 307/2007;
ii) Não se mostram preenchidos os requisitos legais da aplicação da cláusula geral antiabuso;
iii) Não basta, assim, que o sujeito passivo opte pela via fiscalmente menos onerosa, e necessário que o negócio jurídico seja efectuado em abuso de forma jurídica e consubstancie negócio artificioso destinado, principalmente ou exclusivamente, a reduzir a carga fiscal.
iv) O negócio sindicado - a transformação da sociedade unipessoal por quotas numa sociedade anónima - não revestiu uma forma anómala ou artificiosa ou com abuso de formas jurídicas, tendo em consideração os fins com ele visados, sendo que, ao invés, os meios jurídicos utilizados foram negócios típicos legalmente previstos para a realização dos fins em vista;
v) Não decorre de qualquer imposição ou limitação legal que uma pequena empresa deva assumir a forma jurídica de sociedade por quotas, uma vez que a constituição de uma sociedade anónima não está actualmente sujeita a um volume de negócios mínimo;
vi) Inexistindo qualquer intenção legislativa de limitar o acesso à forma societária de sociedade anónima, a transformação da C... neste tipo societário não pode ser visto como um negócio fraudulento ou artificial tendo em vista a obtenção de uma vantagem fiscal não querida pelo legislador;
vii) A estrutura ou cariz familiar de uma empresa não condiciona juridicamente a possibilidade da sua organização como sociedade anónima, nem sequer a abertura ou reforço e capital numa SA está condicionada à natureza das relações pessoais existentes entre os accionistas;
viii) Os actos de transformação e venda das participações ocorreram em três períodos fiscais distintos, o que indicia a sua natureza não fiscal;
ix) Não foram tomados em conta os factos invocados pela ora Requerente no exercício do direito de audição, o que viola os artigos 54.º, n.º 1, alínea a), e 60.º, n.º 7, da LGT e 4.º 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, pelo que o acto enferma de vício de falta de fundamentação;
x) À data da transformação da sociedade não existia intenção exclusivamente ou preponderantemente de levarem a cabo uma alienação com vantagem fiscal;
xi) Existe uma motivação económica para os actos e negócios descritos pela Administração Tributária;
xii) A vantagem obtida não é contrária à ratio legis, pelo contrário, insere num quadro legislativo tendente à adopção do modelo de sociedade anónima.
3.2.1. Elemento resultado
Comparando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das acções (actos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (actos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação beneficiava de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objecto de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, a segunda é considerada uma mais valia, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do CIRS, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.
3.2.2. Elementos meio e intelectual
Embora a constatação antecedente baste para preencher aquele requisito, o seu preenchimento é, por si só, irrelevante para a aplicação da cláusula geral antiabuso, em função da estrutura de actos e negócios jurídicos realizados: «em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si só qualquer ideia de abuso jurídico» ( [14] ).
A denominada «step transaction doctrine», teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e que está subjacente à argumentação da Autoridade Tributária e Aduaneira, consiste na consideração do conjunto complexo de actos ou negócios jurídicos que surgem numa arquitectura global, planeada, composta por actos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do acto ou negócio jurídico que é objectivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se detecta o desenho elisivo ( [15] ).
No que toca ao preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso atinentes aos elementos meio e intelectual, os Requerentes alegam existirem razões que vão para além das meramente fiscais a justificar a concretização das operações em causa.
Pelo que já se disse a propósito da fundamentação da decisão da matéria de facto não há elementos que permitam formular uma conclusão no sentido de a obtenção de vantagem fiscal, ter sido o motivo exclusivo ou primacial da operação de transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.
No mínimo, terá de se ficar numa situação de dúvida sobre o objectivo visado pela transformação, dúvida essa que, por força do preceituado no n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, tem de ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, o que tem os mesmos efeitos práticos que a prova positiva de que não foi de natureza fiscal o objectivo prosseguido.
Assim, tem de se concluir que não se verifica um dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, que é o de o acto ou negócio jurídico ser essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos se ele não fosse praticado.
3.2.3. Elemento normativo
O legislador não é particularmente exigente no que toca à fundamentação deste aspecto atinente à reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, no entanto, a doutrina tem vindo a considerar que este é fundamental na distinção entre planeamento legítimo e ilegítimo.
Na pena de Saldanha Sanches, é «necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador» ( [16] ). Com efeito, sublinha, deve ser possível extrair-se uma «intenção inequívoca de tributação» ( [17] ), pelo que não basta haver uma lacuna ou uma disposição menos clara.
Este autor dá, inclusive, como exemplo de «lacuna consciente de tributação» a situação que aqui é objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções), sublinhando que «se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais» ( [18] ).
Efectivamente, «mesmo que a transformação [fosse] motivada por razões exclusivamente fiscais», é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.
E fê-lo deliberada e insistentemente, pois trata-se de uma norma várias vezes revista e ponderada.
Na verdade, na redacção inicial do CIRS, previa-se já a tributação em IRS das mais-valias obtidas com a «alienação onerosa de partes sociais» [artigo 10.º, n.º 1, alínea b), na redacção do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro], mas excluíam-se as mais-valias provenientes da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses» [artigo 10.º, n.º 2, alínea c)], limite temporal este que tinha como objectivo evidente afastar a exclusão da tributação relativamente a mais-valias que, no conceito então vigente, eram consideradas especulativas.
Esta regulamentação era completada com a que constava do EBF, na redacção inicial, dada pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, em que se estabelecia o seguinte:
Artigo 35.º (EBF)
Transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas
Para efeitos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, da alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS e do artigo 34.º deste Estatuto, considera-se que a data de aquisição de acções resultantes da transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas é a data da aquisição das quotas que lhes deram origem.
Esta norma, que tinha em vista o regime transitório, era completada com uma norma idêntica de aplicação permanente, que constava do artigo 18.º, n.º 5, alínea a), do EBF.
Estas duas normas evidenciam a enorme dimensão da preocupação legislativa em incentivar a transformação de sociedades por quotas em anónimas, que vai ao ponto de afastar a tributação em sede de mais-valias mesmo em situações em que o sujeito passivo detém as novas acções resultantes da transformação por um período muito curto, inclusivamente em situações em que a venda das novas acções é feita imediatamente a seguir à transformação, pois é precisamente a situações de detenção das novas acções por curtíssimo prazo que se aplicam as normas referidas. Isto evidencia que, ponderando os valores conflituantes nesta situação, se entendeu legislativamente prescindir da tributação em sede de mais-valias, independentemente de a vantagem fiscal concedida esse fosse o único objectivo da transformação, pois se considera de superior interesse público o resultado económico alcançado, da posterior existência de uma sociedade por acções.
Com a Lei n.º 30-B/92, de 28 de Dezembro, esta alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º passou a excluir da tributação as «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», aumentando, assim, o âmbito da não tributação da alienação de acções, ou, doutra perspectiva, a restrição do conceito de mais-valias especulativas.
A Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, reafirmou a vigência deste regime, eliminando a alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º, mas transpondo a sua redacção para a nova alínea b).
A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, eliminou a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções, mas limitou a exclusão às acções adquiridas após a sua entrada em vigor, mantendo expressamente o regime anterior para as acções adquiridas antes dessa data (artigo 4.º, n.º 5, do DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000).
Este novo regime não chegou a ser aplicado, pois a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, estabeleceu, no n.º 9 do seu artigo 147.º, que nos anos de 2001 e 2002 seria aplicável regime anterior à Lei n.º 30-G/2000 e, depois, o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, reintroduziu o regime de não tributação das mais-valias derivadas da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», ao dar uma nova redacção à alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS.
Esta redacção manteve-se até à sua revogação pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.
É, assim, manifesto, que houve uma opção legislativa deliberada, mantida com variações desde a redacção inicial do CIRS, no sentido da não tributação de algumas das mais-valias provenientes da alienação de acções, opção essa, como a da fixação de uma taxa liberatória reduzida, é justificada pela existência de uma «política de desenvolvimento do mercado financeiro», expressamente reconhecida no 5.º parágrafo do ponto 12 do Relatório do CIRS.
A «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 1/IX, que veio a dar origem à Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária para aprovar o Decreto-Lei n.º 228/2002 é elucidativa no sentido de se ter reconhecido que a não tributação das mais-valias não especulativas provenientes da alienação de acções era preferível à sua tributação dizendo-se:
Com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, que tornou indispensável a revisão do Código de IRS operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, foi alargado o âmbito de incidência a todas as mais-valias de valores mobiliários e eliminou-se a taxa liberatória de 10%.
Na sequência desta alteração as mais-valias de valores mobiliários são simultaneamente englobadas e sujeitas às taxas gerais progressivas, que se situam entre 12% e 40%.
Acresce que, de acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 30-G/2000, o referido regime de tributação das mais-valias só é aplicável aos valores mobiliários adquiridos após 1 de Janeiro de 2001, mantendo-se o anterior regime de tributação para as mais-valias quanto aos adquiridos antes dessa data.
Aquele regime tributário foi contudo alterado, transitoriamente, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2002), a qual veio estabelecer uma isenção da tributação das mais-valias relativamente a rendimentos inferiores a 2500 Euros, fazendo-se, no entanto, o englobamento, apenas, para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.
Considerando que o impacto desta reforma fiscal no mercado de capitais foi altamente prejudicial para os investidores, configurando-se como um desincentivo ao investimento, com todas as inerentes consequências negativas para o desenvolvimento de uma política de recuperação económica, urge revogar o regime de tributação das mais-valias aprovado pela Lei n.º 30-G/2000 e, posteriormente, acolhido pelo Decreto-Lei n.º 198/2001 e, em consequência, retomar o regime de aplicação da taxa liberatória de 10%, bem como da exclusão de tributação das mais-valias de valores imobiliários detidos pelo seu titular durante mais de 12 meses, tributando-se apenas as mais-valias especulativas.
O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, que reintroduziu a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular há mais de 12 meses é também elucidativo sobre a existência desta intenção legislativa ao dizer:
O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias derivados da alienação onerosa de valores mobiliários, aquando da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi significativamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.
Os traços mais salientes do quadro então instituído consistiram na abolição da exclusão tributária de que beneficiavam as mais-valias provenientes da alienação de obrigações e de outros títulos de dívida e da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, passando a incidir uma tributação generalizada sobre estes rendimentos, atenuada por uma isenção de base para os saldos positivos inferiores a determinado montante e pela consideração dos saldos positivos ou negativos em percentagem variável em função do período de detenção dos títulos pelo alienante.
Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, não chegou a ser aplicado.
O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos
Do ponto de vista sistemático, acresce a preferência manifestada pelo legislador pela adopção do modelo de organização societária da sociedade anónima, cuja adopção desde a redacção inicial do CIRS pretendeu fomentar e é patente no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que reformou um vasto conjunto de leis relacionadas com as sociedades comerciais, com especial atenção para a simplificação e eliminação de actos e procedimentos registrais e notariais (artigo 1.º, n.º 1) e para as sociedades anónimas (artigo 1.º, n.º 2: «o presente decreto-lei visa ainda actualizar a legislação societária nacional, adoptando designadamente medidas para actualizar e flexibilizar os modelos de governo das sociedades anónimas»).
Explanando as razões de política económica subjacentes à reforma, o legislador afirma, no preâmbulo daquele Decreto-Lei:
Assim, as linhas de fundo da reforma realizada por este decreto-lei prendem-se com as seguintes ideias. De um lado, a preocupação de promover a competitividade das empresas portuguesas, permitindo o seu alinhamento com modelos organizativos avançados. A presente revisão do Código das Sociedades Comerciais assenta no pressuposto de que o afinamento das práticas de governo das sociedades serve de modo directo a competitividade das empresas nacionais. Esse é o primeiro objectivo de fundo que este decreto-lei visa prosseguir, em prol de uma maior transparência e eficiência das sociedades anónimas portuguesas. Ao encetar este caminho, Portugal colocar-se-á a par dos sistemas jurídicos europeus mais avançados no plano do direito das sociedades, salientando-se o Reino Unido, a Alemanha e a Itália como países que têm identicamente orientado reformas legislativas com base nestes pressupostos. […] Importa ainda apontar o atendimento das especificidades das pequenas sociedades anónimas como preocupação que esteve subjacente à preparação deste decreto-lei”.
Neste contexto, detecta-se uma opção legislativa deliberada no sentido de afastar a tributação das mais-valias não especulativas, como incentivo à criação de sociedades anónimas, formas de organização mais avançada, que proporciona tendencialmente gestão mais profissionalizada e eficiente, com benefícios para a economia em geral e, reflexamente, para o próprio interesse da tributação de rendimentos empresariais.
Por outro lado, é de notar que a afirmação do interesse público em não tributar as mais-valias não especulativas derivadas da detenção de acções foi, conscientemente, considerado superior ao da arrecadação das receitas que a tributação podia gerar e que esta afirmação foi efectuada já depois da Lei Geral Tributária ter previsto a cláusula geral antiabuso, no seu artigo 38.º, n.º 2.
Sendo assim, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira, num Estado de Direito, assente na soberania popular, no princípio da separação de poderes e no primado da Lei (artigos 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), deixar de acatar os juízos de valor legislativamente formulados, não podendo sobrepor os seus próprios juízos sobre a gestão de interesses públicos à ponderação de valores conflituantes efectuada legislativamente, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.
Isto é, mais concretamente, tendo o legislador expressamente considerado o interesse público da criação de sociedades anónimas superior ao interesse na tributação de mais-valias não especulativas e materializado a sua preferência num incentivo à criação de sociedades anónimas, criando para os detentores do seu capital um regime fiscal privilegiado em relação aos detentores do capital de sociedades por quotas, não pode, por via da aplicação da cláusula geral antiabuso, ser inviabilizado, por via administrativa, esse objectivo legislativo, aplicando àqueles que deram satisfação àquele interesse público através da criação de sociedades anónimas o regime que lhes seria aplicável se o não tivessem satisfeito.
Ou, doutra perspectiva, talvez mais clarificadora, não se poderá, em regra, numa situação de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónima, entender que o acto foi essencial ou principalmente dirigido à satisfação de interesse fiscal dos intervenientes (como exige o n.º 2 do artigo 38.º da LGT para ser accionada a cláusula geral antiabuso), pois esse acto, objectiva e forçosamente, com vontade do sujeito passivo ou sem ela, dirige-se sempre à satisfação do interesse público do incremento da criação de sociedades anónimas, interesse este que, na óptica legislativa, é sempre o essencial ou principal a atender nessa situação, para efeitos de tributação.
Por isso, em situações deste tipo, de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, o abuso de formas jurídicas indispensável para viabilizar a aplicação da cláusula geral antiabuso e a existência de uma intenção contrária ao desígnio legislativo só são perscrutáveis em situações em que não possa considerar-se satisfeito aquele interesse público da criação de sociedades anónimas, como, por exemplo, poderá suceder em situações em que a criação da sociedade anónima não é seguida da sua manutenção como realidade económica por um período de tempo apreciável.
No caso em apreço, é inequívoco que não se verifica uma situação desse tipo e, por isso, foi satisfeito com a operação de transformação da sociedade por quotas em sociedades por acções o interesse que, na perspectiva legislativa, é o principal a atender, superior ao da própria tributação.
Por outro lado, não se vislumbra nesta actuação da Requerente, em perfeita sintonia com o desígnio legislativo que se visou atingir com criação de um regime mais favorável de tributação dos detentores de acções, o uso de qualquer meio artificioso ou fraudulento ou abuso de formas jurídicas (como exige a aplicação da cláusula geral antiabuso) já que a transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas está expressamente prevista na lei como um meio normal de criação de sociedades deste tipo (artigos 1.º, n. 2, e 130.º do Código das Sociedades Comerciais), inclusivamente no âmbito da tributação do rendimento [artigo 43.º, n.º 6, alínea b), do CIRS]. O que, decerto, constituiria artifício ou fraude legislativa, incompaginável com o princípio constitucional da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, seria incentivar legislativamente os sujeitos passivos de IRS à criação de sociedades anónimas, através do anúncio da atribuição de uma vantagem fiscal e, uma vez satisfeito o interesse público que se visava com tal incentivo, não lhes reconhecer o direito à vantagem prometida.
Consequentemente, não se verifica uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, desde logo por não existir um acto que possa considerar-se dirigido essencial ou primacialmente à obtenção de vantagens fiscais, pois ele foi forçosamente dirigido também à criação de uma sociedade anónima, mas também por não ter sido utilizado qualquer meio artificioso ou fraudulento para obtenção de vantagens fiscais.
Esta interpretação não é desconforme com a Constituição, designadamente com o princípio da capacidade contributiva, da igualdade, da legalidade e da neutralidade fiscal.
A eventual violação desses princípios apenas poderá emergir da própria diferença de tratamento legal entre a venda de quotas e a venda de acções e não da interpretação que ora se efectua, sobre a não verificação de uma situação de aplicação da cláusula geral antiabuso. Por outro lado, aqueles princípios não representam valores absolutos, não havendo obstáculo constitucional a que eles sejam limitados para prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos, como sucede, nomeadamente, com a generalidade das situações em que são concedidos benefícios fiscais. No caso, essa diferença de tratamento, conforme supra se expôs, resulta de um longo e reiterado caminho percorrido pelo legislador, que tem evidenciado a vontade de não tributar essas situações e de privilegiar e promover a adopção de um «modelos de governo das sociedades anónimas». Enquadra-se num quadro legislativo que não se limita, à dinamização do mercado bolsista, pois a criação de sociedades anónimas, que são uma forma mais avançada de organização das sociedades comerciais e potenciadora de maior concentração de capital e maior eficiência económica, alinha-se com a primeira das incumbências prioritárias do Estado arroladas no artigo 81.º da CRP, que é a promoção do aumento do bem estar económico e qualidade de vida das pessoas, que pressupõe a criação de riqueza e a adopção de formas de organização das empresas que potenciem.
Em qualquer caso, o alegado no presente processo pela Autoridade Tributária e Aduaneira no sentido de completar esta parte da fundamentação do Relatório da Inspecção Tributária não aproveitam a essa mesma fundamentação, uma vez que não é admissível a (ampliação da) fundamentação do acto de liquidação a posteriori.
Na verdade, num contencioso de mera legalidade, como é o previsto no RJAT para os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, em que se visa apenas a declaração de ilegalidade de actos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º, tem de se aferir da legalidade do acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.
Assim, não pode o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos e deixar de declarar a ilegalidade do concreto acto praticado por, eventualmente, existir a possibilidade abstracta um hipotético acto com conteúdo decisório total ou parcialmente idêntico, com outra fundamentação, que seria legal, mas não foi praticado. ( [19] )
Conclui-se, assim, que, mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda de quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções.
Uma situação destas, em que o legislador resistiu longamente a eliminar tal regime mantendo uma «lacuna consciente de tributação», não se mostra susceptível de aplicação da cláusula geral antiabuso, em situações em que foi atingido o fim legislativamente visado. E não cabe ao aplicador da lei substituir-se às opções de tributar ou não tributar certas realidades seguidas pelo legislador fiscal.
3.2.4. Elemento sancionatório
Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral antiabuso, não há lugar à aplicação da estatuição do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente ao que entendeu a Autoridade Tributária e Aduaneira.
4. Conclusão
Conclui-se, assim, que não se verificam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso.
Consequentemente, é ilegal o acto de liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida, que tem como pressupostos a verificação dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, por violação do preceituado no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRS liquidação n.º …, no valor de € 373.071,97, relativa ao ano de 2009, por enfermar de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).
5. Juros indemnizatórios
A Requerente pede «restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios a computar entre a data do pagamento e a emissão da correspondente nota de crédito, conforme estatuído no artigo 43° da LGT».
Os direitos à restituição da quantia paga indevidamente e a juros indemnizatórios estão conexionados com o dever que recai sobre a Administração Tributária de «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», previsto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, em sintonia com o disposto no artigo 100.º da Lei Geral Tributária.
Porém, o direito à restituição da quantia paga depende, obviamente, de ter sido efectuado o pagamento por aquele que pretende a restituição.
Por outro lado, visando os juros indemnizatórios ressarcir quem pagou do prejuízo que presumivelmente lhe provocou o pagamento indevido da prestação tributária, apenas aquele que pagou e sofreu o prejuízo presumido tem direito a receber tais juros.
No caso em apreço, como resulta da matéria de facto fixada, a Requerente não pagou a quantia liquidada, pelo que não tem direito à pretendida restituição nem a juros indemnizatórios. ( [20] )
Improcedem, assim, os pedidos de restituição da quantia paga e de juros indemnizatórios formulados pela Requerente.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do Novo CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 369.651,80.
7. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade da liquidação de IRS e juros compensatórios n.º …, na parte correspondente ao valor € 369.651,80;
b) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral na parte em que é pedida a restituição da quantia paga e juros indemnizatórios.
8. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 6.120,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 22-07-2014
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Luís Menezes Leitão)
(Paulo Lourenço)
[1] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula…, pp. 166-167)
[2] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.
[3] Cfr. AcTCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.
[4] Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.
[5] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.
[6] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.
[7] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.
[8] Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).
[9] Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».
[10] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».
[11] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.
[12] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.
[13] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».
[14] Cfr. Leite de Campos, Diogo, e Costa Andrade, João, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Almedina, Coimbra, 2008, p. 82.
[15] «Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, naquela que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da realização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe seguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula…, pp. 166-167).
[16] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 180.
[17] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 180-181.
[18] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 182.
[19] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso:
– de 10-11-98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em Apêndice ao Diário da República de 12-4-2001, página 1207;
– de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em Apêndice ao Diário da República de 10-2-2004, página 4289;
– de 09/10/2002, processo n.º 600/02;
– de 12/03/2003, processo n.º 1661/02.
Em sentido idêntico, podem ver-se:
– MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 479 em que refere que é «irrelevante que a Administração venha, já na pendência do recurso contencioso, invocar como motivos determinantes outros motivos, não exarados no acto», e volume II, 9.ª edição, página 1329, em que escreve que «não pode (...) a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto recorrido por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa»;
– MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Volume I, página 472, onde escreve que «as razões objectivamente existentes mas que não forem expressamente aduzidas, como fundamentos do acto, não podem ser tomadas em conta na aferição da sua legalidade».
[20] Isto não significa que não possa ter esses direitos quem efectuou o pagamento, o que não é objecto do presente processo.